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CONTOS DO AMOR E DA MORTE

Contos do amor e da
morte

Ricardo de Almeida Rocha

Ricardo de Almeida Rocha


CONTOS DO AMOR E DA MORTE

Sumário
1. A morte ........................................ página

2. Como quem sonha ........................................ página

3. ........................................ página

4. Nada era tão grande ........................................ Página

5. Viagem para fora do corpo ........................................ Página

6. Sombra tênue e fresca ....................................... página

7. Sob o caos aparente ....................................... Pagina

8. Aquele nobre corpo ....................................... Página

9. Não como as flores ...................................... Página

10. Em meados de julho ...................................... Pagina

11. Rival de si mesmo ...................................... Pagina

12. Durante a chuva ...................................... Pagina

13. O amor como uma imensa onda ...................................... Página

14. Com a noite na alma ....................................... Página

15. Senhora dos enforcados ....................................... Página

16. Passagem ....................................... Página

17. O homem da linha ...................................... Página

18. ..................................... Página

19. .................................... Página

20. O amor

Ricardo de Almeida Rocha


CONTOS DO AMOR E DA MORTE

Como quem sonha

Dezessete anos. Pode-se dizer que Juliana é feliz, feliz como não se costuma ser
nessa idade. Antes do amanhecer está pronta para mais um dia a partir do jardim de sua
casa – um cotidiano, se sempre igual, jamais monótono: fala com as flores, sorrindo sempre;
caminha entre as árvores do quintal; sonha desperta, lembrando os sonhos que a noite e o
sono lhe trouxeram. O sonho. Na verdade o mesmo, pontualmente apresentado assim que
adormece e, quando acorda, mantendo-se a força que a conduz durante o dia.
Na escola, próximo o crepúsculo, esqueceu de todo a mesquinhez humana e já não
liga para a frivolidade social que suportou no trabalho pela manhã. No ônibus de volta para
casa, passando pela janela o brilho dos vidros nos prédios, prepara o espírito em oração,
grata por estar às portas daquele outro mundo que se abririam após o jantar.
Seus pais se preocupam com ela, pobrezinha, seus pais se preocupam.
– Estou bem, queridos. Sou tão feliz...
Mas não a escutam, entranhados de normalidade. Uma moça sadia precisa ter
amigos e sair à noite nos finais de semana e se divertir e ter um namorado. Um namorado.
Um rapaz de boa família. Um bom partido. Logo o casamento, os netos. Nada disso faz
sentido para ela mas sim o vestir da camisola, deitar-se e adormecer.
Seus olhos se fecham e eis que se abrem. Feições sobre o travesseiro abrandadas. As
gargantas levam ao túnel de pedra no fim do qual dos passos se aproxima a luz. A bem-
aventurança de uma outra era, silenciosa cúmplice do encontro à beira do lago cristalino.
Ele– o rapaz do olhar perfeito – a espera todas as noites (ali dia esplendoroso), longínquas
agora, estagnadas no quarto onde ela adormeceu. A terra do sonho, a terra da vida, onde
anjos a deixavam e retornavam às estrelas.
Silêncio. Os olhares se cumprimentam, regozijantes de ternura. A luz refulge na relva,
as mãos se encontram, eloqüentes; a brisa sussurra entre as flores.
A mulher grita.O que? Não foi trabalhar? Larga o fone e corre ao quarto da filha. O
corpo quieto ainda ocupa a cama, o dia alto entra pelas frestas da cortina. Nos lábios de
Juliana, um sorriso. Ó meu Deus! Por quê? Por quê? Minha filhinha, minha filhinha querida,
tão cheia de vida!... Por quê? Por que, meu Deus? Chorai sim vós que tendes por santuário o
razoável e por afeto o sangue e sãs as virtudes transitórias.
Ele aproxima-se e toca-lhe o rosto. Você veio. Enfim. Como foi difícil suportar a
espera! Eram seus os traços de meu reflexo nas nascentes. Perdoe-me: temi que se
integrasse e não viesse mais.
Talvez tudo (temi tantas vezes) – disse ela – não passasse de um sonho que a morte
dissiparia.
Tudo não passou de um sonho que a morte dissipou. A música do regato soa qual
oboé. s olhos carregam um brilho transcendental de dimensões. Sentem o calor um do outro
e o peso desse abraço. Tudo não passou de um sonho: agora estão livres para sempre.

Ricardo de Almeida Rocha


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O amor

Desde o dia em que a conheci, nada mais foi como antes; todas as coisas renasceram
após sua presença em minha vida, emprestando luz de seu olhar a cada nuance do que me
cercava. Era musicista. Soube-o quando voltávamos de nossa primeira aula de dublagem.
Convidou-me para entrar na casa de seus pais, após termos travado um pequeno contato
através de um motivo qualquer durante o percurso do ônibus, do estúdio a nosso bairro.
Estamos sentados longe durante a explanação do professor, o que nos induzirá a comentar a
aula, falar um pouco de cinema e da arte em geral – mas o que realmente me levou ao curso
foi o desemprego. Esqueci. Contemplo-a, recortada pelos cenários à janela.
Seu rosto se destaca como a flor no terreno baldio. As mãos muito alvas contrastam
com o sol , os pés nas sandálias são suaves serranias enevoadas. Chama-se Vera. Acontece
alguma coisa além dela em minha vida? Quero estar em seu quarto e descobrir os seus
segredos. Uma perspectiva essencial quase dolorosa de mim se apossa. Um pouco além da
porta já se vê as cenas que não podem ser entendidas na tarde fresca. Não sei o que é vida e
o que desejo. Sei que esse sol é o sol de um sonho antigo. A fachada do prédio em frente é
amarela. Essas linhas são os raios inclinados, a luz viaja desde muito longe e choca-se com o
cimento.
O jardim se faz limítrofe de dois eus.. Não que isso seja novidade. Na verdade é
quase um clichê. Não, nada mais é como antes, jamais vi uma tarde sob essa luz rósea
fulgindo do arvoredo. Ou essas frestas atravessadas que pulsam e erguem a imensa barra
de ouro. A umidade da grama está me falando alguma coisa. Diz respeito a mudança.
Beleza. Ah! Quando uma parede deixa de separar e passa a ser a referência de uma união.
Caminhamos, entrando, e nossos passos ecoam no vestíbulo espelhado. Porque há
renascimento, são tantas essas partem de mim morrendo em Vera quando me pergunta o
que eu faço. Eu lhe digo. Sou escritor. Como não subsisto de minha escrita, nesse momento a
verdade e a mentira se abraçam.
Assim eu a abracei com meus olhos, com intensidade tal que a sinto estremecer.
Está agora de costas para mim, à janela, e ali bate o meu coração. Estou ligado à realidade
por meio de seu corpo e apenas dele. As vozes... De onde? Se indagar de mim mesmo, direi
que seus pais não estão em casa, que são empregados na cozinha. Seu quarto: diáfano como
ela mesma, azulado pelo filtro de cetim. Ao lado da janela, esperando um ser cansado como
eu, uma cadeira de balanço de alguma madeira nobre e diante dela, na mesinha sobre o
tripé, duas xícaras de chá e um bule sobre a toalhinha branca. Um vaso de flores
multicoloridas. Cenário de amor para um coração de inocência com o de Vera, e um outro,
de desamores, como o meu. Caminhando próxima, marcando suavemente o tapete com
doces círculos, adiantou-se até o peitoril onde findam os taques revestidos e os músculos das
pernas se colocam-se em descanso. Gostaria de falar com você, mas não sei como começar
e nem sei se falar seja preciso.
Estar entre aquelas paredes era ter entrado num templo. A cada momento, a cada
movimento, a posse física, enquanto desejo, cede a uma emoção mais sutil, estética,
espiritual. Meu mundo paira nessa aura. Tocar em seus objetos é estar certo de que a amo
tanto. Talvez ela já tenha compreendido, é possível até a recíproca? Ser sim, num nível
correspondente, está claro, porque não sou venerável. Ela sim. Vira-se para a mim,
aproximando-me um pouco, e seu perfume impregnou minha contemplação. Sim, estou aqui.
Apalpo o violão sobre a cama, encostado à parede. A viração vespertina tremula o cetim.
Será feliz? As maiores questões da vida e do universo estão contidas na resposta.
Pega o violão e experimenta as cordas. Sou feliz quando toco, diz, ao ler meus
pensamentos. Tom-tomtom. Lagrimosa... O réquiem é um hino à vida. Quero ajoelhar-me
diante dela, abraçar seus joelhos, remido na passagem de mundos. Beijar-lhe os pés, os
dedos gordinhos, passar a lenta língua ao longo de suas pernas, beijar-la toda, no meio dos
seios, no meio do ventre, em todos os lugares. Olhando-a vejo o infinito; ouvindo-a, escuto a
eternidade. Nessa dimensão, eu posso. Ela geme no mesmo compasso do coro superposto
ao oficium de Preisner, que sabia tudo acerca da unidade de duas vidas. Uma aqui, olhe.
Estimulo-a com o nylon da própria meia. Sua mão sobre meu braço, dedos também
gordinhos, vermelhos. Seu sorriso pranteia por nosso serôdio encontro, vivificado por esse
hausto comum do inefável provindo. Em Vera eu tocava a tarde encravada no milagre.

Ricardo de Almeida Rocha


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Distraída pelos sons que executa, permite-me contempla-la com dedos incansáveis
nas aureolas curtidas. Esse colo tão branco... Meu êxtase será teu também. Disse-me que
era uma família de artistas, um pintor, um escritor, a mãe pianista. Saberão eles algo dessa
perfeita destreza? Aproxime-se, Vera, deixe-se. Não encontrará o essencial em uma
biblioteca. Talvez nem na perfeição desses dedos que acariciam Mozart. Mas aqui há alguma
coisa além, seios cuja engenhosa redondeza o próprio Deus será incapaz de reproduzir,
tremores de vestido à mesma aragem nas cortinas, o limite do tecido na coxa levemente
pressionada onde repousa o instrumento. Tom-tomtom. A virginal melodia da apetência. Não
falaremos jamais sobre essas coisas, não falaremos. Jamais. Não seremos francos nessas
horas em que coxas devolverem a lâmpadas do quarto. Palavras não terão lugar ali.
Do lado de lá da cortina, o que se vê é ainda Vera, distraída com a música,
concentrada na música, de perfil, inclinada para o lado. A seus pés, venero-a com minha
língua e com meus dedos. Solfejos se agravam pelo roseiral íngreme e a proximidade
sugerida é a do próprio Deus. Não sei se em algum momento falei sobre meu amor, se me
declarei. Não sei. Talvez não pois o som da sua voz enche o quarto, multiplicando-se pelas
paredes, permeando todos os objetos em que meus olhos pousavam. Seu canto: meu fértil
silêncio. Subia oitavas, salmões e a preservação da espécie, a perpetuação. Não sei se em
algum momento pelo olhar me disse de seu amor, em alguma das passagens de voz para
instrumento, mas certamente pousou os olhos nos meus uma única vez, quando o som da
rua invadiu o quarto violentamente e eu acabara de descer uma das alças do vestido e
libertar a rígida revelação rendilhada. Eu havia chegado então à janela, àquele aquele caos
urbano é dedicado o cântico para os mortos. Taran-taran-taran-taranlaacrimosa...
Da posição no parapeito dava para ver a rua e Vera; nossos olhares enfim se
cruzaram numa região de pactos silenciosos e desejos sublimados. Ela sorriu em meio ao
denso nevoeiro carbônico. Devolvi o sorriso. Não. Não suportei a luz de seu olhar e desviei o
meu para a azáfama lá embaixo. O que acontecerá? Mulheres aproveitam a temperatura em
declínio para sair às compras , matizam as ruas de creme e cinza e azul-escuro. As que
voltam, de braços cruzados e ombros encolhidos, lamentam não terem previsto o frio, em
pensamentos de lã, saias refinadas de gabardine e novas blusas de elegância mais espessa.
Nas galerias, há frutas chamando aos sucos e a uma graça ainda maior., se magreza for
graça, se Vera não for graciosa. Mas seu corpo permanece em flor diante de mim, delicioso e
desejável, como no ônibus, como sempre. As últimas nuvens brancas de um céu róseo
caminhavam lá no jardim sobre a grama úmida. Estarei ali em seguida, penso ao olhar as
lojas. E de fato, eis-me na galeria.
Ao lado da loja de roupas, bares e farmácias; diante da livraria seringas descartáveis
e parado à porta do cinema o amante cujo nome a mulher lá dentro se esqueceu. Mas na
loja de discos cheias de rostos por nada célebres, eram evidentes os sinais do silêncio,
porque Vera ainda cantava a meu lado. Chamado pelo contraste, estou decidido a declarar a
sinceridade de meus sentimentos mas, antes que possa começar a faze-lo, ela me pergunta
se quero tomar um lanche. Não posso senão aceitar. Dirige-se então à porta do quarto e me
pede que espere. Irá à cozinha um minuto.
Pelos instantes que estou sozinho nesse santuário, sentado à beira da cama onde ela
estava sentada, seu perfume exala promessas de futuro onde meus dedos escorridos terão
fundamental papel na procura e seu lacrimante gozo acompanhará os movimentos do tempo,
e seu sorriso agradecido será o êxtase das formas ainda ocultas, como de seu
comportamento exterior deduzi a grandeza de sua alma. Porém quando volta e de novo fixo
meus olhos nos dela, percebo que havia chorado. Pede-me que vá, por favor, buscar café e
pão, era logo ali em frente, se eu pudesse lhe fazer essa gentileza. Mas do que está
falando? O que eu não faria por ela?
Deixou-me na porta. O ar me preenche e volta ao hall. O elevador atendeu o
movimento do dedo como um animal se ergue a um chamado e a respiração e os cabos se
misturam nas indagações, Deus, sobreviverei a tanta volúpia? É esse silêncio quem diz: o
desejo pode flutuar serenamente pelas pausas; apenas na obscuridade a noite no final do
corredor surge como luz. Logo a rua ia buscar meus novos caminhos, e o réquiem se
converteu de fato nos sons do trânsito e nos gritos dos camelôs. Como se despertasse de um
sonho sereno, mesmo triste, me mantive em paz e pensei que talvez o amor seja a parceria,
a harmonia, o estar ao lado, em silêncio, e o sexo apenas o horário de almoço da empresa
mútua mais que objetivos carnais e menos que ideais românticos.
Na flama vermelha atravesso o imenso mundo que reflete em meus olhos um temível
encanto. Dói. Tudo bem, é dor diferente, fere com um sentido preciso, sem esse jeito
calmamente inútil das coisas do cotidiano normal e sem perigos. Ah, jovem mulher
adorável!... Mesmo ainda escravo de uma insegurança mórbida, tão sutil, eu aprendia que o

Ricardo de Almeida Rocha


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pior medo é o temor do medo em si, que o medo em si não é senão a matéria prima de uma
doce e longa canção.
A balconista e uma sofreada emoção. Quase uma menina, de tranças, consiste numa
evidente saudade, almoços de domingo com família reunida, ah sim, eu vivi esse tipo de
coisa também. Mas que amor é esse meu? Anseio não discernido. Os prédios em chama
dourada espelham a rua em que a noite se avizinha. Duvido que essa expressão seja de
quem esteja percebendo meus dilemas, mas melhor seguir adiante, é sempre melhor seguir
adiante, essa fraqueza chega às vezes a dar idéia de desmaio. Deseja alguma coisa? Peço
os pães e o queijo. Trabalhadeira, admiro moças assim. Mas Vera, a quem amo, o que faz
além de estudar e tocar? Assim devem se perder as questões sem saída, no aroma de um
pão quente à luz do total da despesa.
De volta, meus cabelos se agitam nas vitrines molhadas de crepúsculo. Nos cartazes
de filmes, nos livros, nas flores da praça, impregna-se a primeira estrela, cuja majestade
solitária povoa uma folha caída na calçada. Na sala, a mesa está posta. Lá está Vera,
sentada em sua tristeza, em meio às belezas de que não pode fugir. A respiração aparece
suave no decote, os olhos têm um brilho de que jamais me esquecerei. Olham-me entrar
como combinado, sem bater, como se aquilo mais que um pequenino acordo, fosse um
hábito. Estará comigo pelo resto da vida o juízo desse olhar. Me dará a motivação para
levantar todos os dias. E será por meio desse olhar o sinal. Dir-me-á que já não tem motivos
para chorar. Pedirá que eu fique.
O sofá junto à janela será um local propício. Tudo se afastou com seu vestidinho,
esse novo mundo chega com seios nas minhas mãos. Enquanto somos servidos pela
governanta, suas pernas abraçam minha cintura. Ela fala algo sobre o mercado de dublagem,
deve ser alguma coisa sábia, mas não ouço porque está sobre mim e há mãos vitoriosas no
elástico, e há limites e divisas, sombras e coxas e cabelos em meus dedos, e o calor
embriagante de um abraço íntimo. Mas os dedos que em mim se cravam de súbito
aparecem num gesto amplo na nuvem do café. Unhas retas e inocentes.
A dublagem exige mais do artista do que a maioria das artes, toda a expressão só
tem a voz para se expressar, não há gesto, não há cor, palavra aqui só a que servirá de
meio, nenhum espaço para as notas musicais. Respondi que infelizmente, como ela mesma
testemunhara, o professor não parecia nem um pouco insatisfeito com seu anonimato muito
bem pago, e afinal não era o que nós próprios buscamos? Mal acabei de falar, pensei que
tinha sido grosseiro. Nunca sei o que fazer nessas horas. Tentar consertar pode ser sempre
pior. É verdade, diz ela. Tantos seriados e tantos canais de filmes na TV paga tornaram a
dublagem um requisito para o dinheiro que move a mídia. O dinheiro. Não há arte na mídia,
não mais, estou certo, é o que ela tristemente está dizendo.
Estalar crocante na boca, queijo com gosto de infância. Tudo de algum modo tem
esse sabor. Pode ser a inocência resgatada. Mas realmente não creio nisso. Por um momento
parece que ela está na dificuldade que é falar de uma coisa pensando em outra, e em que
estará pensando? É que não existem mais arte nos dias que correm, apenas o negócio da
arte. Bem, não é uma questão nova. De fato, ratificou após passar o guardanapo, não existia
mais o valor puramente subjetivo do exercício artístico, o que há é quanto pode render essa
concepção. Veja Van Gogh. Atingiu o ápice do reconhecimento hoje, morto, e a tragédia da
morte junta-se aos requisitos do reconhecimento. Por outro lado, digo, com a tecnologia,
quem precisa de reconhecimento hoje? Exceto quem queira viver da arte, mas aí é mais ou
menos a mesma deturpação material, porque a arte tem de ser uma motivação de
subsistência em si, à parte da questão financeira. É uma pena, diz ela, gostaria que não seja
uma regra sem exceção. Eu lhe mostraria o meu amor e as criações que dele haveriam de
provir.
Mais tarde saberei que ela havia chorado por causa do filhote de pastor belga que
ganhara em seu aniversário – era o tema da conversa dos empregados quando entramos ,
como iria ela reagir– e eu deveria ficar sem saber sua reação diante da declaração de meu
amor porque duas semanas mais tarde ela conseguirá uma bolsa para estudar música em
Milão e eu não mais a verei. Quando soube da noticia nos estúdios, fulminado pela
fecundidade irracional provocada por notícias importantes e inesperadas, saí da sala e tomei
o mesmo ônibus onde meu amor encontrou campo para se desenvolver ao sairmos juntos e
termos passado aquele tempo a seu lado no primeiro dia.
Quando cheguei a seu edifício, chegou também o silêncio quando tanto tinha a lhe
dizer após ela ter me beijado no elevador. Até quarta, então, disse ao sair. Lembrando essa
imagem desesperadora, sufocado e infeliz, trazida por passos muito suaves Vera veio se pôr
a meu lado. Atrás dela, os empregados levavam as malas. Eu te amo, eu disse enfim. Sua
expressão de surpresa devia-se, tenho certeza, não ao conteúdo de minhas palavras, mas

