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Che Guevara

A VIDA EM VERMELHO

ÍNDICE
Este livro.....................................................................................
1 Morro porque não morro.............................................................
2. Anos de amor e indiferença: Buenos Aires, Perón e Chichina....
3. Os primeiros passos: navegar é preciso, viver não é preciso.........
4. No fogo com Fidel .......................................................................
5. Nosso homem em Havana ..........................................................
6. “Cérebro da Revolução”, cria da URSS .........................................
7. A bela morte não compensa........................................................
8. Com Fidel, nem casamento, nem divórcio..................................
9. O coração nas trevas de Che Guevara.........................................
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10. Traído por quem .........................................................................
11. Morte e ressurreição....................................................................
Notas ..........................................................................................
Agradecimentos .........................................................................
índice onomástico......................................................................

Para Jorge Andrés, que não conheceu os anos 60


mas que algum dia viverá tempos melhores

ESTE LIVRO
Uma pesquisa desta natureza requer uma grande multiplicidade de
fontes. Nenhuma delas é perfeita nem suficiente em si mesma; todas encerram enigmas, defeitos e
lacunas. Até aquelas aparentemente incontestáveis cartas, anotações ou diários do sujeito mesmo da
biografia apresentam contradições e exigem reserva. Afinal, quem é transparente consigo mesmo? E
acima de tudo, por se tratar de um tema eminentemente político, nenhuma fonte é neutra: todas
carregam a marca de seu posicionamento ideológico. O trabalho do historiador, biógrafo ou mero
escritor imbuído de curiosidade consiste em agrupá-las, cotejá-las, separar o joio do trigo e buscar
conclusões que se baseiem na soma do material, não no material preferido
ou mais acessível. Nos últimos anos, diversos estudiosos da vida de Che Guevara vêm desenterrando
material inédito, ou publicado em edições restritas de algumas de suas obras. Trata-se de fontes de
grande valor, mas não definitivas.
Neste texto, materiais de tal natureza desempenharam um papel importante
— refiro-me principalmente a suas cartas a Chichina Ferreyra, às chamadas
Actos dei Ministério de Industrias e a Pasajes de Ia guerra revolucionaria (el Con-
go) —, ao lado de outras fontes que confirmam os ditos e escritos do próprio
Che. Constituem um acervo novo e crucial para toda pesquisa contem-
porânea sobre Che Guevara.
Um segundo acervo encontra-se nos arquivos de Estado dos países
envolvidos, direta ou indiretamentè, na vida e morte do Che. Os cubanos
não têm arquivos disponíveis: ou porque não existem, ou porque não os
abrem. A única consequência disso é que a versão cubana documentada dos
fatos não se reflete em nenhum trabalho sério. Talvez algum dia Havana decida contar sua versão da
história valendo-se de seus arquivos, e não só das lembranças mais ou menos fiéis, mais ou menos
geniais, de Fidel Castro. Enquanto isso não ocorre, dispomos de outros arquivos, mais acessíveis, que
contêm um enorme volume de informação extremamente útil no presente trabalho. Esses arquivos
pertencem a três governos: o dos Estados
Unidos, o da ex-URSS e o do Reino Unido. Cada um deles merece um breve comentário.
Os Estados Unidos atravessam um período de grandes mudanças quanto às regras em relação a sua
própria história. Muitos arquivos foram abertos;
muitos outros permanecem fechados. Graças ao sistema de bibliotecas presidenciais e universitárias,
é relativamente fácil o acesso às informações já liberadas. Com base nos princípios legais de
liberdade de informação e de revisão obrigatória (Freedom of information e Mandatory review), pode-
se pleitear o acesso à informação restrita. Todos os arquivos e documentos do governo dos Estados
Unidos aqui citados encontram-se à disposição de qualquer pesquisador; basta saber onde procurá-
los e dispor dos recursos (modestos, diga-se de passagem) para obtê-los. Seja nas bibliotecas
presidenciais (especialmente a de Kennedy, em Cambridge, Massachusetts, e a de Johnson, em
Austin, Texas), seja nos documentos do Departamento de Estado depositados nos Arquivos Nacionais
em College Park, Maryland, e em sua publicação mais ou menos regular intitulada Foreign Relations
ofthe United States (FRUS), seja, por último, em publicações como o índex ofrecendy declassified
documents da imprensa universitária, qualquer um pode ter acesso aos documentos consultados. Em
alguns deles há trechos rasurados (sanitized), mas pode-se pedir uma revisão, que em certos casos é
atendida, em outros não. Quem supõe que para a elaboração deste livro contou-se com acesso
privilegiado aos arquivos da CIA, ou de quem quer que seja fora dos Estados Unidos, simplesmente
carece de experiência em pesquisa historiográfica.
Os arquivos do Reino Unido foram particularmente úteis neste trabalho por vários motivos muito
simples. Em primeiro lugar, o Foreign Office mantém uma merecida reputação de seriedade e perícia
na confecção e conservação de seus telegramas e notas. Continua sendo um dos serviços
diplomáticos e de informação mais competentes do mundo. Em segundo lugar, a partir da ruptura de
relações diplomáticas entre os Estados Unidos e Cuba, em janeiro de 1961, a embaixada do Reino
Unido passou a ser, de fato, os olhos e ouvidos de Washington em Havana. Enquanto a Suíça
garantia representação oficial dos interesses norte-americanos junto a Cuba, cabia a
Londres escutar, observar e analisar os acontecimentos na ilha, repassando todas as informações a Washington. Em
terceiro lugar, embora as notas do MI5 só sejam liberadas ao público depois de meio século, as do Foreign Office de Kew
Gardens, em Londres, podem ser consultadas já ao completar trinta anos. Como em muitos casos, e particularmente em
Cuba durante os anos 60, umas e outras costumavam ser redigidas pela mesma pessoa, os informes remetidos ao
serviço exterior de Sua Majestade devem guardar grande semelhança com os que foram enviados ao serviço secreto de
Sua
Majestade.
Por último, convém acrescentar um comentário sobre os arquivos de
Moscou. Como se sabe, a partir da Perestroika e, sobretudo, do fim do regime soviético, os arquivos da ex-URSS foram
abertos e leiloados de maneira sele-tiva e nem sempre racional. Os arquivos do Ministério de Relações Exteriores (MID, por
suas iniciais em russo) estão bem organizados e contêm verdadeiras jóias para o historiador. Neste caso, são de extremo
interesse as anotações das conversas entre Che Guevara e vários enviados da URSS a Havana, em especial o embaixador
Alexander Alexeiev e o encarregado de Assuntos Políticos Oleg Daroussenkov. Em 1995, esses arquivos se encontravam à
disposição de qualquer pesquisador de boa-fé, desde que contasse com o mínimo respaldo institucional e com os recursos
para cobrir as despesas — não totalmente justificadas — que seu acesso requer. A consulta aos arquivos do Partido
Comunista da URSS é um tanto mais difícil: as despesas são maiores, o acesso é mais restrito e arbitrário. Por outro lado,
muitos dos documentos ali conservados são cópias dos que se encontram no MID: a confusão entre Partido e Estado na
ex-URSS não deve ser surpresa para ninguém.
A terceira e última fonte primária que merece comentário consiste nas entrevistas ou na história oral que foi possível
recolher ao longo da pesquisa. Insisto: nem tudo o que reluz é ouro, e nem tudo o que os protagonistas dizem ou
escrevem é verdade. Deve-se trabalhar sobre os depoimentos do mesmo modo que se trabalha sobre um documento,
uma estatística ou até mesmo uma foto. Para fazer este livro, pôde-se entrevistar um grande número de pessoas:
em Cuba, na Argentina, na Bolívia, em Moscou, e em lugares muito mais estranhos. Sempre que possível, as entrevistas
foram gravadas, embora a transcrição sintetize ou condense as palavras ditas. Em certos casos, por diferentes motivos,
não foi possível gravá-las, mas contou-se com a presença de uma testemunha: as anotações contam com o respaldo de
um terceiro. Em pouquíssimos casos não foi possível nem gravar, nem contar com uma testemunha: a veracidade da
fonte apoia-se na credibilidade do pesquisador, nas citações^qe
terceiros e na verossimilhança do depoimento. Todas as entrevistas obtidas para a elaboração desta obra estão ao
alcance de qualquer pesquisador: basta procurá-las e contar com o apoio institucional (editorial, universitário ou político)
pertinente. Não houve vias privilegiadas de acesso.
Alguns leitores poderão se perguntar: como alguém que não viveu a época aqui resenhada, e não conheceu os
personagens aqui descritos, se atreve a contar esta história? Assumo plenamente minha deficiência: eu não tinha nem
quinze anos quando o Che morreu, e suas façanhas e desgraças aconteceram antes de eu chegar à idade da razão. Sem
dúvida, quem viveu aquele tempo já na idade adulta deve ter muito o que contar; alguns já
começam a fazê-lo.
Mas a distância também tem suas vantagens. Talvez quem não conheceu de perto aqueles anos de chumbo e glória
possa narrá-los com maior objetividade e precisão do que as pessoas que os sofreram na própria carne. Seja como for, o
direito de propriedade não vale neste terreno: o passado que povoa estas páginas pertence a todos nós, para o bem e
para o mal. A história é feita por seus protagonistas, mas escrita pêlos escritores: truísmo doloroso, mas irrefutável. ‘
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MORRO PORQUE NÃO MORRO
Limparam seu rosto, já sereno e claro, e descobriram-lhe o peito dizimado por quarenta anos de asma e um de fome no
árido Sudeste boliviano. Depois o estenderam no leito do hospital de Nuestra Senora de Malta, alçando sua cabeça para
que todos pudessem contemplar a presa caída. Ao recostá-lo na lápide de concreto, soltaram as cordas que serviram
para atar suas mãos durante a viagem de helicóptero desde La Higuera, e pediram à enfermeira que o lavasse,
penteasse e inclusive escanhoasse parte da barba rala que tinha. Quando os jornalistas e populares curiosos começaram
a desfilar, a metamorfose já era completa: o homem abatido, iracundo e esfarrapado até as vésperas da morte se
convertera no Cristo de Vallegrande, refletindo nos límpidos olhos abertos a tranquilidade do sacrifício consentido. O
exército boliviano cometeu o único erro da campanha depois de consumada a captura de seu máximo trofeu de guerra.
Transformou o revolucionário resignado e encurralado, o indigente da quebrada dei Yuro, vencido por todos os preceitos
da lei, envolto em trapos, com o rosto sombreado pela fúria e a derrota, na imagem de Cristo da vida que sucede à morte.
Seus verdugos deram feição, corpo e alma ao mito que percorreria o mundo.
Quem examinar cuidadosamente essas fotos há de querer entender como o Guevara da escolinha de La Higuera se
transfigurou no ídolo beati-ficado de Vallegrande, captado para a posteridade pela lente magistral de Freddy Alborta. A
explicação vem do general Gary Prado Salmon, o mais lúcido e profissional dos caçadores do Che:
Lavaram-no, vestiram-no, acomodaram-no, sob a supervisão de um médico forense. Era preciso mostrar a identidade,
mostrar ao mundo que o Che fora der- rotado, que nós o tínhamos vencido. Não seria o caso de mostrá-lo como sempre
se mostravam guerrilheiros, por terra, cadáveres, mas com expressões que a mim chocavam muitíssimo, uns rostos como
que retorcidos. Essa foi uma das razões que me levou a colocar o lenço na mandíbula do Che: para que não se
deformasse. Instintivamente, todos só queriam mostrar que aquele era o Che, poder dizer: “Aqui está ele, vencemos”.
Esse era o sentimento que existia nas forças armadas da Bolívia: que tínhamos vencido a guerra; e que não restassem
dúvidas quanto à sua identidade, pois se o apresentássemos como estava, sujo, andrajoso, despenteado e tudo o mais, a
dúvida teria permanecido.’
O que seus perseguidores evidentemente não previram foi que a mesma lógica haveria de se impor tanto aos que
arquejavam de medo como aos que portariam durante anos o seu luto. O impacto emblemático de Ernesto Gue-vara é
inseparável da noção do sacrifício: um homem que tinha tudo — glória, poder, família e conforto — e tudo entrega em
troca de uma ideia, e o faz sem ira nem dúvidas. A disposição para a morte não é confirmada pêlos discursos e
mensagens do próprio Che, ou pelas orações fúnebres de Fidel Castro, nem pela exaltação póstuma e imprópria do
martírio, mas por uma visão: a de Gaevara morto, vendo seus algozes e perdoando-os, porque não sabiam o que faziam,
e ao mundo, asseverando que não há sofrimento quando se morre por ideias.
O outro Guevara, cuja fúria não cabia na expressão ou no gesto, dificilmente teria se convertido no emblema do heroísmo
e da abnegação. O Che aniquilado, com os cabelos sujos, a roupa rasgada e os pés envoltos em abarcas* bolivianas,
irreconhecível por seus amigos e adversários, jamais teria despertado a simpatia e admiração que a vítima de
Vallegrande despertou.** As três fotos existentes de Guevara preso só circularam vinte anos após sua execução; nem
Felix Rodríguez, o agente da CIA que bateu uma delas, nem o general Arnaldo Saucedo Parada, que tirou as outras, as
divulgaram. O motivo mais uma vez era perverso. Embora se tenha admitido, poucos dias após a emboscada do Yuro,
que o Che não morrera em combate, era preferível dissimular as provas evidenciando sua execução a sangue-frio, os
instantâneos do Che vivo e prisioneiro. As imagens só foram levadas à telinha nos anos 90, pelas mesmas razões. O Che
morto convencia e não acusava ninguém, mas engendrava um mito inesgotável; o Che vivo, na
melhor das hipóteses, despertava piedade, porém suscitava ceticismo quanto à sua identidade, ou
provava o assassinato inconfessável, embora conhecido de todos. Prevaleceu a imagem do Cristo;
desvaneceu-se a outra, sombria e destroçada.
Ernesto Guevara conquistou seu direito de cidadania no imaginário social de toda uma geração por
muitos motivos mas antes de mais nada pelo encontro místico de um homem com a própria época.
Nos anos 60, repletos de cólera e doçura, outra pessoa teria deixado um leve rastro; o mesmo Che,
em outra época menos turbulenta, idealista e paradigmática, teria passado em branco. A
permanência de Guevara enquanto figura digna de interesse, investigação e leitura não deriva
diretamente da geração à qual pertence. Não brota da obra nem sequer do ideário guevarista; vem
da identificação quase perfeita de um lapso da história com um indivíduo. Outra vida jamais teria
captado o espírito da época; outro momento histórico nunca se reconheceria em uma vida como a
dele.
A convergência existencial se deu por vários caminhos. Um fio condutor da vida de Ernesto Guevara
foi a exaltação da vontade, lidando com o voluntarismo, ou, diriam alguns, a onipotência. Na
enigmática e depurada carta em que se despede dos pais, ele próprio se refere a ela: “Uma vontade
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que aperfeiçoei com deleite de artista me sustentará as pernas frouxas e os pulmões cansados”.
Desde o rúgbi de sua mocidade em Córdoba até o calvário nas selvas da Bolívia, partiu sempre de
um critério: bastava desejar alguma coisa para que ela acontecesse. Não existia limite irremovível
nem obstáculo insuperável para a vontade: a sua e a dos distintos atores sociais e individuais que
encontraria pelo caminho. Seus amores e suas viagens, a visão política e a conduta militar e
económica se impregnaram de um voluntarismo a toda prova, que autorizaria façanhas
extraordinárias, arrebataria vitórias maravilhosas e o conduziria a repetidas e por fim fatais derrotas.
As origens desse voluntarismo quase narcisista são múltiplas: seu próprio empenho, a luta perene
do Che contra a asma e um onipresente olhar materno, de adoração e culpa inesgotáveis. Se
alguém chegou a acreditar que bastava querer o mundo para tê-lo num átimo, esse alguém foi Che
Guevara. Se algo caracterizou seus arautos nos anos 60, esse algo foi a bandeira: “We want the
worid, and we want it now”. Nós Queremos o mundo. e nós queremos ele agora.
outro princípio que governou a vida do Che — a eterna recusa em conviver com a ambivalência, a
qual o perseguiria como uma sombra desde a asma infantil até Nancahuazú — também se
entrelaçaria com as características comportamentais de uma geração. Os anos 60 significaram, em
grande medida, a negativa a coexistir com as contradições da vida; assistiram a uma perpétua fuga
para a frente da primeira geração do pós-guerra, que considerava intolerável a coexistência com
sentimentos, desejos e objetivos políticos contraditórios. Quem melhor que o Che para encarnar a
incompatibilidade individual e generacional com a ambivalência, para simbolizar a incapacidade de
conviver com pulsões dadas de antemão?
As ideias, a vida, a obra, até o exemplo do Che pertencem a uma etapa da história moderna, motivo
por que será difícil recuperarem no futuro sua atualidade. As principais teses teóricas e políticas
vinculadas ao Che — a luta armada e o foco guerrilheiro, a criação do homem novo e o primado dos
incentivos morais, o internacionalismo combatente e solidário — virtualmente deixaram de existir. A
Revolução Cubana — seu maior êxito, seu verdadeiro triunfo — agoniza ou sobrevive graças ao
abandono de boa parte da herança ideológica de Guevara. Porém, a nostalgia persiste: o
subcoman-dante Marcos, dirigente aguerrido e acossado das hostes zapatistas nos fundos vales de
Chiapas, costuma invocar, gráfica ou explicitamente, as imagens e analogias do Che, sobretudo
aquelas que evocam traições ou derrotas. Respondeu à ofensiva das forças armadas mexicanas em
9 de fevereiro de 1995 com dois ícones: Emiliano Zapata em Chinameca e o Che em vado dei Yeso
e na quebrada dei Yuro.*
Em compensação, o intervalo em que o Che se movimentou e alcançou a glória ainda não se
encerrou. Continua a provocar saudade como a última convocação das utopias modernas, o último
encontro com as grandes e generosas ideias de nosso tempo — a igualdade, a solidariedade, a
libertação individual e coletiva —, com as mulheres e homens que as encarnaram. A importância de
Che Guevara para o mundo e a vida de hoje se verificam por osmose ou por controle remoto.
Reside na atualidade dos valores de sua era, jaz na relevância das esperanças e sonhos dos anos
60 para um fim de século órfão de utopias, carente de projeto coletivo e dilacerado pêlos ódios e
tensões próprias de uma homogeneidade ideológica sem jaca. Seu instante de fama sobrevive ao
Che, e ele, por seu turno, confere luz e sentido a esse momento cuja memória empalidece mas
ainda perdura. Em sua infância e
juventude, em sua maturidade e morte, jaiem as chaves para decifrar o encontro do homem com
seu mundo. Comecemos.
A Argentina às vésperas da Grande Depressão não era um mau lugar para se nascer e crescer,
sobretudo para quem, como no caso do primeiro filho de Ernesto Guevara Lynch e Célia de Ia Serna
y Liosa, provinha de uma aristocracia de origem e sangue, quando não pecuniária. Ernesto Guevara
de Ia Serna nasce em 14 de junho de 1928 em Rosário, terceira cidade de um país de 12,5 milhões
de habitantes, muitos deles oriundos de outras regiões. Pelo lado paterno, os Guevara Lynch já
tinham doze gerações na terra austral: mais que suficiente para merecerem o título de avoengos em
um país de imigrantes, em sua imensa maioria recém-chegados. Na genealogia de sua mãe
também luzem as raízes e a distinção; além disso que a família De Ia Ser-na possuía terras e,
portanto, dinheiro.
Por parte do pai, Ernesto tinha sangue espanhol, irlandês (o bisavô, Patrick Lynch, fugiu da
Inglaterra para a Espanha e dali para a Gobemación do Rio da Prata, na segunda metade do século
XVIII) e até mexicano-ameri-cano, já que a avó paterna do Che nasceu na Califórnia, em 1868. O
pai de Guevara Lynch, Roberto Guevara, também era originário dos Estados Unidos: seus pais
haviam participado da corrida do ouro californiana de 1848, embora tivessem retornado poucos anos
depois à terra natal com os filhos. Mas para além de seu lugar de nascimento, os Guevara eram
argentinos de cepa. O ramo Guevara Lynch da família se confundia com a história da aristocracia
local; Gaspar Lynch foi um dos fundadores da Sociedade Rural Argentina — verdadeiro Conselho
de Administração da oligarquia latifundiária do país — e Enrique Lynch erigiu-se em um de seus
baluartes durante as crises económicas que fustigaram a agricultura local em fins do século XIX.
Ana Lynch, liberal e iconoclasta, seria a única avó que o Che conheceria, e a relação com ela o
marcaria em profundidade. A decisão do neto de estudar medicina em vez de engenharia deriva
parcialmente do falecimento de Ana, a quem ele assistiu no leito de morte.
Do lado materno, o vínculo com o torrão natal remontava ao general José de Ia Serna e Hinojosa,
último vice-rei do Peru, cujas tropas foram derrotadas por Sucre na batalha de Ayacucho.’ Filha de
Juan Martín de Ia Serna e Edelmira Liosa, Célia não havia completado 21 anos quando se casou,
em 1927, com o jovem ex-estudante de arquitetura. Seus pais faleceram anos antes: don Juan,
assim que Célia nasceu, segundo uma de suas netas, suicidou-se em alto-mar ao saber que sofria
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de sífilis; Edelmira,
algum tempo depois. Na realidade, Célia foi criada por uma irmã mais ve-
lha, Carmen de Ia Sema, que se casou em 1928 com o poeta comunista
Cayetano Córdova Itúrburu; antes fora noiva do poeta mexicano Amado
Nervo. Tanto Carmen como Córdova permaneceram nas fileiras do Par-
tido Comunista Argentino durante catorze anos, ela talvez com mais fer-
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vor que o marido.
A família de Célia era “endinheirada”, como reconhecia sem rubor o
seu marido; o pai, “herdeiro de uma grande fortuna [...] possuía várias estân-
cias. Homem culto, muito inteligente, militou nas fileiras do radicalismo”,
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participando na “revolução de 1890”. Embora a fortuna familiar devesse ser
repartida por sete, dava para todos. Os Guevara de Ia Serna viveriam muito
mais das diversas rendas e heranças de Célia que dos disparatados e siste-
maticamente falidos projetos empresariais do chefe da família. Ainda que a
ma’i tivesse dado a Célia uma educação católica clássica na escola do Sagra-
do Coração, logo o ambiente livre-pensador, radical ou francamente de
esquerda do lar de sua irmã a transformaria numa personagem à parte: femi-
nista, socialista, anticlerical.* Participava das infinitas reuniões celebradas
em sua casa, d ,s diversas lutas travadas pelas mulheres argentinas ao longo
dos anos 20;** tanto antes como depois do casamento conservou um perfil
próprio, que dura.ia até sua morte, em 1965.
Essa mulher excepcional foi sem dúvida a figura afetiva e intelectual
mais importante na vida do filho mais velho, pelo menos até o encontro
deste com Fidel Castro no México, em 1955. Ninguém desempenhou na
vida do Che um papel equivalente ao de Célia, sua mãe, nem o pai, nem as
esposas ou os filhos. A mulher que conviveu durante vinte anos com o peri-
go e o estigma do câncer; a militante que pouco antes da morte passou sema-
nas no cárcere em razão do sobrenome que partilhava com o filho; a mãe que
educou e manteve cinco crias quase por conta própria impôs uma marca à
vida de Che Guevara a que só Castro pôde se igualar, durante um breve
interiúdio na vida dos dois. Nada ilustra melhor a glória e a tragédia da saga
de Guevara que seu lamento dilacerado no coração das trevas ao receber no
Congo a notícia da morte da mãe:
Pessoalmente, no entanto, [Machado Ventura] trouxe-me a notícia mais
triste da guerra: em comunicação telefónica de Buenos Aires, informavam que
minha mãe estava muito enferma, em um tom que deixava presumir que era
apenas um anúncio preparatório... Tive de passar um mês nessa triste
incerteza, aguardando os resultados de algo que esperava mas com a esperança
de que houvesse um equívoco, até que chegou a confirmação do falecimento
de minha mãe. Ela quisera ver-me pouco antes de minha partida, possivel-
mente sentindo-se doente, mas não fora possível, pois minha viagem já esta-
va bastante adiantada. Não chegou a tomar conhecimento da carta de despe-
dida deixada em Havana para meus pais; só a entregariam em outubro, quando
minha partida tornou-se pública.*
Não pôde despedir-se dela, nem guardar o luto que sua dor impunha. A
revolução africana, as enfermidades tropicais ferozes e as eternas divisões
tribais dos descendentes políticos de Patrice Lumumba o impediam. Célia
falece em Buenos Aires, expulsa do hospital onde jazia no leito de morte; os
donos da clínica se recusaram a albergar a mãe que parira Che’Guevara 37
anos antes. Che carrega seu pesar nas colinas da África, desterrado de sua
pátria adotiva pêlos próprios demónios internos e pelo fervor idealista que
herdou da mãe. Morrerá poucos anos mais tarde: duas mortes demasiado
próximas.
A Argentina onde o menino Ernesto vem à luz era ainda em 1928 um
país dinâmico, em plena ebulição, abençoado por um aparente idílio
económico e inclusive político que rápido se dissiparia. Durante os anos 20
ela é tão legitimamente comparável aos ex-domínios ingleses brancos como
aos demais países latino-americanos. As vésperas da Primeira Guerra
Mundial, seus principais indicadores sociodemográficos se assemelhavam
mais aos da Austrália, Canadá e Nova Zelândia que aos da Colômbia, Peru, Venezuela ou México.*
Recebera um volume de investimentos diretos estrangeiros três vezes superior ao do México ou do
Brasil; em número de vias férreas por mil habitantes, embora inferior em 50% ao da Austrália e ao
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do Canadá, superava amplamente os seus vizinhos de hemisfério. Em 1913, a renda per capita
argentina era a décima terceira do mundo, um pouco superior à da França. A conflagração europeia
e a expansão desenfreada dos anos 20 não alterariam essa classificação. Ainda que as dificuldades
argentinas — industrialização raquítica, superendividamento externo, setor de exportação altamente
vulnerável — logo fossem arruinar as pretensões moder-nizantes das elites locais, o país onde
nasce Che Guevara transpira uma afortunada e merecida autoconfiança. Aspira — com razão — a
sua inclusão em um Primeiro Mundo avant Ia lettre, despreocupado dos vergonhosos sinais
económicos e sociais que já se perfilavam no horizonte.**
A introdução do sufrágio universal secreto (para homens e cidadãos argentinos) em 1912 deu lugar,
quatro anos mais tarde, ao triunfo eleitoral da União Cívica Radical e seu legendário paladino,
Hipólito Yrigoyen. Este logrou sua eleição meses antes do nascimento do Che, em 1928, ao fim do
interregno de Marcelo T. de Alvear. Porém, o yrigoyenismo não pôde satisfazer às enormes
esperanças que despertou nas camadas médias emergentes do país e no seio da nova classe
trabalhadora portenha — uma eclética e instável mescla de argentinos de segunda geração,
interioranos e imigrantes.*** A pressão da direita, o desencanto das classes médias e os estragos
causados pela Grande Depressão puseram termo ao fugaz lapso democrático: em 1930 o exército
consumou o primeiro golpe de Estado do século que destituiu um governo latino-americano
democraticamente eleito. Em
(*) A taxa de mortalidade infantil da Argentina, por exemplo, era nessa época de 121 por mil, a da
Colômbia de 177, a do México de 228, a do Chile de 261, e a da Austrália de 72. A porcentagem de
habitantes do país que viviam em grandes cidades chegava a 31 %, ao passo que a cifra
correspondente no Brasil era de 10,7% e no Peru de 5% (Victor Bulmer-Thomas, Economic history
ofLatin América, Nova York, Cambridge University Press 1994, p. 86).
