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RESUMO
ABSTRACT
Para Rousseau, representação é aquilo que temos a todo o tempo no que ele
denomina sociedade civil, que é um grande alvo de críticas em toda a sua obra.
Representação, para o autor, está relacionada com aparência, com velamento e,
em algumas passagens, até mesmo com falsidade. Em contraposição a estas
expressões, temos essência, verdade, autenticidade, sinceridade e transparência.
Em outras palavras, enquanto para Arendt a representação na política não só não é
negativa, como é algo que deve ser preservado, para Rousseau a representação
deve ser afastada, e as pessoas devem buscar manifestar-se, em todos os campos,
inclusive na política, de forma autêntica e transparente, o que significa dizer sem
mediações.
Como se vê, temos aqui dois sentidos da palavra representação. Para Arendt, é
justamente para garantir a representação, no sentido de aparecimento e revelação
pública que se deve afastar a representação política. Para Rousseau, a
representação política, quando aplicada ao poder legislativo, é mais uma forma de
falseamento e de substituição do que é essencial pelo que é superficial que a
representação, no outro sentido, possibilita. Ou seja, para o autor, os dois sentidos
de representação se confundem, podendo a representação política ser praticamente
uma espécie do primeiro.
Assim sendo, artifício, para Rousseau, tem um duplo significado: ao mesmo tempo
em que trouxe as agruras da vida do homem em sociedade pode trazer o
estabelecimento de uma sociedade moral, em que os homens estejam orientados
pelo dever, ajam tendo em vista o bem comum e, para citar uma expressão já
consagrada, estejam "obrigados a serem livres". O Contrato Social, com isto,
poderá "ordenar" artificialmente a "desordem" artificial.
O contrato social poderia ser visto como a "saída política" oferecida por Rousseau
para os problemas apresentados pela sociedade civil. No entanto, há efeitos desta
presentes em todas as esferas das relações humanas, que dizem respeito à
valorização do luxo e das aparências. Para afastar essas características, Rousseau
parece apontar em suas obras não propriamente políticas ser necessário, além do
contrato social estabelecido por convenção, buscar a natureza das coisas, em todos
os campos da vida. É nesse sentido que Rousseau desenvolve as suas reflexões
sobre a educação de um cidadão em Emílio. Ali, percebe-se a busca pelas
sensações e experiências mais autênticas, desde o momento da infância, para que
só a partir delas possa se chegar à razão. Nesta educação, segundo o autor, está o
antídoto contra o deslumbramento provocado pela vida em sociedade (é a francesa
do século XVIII, a que o nosso autor se refere) e a garantia de que o cidadão
daquela forma educado possa ser um cidadão sóbrio, com sólidos sentimentos de
justiça e preparado para não somente pensar em seus interesses, mas também
viver em comunidade. O projeto de educação de Rousseau pode ser visto como um
projeto para levar o indivíduo à razão. Ora, o contrato social, obviamente, é um
projeto de racionalidade, tanto no aspecto de cálculo, ou seja, de tornar as ações
políticas previsíveis e inseridas num âmbito de moralidade, quanto no aspecto de
justificação e de legitimação dessas mesmas ações (Viroli, 1992).
"Todo feito tem seus motivos, bem como seu objetivo e seu princípio; mas o
próprio ato, embora proclame seu objetivo e torne manifesto seu princípio, não
revela a motivação íntima do agente. Seus motivos permanecem obscuros, não
aparecem, antes se escondem, não apenas dos outros, como também de si próprio
e de sua auto-análise. [...] Na política, mais do que em qualquer outro campo, não
temos possibilidade de distinguir entre o ser e a aparência. No mundo das relações
humanas, o ser e a aparência são, de fato, uma só e a mesma coisa" (Arendt,
1988, pp. 77-78).
Outra diferenciação que poderia ser feita entre a concepção de natureza entre os
dois autores é que, para Rousseau, a busca pelas referências naturais e pela crítica
que estas podem oferecer a um determinado estado de coisas é traduzida na busca
pelas experiências originárias, sem qualquer interferência artificial, como
exaustivamente apontado em Emílio. Esta busca pela essência de cada experiência
é o que dá profundidade nas relações do homem com o espaço físico e, mais tarde,
na relação do homem com outros homens. A busca da essência de cada experiência
é o que pode levar, na visão de Rousseau, a uma visão racional e universal do
mundo e, portanto, da política.
Para Hannah Arendt, como se vê, ator e espectador estão em locais diferentes e
têm posições distintas num mesmo acontecimento político. É o ator, claro, que
realiza a ação política, atividade humana por excelência, que é marcada pela
espontaneidade. Esta ação,como Arendt define com clareza em sua obra, é
marcada pela pluralidade. Esta pluralidade, a autora não diz, mas poderia ter dito,
somente se evidencia quando o espectador assiste às diversas ações e pode
verificar a singularidade de cada uma delas e a multiplicidade de todas elas. Esta
distinção feita por Arendt entre ator e espectador somente é possível porque ela vê
o espaço político como aquele em que os atores "aparecem" em público. Nesta
representação, há espectadores que têm, por meio de seu senso comum, a
capacidade de emitir juízos políticos.