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estar eu ali para dize-las. Ela tardou alguns instantes antes de responder. Então me espere.
Senti de novo os seus lábios e dessa vez a trouxe para junto da grandeza de minha paixão.
Alguém a chamou atrás de nós, do lado de fora do prédio.
–Tenho de ir – disse ela. – Você vai me esperar?
Duas lágrimas rondaram meus olhos ameaçadoramente nos momentos em que olhei
o homem que ousara pronunciar com desembaraço o nome com que somente eu deveria
privar tal intimidade. Era seu pai. Respondi sua pergunta com um beijo ambíguo entre o azul
de seus olhos, também prestes a molharem-se, Um pastor belga está ganindo de dor.
Voltei-me a dei com a luz forte do dia se irradiando por tudo. A opressão natural
perante tanta luminosidade na rua dá lugar a um elemento de paz, desejo de vida, restituído
a meu mundo desde que aquela jovem emprestou a luz de seu olhar a cada nuança que me
cercava. Todas as coisas renasceram e meu desemprego passou a ser um problema que
pedia solução rápida e conciliação com o exercício da escrita – não motivo de uma depressão
fatal. Meus conhecidos acharão minha mudança inacreditável. Nem eles nem eu mesmo
podiam imaginar o que seria a minha existência. Uma grandiosa obra, deveras.

Ricardo de Almeida Rocha


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VIAGEM PARA FORA DO CORPO


O ar pesado da temporada ecoa como um marulho paralelo, sepultando os
pensamentos benignos, levando ao lucro e ao prazer. A gaivotas porém planam e pairam e
só elas próprias conhecem o teor de sua melodia. O turista acredita estar preparado. Férias é
um conceito amplo e deformável. Dionísio, o dono do único supermercado do balneário, tenta
entender, pasmo.

Nariz e maxilar rígidos. Os músculos se cristalizaram. Os feixes transportavam


intenso mal-estar para toda a alma. A pele que recobre o ninho de desconfortos é salpicada
de calores e pontos frios; a alternância mórbida produz um repuxamento muscular com
plenos poderes sobre o pensamento. A síndrome de abstinência. Está acostumado. Não o
suficiente para que a nova crise fosse menos apavorante. Decidiu que preferia não viver
mais, não à mercê desse hediondo fantasma. Lembra-se de ter passado no bar. Entretanto,
isso aqui é um hospital.

Conquanto exista esse esforço dedicado e crente, o mesmo do pioneiro que


determina eqüidistâncias, esse anelo cósmico, havia a contemplação apenas, como um anjo
da escada de Jacó não se deslumbrará com os degraus abaixo. Dionísio reflete e transpõe.
Toda essa glória não pode virar medo. Olha. Médicos e enfermeiras em frenesi. Mas por que
não consegue se comunicar? Que modo tristonho de estar morto. Porque do alto também via
a si mesmo, ali deitado, como se seus olhos fossem câmeras de circuito interno da sala de
cirurgia.

Morto mesmo? Desejou regressar. Alguém me veja e haja retorno ao que tento
expressar. Nada. Aparentemente perdera todo contato com o mundo e o mundo sem
traumas lhe sobrevive. Deus. A volta de uma onda, daquelas lá, não teria tamanha força e
tão irracional. É assim essa memória. Três tiros à queima-roupa antecedidos por uma
maldição – Desgraçado! Leva isso para o inferno! – quando encontrava a jovem a quem dera
carona na avenida Beira-Mar, ai, o prazer da sedução em dor tornado, sem tempo sequer
para arrependimento. E deveria se arrepender? Malditazinhas... Colocam esses shortinhos,
enlouquecem a gente, e depois chega um marido ciumento e acaba com tudo. Não é justo.

Não sentiu dor ou medo, apenas disse consigo mesmo que, oh meu Deus, ia morrer.
O dono da mercearia o amparou. Quando alguém estendeu um lençol sobre seu rosto,
pensou ter gritado para que não fizessem aquilo, ele estava ali, iam acabar enterrando um
vivo. Bem que alguns de seus conhecidos diziam que algo assim ia acabar acontecendo. Mas
não tão cedo. E afinal nem fizera algo assim tão adúltero. Então viu sua pequena Demi, a
meiga sofredora das doenças dele. Batia nela, a traía e ignorava. O que mudou desde que se
casaram? Ele também sempre foi um bom rapaz, íntegro, trabalhador. Mas começaram a
escarnecer dele, chamaram-no de crente, e isso era a pior ofensa. Aí mudou. Afastou-se da
esposa, passou a andar com as vagabundas, tornou-se alcoólatra, uma companhia
desagradável e fedorenta, deixou de lado a velha honestidade nos negócios. Quando o efeito
passava e caía em si, sentia-se sim o pior dos adúlteros.

Os médicos a estavam pondo a par da morte dele. Que morte? Esses doutores
compram os diplomas! Seu espírito errante turbava-se, agitado. Tudo ficou negro de
repente. A seguir viu o túnel e lá no finzinho uma luz. Seria possível que estivesse mesmo

Ricardo de Almeida Rocha


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morto? Não. Tinha certeza de que não estava morto – tanta quanto estava fora de seu corpo.
E o que isso prova? Projeção astral não é um fenômeno recém-descoberto. O tal professor
Tard escreveu a respeito, narrando as experiências de pessoas quando submetidas a
demasiada proximidade da morte ou mesmo quando por instantes dados como clinicamente
mortos – seria o caso?

Demi não termina de ouvir, rebenta em lágrimas. Pobrezinha... Não sabia


exatamente quando deixara de adorá-la. Porque, se a adorasse, não haveria escárnio que o
fizesse mudar – não para procurar fora de casa o que ali ela dava com tamanho gosto; menos
ainda para bater nela, bem, ele chegou a achar que punha tão pouca força que nem doía,
quase acreditou que ela gostava, louco. E como era apaixonado! Foi a bebida, sem dúvida.
Esse vício maldito, só pode.

Agora percebe uma corrente prateada. Como Deus é sábio... Um mecanismo para
que não se perdesse no infinito. A consciência de que plana, uma sombra sobre seu rosto
etéreo. Os poderes o iluminam de súbito, inesperadas luzes da morte, anelo de atravessar
paredes e percorrer grandes distâncias num átimo, latejando no desejo de rever a filhinha.
Encontra-a agradecendo a uma colega pelas condolências. Papai bebia muito, foi melhor
assim, se continuasse vivo iria sofrer mais e mais. Erro primário da idéia condescendente de
que os vícios não o impediam de ser um bom pai, que amava mais que tudo sua garotinha. O
futuro goteja das folhas, impregna o sereno. Que jovem seria uma menina amada assim tão
sem compromisso? Passam pela noite jovens e jovens daquele tipo com as quais traíra Demi.
A luz das estrelas distantes ainda não o iluminou.

Uma decisão. Esteja ou não morto. Se está fora do corpo e tem poderes, tirará
partido enquanto durar. Não mais questionará. Irá oferecer algum socorro a eventuais almas
na mesma situação. Pois não haveria de ser um caso único. Quantos como ele, baleados,
afogados, queimados, não estariam vagueando em temor? O cirurgião chefe e as residentes
modelo apertam o passo pelos corredores , parentes choram na sala de espera. Todos terão
amado assim as vítimas? O dragão e sua chama. Câmera. Ali ela, o pivô de tudo. Faz frio
assim para roupas tão escuras? Dionísio sente o calor impregnando a blusa e a pulsação
apertando o jeans.

O que é novo tem atributos do céu e do inferno.

Deseja em seu íntimo – e esta mos falando do que é definitivamente íntimo – servir
ao semelhante. Todavia não desprende a consciência dos bloqueios individualistas.
Permanece assim girando em torno de si mesmo. Um momento. Um plano de seu bairro.A
visão libertadora. Demi. Desce até o apartamento. A mulher deveria agora estar no quarto,
chorando, sozinha para não impressionar ainda mais as crianças, depois de um dia
estressante de trabalho, do qual não podia prescindir, costurando para fora. Desde há muito
ele não é um provedor, sob a desculpa de que a renda dos aluguéis incorpora esse papel;
não, é ao contrário o dissipador (agora, terá chorado com a notícia, chorado por ele, infeliz).
E sempre havia roupa limpa em cima da cama para depois do banho dele, e janta quente
sobre o fogão, que ele nunca comia, preferindo os salgados suspeitos do bordel, quando não
pagava para dois um bom restaurante quando se tratava de uma turista. E, depois de tudo,
ouvir a notícia da morte. Viúva. Pobrezinha.

Ricardo de Almeida Rocha


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Um cumprimento de vestido ligeiramente mais curto. Coxas incomparáveis. Logo eu


possa voltar! Consolar a esposa, um lampejo contido. Ela não está chorando. Enfim, é um
alívio saber que está suportando bem. Estou me comportando, pensa apavorado, como se
não fosse mesmo voltar. E ia. Um residente descobriu por acaso o engano. Recolocam o
paciente na Uti. O diretor enxuga uma grossa baga de suor e seu coração só aos poucos
retorna ao batimento normal. Entretanto, a descoberta ainda não o trouxe de volta ao corpo
físico e continua vagando. Porque o centro de onde provém toda energia está distante do
ego que apenas imagina comandar o espetáculo.

Pairou sobre a delegacia e desceu. Quer ver seu assassino. Pelo que entende, é
aquele na cela à direta. Não se lembra. É o rosto de um estranho. Não havia um
companheiro de cela com quem a sua conversa ajudasse a entender. O delegado. Engordou.
Parece ter um sorriso irônico nos lábios. Hei, você tem visita! Como assim? Não estava agora
mesmo no quarto de casa, chorando? O que há de querer aqui? Bem, ele próprio quis ver o
assassino... Quis avisa-la para que se cuidasse, mas definitivamente não era bom nisso de
derrubar coisas e criar sons estranhos. Se cuide. Talvez seja um homem desequilibrado, não
apenas um marido ou namorado ciumento, quem sabe um matador de aluguel a mando de
alguém a quem Dionísio devia dinheiro.

Tadinha. Mal a reconhecia fazendo tamanho escândalo. Quanto o odeia! Quanto me


ama! O delegado tratou de consola-la. Acalme-se, senhora. Está ali apenas para, como ela
mesma disse, olhar nos olhos do canalha que destruiu sua família. Mas e esse papel que
deixa nas mãos do assassino antes de sair? Aproximou-se. Um calafrio se apossa do homem
na cela, tamanho que suas mãos tremem. Não é impedimento para o espírito do outro, de
cujo corpo acaba de ser extraída com sucesso, na mesa de cirurgia, a bala fatal. Leram.

Marcel fazia parte de uma classe singular de homens generosos e educados mas de
gênio muito difícil, o que poderia tornar de uma grosseria sem proporção com o incidente
que a gerara, ou simplesmente descontrolado, sem qualquer motivo. Trabalhava na direção
do projeto da infra-estrutura dos balneários vizinhos e tornava-se amigo do diretor da
empresa, com quem privara por meses, chegando a flertar com a filha mais jovem, Brenda.
Os pais faziam tanto gosto na união que desencorajaram o músico amador com quem ela
namorava há quase um ano. Ela não chegou a protestar.

Não se poderia dizer que Marcel não estivesse de todo desinteressado dela, porque
se esforçava por ser admirado por qualquer mulher. Mas um dia a filha mais velha entrou,
solene, pela porta da frente, quando estavam à mesa. Quando o olhar de Marcel cruzou com
o dela, seu coração disparou. Estava ela prestes a dar cabo da vida, estava muito infeliz.
Voltara a apanhar do marido e nem poderia reclamar pois quando resolveu se casar afrontou
a vontade dos pais. Quando você se arrepender, disseram, não espere que estejamos aqui
para consolar. Demi de fato nem lhes dera o benefício da dúvida, de pôr a prova seu noivo
mais um pouco de tempo, não, quis casar logo, como se estivesse em chamas. E estava.
Prazer. Demi. Marcel.

Na cadeia, passado o frio quando o espectro se foi, Marcel relê o bilhete. Está
acostumado ao processo do amor: atração física, galanteios, resistências, os momentos
sensuais, a camaradagem entremeada por sexo – cada vez mais esparsamente, até o rancor

Ricardo de Almeida Rocha


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pelos motivos mais fúteis e a raiva contra a pessoa que nos reapresenta o tédio e o
desencanto. É assim. Como poderia acreditar em matar por amor? Para todos os efeitos, vira
a esposa da vitima apenas uma vez, rapidamente, na casa dos pais dela. Mas ainda naquela
noite ele a vê. Ela não saberá dizer como aconteceu, mas estão ali mesmo, no sofá da casa
de Dionísio.

Sim, ali estão. O marido jamais volta uma hora dessas. Marcel recosta a cabeça em
seu regaço e faz uma confissão. As mãos dela tomam coragem e passam a afagar os cabelos
dele. É o que bastará. Ele se vira e a beija. A beija outra vez, profundamente. Prepara o
pescoço onde descerão os beijos. A quanto tempo ela não sorri assim? A mão desce vez ou
outra, resvala no seio, percebe o rigor. É ela quem está tirando a camisa dele. Ele usa o
decote com guia. Não mais, envolve agora os seios que suga. O sofá de sua própria casa. O
colo de um outro homem. Mal tira a calça e a calcinha irmanadas, senta-se sobre o rosto que
ordena e espera. Não pensa mais numa improvável chegada de Dionísio. Está por completo
onde é por fim atravessada. Quanta loucura! Jamais foi assim adulada. No final tem a perna
no encosto lateral onde costumava deitar a cabeça para por tardes infindáveis ver televisão.
Sorrindo ainda, recebe o beijo de despedida, sem sombra de culpa.

As compras, onde o marido a permite ir sem questionamento, são assim ansiadas


agora. Eles têm um lugar nos fundos da mercearia, muito bem pago, por dia. A idéia é se
revoltar diante de semelhante covardia, os espancamentos sofridos pela cunhada. Brenda
conta com os detalhes que imagina a tortura da irmã. Ah, amor, é insuportável, eu mesma
não agüento mais!... Com toda razão, responde Marcel, isso é hediondo. Estava orgulhoso.
Não agirá às claras apenas para livrar a amada.

Duas palavras no bilhete. “Ele sobreviverá”. Socorro. Eu te amo, talvez.

Fácil para um advogado deixar livre o réu sem antecedentes. Sem morte, então...

Tornaram a se encontrar assim que Marcel se viu liberto. Amaram-se de um modo


diferente. Jamais imaginou estar com um homem num banheiro e, vendo-o aliviar-se, ajuda-
lo. E assim, se via mais e mais uma mulher nova, agachada no piso frio, proporcionando a
Marcel o que só de pensar com Dionísio lhe daria ânsia de vômito. Aliás, com Dionísio
qualquer outro. Assim, enrolada na toalha, continuou, ajoelhada, com o braço apoiado na
banheira. Assim e assim, de língua e alma, porque sabe que ele não fará por menos, que logo
estará ela de pé e será dele o idioma do amor inesperado.

Só no fim, depois de com os cotovelos gelados receber o rio inesgotável, mostrou


algum receio. Afinal Dionísio logo estará recuperado. Dionísio voltará a bater nela, ameaça-la
de morte. E – mas isso não chegou a falar com Marcel – terá de novo novas amantes com a
metade da idade de Demi.

O amante dizia, querida, não se preocupe, darei um jeito em tudo. Jeito é mata-lo,
nada mais. Mas por que Demi não se divorciava dele? Já não havia a dependência financeira,
Marcel estaria ali com ela para sempre.

Nada mais.

Então seja, mato-o!

Ricardo de Almeida Rocha


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– Se você o fizer, juro que com o dinheiro dele te livrarei da cadeia e juntos iremos
para bem longe, porque aqui terá se tornado impossível viver.

Que ironia, pensou Marcel. Minha situação em nada foi beneficiada com a
sobrevivência do maldito, como quer me fazer crer o advogado. Senão vejamos: está livre
mas não pode sair do país, como se tivesse havido mesmo o assassínio. Na verdade, sequer
da cidade podia sair. E como continuar encontrando com Demi sem levantar suspeitas contra
ela? Um morto não cobra dívidas e agora parecia haver tantas.

Puro terror. Demi não podia acreditar. Mas era, sem qualquer dúvida seu marido.
Então de fato morrera e veio atormenta-la? Marcel mantinha-se calado, concentrado nos
gestos do fantasma, ou quase, ou sabe Deus. Como saíra do hospital? Como aparentava tão
perfeita saúde? A voz daquele que deveria estar morto ganhou de súbito quês de júbilo.
Conseguira! Podiam vê-lo e ouvi-lo! Buscou a parte alcançável da alma de Marcel, os olhos
dele, onde enxergou dolorosamente a sinceridade do amor que dedicava a Demi. Pois que
fossem felizes. Dará o divorcio e será justo quanto à pensão.