(**) “A Argentina conseguiu um sólido crescimento industrial em quase todos os anos da década de
20 [...] expandindo rapidamente a produção de hens de consumo duráveis e não duráveis
(sobretudo têxteis) à custa das importações. As indústrias intermediárias, como a refinação de
petróleo, a indústria química e a metalurgia, também floresceram; apenas a construção civil
permaneceu abaixo dos níveis à guerra” (ibidem, p. 189).
(***)0paido voto não foi um dosdesiludidos; deu seu primeiro voto, em 1919, ao Partido Socialista
Argentino.
seu lugar as forças armadas puseram o general José Felix Uriburu; depois do fracasso de seu
projeto filofascista, suceder-se-ão governos fraudulentos, até que em 1943 o ciclo se encerrará com
um novo golpe de Estado. A alternância de governos civis com governos militares caracterizará a
vida política argentina até 1983.
O nascimento de Ernesto filho aconteceu em Rosário por razões circunstanciais. Seus pais, depois
do casamento em Buenos Aires um ano antes, partiram para Puerto Caraguatay, no alto Paraná,
território de Misiones. Ali Ernesto pai se propusera cultivar e explorar uns duzentos hectares
semeados de erva-mate, o chamado ouro verde, que proliferava nessa região da Argentina.* Já com
Célia grávida de sete meses, dirigiram-se a Rosário, o centro urbano de certa dimensão mais
próximo, tanto para que o parto se consumasse ali como para estudar a possibilidade de comprar
um moinho ervateiro. O projeto agrícola do erval naufragou rapidamente enquanto iniciativa
empresarial, o que ocorreria com frequência nos anos vindouros. O pequeno Ernesto nasce de oito
meses, fraquinho e sujeito a deslocamentos constantes que o acompanharão por toda a vida; a
família logo abandonará a zona de Misiones. Guevara Lynch também era sócio de um estaleiro em
San Isidro, perto de Buenos Aires.
Aí ocorre o primeiro ataque de asma de Ernestinho, semanas antes de ele completar dois anos, em
2 de maio de 1930. Segundo relata o pai do Che, sua esposa, nadadora competente e tenaz,
costumava levar o filho ao Clube Náutico de San Isidro, às margens do rio da Prata. O pai da vítima
não deixa muitas dúvidas sobre sua interpretação da responsabilidade pela desgraça:
“Numa fria manhã do mês de maio, quando ainda por cima ventava muito, minha mulher foi banhar-
se no rio com nosso filho Ernesto. Cheguei ao clube à sua procura com a intenção de levá-los para
almoçar e encontrei o pequeno em trajes de banho, já fora da água e tiritando. Célia não tinha
experiência e não percebeu que a mudança de tempo era perigosa naquela época do ano”.**
(*) O próprio Ernesto Guevara Lynch fornece as versões sobre a origem dos recursos que lhe
permitiram adquirir o erval de Puerto Caraguatay. Em seu livro Mi fujo el Che, diz que recebera uma
herança do pai e pensava utilizá-la para comprar terras em Misiones. Essa versão é retomada por
uma fonte oficial cubana, o Acios histórico, biográfico y militar de Ernesto Guevara, t. l, publicado em
Havana em 1990 (p. 25). Porém, em uma longa entrevista com José Grigulevich, incluída no livro já
citado (I. Lavretsky), o pai do Che diz textualmente:
“Célia herdou uma plantação de erva-mate em Misiones” (p. 14).
(**) Ernesto Guevara Lynch, op. cit., p. 139. Em outra versão, Guevara pai trocou os papéis, contudo
manteve a atribuição de culpas: “Em 2 de maio de 1930 Célia e eu fomos na-
Todavia, esse não foi o primeiro mal pulmonar do menino; quarenta dias depois de nascer, ele foi
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atacado por uma pneumonia que, segundo Ercilia Guevara Lynch, sua tia, “quase o mata”. Essa
primeira infecção respiratória põe em dúvida a explicação paterna sobre a etiologia da asma do Che;
o mencionado resfriado tinha seus antecedentes. De qualquer modo, desde o primeiro ataque à
beira do rio da Prata até junho de 1933 as crises asmáticas de Ernestinho se dariam quase
diariamente, de maneira exasperante e devastadora para os pais, mas acima de tudo para Célia,
que afora a carga desigual que suportava nos cuidados para com o enfermo, carregava uma forte
dose de culpa. Somavam-se à que seu marido lhe atribuía pelo incidente no rio, os antecedentes
hereditários, de que na época apenas se suspeitava mas de que hoje se tem certeza. Célia fora
asmática na infância; havia, portanto, 30% de chance de que um de seus filhos padecesse da
doença; tudo indica que foi o que ocorreu com Ernesto. A pneumonia aos quarenta dias de vida e o
resfriado no Clube Náutico podem ter agido como detonadores de uma grande predisposição
genética, mas não provocaram a asma.
Os três anos transcorridos entre o surgimento e a estabilização da doença parecem ter marcado o
casal de modo acentuado e, indiretamente, o filho; os relatos de familiares, amigos e dos próprios
pais do Che são comoventes.* Foi sem dúvida durante esse período que Célia construiu sua relação
maternal entremeada de obsessão, culpa e adoração — relação que muito em breve engendraria
uma espécie de educação particular, à qual o Che deveria, pelo resto da vida, seu gosto pela leitura
e a curiosidade intelectual insaciável.
A família perambularia pela Argentina ao longo de cinco anos, buscando uma moradia que
beneficiasse a saúde do menino ou ao menos não a agravasse. Finalmente a encontrariam em Alta
Gracia, uma estância de veraneio a quarenta quilómetros da cidade de Córdoba, nas encostas da
sierra Chica, a seiscentos metros de altitude. O ar seco e límpido, que atraía turis-
dar com Teté. O dia ficou frio, passou a ventar e logo Teté começou a tossir. Nós o levamos ao
médico, que diagnosticou asma. Talvez já estivesse resfriado, ou quem sabe herdou a enfermidade,
já que Célia fora asmática quando criança” (Lavretsky, op. cit., p. 15).
(*) A mãe do Che confirma, por exemplo, os cuidados do pai com o menino. “Aos quatro anos
Ernesto já não resistia ao clima da capital. Guevara Lynch [assim se refere ao marido depois da
separação] acostumou-se a dormir sentado à cabeceira de seu primogénito, para que ele, recostado
em seu peito, suportasse melhor a asma” (Célia de Ia Serna, testemunho publicado em Granma,
Havana, 16/10/67, p. 8). Célia morreuem 19deabrilde 1965;oteste-munho obviamente foi recolhido
anos antes de ser divulgado.
tas e tuberculosos, moderou as crises asmáticas de Teté, embora não as tivesse curado nem
espaçado sensivelmente. A enfermidade ficou sob controle graças ao clima de Alta Gracia, aos
cuidados médicos e à personalidade do menino. E, sobretudo, à excepcional devoção e carinho de
sua mãe.
Nessa montanha mágica ao pé da serra de Córdoba cresceria Ernesto Guevara de Ia Serna, com o
pai consagrado à construção de casas no . pequeno município e a mãe à criação e educação do
menino e suas duas irmãs, Célia e Ana Maria, e o irmão menor, Roberto; o caçula dos Guevara de
Ia Serna, Juan Martín, nasceria mais tarde em Córdoba. Tudo isso configurava um oásis de
introspecção e placidez, em meio a um país que se despedia dos anos dourados e ingressava, junto
com o mundo, nas desgraças da Depressão e em suas inesperadas sequelas políticas. A crise
mundial de 1929 não só destruiu as pretensões ervateiras do pai do Che, como também destroçou
em poucos anos o mito da Argentina aprazível e próspera. O golpe de 1930 deu início a um longo
período de instabilidade política, e a queda dos preços e da demanda internacional dos principais
itens de exportação da Argentina inaugurou uma interminável letargia económica, só interrompida
pelo breve boom das matérias-primas no imediato pós-guer-ra. Porém, a crise inaugurou também
uma época de mobilização social, de polarização ideológica e transformações culturais a que nem
Alta Gracia nem as elites protegidas e ilustradas de províncias como Córdoba poderiam ficar
imunes.
Em um primeiro momento, as exportações dos produtos do pampa não sofreram a catástrofe do
cobre chileno ou do café brasileiro, por exemplo. Não obstante, na Argentina, os rendimentos
relativos à exportação se reduziram em 50% entre 1929 e 1932, e o colapso não foi menos
demolidor e prenhe de consequências que em outros países da região. Ele teve um duplo efeito na
sociedade austral. Por um lado, a crise gerou considerável desemprego agrícola, basicamente de
arrendatários impossibilitados de cumprir os termos de seus contratos; por outro, as restrições às
importações por causa da escassez de divisas e crédito externo ativaram o desenvolvimento de uma
indústria manufatureira nacional, tanto de bens de consumo como de alguns bens de produção.
Esse fenómeno contribuiu para o crescimento acelerado da classe operária argentina. Duas cifras
indicam a transformação social desse período: em 1947, 1,4 milhão de imigrantes procedentes das
zonas rurais haviam acorrido a Buenos Aires, e meio milhão de operários tinham se incorporado ao
proletariado, duplicando seus efetivos em apenas uma década.
Os migrantes constituiriam os famosos cabecitas negras; os operários, uma nova classe
trabalhadora, menos forasteira e menos branca que a dos princípios do século, mais vinculada à
indústria nacional que ao processamento de artigos de exportação, mais afastada da classe média
tradicional que a da idade de ouro do yrigoyenismo. O fosso entre os segmentos médios ilustrados e
tradicionais, de um lado, e o novo estamento operário, de outro, se refletiria, dez anos mais tarde, no
desencontro entre a esquerda argentina socialista, intelectual e pequeno-burguesa e o peronismo
em ascensão, populista e irreverente.
Os anos de Ernesto em Alta Gracia apenas começavam, mas muito em breve algumas de suas
principais características transpareceriam. A primeira que salta à vista se baseia na continuidade da
perpétua peregrinação, agora reduzida ao perímetro da cidadezinha de veraneio. Segundo Roberto,
o irmão mais novo do Che, depois de residir seis meses no Hotel Grutas a família mudou-se, em
1933, para Vilia Chichita; dali iria para uma casa mais ampla, Vilia Nydia, em 1934, e em seguida
para Chalet de Fuentes, em 193 7, Chalet de Ripamonte, em 1939, e novamente Vilia Nydia em
1940-1. Para Roberto Guevara tantos deslocamentos tinham uma explicação: “Como os contratos
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venciam, tínhamos de mudar”. Sem dúvida seria absurdo atribuir a futura e extremada inclinação
errante de Che Guevara a esse permanente perambular de sua família. Porém, o constante ir e vir
certamente adquiriu uma naturalidade muito peculiar no universo do menino. De cidade em cidade
até os cinco anos, de casa em casa até os quinze; a normalidade gue-varista residia no movimento,
que amenizava a uniformidade dos outros aspectos de sua existência. Também reavivava a
esperança de começar de novo e superar tensões familiares — afetivas, financeiras — que não fal-
tavam no agora mais populoso lar de Ernesto e Célia.
E nessa época que a relação de Célia e Teté se torna essencial na vida dos dois e ultrapassa
largamente, em intensidade e proximidade, o vínculo de Ernestinho com o pai e das outras crianças
com a mãe. A enfermidade de Ernesto filho explica-o em grande parte: nada como a culpa e a
angústia de uma mãe em relação ao filho para gerar uma devoção maternal sem limites. A simbiose
entre Célia e o Che, que alimentaria a correspondência, a existência afetiva e a própria vida de
ambos durante os trinta anos seguintes, inicia-se nesses anos lânguidos de Alta Gracia, quando
Ernesto aprende, no colo da mãe, a ler e escrever, a vê-la e sobretudo ser visto por ela. Essa
relação chega a tal ponto que quem conheceu Ernesto e os irmãos na juventude se assombra com
as diferenças físicas e de caráter entre eles, muito anteriores à
celebridade do filho maior e à sombra que inevitavelmente projetaria sobre os demais integrantes da
família. Qual o motivo? A explicação talvez esteja no olhar de Célia, repleto de culpa, angústia e
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amor no caso de Ernesto, de simples carinho maternal no caso dos demais.
Outro sinal distintivo desse prelúdio da adolescência deriva do primeiro: consolida-se de modo mais
preciso o papel do chefe da família. Guevara Lynch era, simultaneamente, um grande boémio, um
formidável amigo dos filhos, um provedor medíocre e um pai distante e indiferente. Sem dúvida são
autênticas suas recordações sobre as horas passadas com o filho, nadando, jogando golfe, dando-
lhe atenção e falando-lhe da vida. Mas também o eram o desligamento durante o resto do tempo e a
displicência ante as necessidades do menino e da família. Enquanto a mãe fazia as vezes de pro-
fessora, organizadora do lar e enfermeira, Guevara Lynch construía casas em sociedade com o
irmão e passava longas horas no Sierras Hotel, ponto de reunião e lazer da sociedade abastada de
Alta Gracia.*
A enfermidade continuava atormentando Ernestinho. Impediu-o de obter uma educação primária
“normal”, substituída pelo empenho didático da mãe: “Eu ensinava as primeiras letras a meu filho,
mas Ernesto não podia ir à escola por causa da asma. Só cursaria regularmente o segundo, o
terceiro grau; o quinto e o sexto, ele os cursou como pôde. Seus irmãos copiavam os deveres e ele
estudava em casa”.”
Se o pai de Ernesto desempenhou um papel central foi o de inculcar ao menino um gosto voraz pelo
esporte e o exercício físico e a convicção de que era possível vencer à base de pura força de
vontade as limitações e penas que a doença impunha.** Tanto Ernesto pai como Célia eram
esportistas, gente que amava o campo e a natureza, e conseguiram transmitir esse gosto ao fi-
(*) Decerto os Guevara de Ia Serna saíam juntos, sobretudo ao chegar a Alta Gracia. E sem dúvida
não se pode tomar ao pé da letra testemunhos como o de Rosário Gonzáiez, que trabalhou como
empregada doméstica, encarregada em especial das crianças, entre 1933 e 1938. Mas eles ilustram
uma tendência que se aguçaria com o tempo: “Os pais de Ernesto saíam bastante, eram muito de
noitadas, iam ao Sierras Hotel todas as noites, desde as sete, para jantar. Chegavam de
madrugada, às quatro, às cinco... Todos os dias; isso era frequente. saíam às sete, às oito, iam
embora e não vinham jantar. Os meninos jantavam sozinhos” (Rosário Gonzáiez, entrevista com o
autor, Alta Gracia, 17/2/95).
(**) Mais uma vez proliferam as interpretações sobre a verdadeira responsabilidade de cada um dos
pais do Che nessa etapa. Segundo o irmão Roberto, o papel central, inclusive nesse particular,
coube à mãe: “Era uma criança muito doente... Mas conseguiu se impor à doença com seu caráter e
força de vontade. Houve nisso muita influência de minha mãe” (Roberto Guevara de Ia Sema,
testemunho reproduzido em Cupull e Gonzáiez, op. cit., p. 82).
lho. Como este precisava realizar esforços muito superiores aos de uma criança sadia para desfrutar
realmente dos prazeres do exercício físico, desde pequeno começou a desenvolver uma força de
vontade descomunal. Foram os pais do Che que descobriram o único remédio possível para o
tormento crónico. Concluíram que o único tratamento razoável consistiria em continuar a medicá-lo e
em fortalecê-lo por meio de tónicos e exercícios apropriados, como natação, jogos ao ar livre,
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passeios pêlos montes, equitação.
Dessa forma, a crescente e indispensável (para ele) vontade de superação física se transformaria
em traço decisivo da vida do jovem Ernesto. Também o seria a heterogeneidade social do círculo de
amizades, o contato frequente dos meninos Guevara de Ia Serna com amiguinhos de diferentes
classes sociais. Entre eles figuravam os caddies* do clube de golfe de Alta Gracia e os camareiros
dos hotéis, os filhos dos pedreiros das diversas obras de Ernesto pai, assim como as famílias
pobres das redondezas da série de casas que os Guevara foram alugando. Em cada uma delas
apareciam multidões de meninos, uns vindos de lares de classe média, outros de origem popular,
uns brancos como Ernesto e seus irmãos, outros de pele mais escura, ou morochos, como Rosendo
Zacarias, vendedor de doces nas ruas de Alta Gracia. Meio século mais tarde, este ainda lembrava
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(talvez com ajuda do mito de que “o Che era uma criança perfeita, sem problemas”) como todos
brincavam sem distinções nem hierarquias. Desde então Ernestinho mostrava uma facilidade notória
para relacionar-se com gente alheia ao seu meio cultural e social.
Das longas horas passadas em casa e na cama nasce a predileção de Ernesto filho pela leitura. Ele
devorava os clássicos para leitores infantis de sua idade e época: os romances de aventuras de
Dumas Filho, Robert Louis Stevenson, Jack LondoneJúlio Veme e, naturalmente, de Emílio Salgari.
Mas lê também Cervantes e Anatole France, de Pablo Neruda e Horacio Quiroga, e dos poetas
espanhóis, Machado e Garcia Lorca. Tanto o pai como a mãe contribuíram para despertar-lhe o
gosto pela leitura: Ernesto Guevara Lynch, pêlos romances de aventuras; Célia, pela poesia e, na
época em que o educou em casa, pelo idioma francês. Na escola propriamente, Ernesto era apenas
bom aluno, segundo as recordações de uma de suas professoras, que o igualavam em inteligência
às irmãs menores mas atribuía mais assiduidade a estas.
Para a professora Elba Rossi Oviedo Zelaya, Ernestinho viveu dois vínculos familiares distintos com
a educação: o de Célia, sempre presente, fis-
(*) Rapazes que carregam os tacos e o equipamento dos jogadores. (N. T.)
calizando de perto a instrução do filho, e o de Ernesto pai, mais distante. Diz a educadora sobre o
menino Che:
Conheci apenas a mãe. Ela era realmente muito democrática, uma senhora que não se incomodava
em pegar um menino qualquer, levá-lo até sua casa, colaborar com a escola... tinha um
temperamento adorável. Ia à escola todos os dias e a todas as reuniões de pais, com todos os
meninos no carrinho, e no caminho outras crianças se juntavam a eles. O pai era um senhor bem
distinto que vivia no Sierras Hotel, pois era gente de família. Devo tê-lo visto alguma vez por acaso;
não ia à escola, não falava com as professoras. Sei apenas que frequentava bastante o Sierras,
porque naquela época era o melhor hotel de Alta Gracia. Com ela falamos várias vezes, de
questões escolares e outras coisas. Tudo era com ela; ele, se foi à escola, eu nunca vi;
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talvez o tenha visto alguma vez, alguém pode ter dito que se tratava do senhor Guevara.
Talvez os dois aspectos mais notáveis da passagem de Ernesto por algumas escolas públicas de
Alta Gracia, onde cursou o primário — a San Martín primeiro, a Manuel Solares depois —, se devam
à atitude dos pais e às consequências do fato de frequentar justamente escolas públicas, nos anos
do ocaso da Argentina oligárquica. O Che se impressionaria sobretudo com a tensão entre um país
ainda homogéneo e uma incipiente diversidade que já se chocava com as tendências igualitárias da
educação pública, laica e obrigatória. A obrigatoriedade do ensino primário não possuía um caráter
apenas de princípios; quando a asma impedia o menino de assistir às aulas, sua mãe recebia
requerimentos da autoridade responsável indagando sobre os motivos da ausência. E na escola
Ernestinho sofreria os efeitos contraditórios das vertiginosas mutações da sociedade argentina. Os
dois colégios de Alta Gracia em que esteve matriculado eram frequentados por crianças dos
arredores da cidade, do “campo”, como se dizia comumente nessa região da Argentina: de origem
rural, em alguns casos morochos, procedentes de lares humildes, que constituíam a primeira
geração escolarizada. A grande diferença entre a Argentina e o resto da América Latina naquela
época (exceto o Uruguai e, em menor medida, o Chile) residia na existência dessa instituição
igualadora por excelência (junto com o serviço militar, implantado antes do sufrágio universal): a
educação pública. O imenso fosso que sempre separou o Che adulto de muitos de seus compa-
nheiros cubanos e do resto da América Latina, no que toca ao trato e à sensibilidade para com
interlocutores de classes, raças, etnias e padrões educacionais diferentes, nasce desse encontro
precoce com a igualdade. Brota
também da experiência da diversidade, típica da educação republicana em um continente onde as
elites não costumam gozar do privilégio do encontro com os outros.
Contudo, procurar a igualdade não equivale a encontrá-la. O surgimento nos anos 30 de novas
classes sociais, compostas em parte de imigrantes de segunda geração e em parte de gente vinda
do velho campo dos gaúchos e estâncias, não perdoou nenhum dos setores da sociedade argenti-
na. Nas escolas de Ernesto estudavam meninos pobres, de ascendência italiana, espanhola e rural;
graças a suas professoras e à excepcional herança cultural recebida de Célia, o Che dispôs de
oportunidades únicas e evidentes para defrontar-se com os contornos da desigualdade. Porém,
essas mesmas vantagens lhe outorgaram a distinção de ser um prematuro primus interpores:
o menino que, graças à cultura e abastança (relativa) dos pais e à autoconfiança gerada por um lar
estável e aprazível, gozou do privilégio de se destacar desde muito cedo, de converter-se no
dirigente das turmas escolares, de ocupar uma posição de liderança entre os amiguinhos. A
vocação têmpora para líder, que muitos admiradores descobrem no Che desde a mais longínqua
infância, talvez provenha de seus possíveis dotes de chefe, mas deriva também de uma situação
social privilegiada.*
SL^~ Last but not least, remonta a esses anos passados no sossego de Alta Gra-cia o início da
politização do primogénito dos Guevara de Ia Serna. Assim como ocorreu com milhões de jovens e
adultos do mundo inteiro, a Guerra Civil espanhola despertou a curiosidade política do menino. Seu
interesse e o acompanhamento das glórias e tragédias de Madri, Temei e Guernica não se
concentrarão nas facetas ideológicas, internacionais ou mesmo políticas da conflagração, mas nos
aspectos militares e heróicos. Desde 193 7 ele pren-
(*) “Lembro que muitos meninos o seguiam no quintal; ele subia em uma árvore que havia ali,
grande, e todos os meninos o rodeavam porque ele era como um líder; depois ele saía correndo e
os outros iam atrás, já se notava que era o chefe... Devia ser por causa da família, que era uma
família distinta; o menino sabia falar melhor tudo o mais. Percebia-se uma diferença. O fato de eles
virem de Buenos Aires já lhes dava um ar de superiores aos outros. Aqueles meninos vinham de
outro ambiente, tinham se criado de maneira diferente. Por exemplo: não lhes faltava material; para
os meninos mais pobres muitas vezes era preciso conseguir alguma coisa, não tinham lápis de cor
nem material para pintar; a eles nunca faltou nada. Era uma outra categoria; bem, isso não se
notava, porque não eram de desprezar os outros, em absoluto. Estavam perfeitamente integrados
no grupo. Mas falavam melhor, faziam melhor as coisas, os deveres, tudo. Não deixavam de
entregar os deveres como as outras crianças, que muitas vezes não têm ajuda em casa, e voltam
para a escola sem fazer os deveres” (Elba Rossi Oviedo Zelaya, entrevista com o autor. Alta Gracia,
17/2/95).
dera um mapa da Espanha na parede de seu quarto, onde seguirá a marcha dos exércitos
republicano e franquista, e construirá no jardim de casa uma espécie de campo de batalha, com
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trincheiras e montes. Vários fatores contribuirão para fazer da causa da República espanhola o
crisol da consciência política do prematuro aficionado das atualidades mundiais.
Em 1937 seu tio Cayetano Córdova Itúrburu partiu para a Espanha. Jornalista e membro do Partido
Comunista Argentino, foi contratado como correspondente estrangeiro pelo diário Crítica, de Buenos
Aires. A tia Carmen viajou com os dois filhos para Alta Gracia; foi viver com a irmã durante a estadia
do marido na Espanha. Assim, todos os despachos, comentários e artigos transmitidos do front por
Córdova Itúrburu passavam pelas vilas e chalés dos Guevara em Alta Gracia. A chegada de notícias
de além-mar se transformava em um acontecimento; o conteúdo delas aumentava ainda mais a
excitação. As vezes Córdova mandava também revistas e livros espanhóis, os quais reforçavam a
informação detalhada que aterrissava na imaginação do pequeno Ernesto, onde ficaria gravada para
sempre.
Outro fator importante na conscientização do Che foi a chegada a Cór-doba e depois a Alta Gracia
de várias famílias expulsas da península Ibérica. A mais significativa, pela intimidade que
estabeleceria com o núcleo dos Guevara, foi a do médico Juan Gonzáiez Aguilar, que despachara
previamente a esposa e os filhos para Buenos Aires e depois para Alta Gracia. Quando caiu a
resistência republicana, o próprio Gonzáiez Aguilar — amigo de Manuel Azana e colaborador de
Juan Negrín, último presidente do governo legalista — exilou-se na Argentina. Seus filhos, Paço,
Juan e Pepe, se matricularam com o Che no liceu Deán Funes, de Córdoba, em 1942;
durante um ano os adolescentes percorreram juntos os 35 quilómetros de Alta Gracia até a escola.
A amizade entre as duas famílias durará décadas, e será dos relatos dos Gonzáiez Aguilar, assim
como de outros refugiados que transitavam por sua casa — o general Jurado, o compositor Manuel
de Falia —, que Ernesto Guevara filho adquirirá boa parte de sua sensibilidade e solidariedade para
com os republicanos. A guerra da Espanha foi a experiência política fundamental da infância e
adolescência do Che. Nada o marcou tão fundo nesses anos como a luta e a derrota dos
republicanos: nem a Frente Popular francesa, nem a expropriação do petróleo no México, nem o
New Deal de Roosevelt, para não falar do golpe argentino de 1943 ou mesmo da jornada de 17 de
outubro de 1945 e do advento de Perón.
Os pais transmitiram a Ernesto uma grande parcela das próprias posturas políticas. Concluída a
guerra da Espanha e esmagados os republicanos, teria início a Segunda Guerra Mundial; o pai do
menino de onze anos fundou a seção local da Ação Argentina, em cujo setor infantil logo inscreveu
o filho. Típica organização antifascista, a Ação Argentina fez um pouco de tudo naqueles anos:
realizou comícios e levantou fundos em favor dos Aliados, combateu a penetração nazista na
Argentina, descobriu casos de infiltração de ex-tripulantes do couraçado alemão GrafSpee (atracado
à baía de Montevidéu em 1940) e difundiu informações sobre o avanço militar das forças aliadas.