Na obra de Rousseau, a relação entre ator e espectador se dá, mais uma vez, de
forma um pouco diferente. Embora para ele haja também uma possibilidade de o
sujeito sair de si por meio da imaginação, isto não é feito na condição de
espectador. Para ele, esta transcendência de si mesmo possibilitada àquele que age
politicamente se dá pela pitié, que proporciona que ele abandone o amor próprio e
desenvolva o amor-de-si, que é justamente o sentimento que permite apreciar e
desejar a vida em comunidade com os demais, sem qualquer mediação do
interesse (Salinas Fortes, 1997, p. 62)2. Ainda que esta capacidade de sair de si do
sujeito rousseauniano seja semelhante à do espectador arendtiano, há uma
diferença fundamental. Para Rousseau, numa comunidade política soberana, com
todos fazendo parte do corpo político e exercendo sem intermediários o poder de
legislar, ator e espectador coincidem. Nem poderia ser diferente. Se há uma
comunidade soberana, não há o "aparecimento" de uns para os outros. Todos
fazem parte do soberano e todos participam da ação. Isso é possível por meio de
sua formulação de vontade geral, que "funde os diversos grupos da sociedade
republicana numa única essência, tornando cada homem ao mesmo tempo ator e
espectador" (Freitas, 2003, p. 43). Não é por outra razão que as festas populares
são, para nosso autor, uma metáfora da unidade da comunidade soberana:
Aqui é necessário fazer uma observação. A beleza com que Rousseau descreve as
festas populares que seus comentadores apontam e exploram positivamente é
muito semelhante àquela com que Arendt descreve a formação e a atividade dos
conselhos presentes em diversas situações revolucionárias presentes na experiência
política do século XX, já citada aqui e também apontada positivamente por seus
comentadores. Mas por que são tão diferentes? Como bem identificado na citação
acima, para Rousseau, nas festas populares, metáfora de uma comunidade política
soberana, o que a espontaneidade e a autenticidade possibilitam é a união dessa
mesma comunidade. Nos conselhos arendtianos, a espontaneidade de sua formação
e de suas decisões são demonstrações da pluralidade que marca o espaço político.
A separação entre ator e espectador efetuada por Arendt e a unidade entre estes
idealizada por Rousseau abrem nossa reflexão para duas idéias que podem ser
consideradas fundamentais na diferenciação de suas respectivas teorias políticas e,
por isso mesmo, do tratamento que cada um dá ao tema da representação política.
Estas idéias são a pluralidade, que é a condição humana que marca a ação política,
segundo Hannah Arendt, e a unidade, que caracteriza as comunidades políticas,
segundo Rousseau. Elas, por sua vez, guardam relação estreita com outro tema
caro à política e aos nossos dois teóricos: a vontade.
Inicio esta seção com duas pendências: a oposição de tratamento dado à razão por
Arendt e Rousseau e como pluralidade e unidade podem emergir na obra de cada
um desses autores. Sem querer esgotar estes temas, mas sim indicar uma possível
leitura, começo abordando a vontade.
Como é bem explicitado em várias obras de Hannah Arendt, tendo sido objeto
específico de um ensaio, para ela ação política e vontade não estão relacionadas3.
Destaco aqui que a vontade é afastada da política por Hannah Arendt por ela estar
associada com prescrição e determinação futura de ações. Isto, como fica claro na
obra de nossa autora, é incompatível com a idéia de espontaneidade e com a
imprevisibilidade que são características essenciais da ação política tal como
formulada por ela. A ausência da vontade na política arendtiana permite (ou
condena) a autora a ter uma concepção fraca de lei e afastar lei e vontade do
conceito de poder.
Para Arendt, unidade não é algo a ser buscado. Ao contrário, muitas vezes tratando
unidade como sinônimo de homogeneidade, é algo a ser combatido, pois, entre
outras coisas, a homogeneidade era uma das características atribuídas ao povo
pelos governos totalitários. Para ela, ao invés disso, o conjunto de pessoas que
formam uma comunidade política – povo – devia ser vista como uma pluralidade de
pessoas, cada uma com suas diversas capacidades de manifestação, inclusive
política. É neste sentido que ela enaltece a concepção de governo dosfounding
fathers norte-americanos, especialmente de James Madison: "Segundo ele, partido
e facção correspondem, no governo, às múltiplas vozes e diferenças de opinião que
devem continuar existindo ‘enquanto a razão do homem permanecer falível, e ele
tenha liberdade de exercitá-la’" (Arendt, 1988, p. 74). E é neste sentido também
que ela defende e incorpora a concepção de povo presente nos Artigos
federalistas4. Como bem destacado em sua obra, e já afirmado aqui, a pluralidade é
a própria condição da política. Para que essa pluralidade seja permanentemente
possível, é necessário que nada esteja prescrito, determinado ou calculado.
Se pudéssemos reduzir tudo isso em poucos termos, para Rousseau, a
espontaneidade com adição de racionalidade resulta em unidade. Para Arendt, é
necessário que não haja racionalidade, pelo menos não aquela formulada por
Rousseau, para que se realize a pluralidade.
A isto devemos acrescentar que, para haver espontaneidade, para Rousseau, como
já dito, não deve haver nenhum tipo de mediação entre o ator e sua ação, nem
entre ator e espectador. A idéia de unidade, no mundo político rousseauniano, é,
portanto, incompatível com a idéia de representação. Para Arendt, que não postula
pela unidade, mas pela pluralidade, é da mediação entre o ator e sua ação – a ação
é sempre apresentada – e entre ator espectador, que se obtém a pluralidade, que
se realiza na diversidade de possibilidades de ação de um ator, que age sem
nenhuma determinação ou prescrição, e da multiplicidade de interpretações e
julgamentos possíveis de serem efetuados pelos espectadores.
De volta à representação