Olhando o marido à porta, ela ainda não pode evitar o horror e sua palidez adquire
contornos macabros. Gaguejando, duvida da boa-vontade que Dionísio manifestou. Marcel ao
contrário acreditou de imediato, e disse-lhe. O talhe recortado na luz do corredor nada lhe
traz semelhante a temor. Mas todos têm de admitir, é uma situação insólita.

O sorriso de um morto.

Noite vazia, silenciosa. Morcegos cruzam os céus, mariposas pairam nas lâmpadas.
Tudo normal na cidadezinha. A voz do amante repetiu. Demi deve crer na disposição desse
que começa a sentir algo estranho, como uma coceira generalizada, como um despertar para
o sono. A voz dos amantes vai ficando longínqua. Chega a entender que Marcel se mostra
condescendente com Demi, pelo seu muito sofrer. Não tem mais capacidade de sofrer, ele
próprio, por ter sido o autor desse sofrimento. Eles não percebem de imediato: o fantasma
não está mais ali.

No hospital, os olhos e a respiração de Dionísio davam para os médicos claros


indícios de que estava quase consciente. Em seu coração um aperto emitia o mesmo sinal.
Na sua casa, Demi e Marcel já sabem um o que o outro pensa. Ele percebe uma nuance
impossível de ser amada no olhar naquela a quem amava tanto. Talvez não houvesse uma
desconfiança, mas decerto uma perturbação. O relógio à cabeceira agitava-se róseo e
dourado. Passos e palavras à janela rebentam numa dimensão inesperada. Amar tanto a
ponto de matar? Mas ali está ainda a pequena e meiga Demi, bela como da primeira vez,
subitamente sombria mas justificada ainda, não percebeu a necessidade de um fato novo, de
um novo sorriso e muito menos da renovação do amor. Pensava na visão do marido odiado,
donde provinha um sentimento mais sensual do que quando o amava. Justificada. Para
sobreviver não abandonará o motivo de sua justificação, por anacrônico que esteja. Tem o
amor de Marcel. É uma posse como todas as que do maldito morto-vivo tinha por direito.
Não sofrerá mais.

No hotel, as paredes trazem Brenda. Chegara Marcel a esse ponto de vaidade –


porque todo homem é vaidade –, de abandonar um amor singelo por uma causa e pelos
ímpetos traiçoeiros que costumam as causas trazer? Fora assim tão pretensioso quando

Ricardo de Almeida Rocha


CONTOS DO AMOR E DA MORTE

servente como era como engenheiro, teve sempre essa tendência a julgar e determinar o
certo e o errado e fazer algo grandioso pelo certo? Sim, foi sempre assim. Seu coração não
mudara ao receber o diploma. Não sem esforço saiu e tomou a direção da casa dos pais de
Demi, não sem descontrolados dilemas abraçou a caçula entre lágrimas. O que foi, disse ela,
e iria completar “Querido”, mas conteve-se pensando nos sofrimentos da irmã. Ele deu-se o
direito de não saber e de calar, até que por fim permitiu-se o beijo lacerante.

Ali está ele. Brenda viu um homem que não conhecia. Atrás deles o hospital é uma
fachada ofuscante de luz. A cunhada se aproxima e abraça Dionísio. O forte aperto de mão
entre ele e Marcel logo se torna num abraço forte também. Balbucia o nome da esposa e
sabe então que conseguiu sacar todo o dinheiro e desapareceu. Caso tentasse, lembraria de
todas as viagens que queria fazer quando namorados, os lugares do mundo onde pretendia
morar. Também Marcel sem dificuldade pensaria nas sofisticadas cidades para onde em fuga
planejaram ir. Mesmo Brenda. Quantas confissões detalhadas de futuro!... Mas o assunto
morreu ali mesmo. O marido que sabe merecer. O amante que não julga mais. A irmã
amorosa, agora uma noiva dedicada.

Ainda é uma verdade universal que um homem arruinado e com péssimos


antecedentes não despertará o interesse de uma boa mulher? Brenda ama tanto Marcel,
admira-o tanto. Graças à amizade deles o cunhado se livrou dos vícios. Assim, foi quase uma
consagração a forma como aproximou Dionísio e Sandra, sua melhor amiga.

Ninguém sabe até hoje do paradeiro de Demi.

A morte

Ana saiu do hospital faz sete dias. Eu ainda não passo de uma criança assustada sem
saber no que acreditar além do sentimento sobrenatural que nutro por ela. Que alívio ter ela
sobrevivido. Dizem que foi um milagre. Pouco ouço a respeito das razões que a teriam levado
àquele ato. Levantei. É quase de manhã mas não há indício exceto talvez pelo eco do copo
na pia e dos indecisos passos no corredor. Terá ela voltado às aulas, imagino.
Provavelmente já tenha algum trabalho de tradução. Ouvi o meu nome. Saio e a escuridão
torna-se mais vívida e suportável embora não menos densa, porque é aí que estamos,
quando a realidade se destaca do pavor. As flores lentamente tornam-se visíveis, o aroma
delas a atmosfera respirada. São as flores que ladeavam o caminho pelo qual passáramos
naquele primeiro dia. Ela pergunta e eu respondo com um sorriso indulgente. Demorei? A
mão toca meu ombro, suave, fria e branca, a não ser pelas veiazinhas azuis.

Imerso no mesmo silêncio com que com ela sonhara, agora porém continua ali, filha
de meu sonho e a mais pulsante parte da vigília. Uma fronteira sem o menor sentido. O saber
de Ana era o meu. O que adquirira ao longo da vida, me passava. A divisão entre nossos
apartamentos perdera igualmente a razão de ser quando voltamos da caminhada, quase ao
meio-dia. Um brilho inexorável dos corpos sob as camisas finas.

Ricardo de Almeida Rocha


CONTOS DO AMOR E DA MORTE

Sua biografia está em seus lábios, a suscetibilidade na ponta de sua língua e


o universo recluso no corpo de seus dedos, entre palavras cuidadosamente inauditas. Como
esperar que a luz seja estável em seu movimento, se você num momento vai ao encontro
dela e noutro retira-se no sentido contrário? E todavia é o mesmo movimento e a mesma
luz. Porque a luz não depende dessa sucção ou desse polimento.

Posso por isso decifrar o mistério desse muro erguido do nada, sei o segredo, está
aqui, na magia de nosso contato, mas justamente por isso estou inquieto com a forma como
o contorno de Ana se torna fosco e a aura das flores imerge num denso nevoeiro. Ela se
evade e eu não consigo pensar o que devo nem dizer a palavra. Ana, flor de luz pela qual
reduzi minha vida a uma escravidão, não pode partir assim e me deixar órfão outra vez.

Mas caso o faça, pergunta-me em meio à sua energia que me acelera, ainda assim
insistirei nesse pensamento que foi nosso? Ana, Ana, ouvi minha alma lacerada na
despedida. O universo do espaço e tempo deformáveis se expandia em busca ou talvez em
fuga da noite, que se transformaria em realidade no apartamento vizinho. De joelhos deveria
estar eu, Ana, santa, pura, inocente. Esses dedos deveriam ser os meus, a retirar santidade
do ícone. Essa boca deveria ser a minha, a buscar as gotas entre os bancos do templo
espargida. E engolir o poder eterno desse desvio para o azul.

Um olho mágico cruel. Seus pais estão chegando agora. Continuam naturalmente
arrasados. Quem dera eu lhe pudesse dar algum consolo, desse que ela própria me deu.
Soube que havia muitos amigos na igreja, mas nunca onde foram jogadas as cinzas.
Também, não faria a menor diferença.

Ao longo de uma avenida


Olhem ali a jovem mulher. Branca, triste, se destaca dos demais passageiros, que
entretanto não a percebem. Passou a roleta ainda agora. Pela janela do ônibus, desdobram-
se partes da cidade em que nunca pisou – sua beleza de vida: o olhar, a imaginação que
guarda atrás daquele muro bichinhos na grama e gotículas nas folhas da madrugada, e nessa
praça um namoro ao entardecer – ela mesma talvez.
Homem vivo algum se deleitara sob esse vestido e o que morreu permanecerá
morto, independente de seu remorso ou amor. Portanto apenas ali ainda persistia o beijo no
acamado, e um pouco mais que isso à guisa de um maior conforto. Derramou muitas
lágrimas depois, é bem verdade, na perseguição de um rastro de sonho naquela face em que
brilharam virtudes que nem as feições meigas nem a enfermidade poderiam dar a ele.
Levaram aquela tarde pelos anos seguintes e não parecia haver tempo que pudesse
esmaecer os seus efeitos. Enfim ele tornou um homem respeitável e, se estivesse vivo,
decerto teria esquecido. A família passou a ser reconhecida por causa dele, de sua
capacidade no trabalho e nas tramas dos negócios, mas ninguém de fato deixara de lembrar
que o pai vinha da roça de cana e na cidade até a aposentaria foi lixeiro. Ela ao contrário
ignora-lhe a riqueza e admira a força de pais que possibilitou que ele estudasse, e quanto a
ele, o que realmente significa alguma coisa era o lençol branco de uma enfermidade cujo
desdobramento bem poderia, sim, não a morte, mas ter sido ali no banco dessa praça, e
mais tarde entre os muros dessa casa, com domingos na grama sob a árvore. Encosta o nariz
no vidro, contemplando a cena.
Um estranhamento na longa avenida. A luz da manhã que cega. O homem que entra
na parada brusca: sua imaginação longe demais, será sempre túmulo de possibilidades
futuras. Mas é o porte que roubou-lhe a atenção, cujo contraste na enfermidade lhe restituiu
em amor. Capa e gorro tornam todos iguais. Tanto assim? O bilhete da passagem está em
dedos quase se poderia dizer inconfundíveis, como os dela própria inconfundíveis se fizeram.
A braguilha do pijama aberta. Um taco de beisebol no canto do quarto. Ingenuidade: não
sabe que garotos agora se interessam por beisebol. Preenche o vão de polegar e indicador
com essa ingenuidade. Suas lembranças agora são vermelhas, ainda esmaecidas nos dedos

Ricardo de Almeida Rocha


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de unhas cortadas rente que apóiam seu queixo junto à janela. Agora ela afasta fazenda por
profecia. Zunir de aumóveis na via expressa e junto aos pontos. Na tarde insistente
transcendera. Um transporte para sempre, simples como jamais. Ele nem parecia assim tão
deslumbrado. Mas estava. Boquiaberto ante a perícia dos dedos com a cura essencial. Três
amparos do oposto ao polegar, e o mindinho numa importante função de fetiche. Esse
mindinho. Estou vendo o que estou vendo, ele se pergunta. Agora, depois da fracassada
tentativa de morar no estrangeiro (porque ela estaria na Escandinávia), no primeiro ônibus
que entra após a decepção definitiva na embaixada, no único anelo de esquece-la pelo único
meio infalível, o trabalho, ainda assim quase paralisado, é você?, nem sabe se chegou a
articular as palavras. Sente a misericordiosa boca mais abaixo, acrescentando variações em
uma misericordiosa ária. Essa boca.
Uma nuvem carregada de velhos presságios ganha tons de uma aparição
gradualmente clara: o que ele disser ela ouvirá sem fazer idéia de como os mortos
ressurgem entre os vivos. Também a morte tem fim? Porque aqui está o fim. Sabiam que a
família dela não fazia gosto de um envolvimento entre os dois. Impossível. O sol se derrama
pelos prédios que ladeiam o percurso. Gumes de luz, sim, luzes cortantes. Um raio se alonga
a partir do final visível da avenida, colore o tetos dos carros, tornados ouro. Desse ouro ela
faz questão, tanto que a pureza do fulgor que se alojara no rosto dele tocou-a bem fundo,
recortou como papéis todas as lembranças da tarde, agora feitas esperança no vozerio dos
passageiros. Seu pai, esse sim desde o ano anterior nada mais podia falar sobre o
pretendente pobre, como são as coisas. Mal conseguiu chorar no seu enterro, por causa
dessa mágoa. Enquanto dava a informação pedida pela mulher à sua frente, a senhora tem
de descer no próximo ponto, ele se perguntou o que teria acontecido caso conseguisse o
visto e tivesse feito a viagem. Mas se deu conta que não se questiona a vida e somos o que
fazemos do que dela recebemos, simples assim. Sem sorte ou azar. Ao descerem, rodeou-a
com o braço inicialmente coberto na visita daquela tarde. As pessoas os ultrapassavam pela
calçada com uma pressa que juntos em silêncio decidiram não perceber.

Nada era tão grande

A voz mais e mais baixa. Os passos mais lentos. Um ser que se define. O rosto na
vidraça do café tem ainda a expressão de quem sonha. O que a senhorita deseja? Agora, na
luz do vidro, cabelos muito negros. Brilham. Ela olha a garçonete com respostas que não
pode lhe dar. Logo a xícara aquecerá as mãos em concha. Depois o pescoço que se estica e
pende, o olhar é ansioso outra vez. Bom assim. Melhor que o vazio da falsa serenidade. Mas
ao outro vazio, na entrada, segue-se a lembrança e seus olhos não estão mais ali. Bibelôs na
cabeceira onde devia haver um relógio. Melhor assim. Bons tempos. Quando as coisas
retornam ao lugar a que se adequaram? Ou jamais? Pelo menos jamais como um dia de
infância. Então jamais. Pois se o tempo não volta, feixes de luz que se reencontram.
Não sabe de que valerá abonar-se com isso – a cabeceira perdida no tempo. Nem
precisa. Nunca precisou de motivo para qualquer coisa. Então, deixa a menininha no
passado, deixa-a lá e aparece diante de seu armário, falando ao celular, a outra mão pelos
cabides. Rosas a maioria. Ama a beleza simples de um toque de mocinha no quarto, a
nuance adolescente que ela hoje desconhece. Felicidade é uma meta legítima de vida? E o
que era aquele êxtase da menina? Enfim, ei-la aqui, diante das roupas, combinando a saída.
Diante do espelho cujo papel no dia seguinte será feito pela vidraça do café. Ela. Refletida.
Com o mesmo significado de todo reflexo, reproduzir sem ser.
O armário que se fecha, o reflexo desaparecido. Quando muito, um vestido escolhido.
O rapaz era apenas a companhia para a saída. Nada sabe dele nem haverá de querer saber
amanhã. Viva quanto viver, sempre será assim? A voz ainda possuía quando o encontrou
alguma firmeza, chegou a dar uma corridinha quando o viu ali parado. Nu trecho do caminho
para casa, um local mais escondido, e ele dá vazão ao desejo. Embora mútuo, a impressão
seria de que ele de algum modo a ofendeu. Mas não. Ainda quis conversar um pouco, falar
sobre os motivos dela, aquela que não tinha motivos. Ela nem imaginaria um rapaz tão
bondoso. Por isso chorou. Outra caminhada solitária passando por casais apaixonados, outro
café abrindo ou que ainda não fechou, pensando no amor de sua vida.

Sob o caos aparente


Cresci em meio a livros, contemplando a natureza e contestando o modo que a
hipocrisia social impõe às pessoas. Saí de casa aos quatorze para viver em uma comunidade
agrícola. Era a época da contracultura, mas hoje sei que esse é o fim de toda revolução, o ser
absorvida e igualmente se estabelecer como padrão comportamental. Por isso, dentre outras

Ricardo de Almeida Rocha


CONTOS DO AMOR E DA MORTE

coisas, o sonho acabou. Meus amigos hippies se transformaram em bem-sucedido


empresários de caráter duvidoso, e me perguntei se as pessoas mudam assim ou mudam
apenas no sentido do que sempre foram.
Não cheguei a tanto. Faço parte da casta de escritores medíocres não-publicados que
precisam ganhar a vida e trabalham em alguma outra coisa para sobreviver. Sou professor.
Enfim, os marginais daquela época fomos todos assimilados pela nova ordem das coisas.
Casei-me com uma jornalista, namorada dos velhos tempos. Naturalmente, ela
escrevia suas matérias em computadores na redação e resolveu comprar um notebook para
fazer trabalhos em casa. Mas paramos pouco em casa e um dia surpreendemos nosso filho
de nove anos mexendo com desenvoltura na máquina obediente. Na escola, temos aulas de
informática, disse-nos. Nós não pensávamos que fossem tão eficientes. E nosso fino, leve e
elegante amigo tornou-se membro da família. Preocupados com pornografia e pedofilia, não
nos passou pela cabeça que o perigo poderia estar também noutra parte.
Certa vez, cheguei à noitinha da editora onde trabalho revisando textos de outros –
os meus permaneciam na gaveta –, na expectativa de ser mais dia menos dia despedido pela
automação da empresa. Minha mulher me mostrou no site do jornal a reportagem de uma
amiga, sobre superioridade da nova geração, que nasceu e cresce com as rotinas da internet,
mensagens instantâneas, sites de relacionamentos, e até as leituras via aparelhos
eletrônicos. Sua adaptação ao mundo e a facilidade de encará-lo sem questionamentos, a
força de suas mentes perante obstáculos, atuando num único sentido: vencer.
Eu tinha uma esposa orgulhosa.
Na tarde seguinte, fui procurar meu filho. Quem sabe seus conhecimentos pudessem
salvar meu emprego. Dizem que quem se recicla profissionalmente terá sempre seu lugar no
mercado. E se ele pode derrotar exércitos inimigos e salvar a vida de planetas ameaçados
por criaturas hostis, não deve ser difícil dar essa ajuda ao pai que o ama.
Bato à porta. Como está entreaberta, entro. Ele não está. Sento-me na beira de sua
cama. Refletindo sobre a questão das gerações, meu espírito vai longe. Talvez eu esteja com
inveja. Ele está realmente pronto para o novo mundo. O meu mundo desapareceu. Sou isso,
resto, lixo. Não há um terceiro caminho. Integrado, meu filho terá dinheiro e poder para
melhor servir seu semelhante, realizado. Nada de que se envergonhar, pelo contrário. Eu
sim, marginalizado dos benefícios da revolução tecnológica, do esplendor de uma época que
sabiamente uniformizara o pensamento com o fito do bem-estar geral. Meu filho logo será
agente dessas transformações extraordinárias que constantemente se renovam.
Para tudo permanecer igual? De novo, minha inveja falando. Escutando-a, não dei
pelo passar da hora.
Está demorando. Não costuma se atrasar. Ouvi um barulho na suíte. Chamei-o. Sem
resposta. O único som além de minha própria voz monologando era o irritante sinal das
mensagens. Ele deveria estar aqui? Pensavam talvez que estivesse? Terá acontecido alguma
coisa? Meu espírito está cheio de medo e de uma melancolia tenebrosa, ligada às paredes, à
atmosfera da casa. Calafrios. Calafrios em minha espinha.
As rachaduras da tinta adquirem contornos espectrais. Às marcas das infiltrações são
emprestados quês de morte. Uma insistente lufada de vento levanta as cortinas,
embandeirando a janela. A noite desceu e me dei conta da ausência também de minha
esposa – chamá-la-ei Layla, pois ainda vive, pelo menos é o que os médicos dirão.
Justamente hoje deveria ela ter voltado para casa mais cedo. Iria ao dentista e não
mais retornaria à redação. Minha mulher era muito sedutora. Havíamos inclusive planejado
uma pequena celebração para o fato raro de estarmos a sós na casa, sem a presença de meu
filho e, para mim, confesso, dos barulhinhos do computador. Ele dormiria na casa de um
amigo. Portanto mais estranha a sua demora.
Foi quando novamente ouvido o estranho rumor. Um outro. A indicação do término
de um jogo?
O som vem do meu quarto. Há no tom o falsete que sucede os graves na voz de
minha Layla. Estou imerso em dúvidas desesperadas, loucas. Um gemido? Corro.
Paro perante a porta da suíte.
Lá está. Gemendo. Com as roupas rasgadas, caída. Esqueci de meu filho por
completo. Preocupa-me apenas prestar auxílio àquela a quem devotava meu amor maior.
Contemplo-a, horrorizado. Não sei por onde começar. Entre os gementes suspiros, arfam
morbidamente os seios, o ar quer fugir. Estava banhada em suor. Enxugo-a agora e sinto o

Ricardo de Almeida Rocha


CONTOS DO AMOR E DA MORTE

quanto arde. Em meus braços trejeita-se em espasmos, violenta comoção a exaure.