Como lembra seu pai, “toda vez que havia um ato organizado pela Ação Argentina ou que tínhamos
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de fazer uma averiguação importante, Ernesto me acompanhava”.’
A descrição anterior ficaria truncada se não situasse a guerra da Espanha no ambiente argentino da
época, e em especial no contexto da ascensão de uma direita local nacionalista, católica e
virtualmente fascista. Para a intelectualidade argentina dos anos 30, radical, socialista ou comunista,
com ou sem raízes italianas ou espanholas, a xenofobia e o conservadorismo de escritores como
Leopoldo Lugones, Gustavo Martínez Zuviría e Alejan-dro Bunge, de publicações como Crisol,
Bandera Argentina e La Voz Nacionalista e sua expressão política em círculos da oficialidade média
do exército constituíam o pior dos inimigos. O nacionalismo argentino dos anos 30 era anti-semita,
racista e eugênico, fascista e filo-hitierista. Naturalmente voltou-se para o franquismo a partir de
1936.0 discurso xenófobo era-lhe particularmente caro, sobretudo diante do surgimento da nova
classe operária procedente do interior, “negra” e “pele-vermelha”.* O fato de esse nacionalismo
conter também sua vertente “social” e “antiimperia-lista”, sua faceta “desenvolvimentista” (embora
todos esses termos sejam anacronismos) e industrializadora, não impedia que a esquerda argentina
de velha estirpe o contemplasse espavorida, e com razão.
O desenlace desse drama contraria todas as previsões. A ascensão de Perón deixaria, por um lado,
os nacionalistas descontentes e, por outro, a esquerda desorientada e órfã de massas. No auge
desse nacionalismo con-
(*) Lugones finalmente defendeu o fim de toda imigração que não fosse branca, e Bunge, em seu
artigo “Esplendor e decadência da raça branca”, assinalava que “todo o vigor da raça [...] do
patriotismo de seus homens superiores e da abnegação do espírito cristão deve voltar-se desde
agora para restaurar o quanto antes o conceito da bênção dos filhos e das famílias numerosas,
particularmente nas classes mais afortunadas” (cit. por David Rock, La Argentina autoritária, Buenos
Aires, Ariel, 1993, p. 117).
servador e católico encontra-se parte da resposta ao enigma sobre a reação da esquerda argentina
— e do Che — diante do principal acontecimento do século no país: a chegada de Perón ao poder.
O pequeno Ernesto seguirá os pais, o antiperonismo juvenil dele será tão visceral como o de seus
progenitores, tão engajado como o de seus pares na universidade, tão lógico e a um só tempo
desligado da realidade argentina como o do resto da esquerda portenha. Apenas vinte anos mais
tarde ele conseguirá fechar o círculo, tornando-se amigo dos representantes de Perón em Havana,
em particular de John William Cooke,* e servindo de canal de ligação de Perón inclusive com
Ahmed Ben Bella, presidente da Argélia, ao solicitar-lhe ajuda para articular uma entrevista daquele
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com Gamai Abdel Nasser.
Quando a família Guevara partiu para Córdoba, em 1943, já estavam cristalizados os principais
traços da infância e adolescência do Che. A casa permanecia sempre aberta; por ela desfilavam
crianças, amigos, visitas e inclusive pessoas de passagem, tudo numa grande desordem regida
apenas pela hospitalidade para com os forasteiros e pela liberdade da criançada da família.
Velocípedes e bicicletas circulavam pelo interior da residência, almoçava-se a qualquer hora e não
faltavam convidados. Não sobrava dinheiro; parte do caos doméstico brotava das dificuldades
económicas do casal — nunca angustiantes, mas constantes —, assim como da ausência de
Ernesto pai e da indiferença de Célia por esse género de assuntos. A ampla liberdade para as
crianças — de almoçar a qualquer hora, convidar a multidão de amigos, guardar os pertences como
e quando quisessem — tinha como contrapartida uma certa falta de estrutura. As consequências
dessa desordem fizeram-se sentir mais intensamente quando os laços que uniam o casal Guevara
de Ia Serna passaram a se tornar frágeis.
Um ano antes de toda a família se mudar para Córdoba, Ernesto foi matriculado pêlos pais no
Colégio Nacional Deán Punes, escola secundária pública de qualidade, ligada ao Ministério da
Educação. Os membros da
(*) A amizade entre o Che e Cookè teve início quando este chegou a Cuba em 1960, tendo sido
recebido por Guevara no aeroporto de Havana. Foi selada em 25 de maio de 1962, em um ato
conjunto dos argentinos em Cuba, celebrando o dia da independência de seu país (cf. Ernesto
Goldar, “John William Cooke: de Perón ao Che Guevara”, Todo es historia, Buenos Aires, jun. 1991,
vol. 25, n” 288, p. 26).
elite local — à qual Ernesto pertencia por direito — costumavam estudar no Colégio Montserrat; os
da classe média emergente preferiam o Deán Funes. A escolha dos pais se revelou afortunada.
Ernesto conviveria durante cinco anos com jovens de diferentes origens sociais e profissionais.
Claro que não se deve exagerar; nos anos 40, Córdoba era uma cidade relativamente homogénea,
branca e burocrática, inserida em uma província agrícola ainda próspera e onde a segregação
geográfica dissimulava as inegáveis diferenças sociais. Porém sua população já disparara. Passou
de 250 mil habitantes em 1930 para 386 mil em 1947: um crescimento vertiginoso e nunca visto na
cidade. Os habitantes de renda mais baixa, recém-chegados do campo e dedicados à prestação de
serviços, se aglomeravam na periferia. Em alguns bairros, as moradias rústicas dos pobres
confinavam com a cidade “bonita”. A industrialização viria depois, com a chegada da indústria auto-
mobilística, em fins da década de 40.
Iniciava-se uma nova etapa para o Che, tanto na escola como na eterna luta contra a asma: em
Córdoba ele começou a participar ativamente de competições esportivas organizadas, e sobretudo a
jogar rúgbi. Era o esporte preferido da Argentina angiófila: violento e cerebral. Algumas partidas se
realizavam no Lawn Tennis Club, onde Ernesto também jogou ténis e golfe, e praticou natação. Ali o
imberbe estudante secundarista fez amizade com dois irmãos: Tomás, da mesma idade que ele, e
Alberto Granado, seis anos mais velho, com os quais viveria aventuras decisivas. Tomás foi o
grande amigo da adolescência; Alberto, o da juventude, das viagens e da abertura para o mundo.
Juntos fizeram o colegial, tiveram os primeiros casos amorosos e se viram expostos à efervescência
política que sacudiu a vida do país a partir de 17 de outubro de 45: a irrupção de Perón, dos
cabecitas negras e do autoritarismo argentino, católico e conservador.
O rúgbi tinha duas implicações para o jovem asmático, já marcado pêlos estragos pulmonares
clássicos na enfermidade respiratória. Por um lado, constituía um excepcional desafio. Já então se
sabia que, de todos os fatores que causam crises asmáticas, a prática de exercícios vigorosos
provoca a maior incidência de ataques.* Superar as crises e controlá-las com a vontade, um inalador
ou mesmo injeções de epinefrina, tudo isso logo se converteu em um tipo de comportamento que
Guevara adotaria até o último de seus dias. Ao mesmo tempo, o rúgbi atribui aos jogadores vários
papéis
(*) “O exercício físico é o desencadeador mais comum da asma. Oitenta por cento dos doentes de
asma sofrem algum tipo de estreiteza do peito, tossem ou ofegam ao se exercitar” (Thomas F. Plant,
Children withasthma. Nova York, Pedipress, 1985, p. 56).
e funções, uns mais exigentes que outros. A posição de meio-scrum* tinha para Ernesto a grande
vantagem de ser a mais estática e estratégica, menos móvel e tática. A posição escolhida
beneficiaria Ernesto de duas maneiras:
dando-lhe oportunidade de desenvolver seus dotes de líder e estrategista e permitindo-lhe jogar sem
ter de atravessar o campo durante a partida inteira. Isso não significa, evidentemente, que os
acessos não acontecessem. As vezes o surpreendiam ao longo da partida, obrigando-o a refugiar-
se na arquibancada, onde ostensivamente ele mesmo se aplicava uma injeção de adrenalina
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através da roupa, talvez para chamar atenção. O desafio era enorme e ao mesmo tempo
superável, dadas determinadas condições — uma combinação que haveria de perdurar na vida de
Guevara, tanto quanto a asma, pois, ao contrário do que ocorre em muitos casos de asma infantil, o
sofrimento do Che não se esvaneceu com a idade.
As explicações psicanalíticas para a etiologia da asma não têm aceitação entre os médicos;** a
doença é acima de tudo hereditária. As interpretações baseadas na angústia do doente, em sua
incapacidade de exteriorizá-la e na impossibilidade de enfrentar a ambivalência geradora da aflição
talvez sirvam mais para explicar a permanência da enfermidade que a sua origem. São
especialmente sugestivas para se compreender a evidente dificuldade do Che, ao longo de toda a
vida, com emoções ou desejos contraditórios, na família, na escola, nos amores e inclusive em
política. A asma seria a resposta do Che para uma angústia recorrente e primária, impossível de ser
exteriorizada ou verbalizada e que, contida, provoca o sufocamento. A angústia, por sua vez, surgia
e se exacerbava com a frequência e a ubiqüidade da ambivalência, inadmissível para Ernesto
justamente pela angústia que desencadeava. A única cura possível — que ele j amais alcançaria —
seria esquivar-se da ambivalência recorrendo à distância, à viagem e à morte.
Entre os fatores que provocam a asma figuram vários de origem fisiológica — as infecções virais, o
exercício físico, o pó ou qualquer elemento
(*) “O meio-scrum é uma ligação entre o ataque e a defesa [...] E o homem que inicia a jogada de
ataque [...] e o mais indicado para constituir-se em líder dentro do campo, pois cons-tantemente
deve dar ordens aos atacantes [...] Sua função não requer velocidade, mas controle de bola [...]
Exigia-se dele uma função estática, na qual não corria o risco de ficar sem fôlego” (Hugo Gambini,
Ei Che Guevara, Buenos Aires, Paidós, 1968, p. 48).
(**) “A asma provém de um complexo conjunto de fatores fisiológicos que ainda não
compreendemos em sua totalidade. Mas podemos afirmar com certeza que não é produto de uma
relação irregular entre mãe e filho ou qualquer outro problema psicológico, como foi sugerido no
passado” (Plant, op. cit., p. 62).
que cause alergia e as mudanças de clima —, aos quais se somam problemas emocionais: os
tormentos afetivos, a sensação de perigo iminente, a expectativa, situações conflitivas,
aparentemente sem saída e nas quais toda alternativa implica custos. O vínculo entre a dilatação
dos brônquios contraídos e a adrenalina leva situações que acarretam descargas endógenas de
adrenalina — como o combate, por exemplo — a evitar crises, enquanto outras, que requerem
decisões, podem desencadeá-las justamente em virtude da ausência de descargas endógenas de
19
adrenalina. Se essa interpretação está correta, ajuda em grande medida a elucidar a incapacidade
do Che para aceitar a presença simultânea dos contrários em sua vida: os problemas e o
distanciamento dos pais, a contradição intrínseca do peronismo, a ambiguidade da relação dele com
Chichina Ferreyra. Por fim, Guevara não poderia conciliar os imperativos da sobrevivência da
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Revolução Cubana com as épicas e notáveis aspirações humanistas e sociais que lhe quis incutir.
Com base em seus boletins escolares, ficamos sabendo que Ernesto era um estudante mediano,
tendo se destacado em humanidades. Em 1945, seu quarto ano de colegial, por exemplo, distinguiu-
se em literatura e filosofia;
obteve notas medíocres em matemática, história, química, e verdadeiramente desastrosas em
21
música e física. Sua total falta de ouvido tomou-se proverbial: não diferenciava ritmos nem
melodias, nem jamais se aventurou na dança ou no aprendizado de algum instrumento. Alberto
Granado contaria anos depois como isso se evidenciou em uma viagem que fizeram pela América
do Sul:
Tínhamos combinado que eu lhe daria um tapinha cada vez que pudesse dançar, e ele só havia
aprendido o tango, que se pode dançar sem ter ouvido. Era o dia do aniversário dele, e o Che fez
um discurso fantástico, que para mim provava que aquele rapaz não era um louco, que tinha alguma
coisa; ele dançava com uma indiazinha, enfermeira do leprosário do Amazonas. E então tocaram
“Delicado”, um baião que estava na moda e, além disso, era das músicas preferidas da namorada
que Ernesto tinha deixado em Córdoba. Quando lhe dei o tapinha, lá foi ele, dando os passos do
tango. Era o único. Eu não conseguia parar de rir, e quando ele percebeu ficou zangado comigo.”
23
Seu inglês também era sofrível: no quarto ano ficou com média 3, enquanto seu francês, aprendido
em casa com Célia, chegou a ser rico e fluente, quem sabe mais ainda rico. Contudo, o seu nível
educacional geral e a cultura do Che, segundo os companheiros, sobressaíam. Ele comprava livros
de todos os ganhadores do Prémio Nobel de literatura; discutia constante-mente com os professores
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de história e literatura. Tinha conhecimentos de que os demais nem sequer suspeitavam. Seus
resultados apenas satis
fatórios* deviam-se talvez ao acúmulo de atividades: os esportes, o xadrez (que jogaria a vida
inteira, adquirindo uma perícia notável), o primeiro emprego, no Departamento Provincial de Viação,
em Córdoba, e depois em Vilia Maria. Como disse seu pai, “era um mago do emprego do tempo”.”
Um episódio da época ilustra a generosa e obstinada vocação de Ernesto filho para superar o
abismo que o separava dos setores mais humildes da sociedade de Córdoba e rechaçar as
evidências mais flagrantes de injustiça. A rua Chile, onde residia a família Guevara, confinava com
uma das favelas mais pobres da cidade. Ali os excluídos e despossuídos, recém-chegados do
campo, viviam em casas de papelão e zinco, como em toda a América Latina. No monturo
vagabundeava um personagem de Dante: o chamado Homem dos Cachorros, um aleijado, privado
das pernas, que se arrastava em um carrinho de brinquedo, ladeado por um par de cães nos quais
descarregava toda a fúria que seu destino lhe inspirava. Toda manhã, ao sair do buraco na terra que
lhe servia de casa, açoitava os cães, que só com grande esforço conseguiam iça-lo até o nível da
rua. O rosto convulsionado e os ganidos dos animais anunciavam a aparição dele; era um
acontecimento no bairro. Um dia, as crianças da favela começaram a zombar do Homem dos
Cachorros e a apedrejá-lo. Ernesto e seus amigos, que literal e figurati-vamente viviam na rua de
cima, assistiram ao espetáculo e o interromperam. Ernesto exortou seus conhecidos da favela a dar
um fim naquilo. O Homem dos Cachorros, em vez de agradecer ao jovem Che, fulminou-o com um
olhar gelado, repleto de um ancestral e irremediável ódio de classe. Nas palavras de Dolores
Moyano, que relata o episódio, o disparate deu uma grande lição a Ernesto: os inimigos do homem
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não eram os meninos pobres que o apedrejavam, mas os meninos ricos que tentavam defendê-lo.
Ernesto aprenderia a lição apenas em parte.
Esses anos marcam um distanciamento na relação conjugal dos pais e o agravamento dos traços de
penúria e desordem já presentes em Alta Gracia. Data de então o romance — mais ou menos
conhecido nos restritos círculos de Córdoba, nos quais a família se movimentava — de Ernesto
Guevara Lynch com Raquel Hevia, cubana de beleza excepcional, conhecida na cidade como
mulher sedutora e alegre.** Não foi a primeira nem a última
(*) Há uma certa continuidade em suas preferências escolares: um boletim do primário, datado de
1938, atesta que sua melhor média foi em história, seguida por educação moral e cívica, enquanto o
desempenho em desenho, trabalhos manuais e música era precário, e os resultados em aritmética e
geometria, medianos (ver Korol, p. 35).
(**) “Raquel Hevia era fascinante. Era belíssima, e Ernesto estava encantado com ela” (Betty Feijin,
entrevista com o autor, Córdoba, 18/2/95).
das aventuras de Ernesto pai; como recorda Carmen, a prima enamorada do Che, “sabia-se que ele
27
era muito mulherengo; Célia sabia”.
Atriz de algum talento, a mãe de Raquel se instalara em Córdoba por motivos de saúde. Foi durante
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a guerra que teve início a relação com Ernesto pai. Apesar da notoriedade do caso — “Era um
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espetáculo em Córdoba” —, Guevara Lynch em certa ocasião levou a moça para visitar sua casa,
o que certamente não agradou ao Che nem a sua mãe. O incidente marcou a tal ponto Ernesto filho
que, alguns anos depois, quando em meio a uma conversa sua namorada Chichina Ferreyra citou o
nome da mulher, ele respondeu, cortante e irritado: “Nunca mencione esse nome na minha
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presença”.
Logicamente as tensões no seio do casal Guevara de Ia Serna perduravam e se agravavam, agora
afetando os cinco filhos, três deles já maiores. Como recorda Betty Feijin, contemporânea de
Guevara e por muitos anos esposa de Gustavo Roca, um advogado de Córdoba de quem ele se
tomaria amigo íntimo mais tarde, em Cuba:
A vida familiar era complicada. Lembro-me de quando nasceu Juan Martín, o menor dos irmãos de
Ernesto, e fui vê-lo. Lembro-me da casa onde viviam;
deparei com uma coisa que me pareceu tão desorganizada... dava uma sensação de pobreza, de
descuido. Célia era uma mulher muito inteligente, bastante atraente como pessoa, podia-se
conversar muito bem com ela, mas sentia-se que as coisas não iam bem... E ai, uma dessas coisas
que as crianças comentam: que Ernesto estava separado. Houve diversos períodos de grandes
divergências conjugais e de problemas financeiros. Inclusive viviam pobremente; bem do ponto de
vista sociocultural, mas com seriíssimas limitações económicas.*
Dolores Moyano desenvolveu uma tese sobre a vida doméstica da família Guevara nessa fase. Em
sua solidão, e diante das crescentes dificuldades dos filhos menores para se desenvolver em um
ambiente caracterizado já não só pela desordem mas também por apuros financeiros e pela crise do
casamento, talvez a mãe adoradora e adorada tenha sucumbido à tentação de pôr o filho mais velho
no lugar do pai. A primeira separação
(*) Feijin, op. cit. O pai do Che alude a essas “divergências conjugais” da seguinte maneira: “A
imprensa mundial [...] se pôs a fazer soar sua charanga de invenções e mentiras. Alguns
‘comentaristas’ chegaram a afirmar que em nossa casa minha mulher e eu sentávamos à mesa
cada qual com um revólver na cintura para dirimir qualquer discussão a tiros. Porém, nada disseram
sobre como nos complementamos em tudo o que se referisse à luta pêlos ideais políticos e sociais”
(Guevara Lynch, op. cit., p. 105).
propriamente dita dos Guevara — provisória, ambígua, relativa — só ocorreria em Buenos Aires, em
1947, mas em todo caso seu prólogo já estava em curso.* A complexidade da situação ficou na
memória de Carmen Córdova: “Era como se Ernesto [pai] tivesse ido embora, pois decidiu que iria,
mas logo reaparecia. Tampouco era uma relação de rompimento do casal ou o fim do casamento”.”
Em 1943 nascera o último filho do casal, juan Martín. Sua relação com Ernesto seria representativa
da adolescência em Córdoba e em seguida da mocidade portenha do Che. Nessa relação
comprova-se a teoria de Dolores Moyano: “Eu era como uma espécie de irmão-filho: Ernesto era
meu pai e meu irmão ao mesmo tempo. Levava-me para passear, carregava-me nos ombros,
32
brincava comigo e eu o via como meu pai”.
Nas outras tarefas da casa — e evidentemente não se tratava apenas de funções domésticas —
talvez Célia estivesse começando a solicitar de maneira inconsciente mas firme uma maior
responsabilidade de seu primogénito e preferido. Segundo um primo irmão de Ernesto, o Che entre-
gava sempre à mãe uma parte dos salários provenientes dos variados empregos que conseguira na
capital nessa época. “Tive a impressão de que de algum modo, pouco a pouco, ele começava a
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substituir o pai.” E provável que essa exigência não se verbalizasse nem chegasse a uma
formulação explícita; a comunicação entre mãe e filho admitia insinuações e meias palavras. Pouco
a pouco, em vista da crescente pressão materna, o jovem Che iria se distanciar; não no que se
refere ao carinho ou à dedicação aos pais e irmãos, mas fisicamente. A isso se deveria em parte o
início de suas viagens logo a seguir, com o posterior e interminável perambular pelo mun-
(*) Alguns biógrafos a situam algum tempo antes, em Córdoba. Assim, Marvin Resnick, em The
Black Beret, the life and mearúng ofChe Guevara (Nova York, Ballantines Books, 1970), afirma: “Em
1945, quando Ernesto ainda estava no colegial, os Guevara se separaram. O sr. Guevara mudou-se
para outra casa, mas via a esposa e os filhos todos os dias” (p.
27).JáDanielJames,emseuCrieGuevara:aí)iogTflprry (Nova York, Stein and Day, 1969), diz que a
separação se deu quando a família chegou a Buenos Aires, em 1947. Martin Ebon, em Crie: the
making ofa legend (Nova York, Universo Books, 1969, p. 15), concorda: a separação ocorreu em
Buenos Aires, em 1947. Por fim, Carlos Maria Gutiérrez, talvez o mais qualificado dos biógrafos —
embora seu texto jamais tenha sido pubi içado na íntegra —, afirma que a separação ocorreu em
1950 (LUÍS Bruschtein/Carlos Maria Gutiérrez, “Los hombres, Che Guevara”, Página 12, Buenos
Aires, p. l). Não é preciso dizer que nem o próprio pai do Che nem nenhuma das fontes oficiais ou
oficiosas cubanas menciona a separação do casal. Aparentemente, preferem manter imaculada, em
todos os sentidos possíveis da palavra, até a mais tenra infância de Ernesto Guevara.
do.* Esse enfoque serve também para explicar em parte a decisão inicial de estudar engenharia em
Córdoba, quando seus pais e irmãos já tinham se mudado para Buenos Aires. Porém não chegara
ainda o momento da separação. Por diversos motivos, que examinaremos depois, ele modificaria
seu plano original; seguiria a família até a capital, embora nunca tivesse chegado a lançar realmente
raízes em Buenos Aires.
Remonta a esses tempos de colegial o primeiro encontro do Che com Maria dei Carmen (Chichina)
Ferreyra. O namoro só se concretizou três anos mais tarde, em 1950, quando Guevara cursava
medicina na Universidade de Buenos Aires. Mas nesse período o grupo de amigos de Ernesto já
começa a convergir com o de Chichina: muitos primos e primas dela são também próximos de
Guevara, dos Granado e de outros do mesmo círculo de amizades. Convergência, não assimilação.
O Che veste-se de maneira diferente (até provocativamente desarrumada), tem gostos distintos e
uma cultura muito superior. Em alguma parte recôndita de sua psique assoma uma ténue
politização, nesse momento ainda revestida de um tom exclusivamente emocional: simpatia e
sentimentos nobres para com os menos favorecidos que ele; disposição de lutar por todos os meios,
mas sem saber muito bem para quê, nem por quê.
Um dos episódios mais citados da biografia do Che é o que Alberto Granado relatou: sua própria
detenção em Córdoba, em 1943, por ter assistido a uma manifestação estudantil antigolpista.
Quando Ernesto o visitou no comissariado de polícia, Granado pediu-lhe que convocasse com
outros amigos manifestações dos secundaristas. Segundo a versão consagrada, o Che respondeu,
atónito: “Sair em passeata para que caiam em cima de nós? Nem louco. Eu só saio se levar um
bufoso [uma pistola]”. Mais que um sinal premonitório da vocação revolucionária ou mesmo da
propensão para a violência, o incidente denota no Ernesto Guevara de dezesseis anos uma com-
batividade desnorteada e uma ideia da correlação de forças: não convém brigar se não se pode
34
ganhar.
(*) Jorge Ferrer, no relato pessoal anteriormente citado, diverge de maneira enfática dessa
interpretação de Dolores Moyano: “Em nenhuma de nossas conversas Ernesto mencionou ou disse
algo que sugerisse que se sentia pressionado por Célia em qualquer sentido, ou incomodado pêlos
problemas financeiros da família. Conhecendo Célia, estou convencido de que em nenhuma
circunstância ela teria incomodado algum dos filhos com seus problemas e muito menos com
problemas financeiros”. Convém recordar que os anos a que Dolores Moyano se refere são os de
Córdoha, enquanto Ferrer conviveu mais de perto com o Che em Buenos Aires. Em segundo lugar,
ela fala de impulsos mais inconscientes, menos literais; Ferrer busca uma literalidade que sem
dúvida não existiu, mas cuja ausência não invalida a análise mais sofisticada de Dolores Moyano.
Essa nascente consciência política seria inevitavelmente marcada pela influência dos pais, da
intelectualidade de Córdoba e da escassa atenção que o próprio Che consagrava a temas políticos
em suas conversas e momentos de ócio com os amigos. Ele não era um colegial apaixonado pelo
processo político, nem imbuído de paixões políticas particularmente vigorosas ou claras.* já
esboçava um viés de antiamericanismo exacerbado,
‘não de todo atípico na intelectualidade da época em Córdoba, “a douta”.** Também abriga um
indubitável sentimento antiperonista, mas proveniente sobretudo do ciclo antiautoritário que incluiu a
guerra da Espanha, a luta contra o nazismo na Europa e na Argentina, a oposição ao golpe de
Estado de 1943 e a rejeição de Perón por parte da velha esquerda da classe média intelectualizada.
Não se encontra em nenhum relato, por exemplo, a rea-ção de Ernesto ao que foi sem dúvida, na
memória dos argentinos que o testemunharam, o acontecimento político-social mais importante de
suas vidas até então: a jornada de 17deoutubrode 1945 em Buenos Aires, quando a classe operária
tomou as ruas para resgatar Perón da ilha onde se encon-
‘ trava preso e conduzi-lo pêlos ares, metafórica e fisicamente, à Presidência
da República. rf’4- Em fins de 1946 o jovem Guevara concluiu seus estudos secundários;
passou o verão trabalhando no Departamento Provincial de Viação em Vil-la Maria. Seu emprego,
assim como certa inclinação — mas não destreza — para a matemática e a decisão de seu melhor
amigo, Tomás Granado, de entrar na Faculdade de Engenharia de Córdoba, o induziam a seguir
essa carreira na cidade provinciana. Sua família já partira para Buenos Aires, ocupando a casa da
mãe de Ernesto Guevara Lynch. Porém, em março de 1947, a avó do Che, Ana Lynch, adoeceu, e o
neto foi à capital cuidar dela em seus últimos dias. Após a morte da avó, Ernesto tomou uma
decisão crucial: matricular-se na Faculdade de Medicina de Buenos Aires e voltar a viver com os
pais, em uma casa da rua Araoz. Esta, contudo, já não espelhava por
(*) Sabemos, pela reprodução de algumas páginas de seus cadernos filosóficos ou ‘Dicionário
filosófico”, que ele começou a ler Marx e Engeis em 1945, aos dezessete anos: pelo menos o Anti-
Duhring, o Manrfesto comunista e A guerra civil na França. No entanto, pelas anotações do jovem
leitor, trata-se de leituras de índole mais filosófica que política, ainda que tenham sem dúvida surtido
um efeito político.