Reconhece-me enfim e quer falar mas saem de seus lábios frases desconexas e descabidas.
Dado momento, seus braços caíram sem vida, as palmas das mãos para cima.
Estremeci ante a cruel possibilidade. Contrações em sua face me mantém a esperança.
Todos os meus parcos conhecimentos de primeiros-socorros são gastos nessa eternidade.
Houve um prenúncio de que iria se restabelecer, mas não foi o que aconteceu. Por
um momento tive a ilusão de estar num hospital e de que os ruídos eram dos aparelhos que
a mantinham. O sinal linear que indica óbito. Não há chão. Tudo o que vive está morrendo.
Oh meu Deus.
Sua palidez é de súbito inequívoca; sua rigidez inexorável, seu pulso implacável.
Mesmo para um leigo como eu, não há mais dúvida.
Um corredor estreito feito de dor entre nós.
O que se passou naqueles momentos agônicos não me é dado de todo descrever.
Entremeando no sofrimento evocações românticas, lembrei-me do dia em que a
conheci.
Não era bonita, quero dizer, não possuía essa beleza óbvia que chama a atenção.
Carregava no semblante coisas que só exploradas podiam ser admiradas, como uma ilha
misteriosa perdida no azul. Ei-la. Está vestida como o costume, roupas multicoloridas,
sandálias feitas à mão. Quinquilharias de feira dominical em seus braços, pernas e pescoço.
Nariz aquilino. Sob as sobrancelhas que em arabesco se juntam na glabela, crispam-se de
mar os olhos por onde gira o mundo. Esse úmido brilho róseo dá vida às suas palavras. É ela,
a mesma, a morta, diante de mim. Chorei.
Hoje, aquela a quem chamei Layla dorme um sono profundo no quarto de um
hospital. Todas as tarde passo lá, como quem passa num cemitério, levando flores para a
jarra na cabeceira. Os médicos dizem que não tem consciência de nada e que seu sono é
desprovidos de sonhos. Garantem que não sente dor. Mas, se ela sobrevive, seu cérebro não.
De resto, seus sinais vitais são os de uma criança saudável. O lençol arfava sobre seu peito.
Sua respiração arrepia a minha face. Está viva, mas sem a consciência de que está viva.
Desde aquele dia. Ela viu a cena antes de mim.
Enquanto eu soluçava à beira do leito de Layla julgando-a morta, em meu pranto
confundiu-se mais alto o ruído. Com a fonte da emoções esgotada, caminhei na direção do
som. Pude discernir. Era o computador. Meu filho havia chegado e ainda ignorara a morte da
mãe. Arrastando os sapatos, cabisbaixo, carregando o mundo numa corrente presa ao
tornozelo, entrei no aposento amarelo. Os únicos sons além de minha voz eram os sinais do
game no computador. Um som macabro, sádico, hediondo, triste, desesperado. E continuava,
mais e mais alto, mais e mais insistente. Quanto mais eu chamava meu filho, mais o sinal se
agitava, como se me chamasse.
Olhei para a tela. Ali estava. Com os olhos azuis de última geração. Meu filho. Meu
filho... Meu filho! Meu filho?
Havia sido conectado à unidade central. Fora absorvido pelo sistema.

Alguém quer falar com a senhorita

Não tinha mais vergonha. Nem mesmo evitou a declaração de amor no final, como na
adolescência fazia aos meninos. Não pensou se havia ou não alguma coisa em risco. Será
assim? A expressão serena em meio aos pesados dilemas – ai, perduram. Desliga o celular e
olha o aparelho com ironia, como se piscasse para O interlocutor. Os óculos embaçam de
sono, é o que de melhor está agora a seu alcance. Mas e quanto à outra, pensou, tão castiça,
inocente, insegura? Em algum momento terá a mesma sensação de liberdade? Uma aragem
sinuosa sua voz, abrindo as silabas e derramando pacíficos lagos dentro delas. A
tranqüilidade esperada ao longo de uma vida. Uma donzela para servir de amor. Fechou os
olhos e não precisou esperar muito. Foi assim, disse à menina. O mar rumoreja em sinuosas
movimentos cruzados, como a voz amada. Mas e o sonho?

Ricardo de Almeida Rocha


CONTOS DO AMOR E DA MORTE

De repente se deram conta no dia de onde estavam e por que estavam ali, e se fez
dia, o silêncio exceto pelo mar rumorejando, a respiração de um pelo outro sentida, a mão
acolhedora que rodeava quase atingindo o outro lado, a luz fosca do dia, a necessidade de
pensar no dia seguinte. Tudo o sonho contemplara. Passado e futuro, o conhecimento que se
segue à ingenuidade e logo será uma outra ignorância, a vida vivida e a vida esperada
fazendo parte da mesma vida. É que não tenho coragem de dizer tudo, pensa, ou talvez não
saiba o que é tudo e se há um tudo, se tem a ver com tudo esse encontro na praia,
combinado ao acordarem num sábado assim, cheio de presságios. Quase não é preciso
contar o sonho, porque estão vivos no mesmo sentimento, ou simplesmente porque estão
vivas, como não saber? Suas versaletes ainda fazem sentido num mundo pela internet
conectado. Tudo é memória, tudo é o significado da flor num trecho da floresta em que
ninguém jamais entrará.
Ah! Lembrança viva! Sentir-se viva, amada. Estrelas de cilício sob os pés. Vaguear na
agonia e chegar ao descanso... Saber-se protegida, alimentada por um sol que sequer
apareceu. E que ninguém exceto ela verá. O sol que passa pela moça a seu lado, a quem
conta seus caminhos noturnos, escutando-lhe as feições. Nana e ela, sentadas, caminham
por um azul que não existe. Uma ao lado da outra, abraçada à outra. Partilhando o sonho.
Quem as visse do mar, quem sabe a sereia do sonho, veria que a outra olhou mais além
quando Nana mencionou como se deve agir em relação à opinião das pessoas. Seu vestido
quebrou-se à altura dos joelhos dela, mas a praia estava deserta para que se compusesse.
Os passos na areia foram feitos na linha da força das ondas, mas quando? E nem por isso era
possível dizer que ali não havia uma dose segura de precisão.

Os perfis se sobrepunham como se fossem uma só. Nana talvez já tenha se arrependido de
ter dito acerca do que deve ser feito, ou talvez tenha decidido não mais se arrepender de
nada. O olhar da outra agora busca ainda mais longe, não vê nada para conseguir ter a
clareza do olhar. A conversa mais e mais se nutre do silêncio, do toque, das certezas do que
nunca será dito. A uma mar também nos olhares, cujas sinuosas ondas se cruzam na
capacidade de compreensão. O horizonte não é discernível, são dois céus, como no princípio,
ou dois mares. Uma coisa só.

9. No parque

O nome com que me anunciei


As aves cujo canto lembra um mantra são as de que Carolin mais gosta. Como o Bem-te-vi.
Elas lhe evocam concentração, disciplina, paciência – virtudes que, tão dispersa, persegue.
Essa que chilreia agora ela não conhece, mas assim que ouviu não gostou. Uma sonoridade
sinuosa, sofisticada, em busca de novas oitavas, procura seu máximo e não usufrui do que
seu mínimo já conseguiu. Só partilha uma glória infrutífera. Sabe que sua veleidade não
muda o mundo, mas sente que precisa assim se posicionar. O mundo está tão errado porque
todos são iguais, gostam do que é facilmente apreciável, do que exige pouco do próprio
gosto. Está com Elisuki, sempre está com ela, porque de algum mundo há um outro mundo
quando estão juntas, há uma aspiração de vida melhor e mais árdua.

O sol se põe no céu próximo, onde é impedido o acesso da normalidade, das pessoas
sensatas, dos diplomas formidáveis, da multidão que venera mais que o amor o que se tem a
dizer sobre o amor e mais que a sabedoria o currículo. Azar deles, pensa Carolin. Elisuki hoje
está calado não quer mais falar sobre esse assunto desgastante. Ademais, não tem mais
certeza de quem é o azar. Pois apesar de inóspito, em meio a festas e confraternizações que
dividem tempo e espaço com o a violência e o crime, onde talvez seja ilusório pensar em
coisas eternas e integras, aí estão eles por toda a parte, todos fazendo planos e se dando
bem, e esse que hoje desponta não haverá de querer mudar tal panorama.

Está esfriando. Você vai para casa? Elisuki calado. Será um anjo nos céus, pois se aqui já é.
Ela sorri em resposta ao olhar amoroso do amigo. E quando voltar ali depois ou aos
domingos, Carolin sempre há de lembrar esse sorriso, que queria dizer que sim iria para
casa, ao lar escondido atrás das árvores e do alto de sua janela, ao que ela responde com
firmeza que são o lar um das outra. Suplica. Não me abandone. No canto dos pássaros um
presságio. Pobrezinha. Não, isso não. Não é pela piedade de ninguém. Valerá talvez a pena

Ricardo de Almeida Rocha


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seguir o caminho, sinuoso como este, em que também o fim não se vislumbra. E é verdade,
ser amada assim tem um peso. Mas não tem certeza de nada. Não irá decidir agora, mas
apenas manter esse contato com o verde até a saída. Há de pensar em alguma coisa. Carolin
fez um sinal de cabeça e sorriu também. Tinha algumas idéias. E afinal, de um modo ou de
outro todas as coisas hão de passar um dia.

Sob aquele céu clemente


Conforme a voz, estão descendo. Vão aterrissar. Permita-me que eu te ajude, diz a
aeromoça. Um sorriso. Afinal não está tão só. Ah, solidão... Uma amiga de infância. Velava
por ela todo o tempo. Em todos os lugares, inclusive nas nove horas ao longo de toda a
viagem. Quanto a ele, chegara à cidade no dia anterior. Não falava o idioma local, portanto
podia se dar ao luxo de enfim parar de estudar. Trabalharia, como sempre sonhou, ajudaria o
pai. Sobre a bicicleta, sente grande alegria entre as árvores do parque. A humanidade não
poderia ser assim feliz? Ela estava inquieta. Um amigo lhe dissera que a tranqüilidade já
contém um pouco de felicidade, esse tanto ela não usufrui. Ao telefone, manuseia sua
agenda, ansiosa. Quando da primeira estada, uma amiga. Uma amiga recente. As almas
afins, dizem, têm um diferente destino. No começo do inverno, na longas noites de sua
procura, lá está ele, ao gélido luar, perguntando e correndo ao pensar tê-la visto, o clamor de
quem canta uma canção primordial.

Quem está entre um lugar e outro, sem convicção de como coisas se constroem e
cristalizam, sozinho, sem esse amparo geralmente falso que são os outros, ao encontrar o
próprio espírito na parceria da amizade. De onde menos se espera aparece a paz; está aqui,
agora, num teto sobre sua cabeça, na esperança de uma cidade nova: o hoje sendo também
amanhã finalmente. A tranqüilidade... Também pode ser infelicidade ao permitir que não
estejamos prontos para o inesperado. Eis aqui, os murros na porta da amiga, o namorado
violento, a progressão das batidas repercutindo no coração. Esconda-se, diz a amiga, e ela o
faz, atrás do horror de testemunha.

O rapaz está deslumbrado com o prédio do tio. Da vidraça do andar dá para ver toda
a cidade, ou quase, não há nada semelhante em sua vila. Acho que a tal sala onde guardam
as bicicletas é por aqui, pensa ele, enquanto imagina quanto o tio pagará de aluguel ali.
Nesses passos escuta os gritos, os mesmos que a recém-chegada escuta, no closet. Se
outros no andar estavam ouvindo, fingiram que não.

Um longo percurso até mesmo ele perceber de onde vinham os gritos e quando se
aproxima o casal está saindo, o namorado levará a jovem para o carro, onde entre ameaças
e juras de amor, chegarão numa joalheria. Chocado e sem ação ele percebe. Ainda há
alguém no apartamento. Está chorando. Como soube? Precisava saber alguma coisa naquela
cidade, era seu jeito de seguir vivendo. Curioso, alguns diziam. Ele preferia pensar que para
se agir no mundo é preciso estar atento, mas não agiu quando viu a jovem visivelmente
oprimida, quase arrastada para o elevador. Agora tem outra chance. Ela escuta as batidas e
instintivamente se apavora, mas logo entende que é outra pessoa. Desculpe, ele diz quando
ela abre, mas é que lhe pareceu haver alguém ali chorando, disse isso percebendo que
naturalmente ela mesma. O que aconteceu?

Por fim, após usufruir cada detalhe da dicção da moça, cujas entonações parecem
anjos, sabe que ela acabara de chegar, que veio para a casa da amiga, que fazia um
treinamento numa empresa de aviação, e mal chegara o namorado apareceu, sabe,
justamente quando ela estava me contando que precisava descobrir um meio de se livrar
dele para voltar a viver. Ela disse isso sem perceber que falava de si mesma, mas num
sentido inverso, precisava encontrar alguém com quem partilhar a vida, se sentia
insuportavelmente sozinha. Caso tivesse dito ele teria entendido, pois sentia o mesmo, e
mais que isso, acreditava que esse acréscimo de um ser feminino ao homem, justando-se a
ele como uma parte de si mesmo, consolida uma sabedoria que, como diria o pai dele, só os
deuses possuem, ou talvez nem mesmo os deuses. O que farão agora? O elevador para no
andar de cima. Um toque de campainha. Amor, esqueci a chave! Não, dois, três toques. Mas
no segundo eles já não escutavam.

Ricardo de Almeida Rocha


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Rival de si mesmo

Uma canção a protege dos frêmitos de sua música interior. Violinos a levam a
estâncias distantes, onde montara e reina o cotidiano de culta mulher liberada. Não precisa
de nada além de sua independência financeira, da realização profissional, e das amizades
cuja sinceridade jamais questionou. Conseguira tudo o que desde menina planejara. Pensava
que era feliz. É que tudo a que se determina torna-se realidade. Girou e olhou o teto girando.
Sua casa. Não é mais importante ter uma casa própria assim tão nova, não é algo de que
deva mais que tudo se orgulhar?
Ele desde há muito não ouvia senão a própria voz. Apesar de dilacerantes dilemas,
era uma pessoa entediada. Durante algum tempo a culpa foi da tecnologia. A internet lhe
tirara a capacidade de se concentrar. Buscas antes adoradas, tornaram-se pressa descabida.
O que sua vida se tornara? O casamento, um fracasso duplo: arruinara sua capacidade de
afeto e a pensão devorava seu parco salário. Ah, um professor precisa de certas qualidades
específicas, senso crítico, liderança, bom relacionamento com as pessoas – características de
alguém oposto dele.
Chama-se Gustav.
Ela se chama Brigite.
Executiva respeitada no ramo dos cosméticos. Ser sozinha só lhe rendera benefícios.
Um espelho falso alimenta certezas. Estou ficando mais jovem. E séria. Porque a alegria seria
sua mais cruel inquisidora. De forma insólita, entrará esta noite na órbita em que ele se
move.
O professor Gustav não sai exceto para o trabalho. Colegas de magistério e alunas
são um obstáculo diário a ser transposto. Não mais se relacionará com alguma delas, são
fator de desequilíbrio: sabe por experiência própria. Teme-as como a morte, ou mais; pensa
ocasionalmente em suicídio.
Brigite saíra do banho e se enxugava. 39 anos. De pequena estatura. Ancas largas.
Não de todo feia, mas longe de chamar a atenção de um estranho por sua beleza. O espelho
confirma essas coisas e a lágrima as comenta. Foi quando o telefone tocou.
Minutos antes Gustav debatia-se na idéia. Seu estado realmente deveria inspirar
observação. Plano tão simples quanto absurdo: ligar para um número qualquer, chamar um
nome ao acaso, e, caso seja uma mulher, fazer com que não desligue. E pensar que um dia
fora um mestre dos mais conceituados na universidade, meu Deus.
Uma resistência que se sabe de antemão vencida. Um homem não deixará de fazer, cedo ou
tarde, o que a vontade determina.
Brigite se olha no espelho, os olhos marejados. Gostaria de saber gritar sem motivo,
porque de resto motivos são sempre apenas pretextos. Quando o telefone toca, ela quase se
escandaliza. A não ser para o trabalho, o aparelho era apenas decoração e a hora é
completamente imprópria. Alô?
– Alô, Sandrine?
Não há ninguém ali com esse nome. Desculpe. Tudo bem.
O diálogo se repetirá em segundos. Irritação na voz e um prazer interior estranho.
Ah, desculpe, está caindo no número errado. Tudo bem, responde Brigite. Tente outra vez;
vou desligar e deixar fora do gancho.
Não, ela por favor não devia fazer isso.
Deixar o telefone fora do gancho?
Desligar.
– Por favor, não desligue.
Aqui poderia ter terminado a história, com um final feliz. Mas Gustav revelou que era
um grande músico, não que isso importasse, respeitado em todo o mundo. Naquela primeira
vez ao ser lhe apresentado um personagem, Brigite não ficou minimamente impressionada;
mas nas seguintes sim, quando Gustav deixou fluir suas confissões verdadeiras, em seu tom
verdadeiramente inseguro.
Amedronta Brigite se despedir de sua vida pequena e de sua inteligência funcional
para se aproximar de um homem tão famoso e, apesar de tão simples, dono de tanta
erudição. Enfatiza sua ausência de beleza, suas dificuldades sexuais, seus traumas. Franca,
cativou fundo o homem que existia em Gustav, e, num belo dia, não havendo mais quaisquer
impedimentos, era hora de se conhecerem. O homem que existia deve marcar um encontro
ao qual o inventado não poderia ir. Teria de ir sem a elegância do outro, um completo
anônimo, e sem conhecer nada de música, exceto o prazer de escutar algumas, e nem tanto
assim. Ser apanhado na mentira desde logo o deixava arrasado. Ninguém além dele deveria
saber o quanto desprezava a si mesmo e, se não podia amar a si mesmo, como Brigite, essa
a quem passara a amar com as síndromes do vício, deveria amar?
E todavia, desgraçadamente, ela já amava. Desesperadamente. Amou como jamais.
Amou o homem Gustav, ocupado demais consigo mesmo. Ela só poderia amá-lo por ser uma