(**) O garçom do Sierras Hotel, que Ernesto pai frequentara antes e ao qual Ernesto rilho retornava
com seus amigos em algumas ocasiões, recorda que ele nunca pedia Coca-Cola e, se a ofereciam,
recusava com veemência: “Ficava frenético”. A precisão da lembrança pode, contudo, deixar algo a
desejar (Francisco Fernández, entrevista como autor, Alta Gra-cia, 17/2/95).
inteiro um lar. Conforme narra euremisticamente Roberto Guevara: “Ernesto frequentava muito um
estúdio, bem velho, que tinha na rua de Para-guay, 2034, primeiro andar, A”.” Ou, como recorda um
primo de ambos, mais próximo de Roberto que de Ernesto na idade e na vocação: “Nos últimos
tempos seus pais já estavam praticamente separados; Ernesto, suponho, em geral não ia dormir em
casa. Quando estavam na Araoz ele tinha seu
estúdio de arquiteto, na rua de Paraguay, perto da faculdade de medicina, onde dormia”.’”
Ernesto residiria na Araoz até deixar a Argentina, em 1953. Portanto, chegará em definitivo a
Buenos Aires pouco mais de um ano depois de Perón tomar-se presidente; partirá para sempre da
pátria menos de um ano após a
morte de Evita Perón, em 26 de fevereiro de 1952, no início do ocaso do primeiro período de Perón
no poder.
2
ANOS DE AMOR E INDIFERENÇA: BUENOS AIRES, PERÓN E CHICHINA
O capítulo portenho de Che Guevara será simultaneamente de formação — não poderia ser de
outra maneira: os anos universitários, como as viagens, forment lajeunesse — e prelúdio da etapa
seguinte, decisiva e apaixonante. Abrangerá sua introdução no amor, a viagem e a profissão falida,
assim como um vislumbre adicional — não mais que isso —de despertar político. Essa etapa tem
lugar em um ambiente excepcional: a profunda transfiguração da Argentina que começa em
l°deoutubrode 1946, com a posse de J uan Domingo Perón no cargo de presidente constitucional da
República argentina.
Três explicações podem ser dadas para a decisão de Ernesto Guevara de Ia Serna de ingressar na
Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires. A primeira foi a morte de sua avó, Ana
Lynch, motivo que goza de numerosos adeptos, em virtude da coincidência no tempo com a
resolução do candidato a engenheiro, já matriculado na Escola de Engenharia, de estudar medicina.
* Ernesto, consternado pelo falecimento de sua única avó, com quem
(*) O primeiro adepto é evidentemente seu pai, que relaciona de modo direto a decisão de estudar
medicina com a morte da avó do Che: “Recordo que [Ernesto] me disse:
‘Velho, mudo de profissão. Não seguirei engenharia, vou dedicar-me à medicina’” (Ernesto Guevara
Lynch, Mi hijo el Che, Madri, Planeta, 1981, pp. 226-47). Sua irmã Célia partilha esse ponto de vista:
“Ele via que não podia fazer nada por ela, que estava morrendo, e então achou que devia estudar
medicina [...] por isso mudou de engenharia para medicina” (Célia Guevara de Ia Serna, depoimento
colhido em Adys Cupull e Froilán Gonzáiez, Emestito: vivo y presente. Iconografia testimoniaAi de ifl
infância y lajuventud de Ernesto Che Guerara Í928-1953, Havana, Editora Política, 1989, p. 111).
Outros biógrafos que enfatizam essa conexão são J. C. Cernadas Lamadrid e Ricardo Halac, que
afirmam: “Assim que a família Guevara chega a Buenos Aires, a avó Lynch adoece. Ernesto [...]
acompanha-a
mantinha desde pequeno uma relação estreita e carinhosa, reagiu como o jovem impulsivo e
obstinado que já então se tomara. Visando evitar que outros morressem do mesmo mal, ele se
propôs encontrar uma cura para a enfermidade que a matou (um derrame cerebral, segundo a irmã
do Che);* para tanto, não havia outro caminho a não ser estudar medicina. A explicação não é
absurda e, embora possa parecer insuficiente, é preciso outorgar-lhe certa importância.
A segunda explicação diz respeito ao câncer mamário detectado em Célia de Ia Serna Guevara,**
um diagnóstico que abalou profundamente seu filho.*** Conforme a versão relatada ao autor por
Roberto Guevara, irmão menor do Che, e Roberto Nicholson, primo do cirurgião que atendeu Célia,
a
dia a dia, até a morte. Essa experiência parece ter sido determinante; poucos dias depois ele decide
ficar na capital e começar a estudar medicina” (J. C. Cemadas Lamadrid e Ricardo Halac, Yofui
testigo: el “Che” Guevara, Buenos Aires, Editorial Perfil, 1986, p. 20). Dois admiradores argentinos,
Estehan Morales e Fabián Rios, em seu “Comandante Che Guevara” (Cuademos de América Latina,
1/10/68, p. 5), também atribuem o estudo da medicina a “um fato singular: a morte da avó paterna”.
A versão cubana raais ou menos oficial também é essa: “Em seguida ao fatal desenlace [da avó] [...]
ele se matricula na faculdade de medicina” (Atlas histórico, biográfico y militar de Ernesto Guevara,
Havana, 1990,t. l, p. 37).
(*) Célia Guevara de Ia Sema, op. cit. O pai também afirma que a causa moreis foi um derrame
cerebral, e não o câncer que vários biógrafos apontam (Guevara Lynch, op. cit., p. 247).
(**) Entre os partidários dessa tese figuram Andrew Sinclair: “A morte da avó de câncer, e a luta da
mãe contra a mesma enfermidade levaram o Che a ser doutor” (Andrew Sinclair, C/ie Guevara,
Nova York, Viking Press, 1970, p. 3). Vários outros biógrafos do Che mencionam a enfermidade da
mãe como o fator que o levou a cursar medicina (cf. Daniel James, Che Guevara: a biography, Nova
York, Stein and Day, 1969; Martin Ebon, Che: the makingofa legend. Nova York, Universe Books,
1969; Marvin Resnick, The Black Beret, the life and meaning ofChe Guevara, Nova York, Ballantine
Books, 1969). Um biógrafo alemão, cujo texto contém numerosos erros e claras fantasias (ver mais
adiante a nota da página 65), mas inclui também acertos interessantes, relaciona a enfermidade da
mãe com o empenho do Che em encontrar uma cura para o câncer em seu pequeno laboratório
doméstico com porquinhos-da-índia, mas não com a decisão de estudar medicina: “Quando sua
mãe teve de se submeter a uma operação, em virtude de um tumor canceroso no seio, ele construiu
um laboratório amador e começou a fazer experiências com porquinhos-da-índia, na esperança
otimista de desvendar o segredo dessa enfermidade” (Frederik Hetmann, Yo tengo siete vidas,
Madrid, Lóguez Ediciones, 1977, p. 23).
(***) “Célia, minha mulher, foi tratada com radioterapia para erradicar um tumor maligno. Um dia
disse-me que encontrara uma protuberância no seio [...] Os médicos [...] decidiram operá-la
imediatamente [...j Quando [Ernesto] se deu conta de que levavam a mãe para a sala de operações
e o resultado da intervenção era incerto, perdeu a serenidade (...] Seguiu passo a passo o processo
de cura de sua mãe” (Guevara Lynch, op. cit., p. 247).
primeira operação foi em 12 de setembro de 1945.* Extirpou-se uma parte considerável do seio em
razão da presença de um tumor maligno e “muito ati-vo”. A cirurgia foi um êxito e não teve maiores
consequências. Ocorreu, portanto, dois anos antes da decisão do Che de estudar medicina e sem
dúvida foi fundamental em suas opções. Em outubro de 1949 Célia queixou-se de que a cicatriz da
operação de 1945 a estava incomodando; em princípios de 1950 foi submetida a nova intervenção,
em que se extirpou todo o seu seio e extraiu-se o aparelho reprodutivo. Célia demorou muito mais
para se recuperar dessa operação, e dezessete anos mais tarde morreria de câncer, talvez por
causa de sequelas do tumor inicial. Não é difícil supor que um rapaz extraordinariamente apegado à
mãe, ao saber um belo dia que ela padecia de câncer, ainda que os médicos j ulgassem que a
enfermidade específica de Célia fosse curável, tenha sofrido um golpe devastador.** Se Ernesto
resolveu se dedicar à medicina para impedir que outros morressem como sua avó, maiores motivos
teria para tentar evitar uma hipotética (ainda que provável) recaída da mãe, figura muito mais
próxima e intensamente ligada a ele que Ana Lynch.
Nenhuma das fontes oficiais cubanas sequer menciona a enfermidade de Célia, muito menos os
efeitos que teve na vida, carreira e personalidade do filho. * * * Também não se fala da separação
dos pais do Che — parece que
(*) Esses fatos foram relatados ao autor por Roberto Guevara, o irmão mais novo do Che, durante
uma entrevista realizada em Buenos Aires, em 22 de agosto de 1996. Por sugestão dele, foi
possível consultar pessoas diretamente relacionadas com os médicos que atenderam Célia. A
pessoa que realizou a investigação por conta do autor também pôde corroborar alguns fatos junto a
Célia Guevara, irmã do Che. Em um depoimento escrito, Jorge Ferrer, amigo próximo de Ernesto
durante esse período, assinala que “quando descobriram o tumor de Célia, Ernesto já estava
cursando o segundo ano de medicina” (Jorge Ferrer ao autor, 11/3/96). Ferrer desconhecia a
existência do primeiro tumor e da primeira operação. Talvez isso se devesse a um certo segredo
que cercava a enfermidade de Célia. Dolores Moyano, por exemplo, acreditava que as repetidas
reclusões de Célia em seu quarto deviam-se a uma depressão (Dolores Moyano, entrevista com o
autor, Washington, DC, 26/2/96).
(**) “Quando Ernesto era estudante de medicina, sua mãe foi operada do seio em virtude de um
possível tumor maligno. O Che ficou tremendamente afetado” (testemunho de Armando March,
3
encontrado em Primera Plana, n 251, Buenos Aires, 17/10/67, p. 29).
(***) A enfermidade da mãe não é mencionada em nenhuma das obras cubanas dedicadas ao tema
que pudemos consultar: nem no Atlas histórico (op. cit.), nem Adys Cupull e Froilán Gonzáiez em
suas obras a respeito (L/n homhre bravo, Havana, Editorial Capitán San LUÍS, 1994), nem no
trabalho mais recente publicado com o apoio de fontes cubanas — Jean Cormier, com a
colaboração de Alberto Granado e Hilda Guevara, Che Guevara, Paris, Éditions du Rocher, 1995.
os heróis revolucionários não podem incluir em sua biografia episódios penosos ou amargos: os pais
não brigam nem adoecem, nem os tropeços de suas vidas têm maior influência sobre os filhos.
Algum dia haverá que se examinar por que o stalinismo, em qualquer de suas versões, seja a polar
ou a tropical, só reconstitui homens maus ou perfeitos, nunca seres humanos normais que, por seu
talento e pela época em que vivem, se transformam em personagens extraordinários.
Por último, há a tese de que Ernesto estudou medicina em busca de um alívio para sua própria
enfermidade respiratória.* Além do peso dos teste->• munhos em seu apoio,** ela possui uma
poderosa justificativa intrínseca. A especialização medicado Che orientou-se precisamente para as
alergias;*** suas investigações sob a orientação do dr. Salvador Pisani, na faculdade de medicina,
também permaneceram nessa área.**** Inclusive durante o período que passou no México antes de
embarcar na expedição do Granma — única fase em que ele exerceu sua profissão —, seu
esporádico e escasso trabalho médico girou em torno de problemas alérgicos e dermatológicos.
***** Não seria descabido pensar que sua própria doença contribuiu de alguma maneira para a
escolha de uma carreira para a qual ele não tinha nenhuma vocação aparente.
(*) John Gerassi, o divulgador da obra do Che nos Estados Unidos, menciona essa explicação, mas
confere-lhe maior importância como fator que levou Ernesto a especializar-se em alergias: “Mas o
Che quis tornar-se alergologista, em parte porque queria compreender e curar sua própria asma”
(John Gerassi, “Introduction”, em Venceremos! The speeches and writings ofChe Guevara, Nova
York, Clarion Books, 1968, p. 6).
(**) E a opinião de Caliça Ferrer, o grande amigo do Che na universidade, com quem realizou a
viagem que o afastou definitivamente da Argentina, em 1953. “Penso que a asma foi o que mais
pode ter influenciado em sua decisão de estudar medicina” (Carlos Ferrer, entrevista telefónica com
o autor, Buenos Aires, 23/8/96).
(***) Segundo seu amigo e colega de classe Jorge Ferrer, “Ernesto dirigiu seus interesses e esforços
para as enfermidades alérgicas [...] trabalhando e fazendo pesquisas sobre a asma” (Jorge Ferrer
ao autor, 11/3/96).
(****) O único trabalho de pesquisa que se conhece, publicado nesses anos, em colaboração com o
dr. Salvador Pisani, “Sensibilización de cobayos a pólenes por inyec-ción de extracto de naranja”,
apareceu na revista Alergia (cit. por Guevara Lynch, op. cit., p.253).
(*****) Veja-se, por exemplo, seu único trabalho médico publicado fora da Argentina, na Revista
Interamericana de Alergología, vol. II, Cidade do México, maio 1955, n° 4. Trata-se de um trabalho
sobre a origem alimentar de certas reações alérgicas (cf. “Ernesto,
médico en México”, em Testimonios sobre el Che, Havana, Editorial Pablo de Ia Torriente,
1990,p.111).
Portanto, é possível que um amplo conjunto de fatores tenha provocado a decisão do jovem Che.
De qualquer maneira, a determinação de seguir a carreira médica deveu-se a circunstâncias alheias
a um interesse taxativo pela profissão. Ele se lançou à medicina como quem busca um meio para
alcançar um fim— ajudar as pessoas, ajudar a mãe, ajudar a si próprio —, não por paixão
profissional ou vocação precoce, ainda que tampouco seja o caso de se ideologizar a posteriori a
opção. Como o Che confessaria anos depois:
“Quando me iniciei como médico, quando comecei a estudar medicina, a maioria dos conceitos que
hoje tenho como revolucionário estavam ausentes no repertório de meus ideais. Eu queria vencer,
como todo mundo quer vencer; sonhava ser um pesquisador famoso [...] mas naquele momento era
um triunfo pessoal”.’
Seu rápido desencanto com os estudos brotou sem dúvida desse feixe de motivações indiretas,
externas e ligeiramente confusas.* Ao contrário da versão oficial difundida mais tarde, e consagrada
pelo próprio Che em seu relato da sierra Maestra, ele perdeu desde muito antes o interesse pela
carreira de Hipócrates.** E, segundo a versão, o ainda imberbe guerrilheiro optou entre a medicina e
a revolução durante o primeiro combate posterior ao desembarque do Granma, em Alegria de Pio,
quando, vendo-se forçado a escolher entre carregar uma caixa de munições ou um estojo de
medicamentos, decidiu-se pela primeira. Em 1952, antes de terminar o curso mas já com quatro
anos de ciências médicas nas costas, ele escrevia à namorada Chichina Ferreyra que não pensava
em “engaiolar-se na ridícula profissão médica”.*** E os amigos lembram que, na verdade, como
estudante de medicina, suas notas não eram lá muito boas. Estudava mais algumas matérias de
(*) As características do ensino superior na Argentina também podem ter influído. Como assinala
Jorge Ferrer, “Ernesto estava saturado do ensino enciclopédico e quase irracional do curso de
medicina de Buenos Aires” (Jorge Ferrer, op. cit.).
(**) O texto foi “imortalizado” (Deus nos livre) no deplorável filme Che, protagonizado por Ornar
Sharif e Jack Palance, mas costuma ser citado por estudiosos de todo tipo. “Talvez tenha sido a
primeira vez em que se colocou em prática diante de mim o dilema entre minha dedicação à
medicina e meu dever de soldado revolucionário. Eu tinha diante de mim uma mochila cheia de
medicamentos e uma caixa de balas, eram pesadas demais para que eu transportasse as duas;
fiquei com a caixa de balas, deixando a mochila...” (Ernesto Guevara de Ia Serna, “Pasajes de Ia
guerra revolucionaria”, em Escritos y discursos, Havana, Editorial de Ciências Sociales, 1977, t. 2, p.
11).
(***) Ricardo Campos, relato encontrado em Claudia Korol, op. cit., p. 70. Ou, como recorda seu
primo Fernando: “Ele ia à faculdade para ser aprovado. Passava raspando” (Fernando Córdova
Itúrburu, entrevista com o autor, Buenos Aires, 23/8/96).
sua preferência, porém raramente se aplicava, exceto na pesquisa, para a qual “sempre teve uma
2
inclinação”.
Ernesto Guevara jamais seria um médico praticante, no sentido em que se é um advogado de
tribunal. Praticamente desde o início da faculdade orientou-se para a investigação clínica. Suas
classificações nas diversas matérias da carreira refletem esse fato, desde as poucas “distinções”
1
que obteve (em quatro das trinta matérias, oito “bons” e dezoito “aprovados”) até os “zeros”,
4
descaradamente confessados a Chichina, em neurologia e técnica cirúrgica. Como comentaria um
companheiro, “não creio que tenha cursado regularmente a faculdade; ele fazia mais matérias livres”
(com aprovação mediante um exame extraordinário). Desenvolvia reflexões sobre diferentes
aspectos da profissão, desde a forma de tratar pacientes estigmatizados — os leprosos da
Argentina e a seguir do Peru — até a socialização da medicina. Alberto Granado relata como,
durante uma visita ao leprosário de San Francisco dei Chanar, o Che insistiu repetidas’vezes na
necessidade de dar um tratamento mais humano aos pacientes, e sobretudo em “como era
5
importante para a psique dos leprosos o modo familiar como os tratávamos”. Granado narra
também como, em outra ocasião, no balneário de Miramar, dias antes da partida em viagem pela
América do Sul, da qual falaremos adiante, houve uma áspera discussão entre os amigos de
Chichina Ferreyra, Ernesto e o próprio Granado sobre as medidas adoradas pelo governo trabalhista
inglês de Clement Attlee, em particular a socialização da medicina. Um Ernesto arrogante e irónico
tomou a palavra, e durante quase uma hora defendeu com vigor a abolição da medicina comercial e
arremeteu contra a desigualdade na distribuição de médicos entre a cidade e o campo e o
isolamento dos médicos rurais.” Não é preciso dizer que escandalizou seus interlocutores.
Nesses anos de universidade em Buenos Aires perdurou a natureza multifacetada da vida e
personalidade de Ernesto. Se antes seus estudos se combinavam com o esporte, a leitura e a
doença, agora somaram-se à lista o xadrez (em torneios escolares como a Olimpíada Universitária
de 1948), as namoradas, as viagens, o estudo mais diligente da filosofia e, naturalmente, tal como
no último período em Córdoba, o trabalho assalariado para ganhar a vida. Viajava constantemente a
Córdoba de carona, 72 horas de estrada, para visitar os amigos ou a namorada. Ernesto filho
continuou a jogar rúgbi, agora no Atalaya Rugby Club de San Isidro, e, conforme as recordações
dos amigos, muito golfe. Começou a colaborar como funcionário na Seção de Abastecimento da
Prefeitura de Buenos Aires, onde deu continuidade, com
maior empenho, a seu “Dicionário filosófico”. Por fim, envolveu-se nos tumultuosos acontecimentos
políticos que convulsionaram a Argentina.
Talvez a primeira conexão da trajetória de Che Guevara com a de juan Domingo Perón tenha
ocorrido em 1946, quando, ao completar dezoito anos, coube ao Che alistar-se no serviço militar
obrigatório. Sua asma deve ter bastado para isentá-lo desse serviço por invalidez; de qualquer
modo, por motivos tanto académicos como ideológicos, o jovem naturalmente preferiria ser
dispensado que passar dois anos no quartel. O exército era naquele momento o bastião peronista
por excelência; ainda não se inaugurara a fase das grandes conquistas dos trabalhadores nem o
fortalecimento pré-corporativista do movimento operário que caracterizariam a época mais gloriosa
do peronismo. Para um jovem de família antiperonista, e além disso estudante universitário inquieto,
a ideia de fazer o serviço militar era um anátema. A melhor introdução ao “aperonismo” do jovem
Che e à distorcida controvérsia sobre seu antiperonismo ou filoperonismo reside na estranha
explicação que ofereceu, 25 anos depois, o próprio Perón acerca do fato de Ernesto não ter feito o
serviço militar:
Dizem que o Che esteve entre os que nos combatiam. Não é assim. O Che foi um homem próximo
das nossas posições. Sua história é muito simples: ele era um infrator da lei do alistamento. Se
caísse nas mãos da polícia, seria incorporado por quatro anos na marinha ou por dois no exército.
Quando estavam para apanhá-lo nós mesmos o avisamos. Então comprou a motocicleta e foi para o
Chile. O Che era um revolucionário, como nós. Quem não estava conosco era a mãe. A mãe foi a
culpada por tudo o que o pobre rapaz passou. O Che não foi embora do país porque nós o
perseguíamos.*
Obviamente, o general não foi o único a querer atribuir um peronismo póstumo ao comandante
Guevara em sua juventude. Seu pai tentou fazê-lo
(*) Cit. em Tomás Eloy Martínez, Los memórias dei general, Buenos Aires, Editorial Planeta, 1996,
p. 53. Martínez diz o seguinte sobre esse bizarro comentário de Perón: “O questionário que enviei a
Perón em 1970 pedia-lhe que esclarecesse esse dado. Como era possível que ele, presidente da
República e ao mesmo tempo general da nação, tivesse protegido um desertor do serviço militar?
Parecia-me estranho, e observei-o em minha carta. reron não respondeu a essa pergunta. Com um
traço de tinta, eliminou do rascunho das Memórias a referência ao Che. O relato, no entanto,
sobreviveu nas fitas gravadas, das quais é agora transcrito fielmente”. Naturalmente as afirmações
de Perón não têm pé nem cabeça; as datas não coincidem e até a sequência dos fatos está
distorcida.
em diversas ocasiões, assim como os compiladores cubanos de episódios e cronologias. Todo esse
afã, contudo, topa sempre com o mesmo obstáculo incontornável: nos documentos testemunhais da
época não aparece nenhum indício de simpatia, afinidade ou sequer interesse do polivalente estu-
dante de medicina pêlos acontecimentos políticos ou sociais de seu país. O Che não era anti- ou
pró-Perón; simplesmente o tema em seu conjunto parecia ser-lhe indiferente.*
Nas cartas a suas namoradas, amigos e familiares, as referências a Perón escasseiam, e brilham
pela ausência os comentários sobre os fatos da época. O Che limita-se a conjeturar em uma
ocasião, a sua namorada Chichina Fer-reyra, que “uma vitória por uma estreita margem de votos
não me convence;
nisso estou com Perón”; em outro momento, comenta, a propósito de uma projetada e frustrada
7
viagem dos dois a Paris: “prefiro os peronistas aos frades”. Os biógrafos do general provavelmente
discordariam da primeira observação; nada indica que Perón fosse adepto da segurança e que suas
margens (de vitória) tenham sido sempre tão amplas como parece supor o exigente mas
aparentemente fracassado namorado.
Os pais do Che eram, naquele momento, visceralmente antiperonistas. Guevara de Ia Sema, como
a grande maioria dos integrantes dos círculos estudantis de classe média, via com animosidade as
posturas ideológicas, académicas e autoritárias do novo regime. Antes mesmo do advento de Perón,
surgira inclusive um slogan classista entre os estudantes: “Livros sim, alpercatas não!”. Para muitos
argentinos pertencentes à inteiligentsia do país, a eleição de um militar em 24 de fevereiro de 1946
evocava a ascensão de Hitier ou Mussolini ao poder. Toda a esquerda argentina se uniu para apoiar
o principal concorrente de Perón, o candidato da União Democrática, José P. Tamborini, ainda que
este recebesse também o respaldo da embaixada dos Estados Unidos e de um vasto conglomerado
da oligarquia argentina.
A universidade, em particular, converteu-se em cidadela do antipero-nismo, sobretudo em razão da
crescente inclinação autoritária e do evidente antiintelectualismo do regime. A esquerda foi
devastada pelo peronismo:
nunca mais os partidos Socialista e Comunista recuperariam a base de trabalhadores — exígua
porém real — que tinham consolidado durante a
(*) Há pouco tempo apareceram na Argentina testemunhos e entrevistas evocando, por exemplo, a
presença do jovem Ernesto na marcha fundadora do peronismo, em 17 de outubro de 1945. Roberto
Guevara, no entanto, esclareceu categoricamente a um assistente de pesquisa do autor que
naquele dia seu irmão mais velho estava em Córdoba; para uma família antiperonista como a do
Che, trata-se de um dia difícil de esquecer.
Depressão. Mas a irrupção das massas operária» antes marginalizadas não foi o fator decisivo do
afastamento de importantes setores da intelectualidade, ou da antiga classe média. A causa central
residiu na continuidade que esses setores enxergaram entre a luta contra o nacionalismo de direita
dos anos 30, o franquismo da Guerra Civil espanhola, o nazismo e o fascismo durante a Segunda
Guerra Mundial e o autoritarismo militarista local.
A simpatia que o peronismo despertava no seio da classe trabalhadora e de consideráveis
destacamentos do empresariado nacional, por seu apoio às reivindicações populares, de um lado, e
seu nacionalismo económico, de outro, contribuiu simultaneamente para uma polarização extrema
da opinião pública. Tanto as correntes mais nacionalistas, alentadas pela expropriação das ferrovias
em mãos de empresas britânicas, como os “descamisados” de Evita Perón, organizados na
Confederação Geral dos Trabalhadores e entusiasmados com a promulgação de reformas como o
estabelecimento de um salário mínimo e aumentos salariais reais de mais de 50% entre 1945 e
1949, o sistema de pensões, o voto feminino, a seguridade social, as férias pagas, apoiaram o
regime. Daí sua força; daí a duradoura e às vezes inverossímil lembrança que gravou na memória
de milhões de argentinos.
Enquanto a receita gerada pelo boom das exportações do pós-guerra durou, a maioria das
demandas sociais podia ser atendida sem afetar ao mesmo tempo todos os grupos poderosos. A
virtual cisão entre a inteiligentsia e o estamento operário, entre a esquerda e sua pretendida base de
massas, entre a classe média e os setores mais desfavorecidos da sociedade, regeria o destino da
Argentina durante a metade seguinte do século. A exacerbação dos ânimos políticos e ideológicos,
assim como das posturas, marcaria o itinerário do país ao longo de décadas inteiras. O
surpreendente, na passagem de Ernesto Guevara por esse período, não seria seu presumido
antiperonis-mo, ao qual tudo o impelia. Tampouco seria de estranhar, ao contrário, uma reação
antagónica à de sua família, um alinhamento com o peronismo por rebeldia ou por empáfia com as
enormes esperanças que o governo suscitava entre as massas populares. Isso teria coincidido com
o caráter e a nascente sensibilidade do Che. O que chama atenção é seu aparente desinteresse
pêlos acontecimentos mais excitantes da história moderna de sua pátria.*
(*) Embora muitos biógrafos insistam no fato, apenas um, dos mais recentes e hostis ao Che, o põe
em destaque: “Surpreende-me e desconcerta-me a abstenção política de alguém como Ernesto
Guevara, em um momento como aquele. É um detalhe incongruente em uma vida marcada pela
congruência” (Roberto Luque Escalona, Y, el mejw de todos:
wojyafía no autorizada dei Che Guevara, Miami, Ediciones Universal, 1994, p. 54).