Ricardo de Almeida Rocha


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personalidade mundial, a única característica dele que não a atraía. Porque ele não se decide
pelo encontro, ela julga que é pelas suas limitações físicas, intelectuais e artísticas. Nesse
impasse, um mês se passou. Um mês de angústia para Brigite, que não podia mais viver sem
o calor da voz do grande maestro, que com ela apenas partilhava inseguranças, coisas
pequenas e tocantes. E ele tampouco podia manter aquela situação que rompera sua inércia,
teria de conhecer aquela a quem também aprendera a amar além de sua carência afetiva.
Isso, ou renunciar. Para você está bem amanhã às 5 da tarde no parque? Deve ter levado
cerca de meia hora para pronunciar essa pergunta.
Ao menos o fizera. Enfim. Está feito.
Ela concorda, claro, e a partir dali passou a ficar ansiosa. Todos notaram em seu
trabalho e uma ou duas amigas, também confidentes, torciam para que desse certo, era uma
boa colega, merecia. Está liberada de seus confinamentos na plenitude da extroversão,
assim é que é ser normal, então. Ora, tão absolutamente simples... Se essas vinte e quatro
horas serão as mais longas de sua vida também criarão as condições de serem um tempo
curto e eterno.
Gustav desligou o telefone ligeiramente trêmulo e tomou um dos comprimidos da ex-
mulher, que ironia, para conseguir dormir.
Pela manhã no espelho, Brigite pensava na serenidade que deveria ter para não
passar por uma mulher tola e vulgar. Renam era alguém desses a quem uma gafe pode ser
mais imperdoável do que uma falha de caráter. Abstraia-se Brigite da coerência quando
pensava nisso, considerando que Renam era um homem tão simples, de fala mansa e
inseguranças e que até ridiculariza a si mesmo, assim era aquele por quem se apaixonara-se
tão perdidamente sem sequer ter visto uma única vez, “defeito”, pensou ela com humor, “na
fabricação desse relacionamento, mas já no conserto para ser reparado.
– Finalmente... – folgava Brigite, feito uma menina. – Amanhã...
Seu valor junto a Brigite, acumulado durante dezenas de telefonemas estreitados em
afeição, fazia com que duas coisas sobre outras ela desejasse: ser-lhe agradável e sentir-se
amada. A ocasião mais que propícia era única. Se fizera bonita com a ajuda de uma sobrinha,
vestindo com garbo surpreendente um vestido de gabardine xadrez com alças que se
cruzavam nas costas. A gravidade de sua expressão melancólica havia sido substituída por
uma descontração cativante.
Lá estava, debaixo de um céu rosado no horizonte, no patamar da angústia pelo qual
se chega à felicidade, sentada no banco da praça em que haviam marcado o encontro.
Depois deveriam ir a algum lugar, um restaurante talvez, não importava onde, desde que
estivessem juntos afinal. Ele a viu de longe, por detrás de uns arbustos. Preferiu manter-se à
distância enquanto outras pessoas sentavam ao lado de Brigite, a essa altura num mundo de
incertezas, sendo roída pelo temor da decepção que a falta de Gustav ao encontro deveria
provocar, transformando-a depois numa dificuldade primeira, forte obstáculo para que se
restabelecessem seus códigos de confiança no estranho da voz amiga. E era uma
possibilidade que aumentava a cada minuto com o atraso de Gustav desdobrando-se numa
medida insuportável.
Seus corações batem descompassados. Ao lado dela senta-se um homem vestido
com jeans, camisa branca e sapato preto de camurça – exatamente a vestimenta que Gustav
deveria estar portando se não tivesse vindo ao parque não para concretizar um sonho mas
apenas para espiona-lo.
– Renam? – perguntou Brigite ao homem.
Daniel a olhou de alto a baixo e debaixo e decidiu que, embora não tão jovem, não
era uma mulher de se jogar fora. A principio apenas divertiu-se com o engano de Brigite.
Depois, viu o prenúncio de que não precisaria passar aquela bela noite de abril vendo o filme
de artes marciais que alugara. Estava claro que ela usava um pretexto para se aproximar
dele, afinal era bonito e mais novo. Não parecia uma prostituta, o que dava ao fato contornos
mais excitantes, talvez uma esposa frustrada. Não importava, dar-lhe-ia o que necessitava.
– Bem, vamos sair daqui?
Impregnada de dor, via diante de si um homem de 40 anos que aparentava menos de
30, e ele não mencionara beleza física, pelo contrário, dissera ser de aparência vulgar, e no
entanto a beleza era o que nele imediatamente chamava a atenção. Sendo assim
fisicamente, ele praticamente a abandonava. Sentia-se mal ao encarar aquele homem jovem
e belo e o pior: de olhos transmissores de nada. Durante um mês sonhara e acordava agora
para uma realidade de fealdade só comparada à sua beleza exterior. Arriscara e perdera. Na
verdade, quando Gustav começou a se atrasar, ela intuiu um desastre. Estava escrito na
primeira estrela que aparecia no céu e também na deselegância da postura de Renam. Esta
certo que fosse alguém sem vaidade apesar de famoso, mas o gênero daquele desleixo
falava de qualquer coisa a mais que simplesmente desprendimento. Preferiria não ter aceito
o convite de Renam para saírem dali mas não saberia dizer não; aliás nunca soubera, exceot
quando não estava em jogo, como agora, a sua vida pessoal.

Ricardo de Almeida Rocha


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O rapaz já relanceava o dia seguinte, quando ela deixasse seu apartamento e nele
entrasse seu amigo, com quem combinara ver o filme e ele contaria os detalhes da noitada
com aquela mulher estranha que o abordara. Gustav de seu esconderijo se desesperara sem
agir, o que se lhe afigurara uma impossibilidade. Brigite e o rapaz se preparam para levantar,
de modo que parecia consumar-se a condenação de sua maldita vaidade. A vida, que parecia
perdida e fora encontrada, deixava o parque na companhia do estranho. Brigite gostaria de
chorar, mas havia desistido. O jovem conseguia encontrar a cada momento novos encantos
naquela esposa frustrada ou simpesmente a louca que o abordara. Não passaram
despercebidos de Brigite seus olhares licenciosos, “por Deus, pensou Gustav, será que a voz
desse idiota é tão parecida com a minha? “, não percebera Brigite o mal-entendido?
O casal, seguido, saiu do parque para um restaurante. Antes da comida chegar,
fizeram um brinde, suprema crueldade, pensara Brigite. Beberam, coisa que ela não estava
acostumada. Gustav, que tampouco era disso, bebia também numa mesa próxima. Brigite
encontrou finalmente forças para pedir que ele a deixasse em casa. Em nenhum momento
desconfiando que aquele lindo ser à sua frente era o seu querido Renam. Na verdade achava
que não era o “seu” querido Renam, mas era Renam. Gustav, que era Renam, de táxi,
seguiu-os no carro de Brigite.
Na frente do prédio ela se despediu agradecendo por ter sido acompanhada até em
casa. O rapaz perguntou se ela não deveria no mínimo convida-lo para subir. Com as mãos
repousadas nas pernas Brigite sentiu percorre-la um sentimento amargo. Teria de passar por
mais alguns momentos de tortura – porque era assim exatamente que se sentia na presença
real de Renam – como conseguira ele fabricar com tamanha perfeição um personagem de si
mesmo? Sem mais esconder sua decepção, ela pretextou o fato de ter de acordar cedo no
dia seguinte, depois passou para a quantidade de álcool que haviam ingerido, tudo inútil
perante a determinação de Daniel.
Entregou-se à sorte que lhe fora tão madrasta, como alguém que não tinha nada a
perder porque já perdera todas as coisas. Afinal, não iria fazer diferença quando ela estivesse
morta algum dia. Banhado em suor, Gustav finalmente entrou no prédio, alguns minutos
depois deles. Daniel já havia despido a própria calça, rasgado o vestido de Brigite e tentava
uma posição. Estava inclinado, ele sobre as costas dela, na pia da cozinha. De tão apavorada
ela não teria pensado em tirar o interfone do gancho, mas o vigia do prédio ligava para
perguntar se ela conhecia...
– Como é mesmo o seu nome?
Ouviram o grito de socorro.
Subiram, enquanto Daniel e Brigite se amaldiçoavam.
– O quê?
– Você é louca! Devia saber que não teria coragem de ir até o fim, sua vagabunda. E
eu perdi uma grande noite com um amigo a quem amo para estar com você. Ele bem diz que
a novidade é uma tentação perigosa.
Batizada pelo inferno, Brigite ouvia, atônita.
– Você não é Renam! – as palavras saíram como que golfadas de sangue.
– É claro que não sou Renam, e você sabia disso desde o principio! – disse ele,
fechando o zíper da calça. –Agora posso até ser acusado de tentativa de estupro... Logo eu...
– Mas você ia me estuprar mesmo.
O elevador parou e a porta abriu. Assustado e revoltado, Daniel virou-se para Brigite,
praguejando. Tornou a fechar e trancar a porta que abrira para sair.
– Bem, se eu for levado à polícia, que seja por uma causa mais digna.
Apanhou a faca que reluzia à luz fria da lâmpada cilíndrica. Brigite demorou a se
aperceber do que acontecia. Por fim, vendo-o encaminhar-se para ela, com a morte nas
mãos, mais alto, e mais, lançou-se em carreira pelas conhecidas sendas entre os moveis de
seu apartamento, em corredores sinuosos e exiquos. Parou atrás do sofá. A faca reluziu.
Brigite pulou sobre a poltrona quando Daniel tentou agarra-la. Ouviu as batidas na porta,
duas vozes de homem, gritou novamente por socorro, e outra, mais uma, torceu seu corpo
minúsculo de modo a livrarr-se das mãos que quase a detiveram. Daniel arremetia contra
ela, enlouquecido. Ela travou os passos e girou na direção da porta. Ele havia tirado a chave
e veio espumando, a mão erguida empunhando a faca, Brigite apercebeu-se de que as
pancadas na porta já não eram chamados, mas arrombamento. Rezou para que
conseguissem antes que fosse tarde. Enquanto rezava, obstruiu a passagem do assassino, de
modo que o balcão, a pouco quase o palco de sua violentação, agora a protege, ficando entre
ela e Daniel, seu vestido comprado na melhor loja da cidade, esfarrapado, prendeu-a. Daniel
está atrás dela num segundo, e noutro sua mão desce impiedosa com as lzues refletidas no
aço que deveria se alojar na carne que ela julgava ainda sadia para satisfazer ao homem a
quem amasse como amara a Renam. Por que não viera e a deixara a mercê daquele
monstro? – foi tudo o que pôde pensar antes de ser consumado o crime.
A faca cravou-se no ombro de Daniel, desenvolvido à força de academia. Saiu e
tornou a entrar mais acima. O sangue tingia todo o chão da cozinha. A porta arrombada

Ricardo de Almeida Rocha


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repousava sobre arroios vermelhos e viscosos que entravam nas frestas do piso e sobre ela
estava estirado o vigia, após o esforço que possibilitou o arrombamento. Uma boa parte da
madeira do umbral, arrancada num entrondo, agora absorvia o vermelho. Quando olhou o
rosto apaovado de Brigite, enternecido, Gustav girou a faca. Foi um movimento cheio de
ódio, não saberia dizer se do agressor da mulher que amava ou de si mesmo que provocara o
episódio.
A penitenciária foi inevitável, apesar de uma sentença cheia de atuantes que
permitia com que ele sonhasse à saída relativamente jovem reintegrar-se à vida, através do
amor de Brigite. Porém, os dias que ali iria passar deveriam conter profundas reflexões
seguidas de ações decididas.
Brigite visitava aos domingos o homem que achou suspeito o rapazx que sentou-se
ao lado dela e por isso o seguiu. Gustav, o professor de filosofia, não teve coragem de dizer
que ele era Renam, embora não fosse Renam.
Teria um ou dois anos, talvez menos, para plantar em seu peito a coragem da
confissão, uma vez que Brigite o considerava apenas um salvador, um amigo, mas, mulher
dessas cuja fidelidade é obsessiva, mantinha em seu coração a chama do amor a Renam,
embora ele não mais tivesse ligado e ainda que jamais voltasse a ligar.

12. Durante a chuva


13. Valerie
14. Com a noite na alma

Com a noite na alma

O sol derrama-se pelas montanhas, sobre os cumes brancos, imponentes. Reflete-se


no lago que devolve o céu limpo da primavera. Um sábado esplendoroso. Ao se instalar a
manhã, havia no ar algo de sublime, mas a cidadezinha mineira jamais vivera um momento
tão escuro, sem nenhum aroma de vida, sem qualquer vestígio de paz. A indignação
gangrenava as almas de todos os vizinhos da pequena Diana, aquele anjo de candura.
O casal chorava em desespero a filhinha brutalmente assassinada. A mulher não se
conformava, em pranto convulso. Seu marido consolava-a embora ele mesmo não
conseguisse se conformar. Ninguém conseguia. Quem poderia ter sido capaz de tamanha
crueldade? A mãe decide que a menina está melhor do que se sobrevivesse ao crime.

Os mineiros levavam uma vida mais difícil. As jazidas a céu aberto se esgotavam,
exigindo mais técnica e capital e após tantos sacrifícios estão sujeitos à exploração. Não
porém os habitantes daquela cidadezinha. Estão satisfeitos com seu intermediário entre as
pedras e o dinheiro, agora que os tempos das transações em pó de ouro haviam acabado.
Aquele casal tem ainda mais motivos de gratidão.
O marido voltava de um dia exaustivo sob o sol causticante no curso d água que,
vindo da montanha, ia desembocar no rio que atravessará a capital. Quando o mineiro entrou
em casa, o outro esperava, servido de um café. Olá, cumprimentou o velho efusivamente,
deixando a xícara sobre a mesa rústica. Olá, senhor. Você está cada vez mais vermelho.
Parece um tomate, riu o velho. O sol está quente demais. O mineiro preferia as galerias.
O velho fala em tom solene. Parece principiar um assunto grave. O homem vê a
esposa sorrindo. Ela responde o olhar com outro, de alegria. O comerciante continua. Sua
mulher estava me contando das dificuldades que a filha de vocês está encontrando na
escola. É natural que uma menina como ela, tão viva e inteligente, não se adapte a um
ensino assim rudimentar. Pela janela, o pai vê a menina brincando com o cãozinho. Se
enternece. Continuava a ouvir a voz do velho. Não estou dizendo que Tonya é má professora.
Pelo contrário. Vira Tonya crescer, é vizinho dos pais dela. Sempre admirou a dedicação da
adolescente ao estudo e depois, quando se tornou uma moça, seu desejo de ir para uma
cidade pequena, ensinar os filhos das pessoas carentes. Pára e pensa que, se fosse filha dele,
não permitiria. Uma moça assim encantadora em meio a homens tão rudes. Tinha qualquer
coisa de sua própria mulher, uma liberdade que, ele tem certeza, acabará lhe trazendo
problemas. Liberdade é uma arma perigosa de ser manejada, não é para qualquer um e as
mulheres são delicadas demais. Vê a face erguida de Tonya desdenhando desse discurso. Foi
conhecer as instalações da escola da cidadezinha.
Nesse ponto, o mineiro não pode evitar o comentário amargo. Os mineiros não
deveriam ser gente carente. Os que vivem às nossas custas sempre fazem fortuna. A mulher
ergueu na voz em reprovação. Ele quer apenas ajudar, amor. Deixe, Sarah, disse o velho. Ele

Ricardo de Almeida Rocha


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tem razão. – O senhor tem sido generoso, mas não podemos tratar sempre com um único
homem. Nem o senhor pode negociar com todos os mineiros da região.
O velho concorda e aproveita a oportunidade para expor seu desejo. É verdade. Por
isso tento fazer o que posso por amigos como você. E no caso creio que posso fazer isso por
vocês e pela menina. Mas do que exatamente está Simon falando? Gostaria de oferecer
estudos para ela na capital.
Senhor, vivemos aqui no flanco da montanha, entre o topo do mundo e o fundo do
vale, disse o pai. O comerciante fazia esse percurso uma vez por semana, sabe das
dificuldades que a mãe teria para levar Diana todos os dias, conhecia todos os perigos. Sim,
sabe. Ainda mais porque os índios estão em pé de guerra por termos dado fim às fontes de
subsistência deles. Se ficar para jantar conosco, verá que aqui temos apenas feijão e carne
de porco. Aceito, disse o velho subitamente. Porque já estava ficando mesmo com fome e
porque estava decidido a ajudar aquela menininha tão linda que lembrava tanto sua netinha,
morta num ataque dos índios.