Como bem observa um biógrafo crítico da vida do Che: “Uma investigação exaustiva dos escassos
fichários dos grupos atuantes na época não permitiu que se descobrisse o nome de Guevara como
membro de nenhuma das organizações estudantis, tampouco do centro oficial [Centro Oficial dos
8
Estudantes de Medicina]”.
Nas dezenas de cartas escritas aos pais a partir de sua primeira viagem ao exterior, no diário que
manteve durante o período em que percorreu a América do Sul, nos testemunhos recolhidos por
pesquisadores cubanos ou argentinos entre familiares, amigos e colegas de universidade, não
9
existem comentários de qualquer natureza sobre a conjuntura daquele momento. Prevalece na
documentação um completo vazio de reflexões críticas ou lau-datórias do Che, seja acerca do
noticiário da atualidade — as reformas peronistas, o voto feminino, a ascensão de Evita, a reeleição
do general, a morte de Evita —, seja quanto a processos políticos mais abstratos. Apenas vários
anos depois, em uma carta enviada a sua mãe do México, em 1955 (ou seja, ao’i 27 anos), Guevara
pede informações: “Mande-me todas as notícias que puder, pois aqui estamos completamente
desinformados, já que os jornais só publicam os pi Alemãs entre Perón e o clero, e não ficamos
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sabendo de nada sobre a situação real”.
Como disse sua irmã Ana Maria, em relação ao peronismo, “ele não tomou partido nem a favor nem
contra. Manteve-se como que à margem”.” Sua filiação à Federação Universitária de Buenos Aires
(FUBÁ) era mais burocrática que engajada; o Che não era um ativista estudantil: “A participação
política de Ernesto foi circunstancial; ele não era um militante, mas compartilhava da ideologia da
12
FUBÁ”. Em suas conversas com os amigos, namoradas e outros acontecia mais ou menos o
mesmo; a política em geral e o peronismo em particular não apareciam como temas.* Segundo
3
Chichi-na, “pelo menos comigo ele não falava de política”.’
Como essa atitude não se coaduna com a imagem que muitos quiseram (construir para a juventude
do ídolo, foi preciso “resgatar” o Che para o peronismo. A operação de resgate se apoia
basicamente em uma carta escrita pelo Che no México em 1955, por ocasião do golpe militar que
derrubaria o general e o enviaria para um exílio de quase vinte anos. O próprio pai do Che
(*) Nas palavras de uma companheira de trabalho: “Na realidade, Ernesto não tinha uma definição
política quanto a Perón [...] Discutia com um peronista, atacando Perón, e logo defendia Perón
diante de um antiperonista (...] Não era peronista nem antiperonista. Era justo” (Liria Bocciolesi,
relato encontrado em Cupull e Gonzáiez, Emestito, op. cif., P. 164).
tenta reescrever a história ao sustentar que seu filho não era um militante antiperonista. Alega que o
foi, em criança, de brincadeira; quando completou 26 anos e tinha uma opinião política formada —
recorda Lynch — não vacilou em apoiar a massa operária peronista contra o golpe militar “gorila”
14
de 1955.
Com efeito, já no México, dez anos depois da ascensão de Perón, passado o apogeu da
popularidade e força deste, o Che parece ter substituído a moderada antipatia dos anos 40 pelo
regime populista por uma rejeição mais categórica, mais politizada, ao pronunciamento que pôs fim
ao suposto idílio dos “descamisados”. Em outra carta de 1955, dirigida a Titã Infante, sua amiga da
faculdade de medicina, Guevara esboça reflexões contraditórias sobre a derrubada de Perón:
Com todo o respeito que merece Arbenz [o presidente reformista guatemalteco recém-destituído em
um golpe patrocinado pela CIA], totalmente diferente de Perón do ponto de vista ideológico, a queda
do governo argentino segue os passos da Guatemala com uma fidelidade estranha, e você verá
como a entrega total do país e o rompimento político e diplomático com as democracias populares
15
será um corolário, conhecido mas triste.
No mínimo, um comentário confuso e contraditório. Coloca a um só tempo, entre Perón e Arbenz,
um paralelismo e um contraste ideológico e pessoal. Veremos adiante como a etapa guatemalteca
da formação política e ideológica do Che pode ser considerada o início de seu antiimperialismo (que
seria permanente) e ao mesmo tempo de sua fase comunista “pura e dura” (que persistirá até as
primeiras viagens aos países do Leste, no começo dos anos 60). A importância que ele atribui a
esse fato de “rompimento” com as “democracias populares” já é um sintoma da direção em que
caminharia sua crescente politização. Porém, esse comentário sucinto sobre o encerramento do
primeiro capítulo peronista da história contemporânea da Argentina não revela nem um interesse
acentuado pêlos acontecimentos nem uma análise especialmente profunda deles.
As semelhanças significativas entre os golpes militares que depuseram Arbenz e Perón são
escassas. O período nacionalista de Perón já chegara ao fim. E ainda que as massas guatemaltecas
não tenham defendido o governo de Arbenz porque ninguém lhes deu as armas para fazê-lo (versão
questionada por alguns mas que o Che adoraria), o povo argentino nem sequer tentou lutar por um
regime que em boa medida já o tinha abandonado. Por fim, a alusão do Che a um “estranho”
paralelismo entre os dois levantes sediciosos, baseada em um suposto envolvimento dos Estados
Unidos, conduz a várias
questões. A principal: embora tenha sido amplamente documentada a participação de Washington
na derrubada de Arbenz, não se pode dizer o mesmo no que se refere à “Revolução Libertadora” de
1955.
Na já citada carta a Célia, Ernesto de fato assume uma posição mais clara com referência ao regime
recém-deposto. Ele repete vários argumentos contidos na carta a Titã, embora de maneira mais
enérgica, talvez porque fosse endereçada a sua mãe. Comunica-lhe, com certa indignação, que
16
acompanhou “com alguma inquietude a sorte do governo peronista” e que “a queda de Perón me
17
amargurou profundamente, não por ele, mas pelo que significa para toda a América Latina”.
Reclama com desgosto à mãe, francamente antiperonista, que “você decerto há de estar muito
contente [...] poderá falar o que quiser, com a absoluta impunidade que o fato de ser membro da
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classe que está no poder lhe assegurará”. Em compensação, confessa quase tímido a sua tia
19
Beatriz: “Não sei bem o que acontecerá, mas senti um pouquinho a queda de Perón”.
Os comentários ulteriores do Che sobre Perón e suas desventuras não podem ser projetados
anacronicamente para o passado. Não são opiniões claras, e destacam-se pelas fortes insinuações
carregadas de emoção. Nem alteram a conclusão relativa à indiferença política do universitário
durante os anos de estrelato de Perón no poder. Só podemos especular sobre os motivos do
“aperonismo” juvenil de Guevara. Obviamente, o vínculo com os pais, em particular com Célia, cuja
animosidade contra o regime populista era muito mais veemente que a do marido, desempenhou um
papel crucial. É possível que a própria dificuldade para conviver com emoções e pontos de vista
conflituosos, que detectamos a propósito da asma, tenha tido uma função significativa no
distanciamento do Che da política universitária. Enfrentar o emaranhado de paixões contraditórias
que se desencadeavam ao seu redor nesse período deve ter sido um verdadeiro tormento para ele.
Com efeito, para um jovem dotado de uma sensibilidade social à flor da pele, alinhar-se com as
elites brancas, oligárquicas e católicas contra o levante das multidões morochas [escuras] e
desamparadas teria sido uma aberração. Encontrar-se do mesmo lado da barricada com os primos
e tios fazendeiros, com “gente como você [que] acreditará estar vendo a aurora de um novo dia”,
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como alfinetou, dirigindo-se à mãe, no calor da sedição: que golpe para o seu ego, o seu culto da
excentricidade e sua paixão pela justiça social! Alguém como o Che, empenhado em conhecer seu
país de ponta a ponta, em contato frequente com a pobreza e a marginalização evidentes da saúde
pública e da medicina, ofendido e ao mesmo tempo fascinado pela
opulenta e rançosa aristocracia da família e dos amigos de Chichina, não poderia desconhecer o
óbvio: “a revolução social que foi o peronismo . Até um furibundo antiperonista, o historiador Tulio
Halperín Donghi, o sublinha: “Sob a égide do regime peronista, todas as relações entre os grupos
sociais se viram subitamente redefinidas, e para perceber isso bastava caminhar pelas ruas ou
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pegar o bonde”. O Che caminhava pelas ruas e pegava o bonde.
No entanto, romper com Célia e com a família inteira em meio a uma situação de polarização
extrema era igualmente inaceitável. Mais ainda em um momento de grande debilidade da mãe —
doente, com um prognóstico incerto, separada de Guevara Lynch e angustiada pelas dificuldades
financeiras e a carga de criar quatro filhos sem inclinação para a tarefa —, distanciar-se dela era
inconcebível para o Che. Porém, qualquer sinal de simpatia pelo peronismo teria implicado um
rompimento: as opiniões apaixonadas da mãe e as tensões latentes da sociedade não tolerariam
soluções intermediárias. A única maneira para conciliar o amor filial do Che com sua sensibilidade
social e política consistia em refugiar-se no estudo e, cada vez mais, em viajar. * A única saída era
fugir, inesperada, banal ou heroicamente, já então e pelo resto da sua vida.
As viagens precoces e recorrentes do Che foram motivadas em grande medida pela curiosidade
insaciável e pelo fascínio por qualquer coisa que fosse diferente, estranha e misteriosa. A série das
já mencionadas ambiguidades que o rodeavam em Buenos Aires também podem ter contribuído
para isso: a saúde indefinida da mãe e a situação dúbia do casamento dos pais. O pai pernoitava
com frequência no estúdio de arquitetura da rua Paraguay, mas costumava voltar para a casa da
Araoz, almoçando diariamente ali com os filhos durante certos períodos. Só mais adiante conhecerá
sua futura esposa, Ana Maria Erra, uma professora que trabalhará com ele como secretária. “Nem
casamento, nem divórcio”: a frase poderia ter sido empregada pelo Che para descrever o vínculo
entre os pais nesses anos portenhos, da mesma forma que a usaria quinze anos mais tarde para
definir outra relação fundamental de sua vida, com Fidel Castro.
Um curto texto do Che que permaneceu inédito até 1992, intitulado “Angústia”, dá conta da sua
obsessão, desde cedo, pelo tema abordado.
(*) Assim o recorda Ricardo Campos, seu conhecido <Ja época: “Passava doze ou catorze horas
estudando, na biblioteca, sozinho. Só era visto de passagem [...] desaparecia durante longos
períodos e depois reaparecia” (Korol, op. cit., p. 72).
Redigiu-o em plena navegação pelo Caribe — escreveria diários de viagem até o último de seus
dias —, como enfermeiro da marinha mercante argentina: “Porém, desta vez o mar é minha
salvação à medida que as horas e os dias passam; ela, a angústia, me morde, invadiu minha
garganta, meu peito, contrai meu estômago, aperta-me as entranhas. Já não me agradam as
auroras, não me interessa saber de qual quadrante sopra o vento, não calculo a altura das ondas;
23
cedem os nervos, nubla-se a vista, amarga-se o caráter”.
Suas amigas captarão rapidamente esse mal-estar, assim como a ânsia por um outro tipo de vida.
Como diria Titã Infante, “Ernesto sabia que ali [na universidade] só poderia encontrar muito pouco
24
do que buscava”. Ou, nas palavras de Chichina: “Creio que ele me via como uma pessoa que seria
um peso em sua vida. Como se eu fosse um obstáculo para a vida que ele queria ter; a vida de
aventureiro. Ele se via como se estivesse preso, de certa forma, e talvez quisesse libertar-se
daquilo, estar livre, ir-se, e eu devo ter sida um estorvo naquele momento. Não sei para onde ele
queria ir. Queria viajar, andar pelo mundo, explorá-lo”.”
Os mesmos impulsos e paixões que marcaram suas relações com os pais e com o peronismo
refletem-se em seus relacionamentos com as mulheres durante aqueles tempos de Buenos Aires.
Haviam transcorrido, entre a juventude e o princípio da maturidade, cinco anos que encerraram a
única ligação amorosa duradoura que conhecemos de Guevara antes de unir-se na Guatemala a
Hilda Gadea, com quem se casaria no México. Não faltaram amores fugazes, contudo. De acordo
com seu irmão, ele “tinha sempre alguma namorada por perto. Era um rapaz forte como qualquer
26
um de nós, mas talvez tenha vivido mais intensamente suas aventuras amorosas”. Era um rapaz
de boa aparência, estatura mediana e rosto quase infantil, seguro de si e, segundo relatos dos
amigos, relativamente atrevido ou “atirado” com as mulheres. Seu primo, Fernando Córdova
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Itúrburuj lembra que “queria abraçar o mundo inteiro”. Era “divertido, o mais divertido do grupo”.
Ficaram os rastros de duas paixões menores entre 1947 e 1950. Uma teria sido pela prima Carmen
Córdova de Ia Serna, La Negrita, filha de uma irmã de sua mãe, que se enamorou por Ernesto
durante a juventude em Córdoba.* O idílio pode ter sido
(*) “Quando eu era adolescente [...] ficava na casa dos Guevara, na rua Araoz, falando de literatura
e de amor, porque, como costuma acontecer entre primos e primas, tivemos nosso romance.
Ernesto era um moço tão bom!” (Carmen Córdova Itúrburu, reportagem de Gabriel Esteban
Gonzáiez, Buenos Aires, 1994).
mútuo,* mas nunca alcançou sequer o estado de namoro platónico ou circunscrito pela presença
29
constante de acompanhantes. Outro namoro noderia ter se efetivado com alguém que de qualquer
forma foi uma amiga muito íntima: Titã Infante, a quem o Che enviou uma correspondência assídua
até os anos 60 e que se suicidaria nove anos após a morte do Che na Bolívia, desolada com a sua
desaparição.
0
Segundo a irmã mais nova de Guevara, Titã Infante esteve “muito apaixonada por ele”,’ embora
não soubesse “a que grau de intimidade chegaram as suas relações”.” O pai do Che e o irmão de
Titã Infante tampouco se atreveram a afirmar em público que a ligação entre eles tivesse sido mais
do que amizade, mas isso pode ter sido perfeitamente uma discrição puritana. O que se sabe é que
Titã Infante pertencia à Juventude Comunista e era colega de curso do Che na faculdade de
medicina. Tratavam-se pelo formal usted, pelo menos nas cartas. Graças aos relatos, e às
fotografias que se conservaram, ficamos sabendo que seus traços revelavam uma personalidade
vigorosa, embora ela não fosse dona de uma beleza deslumbrante. Era alguns anos mais velha que
o Che, e quando o conheceu, em 1948, a política ocupou claramente um lugar central no
relacionamento entre os dois, ausente em outras ligações do Che nessa época.
As cartas que trocaram quase não trazem palavras ou frases carinhosas. O tom epistolar do Che,
assim como o emprego do pronome usted, contrasta com o de suas cartas para Chichina Ferreyra.
Além disso, as tarefas de que o Che repetidas vezes incumbe Titã sugerem uma relação terna e
cheia de confiança que só nasce da proximidade mas encerra um toque burocrático.** Tudo indica
que, por mais enamorada que Titã pudesse estar do Che, a relação entre eles nunca ultrapassou os
limites platónicos. Os amigos do Che
(*) “Fernando Barrai, depois de muitos anos e já em Cuba, disse a Ernesto: ‘Sabe que eu estive
bastante apaixonado por uma prima sua, a Negrita’. E o Che respondeu: ‘Eu também’” (Carmen
Córdova Itúrburu, entrevista com o autor, Buenos Aires, 21/8/96).
(**) Por exemplo: “Gostaria muito de receber notícias suas sobre a cidade [...] Agora, Titã, vem a
seção do trabalho doméstico: mando-lhe o endereço de um médico peruano [...] tem interesse nas
classificações do sistema nervoso feitas por Pio dei Rio Ortega. Creio que seu amigo fez uma
modificação nisso e gostaria que você a conseguisse;
se não for possível, faça o seguinte: telefone para 719925, que é o número da casa de Jorge Ferrer,
grande amigo meu, e diga-lhe que procure em casa essa classificação [...] Se por sigum motivo isso
não der certo, pode ligar para o meu irmão Roberto, 722700, e pedir-lhe que mande o livrinho o mais
rápido possível [...] Bom, Titã, naturalmente estou deixando no tinteiro muito do que gostaria de ter
conversado com você” (Guevara de Ia Ser-^ a Titã Infante, Lima, 6/5/52, cit. em Cupull e Gonzáiez,
Cálida presencia, pp. 27-8).
que ainda conservam na memória seu modo de relatar-lhes as delícias e desventuras do namoro
com Chichina não lembram de ele ter falado de maneira análoga a propósito de Titã Infante.* A
correspondência entre o Che e sua amiga representa um acervo inestimável de alusões ao itinerário
político do jovem expatriado, mas não pode ser lida como uma série de cartas de amor que revelam
as paixões ou os sofrimentos crescentes do rapaz cujos tormentos internos estão apenas
começando a tomar forma.
Inversamente, a importância da relação de Ernesto Guevara com Maria dei Carmen Ferreyra se
justifica não só pelas diversas alusões do próprio namoro entre os dois, mas também pelo fato de
que o compromisso com Chichina é o único caso amoroso da vida do Che do qual possuímos até
agora referências escritas por ele próprio. E possível que Guevara tenha amado outras mulheres e
que existam escritos seus a respeito delas; mas por enquanto o testemunho e as consequências de
sua paixão por Chichina outorgam-lhe um posto hierárquico superior ao das demais. ,
Maria dei Carmen Ferreyra era uma espécie de filha predileta da oligarquia de Córdoba: bonita,
inteligente, rica (para os critérios de sua época e região) e refinada. Sua família era possivelmente a
mais tradicional do lugar — o antigo domicílio familiar era conhecido como Palácio Ferreyra —, e a
residência onde então viviam seus tios, hoje ocupada por ela, o marido e os filhos, em Malagueno, a
vinte quilómetros da cidade, é um hino à elegância e distinção. Ernesto e Chichina tinham se
cruzado antes, mas o romance só começou na noite do casamento de Carmen Gonzáiez Aguilar,
em Córdoba, no início de outubro de 1950.” Nas palavras de Chichina, ela ficou “totalmente
fascinada”:” “Encontrei-o naquela casa; ele vinha descendo as escadas e eu fui como que
fulminada. Ele produziu um impacto em minha pessoa, um impacto extraordinário, pois esse homem
vinha descendo as escadas e então começamos a conversar e passamos toda a noite conversando
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sobre livros, arte; não, arte não; livros”.
\\ Para Ernesto, também foi amor à primeira vista, a julgar pela primeira carta que enviou a
Chichina, poucos dias depois, de Buenos Aires. Começa com um verso de sua inspiração, de
intenção inconfundível e ao mesmo
(*) A única exceção consta em um relato de Rolando Morán, dirigente da organização politico-militar
guatemalteca EGP, que conheceu o Che quando os dois estiveram asilados na embaixada da
Argentina na Guatemala, em junho de 1954. Segundo Morán, Guevara deu-lhe o endereço de Titã
Infante em Buenos Aires, para que a procurasse ao chegar à capital argentina, referindo-se a ela
como sua namorada. (Rolando Morán, entrevista com Francis Pisani (inédita, fornecida ao autor por
Pisani), México, DF, 18/11/85.)
tempo dúbia: “Para uns olhos verdes cuja luz paradoxal anuncia o perigo de me perder neles”.” De
fato havia perigo, mas também luz e êxtase. Segundo Chichina, Guevara escreveu-lhe várias cartas
em Malagueno ao longo dos meses que se sucederam ao encontro, até que por volta da Semana
Santa do ano seguinte “veio uma vez para declarar-se formalmente”, declaração que Chichina
6
aceitou tremendo e que resultou no “primeiro beijo fugaz”.’ A partir dessa data as peregrinações de
Ernesto a Malagueno se tornaram mais frequentes, não com a regularidade que Chichina desejaria,
mas com crescente envolvimento da parte do Che. O namoro foi interrompido por algum tempo em
virtude de um primeiro afastamento de Ernesto — uma viagem como enfermeiro da marinha
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mercante, aventura cujo destino original era a Europa, “porque a Europa me atrai fortemente”.
No final do ano, duas evidências se impuseram ao namorado distante:
estava profundamente apaixonado por Chichina, porém sua sede de viagem e liberdade se opunha
a esse amor. Não fica de todo claro na correspondência ou nas lembranças de Chichina se Ernesto
se afastou porque a relação com ela não satisfazia suas expectativas ou se preferiu alegar pro-
blemas no relacionamento entre os dois para explicar sua partida, quando na realidade a decisão de
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iniciar a suposta “viagem sem volta” se deveu a motivos muito diferentes, sem vínculo com o
namoro. Esta última é a hipótese mais plausível: Ernesto levantou voo em razão dos impulsos que o
moviam, não por causa de suas desavenças com Chichina, ainda que estas de fato existissem. O
ressabiado pretendente usa sucessivamente as duas teses acima mencionadas como argumento; é
possível que ambas sejam certas e sinceras. Declara-se à namorada, por um lado: “Sei que a amo e
o quanto a amo, mas não posso sacrificar minha liberdade interior por você; significa sacrificar a
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mim mesmo, e eu sou a coisa mais importante que há no mundo, como já lhe disse”.
Evidentemente, o jovem — já dono de um elevado conceito sobre si próprio e o destino em que
desde então começa a se aventurar — vê a namorada como um obstáculo em seu caminho. Mas o
protesto era abstrato;
a separação se explica pela personalidade do Che, não pelas características e a intensidade do
relacionamento em si. E até certo ponto um dilema à Ia Corneille, ligeiramente presunçoso e repleto
de um romantismo ingénuo, no estilo de El Cid: quando o destino e o amor entram em conflito, o
primeiro sempre vence, já que o segundo se esvanece quando repousa sobre a indignidade ou a
abdicação. Rodrigo não seria digno do amor de Ximena se antes não vingasse a honra de seu pai,
assassinado pelo pai dela.
Por outro lado, Ernesto interpela de imediato o objeto de seu desejo com um pedido radicalmente
distinto, em um registro diametralmente oposto, agora passional e desinibido, em que a noção de
seu próprio destino desaparece por completo. Com efeito, ele mesmo passa desavergonhadamente
de um registro para o outro: “Além disso, uma conquista feita com base em minha presença
constante eliminaria grande parte de minha atração por você. Você seria a presa capturada após a
luta [...] Nossa primeira cópula seria um cortejo triunfal em homenagem ao vencedor, porém sempre
haveria o fantasma de nossa união dentro e fora dela, porque, sim, porque era a coisa mais correta
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ou ‘exótica’ a fazer”.
O fosso profundo que separa o Che de Chichina talvez ajude a decifrar o enigma. Na diferença
residia obviamente parte da atração entre eles: como vimos, a família da moça era rica, enquanto o
caráter déclassé da situação financeira do Che já era então visível. No modo de vestir, nas
maneiras, na visão de vida e posição social das famílias, nas amizades e personalidades, nada nos
namorados os unia, exceto a sedução exercida pela diferença. Para Chichina o namoro com o Che
foi passageiro; nada em sua vida posterior traiu sua antiga paixão. O Che, em compensação, iniciou
com essa ligação um longo percurso: de Malagueno a La Higuera, seria sempre guiado pelo
desconhecido e pelo diferente.
A descrição feita por Chichina da atitude permanentemente provocadora da parte do namorado
reforça a impressão de uma atração de pólos opostos. Deliberada e maliciosamente, o Che
exasperava repetidas vezes vários familiares e amigos da moça — não todos: segundo Chichina
sua tia Rita e seu tio Martín gostavam muito dele. Claro: vestia-se mal e de maneira desleixada, e
não apenas para provocar ou chamar a atenção dos outros. Carente dos recursos necessários* para
competir com a elegância de seus rivais na disputa da atenção de Chichina, ou dos demais
integrantes do grupo de amigos e primos da moça, fazia da necessidade virtude, e ostentava com
prgulho roupas que envergonhavam ou enfureciam a sua fina e graciosa acompanhante. Como ela
diz:
Não era maldade mas havia coisas que me irritavam. Lembro que uma vez, em Miramar, fiquei
muito irritada quando fomos ao cassino. Não sei como se arranjaram, mas Granado estava muito
bem vestido, e Ernesto, acho que ele
(*) Dolores Moyano conta como as dificuldades da família tinham se agravado: o pequeno Juan
Martín dormia em um caixote, e em certa ocasião Ana Maria Guevara não quis ir à festa de
aniversário de Dolores porque não tinha sapatos “apresentáveis” (Dolores Moyano Martín, entrevista
com o autor, Washington, DC, 26/2/96).
estava mais ou menos bem vestido. No início isso não me incomodava, mas dessa vez incomodou.
Um amigo (ou eu mesma) lhe emprestou um casaco. Depois tínhamos de pagar o ingresso, e ele
fez alguma coisa para que não precisássemos pagar e entrássemos os três sem pagar, o que nos
levou a ser insultados. Depois fomos a vários lugares onde ele não se entendia com as pessoas, e é
terrível quando dois grupos não se entendem. Nosso grupo em Miramar não era muito chique nem
sofisticado, eram pessoas normais, comuns, da burguesia de Buenos Aires, mas ele odiava esse
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tipo de gente.
A aparência desmazelada do Che persistiria. O homem que cativaria milhões com o encanto do
olhar, do sorriso e dos gestos, nunca se esmerou em cuidar da vestimenta. A camisa fora das
calças, os sapatos desamarrados e o cabelo despenteado se converteram em seus sinais distintivos
desde menino e o acompanhariam por toda a América, até a morte. Mais tarde, naturalmente,
viraram hábito. Mas nos elegantes círculos frequentados por Chichina e por ele, implicavam certo
desafio.
Além do mais, suas provocações não se restringiam ao modo de vestir. José Gonzáiez Aguilar
recorda uma cena típica, não pelo conteúdo da conversa (a atitude de Winston Churchill perante à
socialização da medicina, pouco após seu retorno ao poder em 1950), mas pela atitude do Che. Ele
discutiu com o pai de Chichina durante um jantar em Malagueno e, quando d. Horacio Ferreyra
ergueu-se da mesa exclamando: “Não, isso eu já não posso tolerar”, Ernesto fez pouco-caso,
escandalizando até seu amigo: “Eu olhei para ele, pensando que se haveria alguém que tinha de ir
embora esse alguém éramos nós, mas ele se limitou a sorrir como um menino travesso e pôs-se a
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mordiscar um limão, com casca e tudo”.
O fosso que separava o Che de Chichina e ao mesmo tempo o fascinava, condenava-o ao
distanciamento e eventualmente à fuga. Para manter o relacionamento e vê-lo amadurecer, Ernesto
precisava reconciliar os opostos, medir a hostilidade das famílias e acalmar os ânimos. * O namoro
naufragaria nos recifes das viagens do Che; o mesmo aconteceria com seus dois casamentos.
Apenas um ano depois de iniciar o namoro, ele partiu. Não foi,
(*) Existem versões de que Ernesto propôs a Chichina que se casassem, morassem juntos ou, em
todo caso, fizessem uma viagem a dois. Frederik Hetmann (op. cit., pp. 24-6), em especial, elabora
diversas hipóteses, supostamente baseado em cartas trocadas por Ernesto e Chichina. Em uma
comunicação ao autor datada de 6 de junho de 1995, em Malagueno, Chichina desmente tanto as
cartas quanto as propostas de casamento, viagem ou coabitação, assim como uma série de alusões
de Hetmann ao pai dela. As fontes das cartas citadas por Hetmann — o jornal El Diário, com data de
12 de setembro de 1969 — tampouco contêm qualquer carta ou referência à questão.
naturalmente, a primeira de suas viagens. Antes, no início de 1949, Guevara percorreu as províncias
do Norte de seu país em uma espécie de bicicleta motorizada que ele mesmo projetou e construiu.
O itinerário incluiu uma visita ao leprosário de San Francisco de Chanar, onde, como vimos, ele
entrou em contato talvez pela primeira vez com o sofrimento extremo. Passou por Santiago dei
Estero, Tucumán e Salta, onde o vislumbre da fartura e da exuberância do trópico o fascinou —
assim como tudo o que era exótico o encantaria por toda a vida. A viagem permitiu-lhe também
romper com as formas ortodoxas de turismo; ele assumiu a postura do que hoje chamaríamos de
mochileiro:
Não cultivo os mesmos gostos que os turistas [...] o Altar da Pátria, a catedral, oprecioso púlpito e a
virgenzinha milagrosa [...] asede da Revolução [...] Não é assim que se conhece um povo, Seu
modo de viver ou sua interpretação da vida, aquilo é uma luxuosa cobertura; a alma de um povo se
reflete nos enfermos dos hospitais, nos reclusos da prisão, no andarilho ansioso com quem se
4
conversa enquanto se observa o turbulento caudal do rio Grande embaixo. ’
Ele voltou para Buenos Aires no fim das férias do verão de 1949, a fim de retomar os estudos de
medicina, mas no final do ano estava outra vez insatisfeito. Empreendeu uma nova viagem, agora
trabalhando. Já havia registrado em seu primeiro diário de viagem, no tom hiperbólico que nunca o
abandonaria, que estava mudando: “Percebo agora que amadureceu em mim algo que crescia fazia
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tempo em meio ao vaivém cotidiano: o ódio da civilização”. Em dezembro de 1950 inscreveu-se
como enfermeiro do Ministério da Saúde Pública na marinha mercante argentina. Durante os
primeiros meses de 1951, viajou em petroleiros e cargueiros para o Brasil, Trinidad e Tobago,
Venezuela e, com mais frequência, para Comodoro Rivadavia e para o Sul da Argentina. Mas não
foi o que ele sonhara: em uma carta à mãe, queixou-se de que permaneciam muito tempo a bordo,
ao passo que não havia tempo suficiente para visitar os portos de escala.* As viagens, porém,
abriram-lhe novos horizontes, confirmaram seu gosto pelo exótico e seu tédio pelo conhecido. Como
escreveu à sua tia Beatriz, primeiro de Porto Alegre, e depois de Trinidad e Tobago: “Desta terra de
belas e ardentes mulheres, mando um abraço compassivo para Buenos Aires, que cada vez mais
me parece aborrecida [...] Depois de superar mil dificuldades, lutando contra os tufões, os incêndios,
as sereias com
(*) “Foi uma viagem confortável, mas não o convenceu; apenas quatro horas descarregando
petróleo em uma ilha, quinze dias de ida e quinze dias de volta” (Entrevista de Célia Serna de
Guevara a Julia Constenia, publicada em Bohemia, Havana, 28/8/61).
seu canto melodioso (aqui as sereias são da cor do café), levo como recordação desta maravilhosa
w
ilha [...] um coração saturado de ‘belezas’ “
O brilho distante de outras realidades era irresistível para o Che. Adorava Chichina porque destoava
de seu meio, e ela de suas fantasias. Encantava-se com o trópico, o exotismo negro e mulato, por
contrastarem com sua branca Buenos Aires classe-média. Envolvia-se nas vicissitudes do sofri-
mento humano em oposição à sua folgada existência de estudante universitário. Mais uma vez ele
iria fugir.
Embora o Che tenha magoado Chichina, insinuando de passagem que sua próxima viagem pela
América Latina com Alberto Granado “não teria retorno”, ao mesmo tempo ele prometeu voltar. Suas
cartas e o diário de viagem que manteve de Miramar à Venezuela sugerem que ele julgava que a
distância não destruiria necessariamente o vínculo entre eles. Da mesma forma que pensava em
regressar para concluir os estudos, imaginava uma vida com Chichina — com ceticismo e reserva,
mas sem descartar inteiramente essa possibilidade. Até o nome que deu ao cãozinho com que
presenteou a namorada ao deixar Miramar — Comeback — anunciava sob qual bandeira ele
pensava navegar naqueles meses: o retomo não estava excluído, afinal de contas.*
Como tantas vezes ocorreria nos anos seguintes, porém, as próprias ideias dele sobre o destino e o
futuro se chocaram com os desejos e decisões de outros. Foi Chichina que por fim rompeu o
relacionamento entre eles e, em um certo sentido, desfez também o vínculo do Che com seu país de
origem. Tendo decorrido apenas um mês após a despedida em Miramar, Chichina toma a decisão
dilacerante, pressionada pela mãe mas, à sua moda, concordando: “Tive de escrever uma carta a
Ernestito, praticamente obrigada por mamãe. Lembro que me fechei na biblioteca de Chacabuco e
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chorei muito enquanto a escrevia”. Na carta, ela acabava com o namoro. Ernesto a recebeu, nos
remotos lagos de Bariloche, como a uma ferida na alma: “Eu lia e relia a inacreditável carta. Assim,
de um golpe, desmoronaram todos os sonhos de retorno, condicionados àqueles olhos que me
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viram partir de Miramar e sem nenhum motivo aparente [... ] era inútil insistir”. Alberto Granado
contou a Chichina, 45 anos mais tarde, que nunca vira Ernesto tão “desarvorado” e “comovido”
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como quando ele recebeu a carta fatal. Na resposta a Chichina (a penúltima carta que lhe
escreveria), o peregrino Ernesto Guevara verbalizou um “motivo” que sem dúvida co-
(*) A própria Chichina lembra que “quando Ernesto se foi, nosso namoro continuou firme, e a mim
parecia absolutamente normal” (Chichina Ferreyra ao autor, 7/3/96).
nhecia desde antes, ao menos inconscientemente. Ele descreveu com precisão o momento em
curso na vida de ambos: “o presente em que nós dois vivemos um flutuando entre uma admiração
superficial e laços mais profundos que a ligam a outros mundos, outro entre um carinho que acredita
ser
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profundo e uma sede de aventura e novos conhecimentos que invalida esse amor”.
Começou aí o ciclo de rompimentos e despedidas de Che Guevara. De agora em diante sua vida
seria uma sucessão de afastamentos afetivos, geográficos e políticos. Eles explicam sua perpétua
fuga, primeiro na praia em Miramar e depois nas salas de aula da faculdade em Buenos Aires. Nos-
so protagonista não apenas foge da contradição; é um personagem em busca de uma tragédia. *
3
OS PRIMEIROS PASSOS: NAVEGAR É PRECISO, VIVER NÃO É PRECISO
No início de janeiro de 1952 começou a primeira grande viagem de Che Guevara; ele visitaria cinco
países, ao longo de quase oito meses, em companhia de seu amigo de Córdoba, Alberto Granado.
O Che descobriria um continente ainda desconhecido para ele, o exotismo pelo qual ansiava e uma
certa maturidade, tudo de um só golpe. Essa viagem representaria para Guevara algo mais que um
rito de iniciação e algo menos que uma ruptura definitiva com seu país, sua família e sua profissão.
Foi, de certa maneira, como uma pré-estréia cinematográfica, no estilo da Revolução Russa de
1905: o filme propriamente seria exibido apenas um ano depois.
Ele partiu de Córdoba e fez uma breve parada em Miramar, em plena alta temporada do verão, para
despedir-se de Chichina. A semana na praia, a julgar pelo diário do viajante enamorado, foi idílica:
“Foi uma lua-de-mel contínua, com aquele leve sabor amargo da despedida próxima, que era adiada
dia a dia, até completar oito dias. Cada d ia eu gostava mais da minha outra metade, ou a amava
mais. Nossa despedida foi longa, pois durou dois dias, e chegou bem perto do ideal”.*
(*) Ernesto Guevara Lynch, Mi hijo el Che, Madri, Ediciones Planeta,1981, p. 280. O pai do Che cita
textualmente o diário do filho, reconstruído com base em cadernos que, segundo ele, encontrou
tempos depois na casa da família. Anos mais tarde, a viúva de Che Guevara, Aleida March,
transcreveu os diários e organizou a publicação das notas de viagens do Che. Por algum motivo, a
frase citada (sobre a semana em Miramar) não aparece na versão publicada por Aleida March: ou o
próprio Che não a incluiu no diário quando o reescreveu, ou a viúva decidiu suprimi-la. Chichina
lembra que José Aguilar, o qual viveu muitos anos em Cuba e continuou frequentando a família do
Che, contou-lhe que Aleida sentia-se incomodada com o fato de o diário de Ernesto falar da
namorada argentina (carta de Chichina Ferreyra ao autor, 22/8/96).
A intenção inicial do Che consistia em fazer todo o percurso em uma motocicleta Norton, batizada
com o nome La Poderosa II, aproveitando a experiência da viagem pelas províncias do Norte da
Argentina. O itinerário escolhido incluía o cruzamento do Chile pelo Sul dos Andes, atravessando
San Carlos Bariloche pela região dos lagos; dali iria para Temuco e em seguida para Santiago. Nem
tudo correu conforme o previsto. Já nas primeiras tentativas de empreender a passagem dos Andes
a Norton deu sinais de cansaço e relutância em seguir adiante. Ao cabo de repetidas avarias e con-
sertos, foi preciso guindá-la a um caminhão de mudanças em Los Angeles, povoado do Sul do
Chile; por fim, foi abandonada em Santiago. Assim, a viagem de moto e o diário não existiram na
verdade. Só uma pequena parte da jornada foi feita sobre duas rodas.*
Justamente graças ao diário que o Che manteve ao longo da odisseia, e aos incontáveis relatos
publicados por Granado, dispomos de uma quantidade considerável de testemunhos, recordações e
notas dos dois jovens exploradores. Suas aventuras, que abrangem desde a tentativa do Che,
induzido pelo álcool, de seduzir a esposa de um mecânico chileno em Lau-taro, até as peripécias
próprias de uma valorosa defesa contra “tigres”, assaltantes e meliantes diversos nos cumes dos
Andes, contam uma história de despertar para a liberdade.
Nos relatos das aventuras e tribulações surge uma primeira pedra angular do futuro mito do Che: a
realização da fantasia. A dupla de rapazes fez mais ou menos tudo o que se propôs. Visitaram as
ruínas de Machu Picchu e os leprosários do Peru, assistiram ao pôr-do-sol às margens do lago
Titicaca, navegaram o Amazonas de balsa, atravessaram o deserto de Atacama à noite e
contemplaram as neves eternas do altiplano peruano. Conversaram com mineiros comunistas em
Chuquicamata e com enigmáticos indígenas milenares nos ônibus que serpenteiam pêlos picos
andinos. Uma viagem como essa era o sonho de todos os jovens do mundo do Che, o das universi-
dades e das classes médias do pós-guerra, tanto na América Latina como, na Europa ou na
América do Norte: o sonho da aventura e da distância, que não
(*) A avaria da moto foi uma bênção disfarçada, como bem notou Alberto Granado:
“E indubitável que a viagem não seria tão útil e proveitosa como foi, como experiência pessoal, se a
moto tivesse resistido [...] Isso nos deu a chance de travar conhecimento com o povo. Trabalhamos,
arrumamos empregos para poder continuar viajando. Assim, fomos transportadores de mercadorias,
carregadores de sacos, marinheiros, seguranças e médicos, lavadores de pratos” (Alberto Granado,
entrevista com Aldo Medrón dei Valle, Granula, Havana, 16/10/67, p. 7).
mudou muito depois de quase meio século. Não é mera casualidade o fato de que, trinta anos após
sua morte, as obras mais lidas do Che sejam dois “diários de viagem”, o da América do Sul e o da
Bolívia.’ Em algum nicho do imaginário social dos anos 60 — e dos 90, quando se redescobre o Che
—, assoma a identificação da saga de Guevara com um road book ou um road movie: Jack Kerouac
no Amazonas, Easy rider nos Andes.
2
O texto do Che foi transcrito com base em suas notas “mais de um ano” depois de a experiência ter
acontecido. O costume que se iniciou aí foi mantido até a morte de Guevara na Bolívia: ele escrevia
duas vezes, primeiro o rascunho, durante a viagem, e a seguir passando a limpo e recapitulando os
fatos. O mesmo sucederia na sierra Maestra, com Passagens da guerra revolucionária, e no Congo,
onde escreveria um diário, até agora desconhecido, que seria usado como matéria-prima para a
elaboração de outro texto.
Os relatos e reflexões do texto não constituem, portanto, nem apontamentos espontâneos nem
lembranças precisas. Daí seu grande valor para o biógrafo, mas também o perigo que encerram.
Como documentos, são inestimáveis. Como fontes, devem ser esquadrinhados para que se possam
corrigir o esmero estilístico de um autor fascinado pela escrita, as reelaborações descritivas de um
grande narrador em potencial e deslocamentos de ênfase para outros acontecimentos ou
lembranças recuperadas no caminho, de sequências e hierarquias recriadas pelo tempo e pela
distância.
A julgar por esses relatos, a politização do Che crescia a passos largos, mas nem sequer se
aproximava da de um aspirante a revolucionário. Ainda persistia nele uma visão moral — imberbe,
se se quiser — da política. Sua sensibilidade à pobreza, à injustiça e à arbitrariedade tem um peso
muito maior que a cultura ou o conhecimento abstraio. Seu enfoque dos fatos permanece ingénuo e
incompleto: a indignação e o senso comum encobrem sérias deficiências de análise. Tomemos por
exemplo a seguinte passagem, que descreve o tratamento que o Che procurou dispensar a uma
asmática idosa, freguesa de uma cantina em Valparaíso:
Ali, naqueles últimos momentos de uma gente cujo horizonte mais longínquo sempre foi o dia de
amanhã, capta-se a profunda tragédia que se encerra na vida do proletariado de todo o mundo; há
nesses olhos agonizantes um humilde pedido de desculpas e também, muitas vezes, uma súplica
desesperada de consolo, que se perde no vazio, como se perderá em breve o corpo deles na
magnitude do mistério que nos rodeia. Até quando perdura essa ordem de coisas baseada em um
absurdo sentimento de casta é algo a que não posso responder, mas é hora de os governantes
dedicarem menos tempo à propaganda das virtudes de seus regimes e mais dinheiro, muitíssimo
mais dinheiro, às obras de utilidade social.’
Criava-se e consolidava-se uma conexão entre a vontade de ajudar o próximo (em geral pacientes)
e uma visão mais ampla da “ordem das coisas”. A miséria e o desespero que brotam da
desigualdade e da impotência dos deserdados da terra afligem o Che, mas ele alcança um nível de
sofisticação em que estabelece um vínculo causal entre o destino deplorável do “proletariado de
todo o mundo” e um “absurdo sentimento de casta” — ou seja — o status quo económico, político e
social. Porém, o remédio que propõe permanece ainda por demais limitado. E um típico lamento de
classe média, imbuído da visão mais simplista: que os governantes parem de gastar em sua própria
exaltação (como Perón às vésperas da morte e da glorificação apoteótica de Evita) e prestem mais
atenção nos desvalidos. Pouco se fala do motivo por que os governantes agem como agem, ou do
que pode ser feito, além da fórmula ritual de que eles deveriam deixar de proceder como de cos-
tume. Eis-nos diante de um apelo moral, surgido de uma postura ética e individual diante do estado
de coisas dominante. Com o tempo, a perspicácia política de Ernesto Guevara se direcionará e
ganhará a complexidade característica de um líder. Contudo, talvez nunca perca de todo essa
inocência original, a que provém do encontro do estudante de medicina com a dor e o sofrimento, e
estranhamente mas também para sempre, de um certo distanciamento, uma posição marginal
deliberadamente assumida.
A lúcida auto-análise do Che, que haveria de segui-lo até a tumba, desamparando-o apenas em
momentos de delírio febril ou asmático no Congo e na Bolívia, ajudava-o a discernir. Os pobres, os
proletários e comunistas podiam ser irmãos — mas eram essencialmente estranhos para ele. Não
havia assimilação possível entre ele e os operários, os índios do altiplano, os negros de Caracas.
Eram e seriam sempre diferentes, e nessa diferença residia talvez a atração que exerciam sobre o
Che e os limites da identificação deste. Isso se evidencia no relato feito pelo Che da amizade que os
viajantes encetaram com um casal comunista em Chuquicamata, a maior mina de cobre a céu
Aberto do mundo, bastião imemorial do Partido Comunista do Chile. Guevara evoca o frio da noite e
o calor humano que sentiu na companhia deles:
O casal hirto, na noite do deserto, acocorados um junto ao outro, era a encarnação do proletariado
de qualquer parte do mundo [...] Foi uma das vezes em que mais passei frio, mas também aquela
em que me senti um pouco mais irmanado com esta estranha (para mim) espécie humana [...]
Deixando de lado o perigo que o “verme comunista” poderia representar ou não para a vida sadia de
uma coletividade, ali ele havia surgido simplesmente de um anseio natural por algo melhor, como
um protesto contra a fome contínua, traduzido
no amor por essa doutrina estranha cuja essência eles nunca poderiam compreender mas cuja
tradução nas palavras “pão para o pobre” estava ao seu alcance; na verdade, preenchia sua
4
existência.
O Che ficou chocado com o abismo entre os mineiros e os capatazes da mina — “os superiores, os
louros e eficazes administradores insolentes [...] os superiores ianques”; relacionou-o com a batalha
política que já então se travava em torno da nacionalização do cobre chileno.* A aproximação da
política mostra um interesse perspicaz pêlos problemas do Chile, mas, outra vez, também aquele
certo distanciamento; o tema em seu conjunto continua fundamentalmente estranho para ele. Nesse
sentido, o texto de Guevara não é uma reportagem jornalística nem uma série de reflexões políticas,
e sim, acima de tudo, um diário de viagem. Sua síntese da luta envolvendo as minas de cobre
chilenas reflete de maneira diáfana essa atitude:
Trava-se neste país uma batalha económica e política entre os partidários da nacionalização das
minas, que une os grupos de esquerda e nacionalistas, e os que, baseados no ideal da livre
empresa, julgam que é melhor ter uma mina bem administrada (ainda que em mãos estrangeiras) do
que sujeita à duvidosa administração do Estado [...] Seja qual for o resultado da batalha, seria bom
não esquecer a lição dos cemitérios dos mineiros, ainda que contenham só um pequeno número da
imensa quantidade de pessoas devoradas pêlos desabamentos, pela sílica e pelo clima infernal da
5
montanha.
A ênfase nas pessoas e sua aparente indiferença ao resultado da batalha política permeia a
apresentação rigorosa da questão em outros aspectos, o que se reflete na maioria das descrições
das viagens do Che pelo Chile. Seu olhar clínico dos processos sociais e políticos se mantém. “O
panorama geral do saneamento no Chile deixa muito a desejar”, adverte Guevara, embora em
seguida admita que “depois fiquei sabendo que era muito superior ao de outros países que vim a
6
conhecer”. Os banheiros são sujos, os conhecimentos sobre higiene limitados, e prevalece “o
7
costume de jogar o papel higiénico usado no chão ou em caixas, em vez de jogá-lo na privada”.
(*) Sem dúvida sob influência de Alberto Granado, o jornalista francês Jean Cormier, o mais recente
biógrafo do Che, atribui enorme importância à visita à mina, transformando-a quase em um
momento fundamental do despertar político de Che Guevara: “E em Chuquicamata, entre 13 e 16 de
março de 1952, que Ernesto Guevara começa a se converter no Che [...] depois de Chuquicamata,
ele se encontra em estado de incubação revolucionária” (Jean Cormier, Che Guevara, Paris, Lês
Editions du Rocher, 1995, pp. 37 e 50). Talvez; mas nada nas palavras do Che atesta essa
transformação, nem nesse momento, nem pouco depois.
A sensibilidade do estudante de medicina é evidente; o Che não cogita das coisas necessariamente
em termos políticos ou sociais. A diferença sanitária entre a Argentina e o resto da América Latina
na verdade não deriva de um pior “estado social do povo chileno”, mas da considerável e
generalizada distância entre o país do Che e os demais. O problema reside no fato de que as
nações da América Latina, diferentemente da Argentina, não possuem redes de esgoto; por isso os
costumes, no fundo ecológicos ainda que anti-higiênicos, que o Che menciona.
Dois comentários de índole estritamente política encerram o capítulo sobre o Chile e traçam as
fronteiras da evolução ideológica de Ernesto Gue-vara de Ia Serna nesse momento. Um se refere às
então próximas eleições chilenas e ao vencedor Carlos Ibanez, “um militar da reserva com tendên-
cias ditatoriais e objetivos políticos semelhantes aos de Perón, que inspira no povo um entusiasmo
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de tipo caudilhesco”. O viajante argentino tem razão sobre as semelhanças entre Perón e Ibanez,
que estabeleceram uma relação estreita até a queda do primeiro, em 1955. Também acerta no que
toca às inclinações autoritárias e “populistas” (termo que não se empregava na época mas que
reflete fielmente o sentido da frase do Che) de Ibanez. Ao mesmo tempo, a análise mais uma vez
deixa a desejar quanto à apreciação da natureza dos regimes populistas do período, não só na
Argentina e no Chile como em outros países da América Latina. Onde o Che mostra maior lucidez é
na avaliação do dilema político central de um país cujas reservas eram (e continuam a ser)
excepcionalmente abundantes mas que deverá “tirar de suas costas os incómodos amigos ianques,
e essa tarefa é, ao menos por enquanto, árdua, dada a quantidade de dólares que eles investiram e
a facilidade com que podem exercer uma pressão económica eficaz no momento em que seus
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interesses se virem ameaçados”. Salvador Allende provaria, vinte anos depois, a eficácia dessa
pressão e a suscetibilidade desses interesses.
A lista das passagens explicitamente políticas se esgota depressa. O Che é surpreendido pela
admiração que seus interlocutores chilenos e peruanos têm por Perón e sua mulher,* e faz
considerações perspicazes, embora abstraias, sobre Lima, La Blanca.** Mas é nas margens da
política, no seu encontro e sua fascinação com o mundo indígena da América Latina,
(*) “Segundo eles (éramos uma dupla de semideuses), vindos nada menos que da Argentina, o
maravilhoso país onde viviam Perón e sua mulher, Evita, onde os pobres tinham as mesmas coisas
que os ricos e os ricos não eram exploradores” (ibidem, p. 107).
(**) “Lima é a representante perfeita de um Peru que não saiu da condição feudal de colónia: ainda
espera pelo sangue de uma verdadeira revolução emancipadora” (ibidem, P.167).
que se pode avaliar o verdadeiro impacto da memorável viagem sobre a formação de Che Guevara.
Salvo as viagens marítimas pelo Caribe e pelo Brasil, os horizontes étnicos e sociais de Guevara
não ultrapassavam os centros urbanos de classe média branca de Córdoba e Buenos Aires. Para os
habitantes dessas cidades, as mais prósperas da América Latina, o conceito de população indígena
pertencia mais aos poemas épicos e aos livros de história que à vida cotidiana. Mesmo um indivíduo
com a notável consciência social de Ernesto, familiarizado com a pobreza e a marginalidade,
desconhecia a imensa tragédia indígena latino-americana e a encantadora mescla de resignação e
mistério que povoa a paisagem índia da região. Guevara ficou maravilhado com a opulência das
culturas índias antigas e deprimido com a miséria das condições de vida e de trabalho das comu-
nidades contemporâneas. Se alguns dos comentários e reações do Che parecem “politicamente
incorretos”, é preciso avaliá-los como parte da introdução dele ao exotismo alucinante e a sua
sedução.
Talvez o texto mais interessante dessa etapa da vida do jovem escritor seja uma passagem por
Machu Picchu. Foi publicado pela primeira vez em 13 de dezembro de 1953, no Panamá. Os
viajantes já tinham completado parte considerável de seu itinerário: o Chile, o lago Titicaca, as
tortuosas veredas do altiplano entre a fronteira boliviana e Cuzco. Já tinham tido o primeiro encontro
com “a raça vencida, a que nos vê passar pelas ruas do povoado. Seus olhares são mansos, quase
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amedrontados e completamente indiferentes ao mundo externo”. Já tinham tomado o trem em
Cuzco rumo às ruínas, com sua “terceira classe destinada aos índios da região”, e observado “o
conceito um tanto animal dos indígenas acerca do pudor e da higiene, que os leva a fazerem suas
necessidades à beira do caminho, as mulheres limpando-se com a própria saia, e seguir em frente,
despreocupados”.” O Che já tinha sofrido na própria pele os paradoxos da discriminação.
Apanhados por uma tempestade entre Juliaca e Puno, “Suas Majestades brancas” foram
convidadas a entrar na cabine de um caminhão no lugar de várias mulheres, anciãos e crianças
indígenas. Apesar de seus protestos envergonhados, os dois argentinos completaram a jornada ao
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abrigo da tormenta, ao passo que os nativos ficaram expostos à intempérie.
Desde sua chegada ao Peru, o Che fora cativado pelo sincretismo arquitetônico e cultural das
construções coloniais, embora o termo talvez lhe fosse estranho. Ele lamentou a triste sorte do
mestiço — açoitado pelo “amargor de sua existência dupla”—“ e intuiu a simbiose terrível e mágica
entre sincretismo e mestiçagem, de um lado, e conquista, de outro; “Lês uns ne sont rien sans
1’autre”, diria Paul Valéry. Che Guevara adquiriu uma espécie de orgulho mestiço, a Ia
Vasconcellos, que o levou a evocar uma homogeneidade fictícia. Como diria em uma de suas
primeiras alocuções “públicas”, agradecendo a festa de seu aniversário aos habitantes de um
povoado amazônico, “constituímos uma única raça mestiça, que desde o México até o estreito de
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Magalhães apresenta notáveis semelhanças etnográficas”. Porém, nada o toca como Machu
Picchu.