Três homens cavalgam pelas ondulações da campina na direção das montanhas de


pedra, com expressões malévolas nos rostos sombreados pelas largas abas de cada chapéu.
Nada falam entre si. Dispostos a cada detalhe das coisas que lhes estavam planejadas para
as horas seguintes. Suas montarias, corcéis crioulos se agigantando velozes contra o
horizonte próximo as pedras, marretam às ondulações da ravina, pisoteando as plantas
agrestes em assustador tropel. Na cintura pendem revolveres de médio calibre com
incrustações de ouro nas coronhas; nas bandoleiras das selas encaixavam-se rifles de alta
precisão. Sofreiam os cavalos diante da garganta. Os animais rumam agora na direção
indicada no apertado caminho entre os montes pétreos e ermos. Muito ao longe se ouve o
rumorejar de correntes. Sobem um pouco pelo desfiladeiro transformado num forno pelo sol
que insistira sobre as pedras durante todo o dia. Diante deles desvenda-se então a superfície
em que a cidadezinha foi construída e em seguida a própria cidade, com sua rua central
fervilhante de pessoas entre carroças com utensílios, veículos maiores, com molas, puxados
por parelhas de mulas, e ainda alguns outros com mantimentos sob lonas e juntas de bois.
Entram lentamente na cidade. Observam e são observados. Passam pelo salão onde
a avenida central começa. Na porta estão postados comerciantes e garimpeiros conversando
sobre tudo, sobre nada de importante. Um deles puxa a corda que corre pela roldana. O
prédio é de estuque e o vidro na fachada quase inteira devolve o movimento da rua e os
próprios Bernes, Born e Bumbe, que se inclinam no sentido um do outro e cochicharam entre
si. Apertam levemente o trote.
Algumas das casas de madeira, assentadas diretamente no chão, de dois andares,
têm passadiças e umas poucas mantém a cobertura de pele de antílope à janela. É um dos
luxos na casa de Maggie: assim os quartos mantinham um adequado toque noturno mesmo
ao meio-dia. Em frente a esses aposentos, um lampião do lado de fora das portas ilumina
um número. Os tetos são baixos e a iluminação tênue. Durante todo o dia, está acesa a
chama de lamparinas e lustres de castiçais com velas vermelhas. As garotas de Maggie
tinham todas a tez muito pálida e olheiras, correspondendo aos motivos fantasmagóricos da
decoração de suas alcovas. Durante o dia inteiro também sobe de todas as frestas da casa a
fumaça e o cheiro de ópio. No centro dos quartos, razão de tudo, as camas de madeira
escura vinda do Norte. A moldura dos grandes espelhos é dourada, as colchas e cortinas de
cetim, os tapetes de veludo, as roupas íntimas de seda – tudo o que se podia oferecer de
melhor a homens que, tendo descoberto ouro, adentravam a região dos ricos, dos que
pagam pelo melhor que a vida tem a dar.
Embaixo, eis um salão de espera digno da capital. Ao canto, tocado por um negro,
um piano do qual sempre sai a música triste dos noturnos de Chopin. Cobertura de pano
verde nas mesas de mármore. Atrás do balcão o barman passará o dia entre servir os
fregueses e enxugar os copos recortado na estante espelhada onde sobressaem as bebidas
mais finas, mas a mais consumida é o velho uísque de milho. Assim que se passa pela porta
de entrada, a mesa de bilhar ao lado da qual aquele a quem Maggie chama “mon Chasseur”
permanece todo o tempo em estado de alerta.
É de tardinha quando os três passam por ele. Estão indo na direção da mulher, que
faz contas numa mesa mais ao canto. Uma de suas faces brilha fracamente pela luz do
lampião na parede.

A habitação do jovem casal se destaca entre as casas não por qualquer razão além
do carinho com que a esposa se dedica aos serviços do lar. Não fosse isso, seria como várias
outras casas erguidas em mutirão pelos mineiros com família quando decidiram se
estabelecer ali. É casa simples, feita com pedaços de terra endurecida, à maneira dos índios.
Divide-se em três peças, separadas por cobertores. A cozinha faz também o papel de sala.
Algumas prateleiras suspensas guardam os alimentos. O feijão ocupa um espaço maior, os

Ricardo de Almeida Rocha


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vendedores garantiram ser chileno. A carne. Pães e broas. O melaço substitui o açúcar e traz
as moscas. Muitas delas haviam se apaixonado pelo nariz do velho. Bichinhos malditos! –
exclamou ele rindo. Seus dois guarda-costas riram também. Estavam quase no fim da
refeição e nada do velho voltar ao assunto. É claro que o pai queria o melhor para a filha.
Não hesitará em dar a própria vida pelo bem dela. Arrepende-se agora de não ter permitido
que o velho dissesse logo o que tinha a dizer. Sara mal mastigava a carne. Uma delícia! –
deleitava-se o velho, lambendo os beiços e passando o guardanapo na boca. O pai não
resistiu mais. E quanto a Diana, senhor Simon? Com seu prato já limpo, Simon disse estar
pensando se ele não ia mais perguntar. A jovem esposa também externou seu ansioso
coração materno. O que o senhor tem em mente para nossa filha?
A menina come num banquinho com o prato sobre o colo. Também ela está excitada,
desde que ouviu seu nome à mesa, sem saber o que aquele velho de rosto bondoso
representará em sua pequena vida.
Bem...
Enfim, o comerciante volta ao assunto que ali o levara. Como já tinha dito, não seria
louco de pensar que a mãe poderia levar a menina à capital diariamente. Embora pudesse
arranjar emprego para o pai lá, sabe que a terra aqui ainda traz muita riqueza oculta. As
jazidas a céu aberto estão se esgotando, diz o mineiro num pedido de socorro. Vocês
poderão com sucesso desviar o riacho e escavarem o leito. Também existem outras
possibilidades, como os flumes para fazer o ouro descer pelas colinas. Quero que você seja
meu homem de confiança nessas empreitadas. O velho faz uma pausa como a esperar nova
interrupção do pai, cuja paciência acabava quando acabava o dia de trabalho. A interrupção
não vem. O velho sorri e continua. Vocês poderão ainda abrir poços e galerias. Podem contar
comigo. Vocês ganhando, eu ganho também.
Então, se a menina não poderia ir e vir todos os dias e se não convém que a família
vá para a capital, como ela poderá estudar lá? Ela pode ficar na minha casa nos dias de aula,
disse Simon, e nas sextas eu a traria para passar o final de semana com vocês. Será por um
tempo pequeno, pois é transitório o negócio da mineração. Mas o benefício dela será para
toda a vida. Na casa dele? E por que o senhor faria isso por ela?, perguntou o pai
subitamente desconfiado. Mas a esposa o repreendeu novamente. Cale a boca, homem! Será
que você não consegue ficar quieto e esperar as pessoas falarem? O velho entende o pai e
diz que a preocupação dele é natural. Olhe, disse o velho, olhando nos olhos do mineiro, eu
perdi minha neta quando ela estava com a idade de Diana. Pode ser que seja egoísmo de
minha parte tentar transferir o amor que eu tinha por ela e para tanto afastando uma outra
menina um tempo, ainda que pequeno, de seus pais. Mas não me restam muitos anos de
vida, e para vocês sim, e ela tem a vida inteira. Além do mais, não ficará na verdade
afastada de vocês. Muita gente vai à capital só para se divertir, jogar, beber e... –
interrompeu-se e constrangido corrigiu o restante da frase – estar no bar mais famoso da
região... Vocês teriam uma razão muito justa para fazerem o mesmo percurso, durante a
semana também se quiserem, para ver a menina. O caminho não é mais perigoso do que a
cidade em que vivem.
Estupefato. Assim está o pai. Fora uma quinta-feira de trabalho árduo. Estava pronto
para chegar em casa, jantar, fazer amor e dormir – apenas uma noite como as outras. E
agora, nem bem anoitece, aquele furacão de pensamentos, projetos e possibilidades, para
ele, a exploração do ouro e principalmente para sua família. É demais para um sujeito tão
nervoso como ele. Minha mulher, continuou o velho, deixará um dos quartos de nossa casa
sempre pronto para vocês pernoitarem. Na capital, Diana saberá mais que ler e escrever, e
fazer contas. Os professores lá usam textos que transmitem, além do aprendizado do idioma,
uma visão humana do mundo, e da nossa própria região, diz Simon, pensando em McGuffey
e Mark Twain. Diana terá uma escola com Biblioteca, Grêmio, conferências, onde será
recebida sem discriminação. E depois a universidade. O que você diz?
O pai respirou fundo, completamente convencido.

Quando os passos dos três homens se fazem ouvir no interior da casa de Maggie,os
que jogavam pôquer voltam-se e vêem os vultos no miasma que paira no ar viciado, a dúbia
face de homens jovens bem apessoados carregando na fronte o signo do Mal. O vento sopra
e abre e fecha, batendo, uma janela no final do corredor lá em cima. Três moças que
olhavam do alto das escadas tentam se recolher, temendo que escolhessem uma delas. A
maioria das meninas de Maggie sente-se à vontade naquele antro. Sabem-se marginais,
abandonadas, residentes no inferno, mas têm também consciência de que são livres, livres
como por exemplo a mulher do banqueiro jamais poderia ser. São mães solteiras que ali
encontram um lar que a sociedade lhes negou, mulheres que ali atrairiam os mais gentis
homens da cidade, que de outra forma só poderiam ter caso se casassem com eles, o que
mudariam naturalmente a questão da liberdade, dentre outras.

Ricardo de Almeida Rocha


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– Você é a Maggie?, perguntou um dos homens. – Para bem servi-los, disse a mulher.
– Queremos três quartos e uma de suas garotas nos esperando em cada um com uma
garrafa de absinto à cabeceira. – E vocês tem alguma preferência? Tenho brancas, amarelas,
vermelhas, negras... – Eu tenho apenas uma preferência, disse o mais jovem dos três. Seu
hálito recendia a álcool digerido. – Que a minha seja bonita.
Tão assustadora é a aparência do Mal no rosto dele que mesmo a calejada Maggie se
furtou de fazer algum comentário espirituoso sobre a beleza de todas as suas meninas.
Agora os três estão subindo as escadas, guiados pela cafetã. Passam pelo quarto de Aglaé e
a porta é aberta. Diante do 7, Ben é deixado. Maggie pára com o ultimo diante da porta de
Priscila, de cuja aparência ele não poderá reclamar, pois é a mais pura encarnação da beleza.
Seus olhos, evoca Maggie, são lagos de luz; seus cabelos, muito lisos e loiros, são raios de sol
que lhe descem pela cabeça; seu sorriso mostra dentes de brancura incomum, e em nenhum
lugar há falha. Seus lábios fechados parecem o desenho de uma carinha de gato feita por
uma criança e o colorido de magnífica intensidade; suas faces, maças róseas a que se deseja
morder mesmo sem fome.Seu colo como as planícies vistas das montanhas, de onde subiam
as colinas gêmeas. Nenhum homem poderia deixar de regozijar com a visão delas e descer
ao vale, privilégio de poucos. Nunca Maggie iria entender por que acreditou que aquele rapaz
deveria ser um desses. Agora estava feito.
No interior do aposento, Priscila vira e depara com os olhos flamejantes que a
devoram. Faz meia hora que jantou, uma substanciosa sopa de feijão, ervilha e batata. Está
sonolenta e mole, sente-se gostosamente adormecer quando a porta abre. Pensara em
recolher-se um pouco antes de se preparar para o final do dia de trabalho dos mineiros,
quando o seu começaria. Sentindo um desejo insensato e doloroso de possuir aquele anjo, o
rapaz avança a passos lentos mas determinados. A moça, por repugnância ou medo, não
esboça reação. Está simplesmente paralisada. Jamais vira olhar tão horroroso nem em seus
constantes pesadelos.É bem verdade que os olhos do delegado possuíam brilho semelhante,
mas aqui esse tom de pavor está em forma mais – se é possível dizer isso – inocente. Não,
não será possível dizê-lo. E o delegado, apesar disso, é muito gentil. E gentilezas são algo
que definitivamente o rapaz à frente dela não está disposto a se dar. Mas Priscila com alívio
percebe que se enganou.
Está vestida com um chambre aberto até os joelhos. Tem nas mãos e presas junto
aos seios no corpete de abotoamento frontal flores do campo que um cliente da noite
anterior trouxera. Segura o buquê, afagando a corola das sépalas, ao ajeita-lo num vaso no
toucador. Ah, um pouco de beleza basta para suportar a tristeza. Ninguém deixa de passar o
que precisa passar nesta vida. E teria amigos tão verdadeiros se fosse uma mulher
respeitável? Olhe essa pétala... que sensível ele foi ao se lembrar dela. Quanto às crianças
correndo pela casa, bem, não se pode ter tudo, pensa, olhando o pente de estimação de
empunhadura finamente ornamentada. Destaca-se o entalhe. PW.
Não vá deixar cair uma flor tão linda como essa e pisa-la, diz o rapaz; e afunda um
pouco mais a haste na seda. Veja, a antera sujou sua pele de amarelo. Uma cor inadequada
para tamanha beleza... Deixe-me limpar... assim... Levou os dedos dos seios à boca. Que
delícia. Que garota. Mas não zombará dele. Esse tipo de sensação desde sempre o perseguiu,
como um murmúrio de janelas ao vento em noite de tempestade. Mas agora está livre.
Acalmarei esse incômodo. Olhando as flores, olha todas as aves perversas dos céus sombrios
sobre ele, revoando e descendo. Chupa as pontas dos dedos. Hun... Não sabia que pólen
pode ser assim tão gostoso...
Priscila sorriu um triste sorriso meigo que desencadeou a crise. Subitamente ele
cortou a mecha que lhe caía na testa. Seus cabelos são lindos... De uma cor inacreditável,
parece que têm brilho próprio. Ela conseguiu balbuciar. Você é louco... E olhava seus cabelos
no chão como se pudesse reavê-los só de olhar, como se traz alguém de novo para perto
através da saudade. Louco? Você ainda não viu nada, diz o rapaz. Entra na abertura do
vestido, erguendo-o com o antebraço até a altura do pequeno monte sagrado, enche as
mãos com a parte posterior da coxa esquerda, aperta-a até cravar as unhas.
As lagrimas começando a escorrer pelo seu rosto, a moça apenas consegue
balbuciar. Por quê? Ela até pensa em detê-lo de alguma forma mas a faca na mão direita do
rapaz, devolvendo todas as sombrias luzes do quarto, cala qualquer reação. As unhas se
cravam mais, nascem cinco filetes, ela cerra os olhos, grita, ele traz a mão para fora da
roupa da moça, rasgando a perna por onde sai, e, onde o grito se prolonga, o braço ganha
impulso para cima, descendo num tapa que estala e a joga na cama. Por quê? É tudo o que
consegue dizer. Por quê? – repete, o corpo inteiro chorando.
Por quê? Bernie leva à boca a garrafa de absinto. Sua voz ecoa a de Priscila. Por quê?
– disse, arrastando as palavras. Ora, porque você é muito feia!...
Lá fora, o sol se esconde. Um tom róseo magnífico na paisagem crepuscular. O rapaz
larga a garrafa. Mantendo sempre a faca na mão direita, busca um prazer além de toda
possibilidade. Puxa Priscila da cama pelos cabelos, traz o rosto até encostar em seu ombro. O
corpo dela em arco ajoelhado sobre a cama em arco, estremece aos soluços. Ele usa a faca

Ricardo de Almeida Rocha


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para cada um dos botões. Corta os laços nas ilhoses do corpete A espinha da moça está
perigosamente torcida. As alças cortadas, nada há entre os corpos exceto a roupa do próprio
Bernie. Ele larga os cabelos e a mantém contra o peito com o braço, troca a faca de mão, tira
o chapéu, desafivela o cinto, abre a calça e a possui com bestialidade, ainda que com alguma
dificuldade inicial, o que ela não pode deixar de notar. Meu Deus, e o que isso importa?
Antes de ser expulso do corpo dela, passa de novo a faca para a mão direita e faz
com que a lâmina rasgue diagonalmente aquele peito angelical, do ombro ao quadril, apenas
o suficiente para muito sangue e uma futura cicatriz, sem risco de vida. Subjugada,
desesperada duma dor dilacerante, as lágrimas dela misturam-se a seu sangue num mesmo
líquido, tão amargo quando sua cabeça pende. Bernie agora arranca a vela do castiçal e a
inclina para que a cera caia no rasgo já em fogo. O grito é ouvido em todo o prédio e
vizinhança. Tarde demais, a porta é arrombada pelo chasseur.

No seu primeiro dia na casa do tio na capital, Diana conversa com a governanta, que
lhe protege os ombros, jogando uma capa. Quando os dias são muito quentes e esfria à
noite, como hoje, é grande o perigo de se resfriar. Estou bem, senhora Dalia, diz a menina,
inquieta, louca para sair e brincar com suas novas amiguinhas. Na frente da casa as crianças
inventavam jogos, nem percebem o vulto melancólico que passa do outro lado da rua. Riem
e soltam gritinhos. Diana destaca-se de suas companheiras como se de seus cabelos
encaracolados emanasse luz própria ao refletirem a iluminação da rua. Não podia imaginar
que um incidente dramático no bordel da cidade de seus pais estivesse naquele momento
decidindo sua sorte. Na verdade, nem imagina o que é um bordel. Mas bem que num dado
momento teve uma sensação esquisita a que não saberia tampouco chamar telepática,
quando Priscila foi cortada. As duas eram amigas, e todas as manhãs brincavam muito, com
a condescendência misericordiosa de seus pais, quando a jovem da casa de Maggie acordava
cedo o suficiente. O casal tinha muita pena de Priscila. Olhem, disse subitamente uma das
meninas, apontando o vulto com uma expressão de medo.
O homem perambula pelas ruas da capital, solitário. Está cansado. As cidades pela
madrugada são todas iguais, todas mortas, era como se percorresse as ruas das cidades-
fantasma, como ele próprio se sente um espectro. Passou pelas meninas do outro lado da
rua, brincando e alegrando-se, como, pensa, só às crianças é possível. Chegara na
primavera. Numa primavera conheceu no delta sua esposa num vapor. Numa primavera ela
tombou morta quando um trapaceiro apontara sua arma para ele por um motivo idiota
qualquer, como só os motivos de briga por causa de jogo, mulher e patriotismo podem ser,
disparou, entrando Camile no caminho da bala. Depois daquilo, ele andou vagueando pelas
estradas de ferro, gastando o lucro do pôquer como se ao dilapidar o dinheiro seu remorso
pela morte dela se esgotasse também. Se eu morrer antes de você, dissera ela um dia
depois do amor, quero que me prometa que será feliz de novo, que procurará outra mulher
para me fazer como hoje me faz feliz. Agora, isso não parece uma coisa possível.
Onde a ferrovia passava pelo vale de São Pedro, com seu dinheiro acabando, arriscou
sua vida numa terra de índios, pedindo que uma fecha cessasse seu suplicio. Misturou-se aos
estrangeiros de toda parte que perseguiam o ouro. Quando a prosperidade da prata deu
lugar à decadência e aquela se juntou às cidades-fantasma, ele partiu, voltou à terra natal,
subiu um árduo caminho, fez loucas baldeações tempestuosas e, sabe Deus como, chegou
vivo à capital.

Um galope furioso traz o delegado em poucos minutos à casa de Maggie. Alguma


coisa estranha na maneira como gesticulava ansioso. Abre caminho por entre o aglomerado.
Uma pedra luz à sua passagem. Há espírito de linchamento, Priscila era como um amuleto,
sagrada na comunidade, admirada pelos homens de bem. Onde encontrarão agora alguém
como ela? Mulher sublime, como chega àquele ponto?
– Calma pessoal! O delegado entrou a plenos pulmões. – Calma!
– Estaremos calmos quando esse canalha estiver morto e seu corpo entregue aos
abutres.
Blake aproximou-se e parou diante dos mineiros que jogavam cartas quando os três
subiram com as garotas. – O que temos aqui? uma execução do Comitê de Vigilância?
– Temos aqui grandessíssimo canalha que vai pagar pelo que fez.
– Então nada resta para o xerife fazer, certo?
– Desculpe, xerife, mas é exatamente isso; nesse caso, não há mesmo nada que o
senhor possa fazer.
– Hun... – murmurou Blake entredentes – Você está faltando com a verdade.
O homem não tem tempo de perceber o punho do xerife em sua direção. Ai! Ainda
ouvia a voz do xerife. Ai! Era ele quem segurava o agressor de Priscila do lado direito. Ai!

Ricardo de Almeida Rocha


CONTOS DO AMOR E DA MORTE

Pelos cabelos a cabeça levada à bota. O homem quer respirar. O outro. Segura Bernie do
outro lado. Terá a mesma sorte, está claro, exceto se erguer as duas mãos para o alto, numa
silenciosa súplica. É o que faz. O rapaz, solto, bambeia. O delegado o segura pelo colarinho e
evita a queda. Muito bem, alguém ainda faz questão de continuar o espancamento? O
sangue pinga no assoalho.
– Muito bem, rapazes; vou levá-lo então se vocês abrirem caminho. Que eles
ficassem felizes do xerife não levar em conta a travessura e continuar no cargo. Alguém
protesta baixinho no meio das pessoas. Foi muita covardia com a moça. – Ah, foi? E quando
os salteadores que rondam a região covardemente invadirem suas casas quando vocês
estiverem trabalhando e pensarem em fazer isso com as mulheres de vocês, não é bom
lembrar que a cidade tem um xerife que a protege de qualquer covardia contra pessoas de
bem? Maggie tem ímpetos de gritar o quanto Priscila era uma pessoa de bem, mas se cala.
Um silêncio respeitoso ou temeroso também descera sobre os homens. Blake diante deles.
Impõe sim a ordem e traz a segurança. Melhor, como ele está dizendo, fazerem as coisas do
jeito dele, dentro da lei. – Ótimo, rapazes. Abram caminho.

O delegado grita com um Bernie que mal o pode ouvir. Imbecil! Se o xerife pudesse
perdoá-lo, é que bebera demais. Uma voz dura, implacável, diz que desde quando precisa ele
de bebida para fazer idiotices? O rapaz sabe que é um covarde, na verdade é homem sem
qualquer estirpe. O delegado entra na cela onde o prendera e assegura que se houver uma
outra vez, permitirá o que acabem o linchamento. Não haverá uma outra vez. Blake espera
que não. Agora vá.
A cidade dorme.
Entre K* e W*, Bernie se encontra com os demais. Ali o bando assaltará o trem.

Quando chegou pela manhã, não vendo o prisioneiro, o auxiliar perguntou por ele ao
delegado.
Entregara-o, respondeu, a uns federais que por ali passaram de madrugada. Era um
homem procurado. O auxiliar responde que ainda bem, prefiro essas celas assim vazias e
não olha para Blake enquanto ele diz que precisa ir à capital tratar de uns negócios pessoais.
Tudo bem, xerife.

Ian Blake pensa na mulher, em Priscila, na estrada para a capital, para onde de fato
foi. Lembra-se do quanto foi feliz naquela noite. Imagina-a com o rosto cortado, mas é uma
lembrança que não dura. Num canto sombrio da cidade espera os homens e o produto do
assalto.
O homem gostava de se perder a pé pelas cidades por onde passava. A noite de
casas remotas entre as quais uma névoa de luz se esgueira, amarronzada, com a fumaça das
chaminés já sem força misturando-se às nuvens, respira dentro dele numa gélida saudade
que perde o rosto ao se defrontar com as janelas reais. O som dos cascos tira-o de si.
Instintivamente se esconde atrás da árvore. Não é uma visão nada bonita a que tem dali,
apesar do poente desdenhar da hora e ainda conceder tons róseos ao céu.
Alguma coisa estava sendo quebrada ali no meio daqueles homens, uma suposta
harmonia. Rilker apenas respirava. Então, tudo bem? – diz o delegado. Dizem-lhe que sim,
tudo bem, e aqui está o dinheiro de sua parte. São sombras, na verdade. Manchas na noite. E
seu irmão foi de alguma utilidade? – a pergunta do delegado é para o irmão dele, embora
esteja encarando o próprio Bernie. Ele é muito bom no serviço, garante o irmão e pede que
Blake não o leve a mal, são coisas da idade. Vêm à cabeça do delegado coisas de seu
passado, de seus vinte anos. Não era assim idiota mas reconhece que tampouco possuía a
fibra com que hoje leva a vida. Então realmente releva. Ok – diz ao irmão. Mas dê uns
conselhos a ele.
Mario, o terceiro, pergunta quando irão de novo se encontrar. Blake responde que
parece terão uma diligencia especial carregando pessoas importantes, bens e muito dinheiro.
Vou ver os detalhes com o pessoal da companhia. Mario discreta mas firmemente argumenta
que não gosta de tanta gente repartindo o dinheiro. O delegado, quase educadamente, diz-
lhe que não reclame, é graças a essas pessoas que podemos trabalhar em segurança, sem
surpresas. O bandido assente a contragosto.
O delegado coloca as partes do alforje pendentes na sela e calca as esporas,
afastando-se. Rilker está entrelaçado pelos pensamentos. Jurara a si mesmo não mais se
envolver nos negócios escusos dos homens, nem para lutar contra eles. É uma sina ingrata.
Bom é viver em paz, em silêncio, com a própria tristeza. Que imenso céu, que noite perfeita,
que relevo... Melhor ir embora. A raça humana já está sentenciada.

Ela não mais parece sofrer. É sempre maior a dor das crianças. Mas acabou agora. Ao
contrário, está se sentindo maravilhosamente bem. Era só um pesadelo. Viverá, será de novo
feliz. Antes dormirá um pouco, para descansar e refazer a energia e a beleza roubadas.

Ricardo de Almeida Rocha


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Ao quarto que lhe fora concedido pela bondade do “tio”, a menina emprestara uma
atmosfera de sonho, as melhores coisas de sua curta vida aconteciam ali, em sua fantasia.
De sua janela, estendiam-se as cordilheiras e os picos rochosos, a mão de Deus pintou-os
duma tinta branca irremovível. O aposento estava ornado com brinquedos e bonecas e os
olhos da menina se alegravam com a visão dos motivos infantis à sua volta.
O velho perguntou se ela já estava dormindo. Já está deitada – respondeu a mulher.
Embora estivesse deitada havia algum tempo, Diana não dormia, excitada com as novidades,
desde a conversa do velho com seus pais. E a viagem, a paisagem montanhosa, a chegada, a
senhora Wood, a senhora Dalia, suas novas amiguinhas, sobretudo Jane, irmã da professora
Tonya.
A penumbra tranqüilizadora. Transmite uma paz jamais sentida. Exceto pela incisão
de dor e a imagem de Priscila chorando. Mas passou e agora, em sua sonolência excitada, na
divisa entre dois mundos, a respiração ficou forte e pausada. O amanhecer traria uma vida
inteiramente nova.
Na casa vizinha, destinada aos empregados da família, Daniel perguntou ao outro
segurança: Então acha que está realmente apaixonado, meu amigo? Quem diria. E logo por
quem... A vida é assim. É difícil imaginar tanta coisa que acontece. Aliás, perguntou Miguel,
você esteve hoje com Tonya?
– Menininha linda essa, não é? – Um anjo.

O homem chegou à cidadezinha mineira no início da tarde. Não queria mesmo se


intrometer em negócios alheios. Se aqueles homens assaltavam trens, não era problema
dele. A porta rangeu à sua entrada. Ele avistou a mulher num canto. Maggie ainda muito
abatida não teve vontade de sorrir. Lembrava de quando Priscila chegara à cidade, em
extrema miséria. Tão meiga e inocente. Ninguém ali era bom o bastante para se deitar com
ela, mas pelo menos ali teria um teto, alimento, proteção. Uma fugitiva não tem muitas
opções. Não gostava nem de imaginar se alguém da cidade dela aparecesse e quisesse
tomar as dores do pai morto, o infame, ninguém ia querer saber o que ele tinha feito à filha,
iam querer apenas dar a ela o tratamento que uma assassina merece. Ali era região ideal
para se refugiar das leis mas o que tinha a oferecer a uma moça tão linda e sozinha. Então,
que ela ficasse, até o dia em que um cliente a tirasse dali para ser sua esposa. Maggie tinha
essa esperança para aquela a quem queria como filha. Senhora? Um freguês de aparência
respeitável como aquele homem à sua frente. Maggie diz que não sabe se entre suas
meninas existe alguma que seja capaz de atenuar tanta tristeza.
Qualquer uma, não é para atenuar a tristeza, é só uma questão física.
Essa.
Priscila descia.
A mulher olhou nos olhos macios do rapaz e depois olhou para a jovem. Venha aqui,
querida.
A moça acordou e agarrou a Rilker com fervor e ele inflamou-se ao delírio. Assim
entregaram-se um ao outro novamente.

Quando desceu as escadas, o forasteiro teve a surpresa. O homem que tratava com
os assaltantes na capital está agora à sua frente, sentado ao lado de Maggie. Ela o chamou
para a mesa. Acho que já o conheço – disse Rilker, sem emoção na voz. Os olhares se
cruzaram, aço contra aço. Conhece? – retrucou Blake. E de onde seria? Esse sorriso é falso.
– Vi você hoje na capital.
– Deve ter visto mesmo – disse Maggie. –Ele esteve lá de manhã tratando de uns
negócios.
– Claro... Todos temos nossos negócios – disse o rapaz. Despediu-se e saiu.
O delegado concluiu que havia uma testemunha na cidade. Rilker entretanto,
enlevado por Priscila, nada queria saber da vida dos outros. Ia pela rua assim, falando
sozinho, tão distraído que não viu a moça vindo na sua direção. O esbarrão foi inevitável. Os
cadernos e livros da professora caíram. Me desculpe – disse o rapaz, se apressando em
recolher o material caído. Ela também vinha distraída. Pensava que futuro poderia ter
naquela cidadezinha. Não que estivesse arrependida de sua opção. Mas sentia-se dividida.
Adorava ensinar mas adoraria também uma casa para voltar, onde não a esperasse tão
somente a boa vontade dos pais de Diana, que a acolhiam durante a semana. Mas numa
hora como aquela desejaria estar voltando para sua própria casa, onde logo chegaria
também um mineiro bondoso que a amasse. Um homem, másculo e generoso, quem sabe,
sem barba mas de pele áspera, olhos verdes, os cabelos subindo ligeiramente pelas orelhas,
o chapéu nem enfiado nem muito frouxo, um blusão com peles na gola, jeans não muito
largos, botas gastas que ela tiraria quando ele chegasse – ele com o pé trocado pressionando
suas nádegas, cansado da lida. Um homem como aquele... Aqui está – disse ele, entregando
os livros. Obrigado – disse Tonya.

Ricardo de Almeida Rocha


CONTOS DO AMOR E DA MORTE

– Eu estava longe daqui – justificou-se ele.


Ela também não.
– Você está de passagem?
– Pretendo ficar. Conforme seja minha conversa com o senhor Snyder.
– Snyder Green? Eu moro na casa dele.
Seguiram juntos.
O marido de Sarah devia estar chegando. Poderiam conversar enquanto jantavam.
Sente-se por favor, disse a mulher, fitando Tonya com um sorriso eloqüente quando o rapaz
não estava olhando.

Na mesma tarde na capital, a cobertura da taverna estava reservada para a


apresentação de um grupo teatral. O senhor Wood disse à senhora Dalia que aprontasse
Diana. Ele ia à casa da moeda e logo voltaria para apanhar a esposa, a governanta e a
menina, a fim de assistirem uma montagem de Romeu e Julieta.
A pequena estava radiante. Seu coração palpitava. Sua imaginação trabalhava
febrilmente. A governanta também estava excitada. Adorava ver as roupas das peças,
pareciam saídas de um sonho. Na noite anterior, a menina sonhara com uma fada muito
linda, que era muito alegre, mas as pessoas achavam ela triste, porque não a conheciam
direito. Ninguém conhece ninguém direito. A menina gostaria que seus pais estivessem ali
para irem ao teatro também, mas eles não deveriam chegar nem mesmo depois, com Tonya,
conforme o combinado. Sim, Rilker pode fazer esse favor, pode acompanhar a professora. É
uma reunião muito importante para os mineiros, justificou novamente Snyder. Meia hora
depois, Rilker e Tonya montavam. Alguém os espreitava.

As ruas da capital são muito iluminadas. Havia entre os prédios um espaço planejado
para que do centro se pudesse ter uma visão privilegiada das montanhas. Num bistrô,
Daniel, um dos seguranças do senhor Wood, bebia sozinho. Ele era um homem sozinho. Não
conseguia tirar Tonya da cabeça nem se declarar. Sua timidez o incomodava mas não
conseguia lutar contra ela. Começara a pensar na professora com intensidade tamanha que
o fazia suar. Não parecia fazer tanto calor, pelas roupas das pessoas que passavam. Sentia o
sangue fugir do rosto, pensando em Tonya, muitas vezes Miguel dizia que ele estava muito
pálido. Gostava tanto da professora que, por ela, perdia o apetite.
– Olá, garoto – disse o amigo, sentando-se a seu lado. – Nem precisa dizer no que
está pensando.
Diante do prédio, carroças esperavam as famílias que tinham ido ver o espetáculo.
“Que beleza”, pensava Diana. A alegria daqueles momentos estaria ligada para
sempre ao futuro da menina, se ela tivesse um futuro.

Na casa vizinha à do senhor Wood, a professora trazia na expressão a angústia do


desapontamento. – Não foi um rapazinho que lhe falou a respeito de Snyder? – Não, foi uma
moça da casa de Maggie. – Porque mentiu para mim? – Não sei bem – respondeu Rilker
constrangido – Fiquei um pouco sem jeito de falar – Compreendo –disse Tonya, expressando
a mágoa que não tinha origem no fato de que ele mentira. Tocando seu rosto, ela lhe
acariciou a testa larga –Você é tão bonito...
– A moça com quem estive... Não posso esquece-la.
– Você a ama? Esteve com ela apenas alguns momentos...
O que é o tempo? – Sim, Tonya, amo. De um modo que não pensei que fosse tornar a
amar.

Quando, diante da porta, o velho ia girar a maçaneta, uma voz feminina o chamou.
Esperou que Tonya se aproximasse. A professora cumprimentou-o e, com a mão no ombro
de Diana, ela disse que os pais da menina não viriam, Snyder teve uma reunião de última
hora no acampamento. E você veio sozinha? – estranhou Wood. Entristecida, por lembrar-se
do que não conseguia esquecer, ela disse que um amigo dele a havia trazido. O rapaz
acabara de sair de sua casa.
– Mamãe também não veio? –
– Eles vêm amanhã – respondeu Tonya, acarinhando os cabelos da garotinha.
Diana ficou triste por um momento, mas logo reanimou-se ao ver a amiguinha que a
chamava para brincar.
– Mas não demore, que a janta vai ser logo servida – disse o velho e, virando-se para
Tonya, convidou-a a fazer a refeição com eles.
– Aceito um café.
Entraram.

Ricardo de Almeida Rocha


CONTOS DO AMOR E DA MORTE

Ao perceber que Jane foi chamada por seus pais, o homem aproximou-se. Rilke
estava perto do corpinho ensangüentado. Recebeu do delegado a voz de prisão. Depois de
deter o agressor da menina, Blake gritou, chamando os pais de Tonya.

Os que acompanhavam o enterro do pequenino caixão foram surpreendidos pela voz


rouca e potente do delegado. Aqui está o monstro! Antes da última pá, a maioria já
acompanhava o prisioneiro levado para sua agonia. A corda foi colocada em pescoço, o nó
apertado. A sentença já estava cumprida dentro dele. Era merecido. Estava morto. As vozes
de seus carrascos emaranhavam-se em seu cérebro num momento, mas no outro nada mais
ouvia. Morte ao canalha! Morte lenta! Muitos cavaleiros rodeavam o condenado, com paus,
sem que o delegado nada fizesse para impedir. Aliás, onde está Blake?
– Ninguém será linchado nem enforcado aqui! Soltem-no ou terão de preparar outra
forca para mim e cavar uma cova para o delegado!
“Maldita”, pensou Blake, amaldiçoando-se também. No afã de estar com Priscila
longe de casa de Maggie e sem pagar, num lugar aberto e romântico, levara-a para os lados
do lago, com o pretexto de ensina-la a atirar. Lembra agora quão excelente aluna ela foi.
Deixe-os partir! – gritou. Por Deus, não irão longe!

Os mineiros se reuniram para organizar a caçada ao casal. O forasteiro tinha de ser


apanhado e morto o mais depressa. Cada segundo de sua vida era uma afronta à memória
de Diana. Longe do delegado, pois sabem como é, não deixará que façamos do nosso modo,
mas dentro da lei. Como se houvesse algum tipo de lei suficientemente justa para um caso
assim.
O delegado estava envolvido numa questão mais banal. Quando Rilker o viu na
capital, estava sem a estrela de xerife. Depois, na casa de Maggie, o mesmo homem que
falava de negócios criminosos agora ostentava a insígnia. E novamente agora não mais. Seu
auxiliar notou. Delegado, o senhor não está mais usando a estrela? Blake explica que
lutaram e deve então ter caído. É, deve ter sido, concordou o auxiliar, pois a camisa tem um
rasgo no lugar. Mas qual é a relevância disso depois de tamanha tragédia, rapaz? E não é a
estrela que me dá autoridade, é fazer com que as leis sejam cumpridas. E, em nome da lei,
temos de encontrar e matar esses dois, já mostraram o tamanho de sua periculosidade.