O Che se deslumbra com o mistério da cidade escondida durante séculos e celebra sua descoberta
pelo explorador Hiram Bingham, embora manifeste tristeza ante as consequências do achado:
“Todas as ruínas ficaram completamente despojadas do que quer que tenha caído nas mãos dos
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pesquisadores”. Distingue facilmente a qualidade das edificações, tecendo comentários sobre os
“templos magníficos” da área dedicada ao culto, os setores “de extraordinário valor artístico”
destinados à residência da nobreza e “a falta de cuidado no polimento das rochas” característica das
moradias da gente comum. Guevara relaciona a conservação do lugar com a sua localização
topográfica e a facilidade de defesa que apresenta. Conclui sua reflexão resumindo as excepcionais
circunstâncias de Machu Picchu — sua civilização, sua preservação à margem da conquista
espanhola do Novo Mundo e sua localização: “Encontramo-nos aqui perante uma pura expressão da
civilização indígena mais poderosa da América, não tocada por nenhum contato com as hostes
vencedoras e repleta de tesouros evocatórios entre seus muros mortos, ou na estupenda paisagem
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que a circunda e lhe dá a moldura que conduzirá qualquer sonhador ao êxtase”.
O sortilégio tecido pela arqueologia e pela exploração permitiu que o Che compreendesse
fenómenos que outros aficionados poriam em evidência décadas depois, entre eles Steven
Spieiberg, o qual deve muito a Guevara, embora não o saiba. Trinta anos antes da irrupção de
Indiana Jones nas telas e na imaginação das crianças do mundo inteiro, Ernesto Guevara
descobrira Gff segredo do cineasta norte-americano nas fantasias de Hiram Bingham:
“Machu Picchu significou para Bingham o coroamento de seus mais puros sonhos de menino grande
7
— a maioria dos entusiastas dessas ciências não passam de meninos grandes”.’ O Che entendeu
que a sedução da arqueologia sobre Bingham, Harrison Ford e ele próprio derivava de sua condição
especial de “meninos grandes”. Com sua lente, Spieiberg captou que nada encanta tanto as
crianças como ver gente grande comportar-se como elas.
Uma última passagem dessa crónica notável — provavelmente o primeiro artigo de Che Guevara
publicado com sua assinatura — que
merece ser mencionada é a que reflete sua ob^etividade e paixão em relação aos Estados Unidos.
Seu antiamericanismo cresce a cada semana. O comentário dele sobre a incapacidade dos “turistas
ianques” para perceber “as sutilezas que só o espírito latino-americano pode apreciar” é altamente
reveladora. Porém, o bom senso o impede de levar sua hostilidade ao extremo;
tampouco permite que se distorça sua visão dos incontornáveis fatos inerentes a qualquer
exploração científica. Ao escrever sobre a inegável tragédia da pilhagem das ruínas de Machu
Picchu, ele adverte: “Bingham não é culpado, objetivamente falando; nem os norte-americanos em
geral são culpados; tampouco é culpado um governo incapaz de financiar uma expedição como a
liderada pelo descobridor de Machu Picchu. Então não há culpado? Aceitemo-lo. Mas onde se
podem admirar ou estudar os tesouros da cidade indígena? A resposta é óbvia: nos museus dos
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Estados Unidos.”
Do altiplano andino os exploradores seguiram para Lima e, dali, para a Amazónia peruana. A
estadia na velha capital dos vice-reis quase não marcou os “antituristas”, exceto pelo romance fugaz
com Zoraida Boluarte, uma terna limenha que trabalhava como assistente social no leprosário
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dirigido pelo eminente médico dr. Hugo Pesei, comunista. Zoraida conseguiu alojamento para os
viajantes no leprosário, que era administrado por freiras, e convidava-os diariamente para jantar em
sua casa. A correspondência entre a moça e Ernesto se estendeu até 195 5. A dedicatória do Che
escrita em uma fotografia tirada meses depois mostra o afeto que tinha por ela e sua opinião sobre
as próprias andanças: “A Zoraida, com a intenção de que esteja sempre pronta a receber um par de
vagabundos flutuantes procedentes de qualquer lugar e indo para qualquer outro, sempre à deriva,
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sem passado nem futuro, e com a esperança de que nunca perca a mania de alimentar ociosos”.
Embora a correspondência entre os dois conserve o respeitoso usted que conhecemos das cartas
escritas a Titã Infante e o tom não indique uma relação demasiado íntima, pode ter acontecido
algum envolvimento amoroso, tanto durante a viagem como no retorno de Ernesto a Lima em fins de
1953.*
Os dois andarilhos subiram o rio Ucayali de barco até o leprosário de San Pablo, e durante o trajeto
Ernesto teve uma fortíssima crise asmática que ele relatou com riqueza de detalhes. O flerte com
uma clássica prostituta
(*) Segundo uma pesquisadora peruana, Zoraida “não gosta de falar da passagem de Ernesto por
sua casa, pois considera que se tratou de algo fortuito e muito pequeno na vida do comandante
Guevara” (Zoraida Boluarte, testemunho colhido por Marta Rojas, Gran-“M, 9/6/88).
despertou-lhe carinho e curiosidade; a menina bonita e atrevida consolou-o em seus momentos de
aflição, e ele retribuiu com essa mescla de afeto e repulsa que as prostitutas evocam com
frequência nos homens solitários. A história é ainda mais tocante porque a crise ocorreu poucos dias
após uma outra, igualmente violenta, que teve lugar no porto fluvial de Iquitos, onde o Che teve de
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“ficar na cama” e injetar-se adrenalina até quatro vezes por dia. ’ Apesar de Ernesto dedicar pouco
espaço aos acessos de asma, o diário pormenorizado de Granado traz uma série de ataques
ininterrupta, quase cotidiana. Praticamente a cada duas páginas ele narra como seu companheiro
cai vítima de crises respiratórias, obrigando os viajantes a buscar água e fogo para esterilizar as
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seringas e injetar-lhe adrenalina ou qualquer sucedâneo. Diante do exaustivo e desesperador
sofrimento gerado pêlos acessos e a permanente dificuldade de conseguir medicamentos, o Che
formula a mesma pergunta que responderá de maneira idêntica durante os próximos quinze anos de
seu calvário: “A abóbada imensa que meus olhos desenhavam no céu estrelado palpitava
alegremente, como que contestando com uma afirmativa a indagação que assomava de meus
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pulmões: vale a pena?”.
A quinzena passada no leprosário ajudou o enfermo a se restabelecer, ainda que fosse apenas pelo
contraste com a tragédia que o cercava. Guevara sentia cada vez mais fascínio e repulsa pêlos
traços aterradores da antiga e estigmatizada doença: “Um dos espetáculos mais interessantes que
vimos até agora: um acordeonista que não tinha dedos na mão direita e os substituía por uns
pauzinhos que amarrava ao punho; o cantor era cego e quase todos eles tinham rostos monstruosos
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por causa da forma nervosa da enfermidade [...] Um espetáculo de filme de horror”.
Dali os dois amigos navegariam de balsa pelo Amazonas até a Colômbia, onde se internaram pelo
sonolento e abafado povoado de Letícia. Em suas duas semanas na Colômbia não tiveram maiores
aventuras, salvo uma pequena discussão com a polícia de Bogotá, que os maltratou quando
Ennesto sacou desavisadamente uma faca da bolsa para desenhar um mapa no chão. Ele não
parece lamentar muito a decisão de partir para a Venezuela, exceto por alguns comentários sobre o
caráter repressivo do regime de Lau-reano Gómez e a onipresença da polícia. “Um clima asfixiante”,
queixou-se, mas “se os colombianos querem aturá-lo, o problema é deles; nós nos arrancamos o
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quanto antes”.
Caracas e Miami foram escalas em boa medida desprovidas de grandes atrações. Os encontros
com mundos, sociedades, raças e culturas totalmente estranhas para Guevara até então
continuavam a produzir fortes reações de
sua parte, como indicam seus comentários a propósito da população de origem africana na
Venezuela. Esse não foi necessariamente seu primeiro contato com “os negros”; em suas viagens
marítimas por Trinidad e Tobago e Porto Alegre, decerto cruzou com os descendentes dos escravos
sequestrados na África vários séculos antes. Ainda assim o impacto com a alteridade foi óbvio, mas
a reação do Che — que hoje poderia parecer racista — surpreende:
Os negros, os mesmos magníficos exemplares da raça africana que mantiveram sua pureza racial
graças ao pouco apego que têm ao banho, viram seu território invadido por um novo tipo de
escravo: o português [...] O desprezo e a pobreza os unem na luta cotidiana, mas o modo diferente
de encarar a vida os separa completamente; o negro indolente e sonhador gasta seu dinheirinho em
qualquer frivolidade ou diversão, ao passo que o europeu tem uma tradição de trabalho e de
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economia.
Em Caracas, onde Granado decidiu ficar, um amigo argentino ofereceu a Ernesto carona de volta
para seu país em um avião que transportava cavalos de corrida. Apenas um problema: era preciso
parar em Miami, e a escala se prolongou por mais de um mês, à espera do visto para entrar nos
Estados Unidos. Um jornalista argentino da United Press ofereceu seus bons ofícios para
providenciar o documento junto à embaixada norte-americana, vangloriando-se durante um jantar de
seus contatos na missão estadunidense. Então o jornalista passou rapidamente a tecer elogios ao
colosso do Norte e a lamentar a oportunidade perdida pêlos latino-americanos, os crioííos*
argentinos em particular: quando não aceitaram a derrota para os ingleses em 1806, desperdiçaram
a chance de se tomar parte dos Estados Unidos. Os jovens turistas, patriotas e cada vez mais
antiamericanos, ofendidos em sua recém-descoberta identidade latino-americana, se revoltaram.
Granado replicou indignado que também poderiam ser índios, desnutridos, analfabetos e súditos
dos ingleses. Guevara exclamou: “Pois eu prefiro ser um índio analfabeto a um norte-americano
milionário”.” A sinceridade do protesto é sintomática: a grandeza e a tragédia da vida do jovem
consistiram talvez em sua crença de que todos os latino-americanos pensavam como ele, quando
na realidade a maioria provavelmente partilhava das opiniões simplistas do jornalista da United
Press, e preferiam ser milionários norte-americanos a índios analfabetos.
A escala em Miami não mereceu maiores comentários no diário do Che, a não ser que durou trinta e
poucos dias e foi a sua única estadia nos
(*) Naturais da América espanhola na época colonial. (N. T.)
Estados Unidos, além da semana que ficou em Nova York, quando compareceu à Assembleia Geral
das Nações Unidas em dezembro de 1964. A esse respeito, contamos apenas com as recordações
de Jimmy Roca, com quem Ernesto passou esse período na Flórida. Roca era primo-irmão de
Chichina, que deu ao Che seu endereço em Miami e quinze dólares para que comprasse um traje
de banho para ela. Segundo Roca, “durante sua visita partilhamos as limitações da vida de
estudante que eu levava. Vivíamos tomando cerveja e comendo batatas fritas; o dinheiro não dava
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para mais”. Como o Che confessou a sua amiga Titã Infante, ao voltar a Buenos Aires, “foram os
dias mais amargos de minha vida”. Havia muitos motivos — financeiros, ideológicos, pessoais —
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para o seu lamento.
Para Ernesto Guevara, a viagem pela América do Sul foi uma espécie de epifania pessoal e política.
Mas não devemos necessariamente tomar ao pé da letra sua avaliação da natureza e da magnitude
da mudança ocorrida em seu caráter e visão de mundo. O Che certamente reconhece que “o per-
sonagem que escreveu estas notas morreu ao pisar de novo o solo argentino;
0
quem as ordena e burila, eu, não sou eu”.’ Sem dúvida, a decisão de continuar a viajar, de só
retornar a Buenos Aires para terminar os estudos e cumprir a promessa feita à mãe, foi tomada
durante a viagem. O Che planejava reencontrar o amigo Granado na Venezuela assim que se
diplomasse, e trabalhar no leprosário onde Granado já conseguira emprego. Enquanto esperava o
conserto do avião em Miami, o Che refletiu profundamente sobre o seu futuro. Ele não ficaria na
Argentina. Oito meses e uma eternidade depois de ter partido, ele voltou a Buenos Aires em 31 de
agosto de 1952, disposto a partir de novo o mais rápido possível.
A lenda da politização e militância atribuída a essa viagem, que foi criada em diversas biografias e
relatos da juventude do Che, porém, não se ajusta a suas anotações. A poderosa atração pelas
coisas e povos diferentes era inegável, mas não passava disso. Suas reações à população indígena
e à cultura latino-americana refletem ainda pobreza no que se refere a conteúdo e conhecimento
político. Justamente nas semanas em que articulava seus pensamentos e dúvidas sobre a apatia e
o infortúnio dos índios peruanos, por exemplo, estourou a revolução boliviana de 1952, a primeira
rebelião de camponeses indígenas desde o levante zapatista no México, meio século antes; o
acontecimento não é mencionado do diário de viagem do Che.”
As reflexões de Ernesto sobre si mesmo, seus propósitos e predileções em geral durante a viagem
mostram-se mais perceptivos e significativos que suas análises políticas e culturais. Ele resolveu
deixar seu país, a carreira, a
família e a ex-namorada; mas ainda não encontrou seu destino, nem sequer sabe onde procurá-lo.
A criação do herói e seu mito ainda não se iniciara. O Che simplesmente delirava quando escreveu,
já de volta a Buenos Aires:
“Estarei com o povo; tingirei de sangue minha arma e, louco de fúria, degolarei meus inimigos
vencidos. Já sinto as narinas dilatadas saboreando o acre odor de pólvora e sangue, da morte do
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inimigo”.’ Ele ainda não ouvira “o uivo bestial do proletariado triunfante”,* nem encontrara os
personagens, fatos e emoções que o transformariam. Ainda estavam faltando os dois ingredientes
principais que o conduziriam à metamorfose e à glória: Fidel Castro e o advento da rebeldia e da
Revolução.
A volta do Che a Buenos Aires foi facilitada pela sua certeza de que logo partiria novamente. Seus
pais e irmãos o receberam com todo o carinho e entusiasmo que o retorno do filho pródigo merece.
Depressa entenderam que algo mudara no olhar e no ânimo do rapaz, o qual estava para completar
um quarto de século. Ernesto se instalou na casa de sua tia Beatriz, para estudar muito e ser
aprovado em todas as matérias pendentes. Além da impaciência por partir de novo, surgira um
incentivo adicional. Em seu ocaso, o peronismo se tornara mais personalista e autoritário; a partir de
1954, era preciso cursar aulas de Justiciaíismo (o nome oficial da doutrina peronista) e “educação
política” para diplomar-se na universidade. O aperonista Che não estava disposto a fazê-lo. Além
disso, voltou a ter problemas com o serviço militar (os quais talvez expliquem os comentários
bizarros de Perón citados no capítulo anterior). Ele sabia que, assim que completasse os estudos,
sua licença prescreveria; ele precisaria apresentar-se novamente perante a junta de alistamento.
Nessa ocasião a saúde frágil o salvou: segundo Granado, “ele tomou um banho gelado antes de ser
examinado pela comissão médica, o que provocou uma crise de asma graças à qual foi declarado
inapto para o serviço militar”.” Como sua mãe disse mais tarde: “Se o comandante Ernesto Guevara
tivesse sido obrigado a passar um ano fazendo compras para a esposa do primeiro-tenente, ou
cuidando da aparência da car-tucheira que seu superior jamais utilizaria [...] seria um absurdo ver-
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gonhoso. Mas foi declarado inapto. Existe justiça, afinal”.’
Dedicando catorze horas por dia aos estudos, Ernesto fez os exames em quatro etapas: uma
matéria em outubro, três em novembro e dez em dezem-
(*) Ernesto Guevara, Mi (irimer fyan, p. 187. Várias pessoas que leram essas passagens do diário e
conheceram o Ernesto dessa época têm dúvidas sobre sua autoria. E o caso de Chichina Ferreyra,
que o sugere em carta ao autor, de 22 de agosto de 1996.
bro. Em abril fez o último exame de sua carreira e em 12 de junho de 1953 obteve o título de doutor
da Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires. Menos de um mês depois, e a apenas
um ano do regresso a casa, tomou o trem na estação de Retiro, acompanhado de seu amigo de
infância Carlos “Caliça” Ferrer, em direção à Bolívia, primeira escala de seu retorno à Venezuela.
Pouco sabemos sobre os dez meses da última estadia de Ernesto Gue-vara em Buenos Aires. Ele
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falou em outubro com Chichina, e a viu em novembro ou dezembro em Buenos Aires, depois de se
inteirar misteriosamente de sua passagem pela capital, em um encontro sem maiores conse-
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quências ou arrependimentos; recebeu da ex-namorada um tratamento “frio e distante”.’
Encontraram-se pela última vez em Malagueno, no início de 1953; algo da paixão antiga subsistia, já
7
que, segundo Chichina, “mais de uma vez ficamos nos olhando por longos momentos”.’
Durante esses meses, o Che trabalhou no laboratório do dr. Salvador Pisani como alergologista.
Sua dedicação e talento eram tamanhos que, o professor lhe pediu que permanecesse como
pesquisador em sua clínica, oferecendo-se inclusive para remunerá-lo (um raro privilégio, segundo
8
seus colegas).’ Ele se dedicava com o mesmo afinco ao trabalho no laboratório e aos estudos em
casa ou na biblioteca. De acordo com seus companheiros, nessa época já “falava do imperialismo
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ianque, do domínio da América Latina e da necessidade da libertação [com] ardor passional”.
Durante esse período, escreveu poucas cartas e raras vezes encontrava com os conhecidos da
universidade ou da infância. Reelaborou seu diário de viagem, transformando-o no texto que
conhecemos hoje. Segundo as recordações de José Aguilar sobre uma longa caminhada com seu
amigo às vésperas da partida, Guevara se interessava muito mais pela política, mas sua intenção ao
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partir para a Venezuela ainda era “trabalhar como médico”.
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Por que o Che, pouco depois de completar 25 anos, deixou sua pátria para nunca mais voltar?
Por uma série de fatores, uns que o atraíam, outros que lhe provocavam repulsa; uns passageiros e
ilusórios, outros de longo alcance e profundamente psicológicos. Ele próprio dizia: “O que fiz foi ape-
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nas fugir de tudo o que me incomodava”. E outra a versão de Isaías Nougués, que recebeu
Ernesto e Caliça Ferrer em La Paz: “Dizia que sua partida da Argentina devia-se à ditadura
peronista, que lhe dava asco, e que preferia partir a conviver com ela. Todavia, Ferrer, seu
companheiro de viagem, considerava que o verdadeiro motivo era a situação de sua casa,
onde a forte — e descontente — personalidade de sua mãe diluía e frustrava
a personalidade de seu pai”.*
Para Jorge Ferrer, o irmão de Caliça, o novo e definitivo exílio do Che não se devia a uma
necessidade de fugir, mas antes a seu desejo de conhecer o mundo, de compreender os problemas
e realidades da América Latina e de continuar a descobrir os mistérios e encantos das culturas
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estrangeiras. Há ainda o compromisso que Guevara assumira com Alberto Granado de tra-
balharem juntos no leprosário venezuelano do Orenoco, e as promessas aos amigos eram sagradas
para ele. Por fim, o fascínio pelo desconhecido continuava a arrastá-lo para longe, juntamente com
os sentimentos conflitantes que agoniavam sua vida portenha: a separação-reconciliação dos pais, o
dilema político, existencial e familiar representado pelo peronismo, seu interesse e ao mesmo tempo
distância em relação à profissão, e o tédio pela plácida monotonia de Buenos Aires.
O afastamento da família foi doloroso para todos, mas em especial para sua mãe. Sua nora
testemunha: “Quando ele partiu, lembro que Célia, sua mãe, estava sentada em uma poltrona,
agarrou minha mão e me disse: ‘Mi-nucha, vou perdê-lo para sempre, nunca mais verei meu filho
Ernesto’. Depois fomos à estação de trem; Célia estava lá; lembro que quando o trem partiu Célia
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correu, correu, correu pela plataforma, junto com o vagão”.
O Che deixava para trás uma Argentina revolvida por sete anos de peronismo e uma década inteira
sob a influência do general. Muita coisa mudara no país: o crescente sentimento de dignidade dos
trabalhadores, a ascensão de uma burguesia industrial, uma nova superioridade internacional da
nação, não mais baseada nos jogadores de pólo ou nos tangos de Gardel, mas em uma tentativa —
afinal fracassada — de encontrar uma posição intermediária na bipolaridade da guerra fria. Mas as
coisas estavam tomando um novo rumo. Após a morte de Evita, o alinhamento de Perón com
setores que antes combateram seus enfoques e programas — o capital estrangeiro, a oligarquia
rural, os Estados Unidos — levava-o a ganhar tempo, mas de maneira nenhuma a simpatia de seus
antigos adversários. E o afastava de suas bases.
Esse novo foco do governo também contribuía para endurecê-lo e
(*) Carta de Isaías Nougués (filho) ao autor, Buenos Aires, 29/3/96. Ao ser indagado, Ferrer não
nega o motivo, mas confere-lhe uma importância menor. “Sim, afetou-o um pouco, pois creio que no
final a relação piorou, mas, bem... não era tão grave, na minha maneira de ver. Não sei, não me
recordo, sinceramente não me recordo” (Carlos Ferrer, entrevista telefónica com o autor, Buenos
Aires-Gualeguachu, 25/8/96).
acentuar seu desespero. O culto à personalidade de Perón e de sua finada companheira
exacerbava-se; intensificavam-se os esforços para manter pela propaganda o apoio originalmente
conquistado por meio de transformações reais. Ao término da guerra da Coreia, a economia já não
gerava recursos para subsidiar a generosidade social do Estado argentino. Che Guevara despede-
se em 1953 de uma sociedade desalentada, como ele, pela ausência de opções: não havia nada a
ser feito, nem contra Perón (pelo que ele realizara), nem a favor dele (pelo que se tornara).
A primeira escala da nava viagem foi a Bolívia, não tanto por interesse intrínseco pelo país, e sua
situação política e social, mas porque era o modo mais barato de chegar à Venezuela de trem. Após
um vagaroso tra-jeto em vagões lotados de “gente de condição muito humilde [...] peões do Norte da
Argentina ou bolivianos que regressavam a suas terras depois de ganharem uns pesos em Buenos
Aires”, e de uma violenta crise de asma durante a subida da cordilheira,* Ernesto Guevara e Caliça
Ferrer chegaram a La Paz em 11 de julho de 1953. Passara-se apenas um ano desde a tomada do
poder pelo Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), liderado por Víctor Paz Estenssoro, e o
país ainda vivia um efervescente período de reforma.
A nova dupla de viajantes permaneceu cinco semanas na Bolívia, período que daria muito o que
falar em diversas biografias e análises da vida do Che, apontado como passo fundamental em sua
evolução política. E essa a opinião de Caliça Ferrer, que conhecia Ernesto desde Alta Gracia e
conviveu com ele em Buenos Aires ao fim de sua viagem pela América Latina com Granado. Ferrer
considera hoje que a verdadeira politização do amigo aconteceu na Bolívia, junto com a emergência
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de um poderoso sentimento antiamericano, que pode ter surgido na visita a uma mina de
tungsténio nas encostas do Ulimani, onde testemunharam abusos cometidos por capatazes norte-
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americanos contra os trabalhadores locais.
Contudo, a estadia na Bolívia dificilmente pode ter contido a totali-
(*) Isaías Nougués, op. cit. Caliça Ferrer lembra o episódio: “Ernesto sofreu uma crise de asma que
o deixou como morto. Lembro que o carreguei nas costas como pude [...] Deitei-o na pensão, como
morto, pois eu conhecia as crises de asma de Ernesto, mas não com aquela gravidade” (cit. Claudia
Korol, El Che y los argentinos, Ediciones Dialéctica, 1988,p.88).
dade dos encontros, análises e fatos mencionados desde então.* Um grande número de pessoas
conservam na memória algum episódio do período em que o Che esteve na Bolívia: desde o atual
presidente, Gonzalo Sánchez de Losada, que afirma ter conhecido Guevara em uma reunião social
em Cochabamba, até Mário Monje, ex-dirigente do Partido Comunista Boliviano, que relata como o
Che visitou as minas de estanho durante sua passagem pelo país:
Che Guevara conseguiu trabalho em uma mina chamada Bolsa Negra, perto de La Paz, um lugar
um tanto frio. Claro que o grupo de mineiros era pequeno, mas para chegar a líder era preciso estar
ali há um bom tempo, e o melhor era trabalhar no interior da mina, e não como médico. Ele é
médico, seu vínculo é apenas circunstancial. E assim como, eu diria... ele chega à Bolívia como uma
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semente de orquídea, em busca de um lugar onde se assentar.
O Che logo se iludiu com a revolução boliviana, embora depressa se irritasse com suas falhas
óbvias.** Em sua correspondência inicialmente enfatizava os aspectos positivos: a criação das
milícias armadas pelo governo revolucionário, a reforma agrária, a nacionalização das minas de
estanho e antimônio. Assim, em 24 de julho — ou seja, pouco mais de dez dias depois de
desembarcar na capital boliviana — escreveu ao pai que o país “vive um momento particularmente
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interessante” e que presenciou “desfiles incríveis de gente armada de máuseres e matracas”. Em
uma carta a Titã Infante, postada em Lima no início de setembro, ele comenta: “A Bolívia é um país
que deu um exemplo realmente importante para a América [...] Aqui as revoluções não são feitas
como em Buenos Aires [...] o governo está apoiado
(*) Assim um biógrafo peruano relata que o Che “redigia boletins no escritório de comunicação da
presidência, e diz-se que até trabalhou um turno como guarda no Palácio Quemado” (Carlos J.
Viliar-Borda, Cfie Guevara: su vida y su muerte, Lima, Editorial Gráfica Pacific Press, 1968, p. 66).
Um cubano que encontrou o Che na Guatemala narra como “o dr. Guevara conheceu então na
Bolívia Juan Lechín”, o legendário dirigente dos trabalhadores das minas de estanho (Mário Meneia,
“Así empezó Ia historia dei guerrillero heróico”, Revista de Ia Biblioteca Nacional José Marti’,
Havana, maio-ago. 1987, p. 48).
(**) Quatro são as fontes que reconstituem a estadia do Che na Bolívia: suas próprias cartas à
família e a Titã Infante; os relatos posteriores de seu companheiro de viagem, Caliça Ferrer; as
recordações da família de Isaías Nougués, o exilado argentino que recebeu os viajantes, e o relato
de Ricardo Rojo, um advogado radical recém-expatriado por ser antiperonista, cuja amizade com
Ernesto duraria até 1965. Apesar das repetidas denúncias cubanas sobre o conteúdo do livro Mi
amigo el Che, Rojo narra com inteligência e sensibilidade — nem sempre com precisão — suas
viagens, conversas e reflexões com o compatriota.
dos mineiros e a um desdém pela marca deixada na consciência camponesa por uma reforma
agrária truncada mas que distribuiu terras a milhares de moradores da zona rural: “Era uma
manifestação pitoresca porém não viril. O passo fatigado e a falta de entusiasmo de todos eles
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tirava-lhe a energia vital; perderam-se os rostos enérgicos dos mineiros [...]”. ’
O mesmo enfoque distorcido o impediria de assimilar o alcance das negociações entre o novo
regime de Paz Estenssoro, Juan Lechín e Hernán Siles Suazo, pela Bolívia, e Milton Eisenhower, o
enviado do governo dos Estados Unidos, em meados de 1953, durante a visita do irmão do herói da
Normandia. O acordo, firmado quando o Che se encontrava na Bolívia, obteve sucesso: evitou o
enfrentamento com Washington e simultaneamente conservou uma proporção significativa das
conquistas e reformas do regime. Dotou a classe política e o exército da Bolívia de autoconfiança,
assim como de uma sólida disposição de solicitar ajuda externa, combinação rara entre as classes
governantes da América Latina. Ao defrontar-se em 1967 com esse amálgama de nacionalismo
castrense — limitado mas profundamente t -iraizado — e a estreita colaboração com as forças
armadas estadunidenses, Che Guevara sofreu as consequências de sua leitura ao mesmo tempo
arguta ^ errónea da história boliviana.