Descendo em meio ao desfiladeiro, sentiam o cheiro da terra molhada. A trilha


pedregosa no sentido da planície lhes era a entrada em um mundo novo que em lampejos da
felicidade podiam apenas imaginar. Atravessariam depois o rio, subindo sempre, cruzariam a
ferrovia. Contornariam as colinas arenosas. Não sabiam onde deveriam chegar.

Jane passara mal ao saber da morte de Diana. Não devia tê-la deixado voltar sozinha.
Tonya foi ao quarto da irmã. Ele disse a ela que iria lhe dar um pônei de presente. Apenas
alguém que a conhecesse bem saberia que o maior desejo da menina era ganhar um pônei.
E Rilker não conhecia Diana. Você o conhecia, minha irmã? Porque Jane havia visto o
forasteiro. Não, ela não conhecia. E que aparência tinha?
– Eu estava de longe – disse a menina, chorosa – Não deu para ver direito.
Mas o lugar onde estavam ela poderia dizer.
No começo da tarde, a senhora Dalia, Tonya e Jane estavam na construção
abandonada. Ali estava o vestidinho ensangüentado. Alguma coisa reluzia abaixo das tábuas
do assoalho. Com a ajuda de um galho, trouxe o objeto até ao alcance de seu braço.
Apanhou-o em sua mão.

A jovem galopava e seu vestido floral esvoaçava. Ah, esse anjo louco. O cavalo de
Rilker, logo atrás, relinchava pela pradaria. Tudo o que buscara em sua peregrinação não
teria sido isso, a loucura de uma mulher sofrida, louca o bastante para ousar mexer no altar
de sua memória e ficar entre ele e a lembrança de Camila?
O cavalo dela sofreou. A algazarra envolveu o vale. Estavam cercados.

O grupo saíra na busca dos fugitivos liderado por Snyder, sem muita convicção de
estar fazendo a coisa certa. Com outro grupo, Blake parou a caçada ao retirar a lança
cravada no chão onde os índios encontraram o casal. De nada adiantou seu atrevimento,
vagabunda: teve seu fim em mãos muito piores que as minhas.

Ela foi levada em separado para uma tenda. Rilker foi aprisionado e poupado. O índio
na vigia chamava-se Chuva Púrpura. Era o quarto dia da cerimônia em reverência ao sol. A

Ricardo de Almeida Rocha


CONTOS DO AMOR E DA MORTE

dança louvava a castidade, a fertilidade, a fidelidade. A jovem branca assistia em um lugar


de honra.

O xerife mandou avisar que o esperassem no prédio abandonado ao sul da capital.


Para despistar eventuais ladrões, virá um coche comum trazendo os valores. O cocheiro
facilitaria as coisas.
Esperavam. Chegou.
–Saiam todos!
Além do carregamento, estavam no interior dos assentos dianteiros os pertencer das
três pessoas que viajavam. Uma delas era o senhor Wood.
Não molestaram os passageiros, segundo o costume.
– Já separou a parte de Blake e do condutor?
– Já.
– Ótimo. São ainda duas partes a mais para mim.
Os irmãos, alvejados, caíram.

Em casa, o senhor Wood foi amparado pela mulher. A senhora Dalia pediu licença e
entrou. Entregou-lhe a estrela. Não é do xerife daqui.

Daniel e Miguel perseguiam homem, cujo cavalo, sobrecarregado por sacolas a mais
de moedas, logo estava ao alcance dos tiros.

Terminado o dia de buscas, Snyder e seus homens lançaram o olhar para os lados do
monte. Não havia como manter a perseguição no sentido da terra indígena. Conversavam a
respeito quando o homem avisou sobre a lança e o fim da caçada de Blake. Aliviado, Snyder
disse Bem, amigos, dormiremos hoje aqui e amanhã a vida continua. A vida tem sempre que
continuar. Os homens concordaram, admirando o espírito do amigo a quem a desgraça se
abatera de forma tão cruel sem todavia destruí-lo.

O senhor Wood levantou a gola de seu paletó depois que a senhora Dalia indicou o
local. A esposa ainda enrolou um cachecol em seu pescoço antes que saísse. Do jeito que
está abatido, poderia se resfriar. Como a mulher poderia pensar em resfriado num momento
desses?
– Temos de cuidar de nossos vivos. Pelos mortos, só podemos rezar.
No prédio abandonado, o velho sentiu um calafrio diante de Blake. Restava ao xerife
ganhar tempo para certificar-se que os guarda-costas não estavam com ele.
– Olá, Sr. Wood! O que faz aqui?
– O que você faz aqui? Então é verdade que os criminosos sempre voltam à cena do
crime...
– Do que o senhor está falando?
– Naturalmente do assassino de minha querida Diana.
Nesse instante, o condutor da diligência entrou. Viera receber a sua parte.
Foi tudo muito rápido.
–Há alguém aí fora? – gritou Blake para o capanga.
O outro respondeu que não e, sem ter tempo para reagir, o velho foi atingido no
peito. A camisa plasmou-se de sangue, a camisa branca que a esposa lhe dera para ocasiões
especiais. Era o caso. Ele morreu.
Ouvindo os disparos, Miguel e Daniel, desesperados, apertaram o galope e chegaram
segundos após Blake ter montado. Teriam atingido o xerife se ele não tivesse usado o
condutor como escudo.

Blake sumiu pela saída sul após perceber que os homens não o perseguiam mas
apeavam para socorrer o velho. Contornou o quarteirão e enfiou-se pelas ruas que levavam à
saída norte, à cidadezinha em que era delegado. Lá contarei uma boa história para
comprometer Wood. Os mineiros estão sempre dispostos a acreditar em qualquer coisa que
diga respeito à falta de caráter dos compradores. Se pensam que me pegarão, terão uma
surpresa.
O senhor Wood, agonizante, deu ordem a seus empregados para que fossem atrás de
Blake. Foi ele quem matou a menina, não o forasteiro.
– Nós já sabemos, senhor. Fique calmo e bem quieto.
O velho obedeceu, morrendo naquele mesmo instante.

Ricardo de Almeida Rocha


CONTOS DO AMOR E DA MORTE

Quando o desenho das montanhas começou a indicar a entrada da cidadezinha,


Blake se deu conta de que não teria tempo de inventar uma história para os habitantes. O
tiro de Daniel passou zunindo por sobre sua cabeça. Decidiu continuar, subir a montanha
pelo outro lado e se defender lá de cima. Calcou as esporas e atravessou a rua central, sob o
olhar espantando dos homens e mulheres que por ali passavam, levantando uma nuvem
árida de poeira.
Mentalmente escolhia o lugar mais propício para desmontar e subir a pé pela encosta
quando, em sentido contrário, por uma trilha mais acima, apareceu Snyder e seus homens.
Não teria mesmo tempo para histórias. Desviou então para os lados do rio. Entendo que a
rua coisa a ser feita era seguir os dois, o grupo fez a volta, descendo, e juntou a eles seu
tropel.
Melhor sorte não esperava Blake nesse novo caminho. Rilker apareceu numa
elevação. A seu lado, Priscila e um índio. Admitindo-se perdido se não tentasse um recurso
drástico de imediato, o delegado cavalgou direto para o rio, onde cavalo e cavaleiro
estrondearam.
Ao vê-lo, Rilker dera-se a um formidável galope em sua direção, ignorando a multidão
de homens atrás dele e atirou-se do cavalo às águas.
A correnteza os levava com diferença mínima, logo estavam lado a lado, os dois
contra as águas e um contra o outro. Blake impõe as mãos como um batismo e afunda o
forasteiro. Rilke se agarra num ramos à margem e enlaça as pernas do delegado, que
submerge. No mesmo impulso, ajudado pelos muitos e flexíveis galhos, ganha a superfície e
o ar, enquanto seu carrasco os perdia.

Passou-se assim um tempo pequeno que, na situação dos dois, eram eternidades.
Agarrado aos ramos e prendendo Blake com as pernas, Rilker conseguiu subir na margem
lamacenta. Sobre a cabeça do delegado, a força da correnteza o levava a um êxtase
estranho e mortal. Assim que se sentiu perfeitamente firme, o rapaz puxou para a terra o
corpo pesado e sem forças. Ficaram assim estendidos por um segundo. estavam sentados
um diante
do outro, sob um toldo de árvores escuras entrelaçadas que costumavam abrigar as crianças
que vinham nadar no rio quando a torrente permitia. Por fim, Rilker levantou, levantou
Blake pelo colarinho e ia desferir o último soco quando sentiu no estomago a atroz botina e
ajoelhou-se, inclinando a face até a lama. Foi agarrado pelo cabelo e soqueado várias vezes.
Os golpes soavam como coices em sua cabeça.
Agora Daniel – Miguel parece estar chegando –, o grupo de Snyder, Priscila e Chuva
Púrpura, todos assistem a luta. Palavras trocadas entre eles esclareceram rapidamente o
caso. Algum quis intervir mas a maioria acreditava num assunto pessoal e que não deviam
roubar a oportunidade de um homem acertar suas contas. Naquele momento Rilke estava
antes a ponto de sucumbir e sucumbiria se a seu coração não subisse num ultimo momento
a imagem da filha de Snyder, como Priscila a descrevera. Ela, Diana, e não ele, havia sido a
inocente injustamente sentenciada. A mentalização da menina interpôs o antebraço quando
o punho de Blake desceu fechado, cuja força, se o não matar, irá decerto comprometer sua
sanidade mental. A reação consumou-se ao imaginar seu anjo, Priscila, nas mãos do demônio
que o surrava. Foram as mãos de Rilker, essas agora, que, fechadas, uma após a outra, da
direita para a esquerda e em sentido inverso, derrubaram o xerife no solo úmido e pegajoso.

– Poderá um dia nos perdoar? – disse Snyder à sombra pêndula de Blake sobre eles.
Rilker respondeu que eles estavam sensíveis e frágeis, que compreendia, não tinha
qualquer ressentimento.
– Então fique conosco. Será bom ter um xerife amigo dos índios. Fique no lugar de
Blake.
Sorrindo a seu modo, sem expressar alegria, Sinto muito, disse, é cargo que eu
saberia ocupar.
Não. Não saberia viver numa cidadezinha em que uma parte dos homens fez parte do
passado de Priscila. Jamais tocaria no assunto, mas o que ela poderia lhes negar? Queria
começar vida nova. Xerife... Os homens são terrivelmente inconstantes e facilmente
levados...
Na reunião sob o corpo, o assistente do delegado tomou para si a nomeação de seu
novo superior. Os olhos se voltaram para o homenzarrão que havia sido, durante a maior
parte de sua vida, segurança do Sr. Wood. A sugestão foi aprovada e o interrogaram a
respeito. – Só se o senhor Rilker me substituir na casa da família do patrão – disse ele, com a
autoridade de quem lá havia sido criado como um filho. O forasteiro consideraria a proposta

Ricardo de Almeida Rocha


CONTOS DO AMOR E DA MORTE

com carinho, mas naquele momento todos lembraram de que o velho havia morrido, alguns
sequer sabiam, e se fez grande tristeza. No dia seguinte ele foi enterrado na capital.

Entardecia. A trote na direção da cidade, Chuva Púrpura levanta uma oração pela
sobrevivência de seu povo. Havia sido um dia ensolarado e muito quente nas montanhas. –
Xerife Miguel, o senhor e sua esposa estão convidados para jantar conosco. – Estaremos lá
em meia hora – disse o xerife, acrescentando que não se pode perder a oportunidade de
comer uma refeição preparada por Sara. Recortado contra o horizonte, Snyder enxugou as
mãos em seus jeans surrados e pegou a filha no colo. A luz refletia no cabelo dela tanto como
no ouro. Adeus. O homenzarrão apertou a bochecha da menina. Adeus. Dirigiu-se então para
casa. Maggie gostaria de saber que era falsa a sua sensação de que tinha de que as pessoas
jamais esqueceriam seu passado.
Na capital, Rilker voltava de uma reunião. Encontrou-se com Tonya antes de chegar
em casa. Reparou como a professora estava bonita com aquelas flores no cabelo. Priscila
havia pouco chegara de seu trabalho nos correios. Recebeu o marido na porta enquanto a
professora entrava na casa vizinha. –Como é que foi seu dia? – disse ela. – Foi um bom dia, e
o seu? – Vai ficar perfeito – disse ela, puxando-o para o quarto. –Vão nos chamar em seguida
para a janta. – A senhora Dalia não vai colocar a mesa antes de meia-hora. – Como é que
você sabe? – Eu disse a ela que demorasse pelo menos meia-hora quando vi você chegando.
Quando a porta do quarto se fechou, Rilker foi encostado à parede e as carícias de
Priscila se multiplicavam na proporção de suas lembranças de Tonya. Não deixaria que seu
homem esquecesse um só dia o que ele tinha em casa.
Quarenta minutos depois, o casal com expressão feliz, a senhora Dalia trouxe a
garotinha que pulou no pescoço do pai. Na janela da casa vizinha, Tonya olhava a cena com
o coração apertado. Com o passar do tempo em seu belo rosto, as marcas de expressão se
tornavam tênue sulcos permanentes, percebeu ela pelo vidro. Contudo, era uma mulher
atraente ainda. Uma mulher muito atraente. Chuva Púrpura não pôde deixar de perceber
quando passava para visitar seus amigos, não, não mais para isso. Parou ao lado da janela.
Quando Tonya finalmente virou o rosto para não continuar vendo aquela cena que desejava
tanto fosse de sua própria vida, o índio entrou pela janela.
Ninguém soube o que aconteceu com a professora. Depois de passar o resto de sua
vida procurando-a, Daniel morreu aos 35 anos, de tuberculose.

O amor como uma imensa onda

Valerie queria fazer amor com aquele homem, o professor –


era o queria, sem qualquer outra implicação. Saboreava a intensidade desse
desejo sem culpa quando suas amigas acenderam. Quando fez efeito,
inflamando-lhe a vontade, passou pela sua cabeça a reação de Hans se
soubesse, e certamente, do jeito que eram as coisas, haveria de saber. Em
nenhum momento sentiu menor o seu sentimento por ele, por Hans, desde
que viu o outro no campus e quis estar com ele ao menos uma noite.

Se não há sentimento ligado a isso, pensou, tampouco tenho


qualquer ligação com os ideais do movimento estudantil e não estou entre
os membros mais engajados? Quando ele chegou e disse Oi pessoal, ela já
tinha tudo planejado e pouco depois estavam no alojamento, procurando-se.
Do outro lado da parede vinha uma música dos Beatles que falava de
revolução.

Ricardo de Almeida Rocha


CONTOS DO AMOR E DA MORTE

Os outros deviam estar ainda tagarelando sobre sistema


educacional, política, Vietnã, mas no fundo tudo o que diziam era que
Valerie tinha o direito de fumar unzinho e depois fazer sexo com aquele
homem.

Durante a chuva

Uma interrupção, uma interrupção fria que paralisa inelutavelmente o ânimo. Mas a
mulher, com seu material de trabalho transbordando de seus braços, ainda assim caminha
sobre os tacos estalantes e segue. O que é isso, uma sapatilha de balé? Estranho. Seu olhar
é lento e sereno. Os óculos deslizam para a ponta do nariz a fim de que veja cima o que não
necessita grau. Aliás, o que o grau embaça. Aconchego. É a primeira coisa que lhe ocorre ao
ver o tapete do escritório. Um aconchego morno. Uma vida morna. Terá saudades talvez do
atrevimento de mãos entre suas pernas sob a saia, ah, que loucura, ali mesmo e com o
pessoal da limpeza a ponto de entrar... A tentação se afasta. Bom dia. Bom dia. Quando ela
passa, ainda provoca excitação e inveja. Não está tão acabada quando pensa.

Prefere chegar quando não há ainda ninguém, dispersa-se com facilidade quando o
expediente começou. Vozes, passos, basta. Como suportam? E sorriu novamente ao
responder outra saudação.
Prepara então seu melhor semblante. Assim. É preciso. Mas noutros momentos, quase diria
noutra dimensões, as deusas jubilosas esperam ainda uma liberdade real. Não estão
algumas ali na chuva, agora mesmo, espreitando a felicidade que constantemente lhes foge?
Quanta vida além dessa janela...

Por algum tempo, ao ouvir esse arfar molhado das folhas, ela desejava que houvesse
um correspondente real de tais sentimentos, como se, quem sabe aquela sapatilha na
entrada, representasse o apelo de uma outra vida, ainda misteriosa, assim como ao pensar
nas coisas do trabalho ela não veja o escritório, mas o homem a quem permitira que se
fizesse sonho e suas mãos. Um funcionário novo, imagine, mal chegar e logo ir invadindo os
segredos dela. É nessa memória paralela que o guarda.

A chuva pergunta como é possível que os mortos incomodarem a serenidade dos


vivos, como o que passou não passa, antes desenvolve-se para todas as direções: um toque
são todos os toques, todas as carícias que jamais foram feitas. Ela sim parece morta e seus
sonhos são fantasmas. Não há coisa alguma simples nessa dimensão. Não pode
compreender seus colegas decerto por isso, porque estão vivos.

Achegou-se à luz direta da luminária, receosa das sombras do dia escuro. Todavia,
eis o sol, com força tal que atravessa as nuvens e a chuva, estará sempre ali. Imagina que o
tempo irá firmar logo, talvez já à noite; mas prefere não pensar na noite. Não é fácil. Um dia
nublado, uma manhã assim se parece demais com a hora temida da volta para casa. Não
pode se dar ao luxo de uma crise noturna, há esse trabalho urgente. Sim, precisa ser
entregue no dia seguinte. Mas é inevitável que lance ao infinito a pergunta. Por que?

Se pudesse responder, a sapatilha de balé não guardaria o silêncio daquela paixão


furiosa, e o riso, o dever, a vida enfim, tudo estaria naqueles pingos que escorriam na janela.

Senhora dos enforcados – Sombra tênue e fresca


Passagem –
O homem da linha – Algo fora do comum

Ricardo de Almeida Rocha

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