Vale destacar a ausência de qualquer comentário por parte do Che ou de seus amigos de então
sobre o acordo entre o regime revolucionário e a administração Eisenhower. Assim como no caso de
Lázaro Cárdenas no México, em 1938 — e ao contrário do que acontecerá em Cuba, em 1959-60, e
a seguir no Chile, em 1970-3 —, a revolução do MNR arrancou do governo norte-americano uma
aceitação relutante mas resignada de sua reforma agrária e do programa de expropriação da
maioria dos recursos naturais. Obviamente, houve um custo: outros aspectos do processo de
reformas foram sacrificados, as empresas nacionalizadas foram indenizadas e o regime foi forçado a
submeter-se a uma aliança ideológica férrea com um país estrangeiro. Nunca foi fácil efetuar o
balanço final do pacto, porém surpreende que uma das características mais idiossincráticas da
revolução boliviana de 1952 não tenha provocado nenhuma reação no jovem Ernesto. Ou sua
curiosidade política era ainda imatura, ou ele estava dominado por uma subestimação mais
complexa da importância do fator externo em um processo revolucionário como o boliviano. A
mudança em seu pensamento — ou a maturidade — não tardariam a ocorrer. A Guatemala seria a
escala seguinte da jornada de Guevara.
Não havia motivo para permanecer na Bolívia, por mais interessante que parecesse o seu panorama
político. Em meados de agosto, o Che e Caliça partiram de novo e, por insistência do Che,
retomaram o trajeto anterior com Alberto Granado. O recém-formado médico retomou a Cuzco,
Machu Picchu e depois a Lima, reencontrando Zoraida Boluarte e o dr. Pesei. Ali Ricardo Rojo uniu-
se aos dois, e ao fim de algumas semanas na capital peruana eles se dirigiram a Guayaquil,
arquétipo do inferno portuário tropical, no Equador. Ficariam quase três semanas encalhados no
porto bananeiro, em companhia de outros amigos argentinos, Guevara em condições deploráveis de
saúde e financeiras, até que conseguiram passagem para o Panamá em um barco da Frota Branca
da United Fruit Company. O Che aprendeu que, se a altitude do altiplano o destruía fisicamente, o
calor e a umidade dos trópicos eram devastadores.
No perene mormaço de Guayaquil, Ricardo Rojo e os outros companheiros convenceram o Che a
tomar uma decisão crucial para sua vida futura. Ele abandonou seu plano de encontrar-se com
Granado na Venezuela e optou por viajar com os amigos para a Guatemala.* Naquele país indígena
e desconhecido, estava em marcha um processo de reforma semelhante ao da Bolívia, porém tavez
mais radical, e de qualquer maneira mais recente e mais desafiador para os Estados Unidos. A
viagem para a Guatemala foi acidentada e árdua. A asma de Ernesto, a falta de recursos, e as
trocas constantes de companheiros — Caliça Ferrer separa-se do grupo em Quito, para depois
seguir para a Venezuela — dificultaram e prolongaram o percurso. Eles demoraram dois meses
inteiros para chegar à Cidade da Guatemala, ao fim de uma série de paradas mais ou menos
previstas, principalmente no Panamá e em San José, na Costa Rica. No Panamá o Che publicou o
seu primeiro escrito, como já assinalamos. Percorreu o canal e constatou o contraste, talvez mais
acentuado que hoje, entre os bairros panamenhos e a zona do Canal, ordenada, limpíssima e
próspera, anglo-saxã e branca — o clássico enclave colonial em um país supostamente livre.
Durante esses meses o Che percorreu também as imensas plantações costarriquenhas da United
Fruit Company, sobre as quais fez um comentário ácido e quase caricaturesco:
(*) Ele não estava desonrando o compromisso com Granado; a ideia, segundo Caliça Ferrer, era
que “eu chegaria à Venezuela, encontraria Granado, entraríamos em roniato com Ernesto, que
estaria na Guatemala, e dali seguiríamos os três para algum ^gar” (Carlos Ferrer, op. cit.).
“Tive a oportunidade de passar pêlos domínios da United Fruit, confirmando uma vez mais como
são terríveis esses polvos capitalistas. Jurei diante de um retraio do velho e pranteado camarada
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Stalin não descansar até ver esses polvos capitalistas aniquilados”.
Em San José, Guevara teve seu primeiro e talvez último encontro desprovido de carga política com
a recém-nascida social-democracia da América Latina. Em várias ocasiões esteve com Rómulo
Betancourt — que anos depois seria presidente da Venezuela, precisamente quando o já então
ministro cubano Ernesto Guevara conspirava com a guerrilha venezuelana — e com Manuel Mora
Valverde, o líder do Partido Comunista da Costa Rica. O contraste entre seus relatos sobre os dois
encontros ilustra o caminho político que o Che escolhera:
Entrevistamo-nos com Manuel Mora Valverde. É um homem tranquilo, bastante sereno [...] Deu-nos
uma esplêndida explicação sobre a política da Costa Rica [...] A entrevista com Rómulo Betancourt
não teve as características da lição de história ministrada por Mora. Deu-nos a impressão de ser um
político com algumas ideias sociais sólidas na cabeça, e o resto ondeante e fácil de ser desviado
para onde o vento soprar. “
Ele teve uma discussão com Betancourt indicativa de suas emergentes inclinações políticas e do
caminho que seguiria nos nove anos seguintes, até que sua própria experiência com a URSS
finalmente o desiludisse. Em plena polémica com o venezuelano a propósito da presença dos
Estados Unidos na América Latina, perguntou-lhe à queima-roupa: “No caso de uma guerra entre os
Estados Unidos e a URSS, que partido tomaria?”. Betancourt respondeu que ficaria do lado de
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Washington, motivo bastante para que Guevara o tachasse ali mesmo de traidor.
Che Guevara comprovou também o potencial e as limitações do governo de José Figueres, que
desde 1948 procurava construir na Costa Rica um Estado assistencial extenso e anticomunista. Mas
sua breve escala em San José serviu para algo mais. Foi aí que se deu o primeiro contato dele com
os cubanos, ao encontrar-se com dois sobreviventes exilados do assalto ao Quartel Moncada,
ocorrido em 26 de julho de 1953. Calixto Garcia e Se-verino Rossel foram os primeiros a lhe contar
a história inacreditável da tentativa de Fidel Castro de derrubar o regime de Fulgencio Batista
assaltando o quartel militar da segunda maior cidade de Cuba. No início Guevara mostrou-se
cético,” mas aos poucos a simpatia natural dos cubanos, a grandeza e a tragédia da epopeia, e o
contraste com a moderação da política costarriquenha o convenceram. A amizade encetada em San
José seria
reforçada na Guatemala, onde ele encontraria outros veteranos de Moncada. Entre eles estava Nico
López, que se asilou na embaixada guatemalteca em Havana e chegou à capital daquele país mais
ou menos ao mesmo tempo que Ernesto, trazendo mais notícias, e mais recentes, da ilha.
Guevara chegou à Guatemala às vésperas do ano-novo, em 1953. AU permaneceu até conseguir
deixar a embaixada argentina, onde se asilou após o golpe contra o regime do coronel Jacobo
Arbenz, rumo ao México. A Guatemala era então um país de 3 milhões de habitantes, a maioria
índios pobres e marginalizados. A maior e mais populosa nação da América Central possuía uma
típica economia de plantation — café, banana e algodão, e condições sociais atrozes. Quase todos
os indicadores sociais de 1950 a colocavam em antepenúltimo lugar na América Latina. No mesmo
ano, a Guatemala tinha as piores (com exceção da Bolívia) taxas de desemprego e subemprego
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urbano e rural de toda a América Latina. Ainda em 1960, a expectativa de vida da população ao
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nascer era a mais baixa da região.
Até a chegada à Guatemala, a viagem dos argentinos tinha sido fecunda, mas apenas no sentido
emocional e cultural. O verdadeiro batismo de fogo político de Ernesto Che Guevara ocorreria nos
meses difíceis em que o fútil esforço de um modesto militar guatemalteco para mudar a vida tene-
brosa de seus compatriotas se chocou com a implacável polaridade da guerra fria. Sem dúvida,
Guevara j á trazia uma pesada bagagem ideológica em sua mochila puída e descosturada, mas
sairia da Guatemala com baús inteiros repletos de ideias, afinidades, ódios e opiniões.
Ele ficou oito meses e meio no país: uma breve estadia cronologicamente falando, mas uma
eternidade em termos ideológicos. Preencheu seus dias com várias ocupações: a política, tendo
acompanhado de perto o desenlace do drama guatemalteco; a busca infrutífera de um emprego de
médico, enfermeiro ou algo ligado à sua profissão; a luta perene contra a sua enfermidade, e o início
de seu relacionamento com a peruana Hilda Gadea, que viria a ser sua primeira esposa. Pretendia
ficar algum tempo na Guatemala, dois anos se possível, antes de se dirigir ao México, em seguida à
Europa e à China.* Propunha-se ganhar a vida exercendo sua profissão, mas rapida-
(*) “Meu plano para os próximos anos: pelo menos seis meses na gGuatemala, caso não consiga
um emprego bem remunerado que me permita ficar por dois anos [...] trabalharei em outro pais por
um ano [...] Venezuela, México, Cuba, Estados Unidos [...] depois viagens curtas para o Haiti, São
Domingos, Europa Ocidental, provavelmente com a mamãe” (Ernesto Guevara de Ia Serna a Beatriz
Guevara Lynch, 12/2/54, cit. em Guevara Lynch, Aqui vá, op. cit., p. 38).
mente deparou-se com uma contradição comum na maior parte da América Latina: por um lado,
escasseavam os médicos e abundavam as doenças;
por outro, barreiras insuperáveis impediam um médico estrangeiro de exercer sua profissão. O
máximo que ele conseguiu foi um módico salário em um laboratório do Ministério da Saúde, depois
de um período em que vendeu enciclopédias.
No início, seus lamentos eram impregnados de humor: "Fui ver o ministro da Saúde Pública e pedi-
lhe um emprego, mas exigi uma resposta categórica, fosse sim ou fosse não [...] O ministro não me
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desapontou. Deu-me uma resposta categórica: não". Logo o tom de pilhéria daria lugar a uma
amargura: "O filho da puta que deveria me contratar me fez esperar um mês para depois dizer que
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não poderia fazê-lo". O Che enfrentou muitos obstáculos em sua tentativa de trabalhar como
médico. Um deles, de acordo com um caso recorrente, era o fato de que ele não era um membro do
Partido Comunista (cujo nome oficial era Partido Guatemalteco do Trabalho, PGT). Todavia, em sua
correspondência, Ernesto põe grande ênfase na profissão médica "reacionária". Em todo caso, suas
motivações eram cada vez mais financeiras, e Ernesto perdia rapidamente o minguado interesse
que conservava pela medicina. A política e a arqueologia depressa a substituíram rapidamente
como tema de seus estudos.
Ele se queixa em várias ocasiões de não ter podido visitar Petén e Tikal;
só pôde percorrer os povoados do altiplano guatemalteco próximos do lago Atitián.* Vários motivos
— suas intermináveis discussões políticas, o péssimo efeito do clima da Cidade da Guatemala sobre
sua enfermidade e a aproximação crescente com Hilda Gadea — o obrigaram a renunciar ao sonho
de conhecer a cultura maia. Só alguns anos mais tarde, durante uma espécie de lua-de-mel com
Hilda, pôde visitar os sítios arqueológicos da península de Yucatán e Palenque. A efervescência
política e conspiradora na Guatemala merecia longas horas de debates intensos com
revolucionários e espectadores curiosos vindos de muitas regiões: Rojo e os argentinos, os cubanos
recém-chegados, académicos estadunidenses de esquerda (Harold White, de Urah) ou indefinidos
(Robert Alexander, de NewJersey) e sociólogos quase comunistas da América Central, como
Edeiberto Torres e sua filha Myma.
O Che conheceu Myrna, assim como muitos de seus amigos na Guatemala e a seguir no México,
graças a Hilda Gadea, figura decisiva em
(*) Hugo Gambini sustenta que o Che realizou seu sonho de conhecer Petén, mas não fornece
nenhuma fonte ou dado que corrobore a afirmação. (Ver Gambini, El Che Guevara, Buenos Aires,
Editorial Paidós, 1968, p. 91.)
sua vida; porém, a ligação entre eles tinha um caráter mais fraterno e ideológico que romântico ou
erótico. A doença de Ernesto e seu fascínio pela natureza indígena explicam a atração inicial. Hilda
conheceu o Che estendido em sua cama, faminto, tremendo de frio, prostrado após uma de suas
crises asmáticas, em pleno desamparo. Ele pediu ajuda, e ela a deu. Apresen-tou-se como fiadora
do quarto que ele alugou em uma pensão, conseguiu-lhe medicamentos para a asma e livros para
ler, e em poucos dias reorganizou sua vida. À generosidade de Hilda reuniam-se outros atrativos:
tinha traços indígenas e era três anos e meio mais velha que o Che. Seu efémero casamento teve
como fruto uma filha que, muitos anos mais tarde, em Havana, quando lhe perguntaram se
conservava alguma prenda ligada à atração de seu pai por sua mãe, respondeu cheia de tristeza e
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orgulho: "Olhe-me".
O Che se refere a Hilda pela primeira vez em uma carta à mãe datada de abril de 1954. O tom
carinhoso dá a pauta do relacionamento entre eles:
" O mínimo que se pode dizer é que ela tem um coração de platina. Sinto seu apoio em todos os
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atos de minha vida diária (a começar pelo aluguel)". ' Os dois assaltantes dos palácios de inverno
forjaram um vínculo baseado nas afinidades ideológicas e no apoio médico, financeiro e espiritual de
Hilda ao argentino indocumentado. Ela, como muitas peruanas, tinha fortes traços chineses e
indígenas em sua configuração genética. De acordo com várias de suas amigas, sua estatura era
mais para baixa, e ela era cheinha.*
Obviamente, o encantamento de Ernesto pela experiente militante da APRA não se baseava num
ideal de beleza ortodoxo, tendo mais a ver com os seus traços arquetípicos índios e com a maneira
como Hilda assumiu rapidamente muitas das facetas da vida dele, desde a asma e o emprego até a
formação ideológica e a inserção em seu círculo de amigos. Um ano depois, os namorados se
casaram no México, onde nasceria sua filha. A partir de então, o curso do relacionamento já estava
claro em termos de intensidade, significado e futuro. Hilda era diferente o bastante do Che para
seduzi-lo. Mas também diferente demais de Chichina, quase o seu oposto, para despertar nele a
paixão deixada em Malagueno.
(*) Os termos que alguns empregam para descrevê-la, geram todo tipo de dúvida. De acordo com
Rojo, Hilda era "uma jovem com traços exóticos" (Rojo, op. cit., p. 67). Aos olhos de quem? De qual
perspectiva? Outros qualificativos, mencionados inclusive por biógrafos de incontroversa simpatia
pelo Che, mostram-se igualmente desafortunados. "egundo Hugo Gamhini, no grupo de militantes
da APRA alojados na pensão onde vivia o '""e "havia uma garota atarracada, de olhos amendoados,
mas feia, muito feia..." (Hugo Gambini, op. cit., p. 89).

Hilda lembra que Ernesto lhe declarou seu amor por ela e lhe propôs casamento em uma festa. Ela
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sugeriu que esperassem, mais por motivos políticos que emocionais. Boa parte da vida do Che na
Guatemala transcorreu em torno dela: ela cuidava dele, apresentou-lhe amigos, emprestava-lhe
livros, e conversava interminavelmente com ele sobre psicanálise, a União Soviética, a revolução
boliviana e, claro, o dia-a-dia guatemalteco. E difícil estabelecer quanto havia de amor, atração pela
diferença, camaradagem e afinidade ideológica no relacionamento deles. O certo é que Hilda
exerceu uma poderosa influência sobre o jovem revolucionário, e o respeito e o afeto duradouros
dele pela primeira mulher derivaram em boa medida de seu sentimento de dívida.
Tudo, inclusive as recordações da própria Hilda, sugere que o romance foi por muito tempo
platónico. Só se consumou em Cuernavaca, no México, um ano depois, em meados de maio de
1955, quando passaram juntos um fim de semana na cidade adotiva de Malcoim Lowry,* já com a
firme intenção de se casarem, mas ainda impossibilitados de o fazerem por causa dos incontáveis
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entraves migratórios e burocráticos das autoridades mexicanas. De acordo com Hilda, foi o Che
que tomou a iniciativa. Ele insistia no casamento, ao passo que ela cedia a seus pedidos para
cumprir o prometido. O tom do livro de Gadea sugere uma certa relutância da parte dela. Mais
amadurecida do que ele, Hilda intuía que a longo prazo o relacionamento seria difícil, se não
insustentável, e que Ernesto não suportaria os rigores e obrigações de um casamento "burguês".
O casamento foi celebrado em 18de agosto de 195 5, no povoado colonial de Tepotzotián, dias
depois de Hilda descobrir que estava grávida. A relação de causa e efeito é sugerida pela própria
Hilda, que atribui a Ernesto a seguinte frase: "Agora devemos apressar a cerimónia legal e a
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comunicação a nossos pais", no momento em que o informou da gravidez. Um dos biógrafos do
Che emprega as palavras "tinham de se casar", referindo-se a tal decisão." Também um funcionário
soviético que chegou a estabelecer uma amizade íntima com o Che, Oleg Daroussenkov, recorda
uma conversa com ele em Murmansk, em princípios dos anos 60. Depois de alguns tragos de vodca
para combater o frio do Arti-co, o Che confessou que se casara porque Hilda estava esperando um
filho. Havia tomado vários copos de tequila uma noite e isso o conduzira a um gesto absurdo de
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cavalheirismo. Em todo caso, o fato é que não se justificaria atribuir
(*) "Tínhamos reservado um fim de semana para irmos a Cuernavaca [...] assim decidimos nos unir
de fato [...] E assim o fizemos" (Hilda Gadea, p. 116).
a esse relacionamento uma intensidade emociondi decisiva. A Guatemala foi para o Che o país da
iniciação política, não o das paixões primaveris.
Foram tempos cruciais na vida do Che e na história da América Latina: com o início da guerra fria na
região, materializou-se então o estereótipo mais rude e descarado da agressão de uma potência
hegemónica (o imperialismo, no vernáculo da época) contra um regime honesto e bem-intencionado,
mas débil, dividido e medíocre: uma república bananeira por antonomásia. Tudo começou em
novembro de 1950, quando, apenas pela segunda vez em toda a história da Guatemala, celebrou-se
uma eleição democrática para a Presidência da República, vencida pelo coronel Jacobo Arbenz, que
tomou posse em 15 de março de 1951.
Ao chegar ao poder, Arbenz introduziu uma série imprenscindível de reformas económicas e sociais
em um país onde 2,2% da população possuía 70% da terra. O novo governo impulsionou um
ambicioso programa de obras públicas, inclusive a construção de um porto na costa atlântica, uma
estrada até a costa e uma usina hidrelétrica. Esses projetos interferiam nos monopólios existentes,
em mãos da United Fruit Company, de fama legendária e ignominiosa. Em 27 de junho de 1952,
Arbenz assinou o decreto instituindo a reforma agrária, que previa a expropriação dos latifúndios
não cultivados e a indenização dos proprietários com base no seu valor declarado, o que tampouco
agradou a empresa bananeira. O decreto estabeleceu também um imposto sobre a renda — pela
primeira vez na história da nação — e consolidou uma série de direitos trabalhistas, entre eles o
acordo coletivo, o direito de greve, o salário mínimo; mais uma vez, nada que entusiasmasse a
United Fruit.
Washington desencadeou uma política de hostilidade ao regime, por razões económicas — os
interesses da United Fruit —, ideológicas — a participação cada vez mais ativa no governo e no
processo de reforma do PGT, que apesar de suas minúsculas dimensões exercia uma influência
desproporcionada graças à competência e dedicação de seus quadros — e geopolíticas — uma
ténue aproximação de Arbenz com o bloco socialista. Assim, em 1954, Washington lançou uma
campanha explícita para derrubar o governo, se possível com apoio inter-americano. Foi esse o
propósito da conferencia da Organização dos Estados Americanos ocorrida em Caracas, em março
de 1954, na qual a delegação estadunidense, liderada pelo secretário de Estado John Póster Dulies,
pediu abertamente uma condenação do governo de Arbenz. A proposta foi apoiada por todos os
regimes da América
Latina, exceto o do México e da Argentina, o que levou o Che a revisar algumas de suas opiniões
anteriores sobre Perón.* Uma conjunção de pressões externas, desencanto entre as fileiras de
partidários de Arbenz, divisão dentro do exército e a indecisão por parte do presidente desembo-
caram no golpe de junho de 1954. Uma coluna comandada pelo coronel Carlos Castillo Armas,
dirigida e financiada pela CIA, penetrou no território guatemalteco, tendo partido de Honduras, e,
graças a uma sofisticada campanha de propaganda, forçou Arbenz a renunciar, ainda que a
correlação de forças militares não fosse desfavorável a ele.**
Pode-se medir o impacto do capítulo guatemalteco sobre a vida do Che usando dois vetores: sua
análise dos acontecimentos e sua efetiva participação neles. Inicialmente Ernesto se entusiasmou
com o processo de reforma empreendido por Arbenz. Ele escreveu: "não há em toda a América um
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país tão democrático como a Guatemala". No entanto, não deixava de perceber as debilidades
intrínsecas ao processo ("cometem-se arbitrariedades e roubos") e as contradições da política dos
militares (" os jornais mantidos pela United Fruit são tantos que, se eu fosse Arbenz, fecharia todos
em cinco minutos"). Ele compreendeu rapidamente os dilemas enfrentados pelo regime. De um
lado, necessitava do apoio do PGT para implementar as reformas inadiáveis, a começar pela
distribuição de terra;*** de outro, tinha de proteger-se dos ataques norte-americanos, com base na
denúncia de um complô comunista e soviético na Guatemala. Entendeu que o PGT era ao mesmo
tempo o aliado mais leal de Arbenz e também o mais perigoso, em virtude dos efeitos gerados no
exterior. No princípio, ele acreditou que os riscos que o regime corria eram reais, porém a médio
prazo ("creio que o momento mais difícil para a Guatemala acontecerá daqui a três anos, quan-
(*) Um ano mais tarde, Ernesto escreveria a seu pai: "A Argentina é o oásis da América, devemos
dar a Perón todo o apoio possível" (Ernesto Guevara de Ia Sema a Ernesto Guevara Lynch, cit. em
Guevara Lynch, Aqui vá, op. cit., p. 89).
(**) A participação da CIA no golpe de Castillo Armas foi amplamente documentada em anos
recentes. Os livros mais destacados sobre o tema são os de Stephen Schiesinger e Stephen Kinzer,
Bitter fruit. Nova York, Doubleday, 1982, e Piero Gleijeses, The United States and the Guatemalan
Revolutíon, Princeton, Princeton University Press, 1989. O Centro de Estudo de Informação da CIA
comprometeu-se a abrir a totalidade de seus arquivos sobre a Guatemala de 1954; até o momento,
isso não foi feito.
(***) "[Os comunistas] são o único grupo político a solicitar ao governo o cumprimento de um
programa em que os interesses pessoais não contam (talvez haja um ou dois demagogos entre
seus lideres)" (Ernesto Guevara de Ia Sema a Titã Infante, mar. 1954, cit. em Cupull e Gonzáiez,
Cálida presencia, Havana, Editorial Oriente, 1995, p. 53).
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do ela tiver de eleger um novo presidente"; isso a três meses da derrubada de Arbenz). Não
obstante, detectou de imediato a gravidade da ameaça que pairava sobre o governo acossado,
embora ainda em abril de 1954 subesti-masse a proximidade do perigo: "A bananeira está rugindo
e, naturalmente, Dulies e Companhia querem intervir na Guatemala pelo crime terrível que cometeu
ao comprar armas de quem as vendeu, já que os Estados Unidos não vendem nem um único
cartucho há muito tempo".*
Em suas cartas para Buenos Aires, o Che revela uma grande lucidez sobre a natureza da agressão
iminente, mas ao mesmo tempo superestima as forças disponíveis para enfrentá-la. Em 20 de junho
— apenas uma semana antes da renúncia de Arbenz e no mesmo dia em que teve início a pseudo-
invasão conduzida por Castillo Armas, ele escrevia a sua mãe: "O perigo não está no efeti-vo das
tropas que estão entrando no território, pois ele é ínfimo, nem nos aviões, que não fazem mais que
bombardear as casas de civis e metralhar alguns; o perigo está em como os gringos manobrarão os
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seus ajudantes nas Nações Unidas". A razão estava com o novo aprendiz de estrategista.
Simultaneamente, contudo, ele assegurava à mãe que "o coronel Arbenz é um tipo corajoso, sem
dúvida nenhuma, e está disposto a morrer em seu posto caso seja necessário [...] Se as coisas
chegarem ao extremo de ter de lutar contra aviões modernos e tropas enviados pela bananeira ou
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pêlos EUA, ele lutará". E nisso o Che não poderia estar mais equivocado. Uma semana depois,
Arbenz seria forçado a renunciar, sob a pressão conjunta dos Estados Unidos, da coluna "invasora"
em marcha para a capital e dos seus colegas do exército. Não é preciso dizer que, embora
historiadores e testemunhas ainda discutam sobre as consequências de uma hipotética entrega de
armas às milícias operárias e camponesas do PGT, acompanhada de um combate sob a liderança
de Arbenz, o fato é que "o povo" não defendeu de fato o "seu" governo. Guevara o intuiu
perfeitamente, duas semanas mais tarde, quando escreveu à mãe que "Arbenz não se mostrou à
altura dos acontecimentos [...] a traição continua a ser vocação do exército, e uma vez mais se
comprova a máxima que impõe a eliminação do exército como o verdadeiro princípio da democracia
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(se a máxima não existe, eu acabo de inventá-la)".
O Che conclui sua reflexão com amargura: "Fomos traídos por dentro e por fora, tal qual a República
espanhola, mas não caímos com a mesma dig-
(*) Ernesto Guevara de Ia Sema a Célia de Ia Serna de Guevara, maio de 1954, cit. em Guevara
Lynch, Aqui vá, op. cit., p. 49. John Foster Dulies e seu irmão Allen Dulies, direcor da CIA, tinham
vínculos estreitos com o conselho que dirigia a United Fruit Company.
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nidade". Conforme o testemunho de Ricardo Rojo, ele desconfiava do potencial nacionalista e
reformador do regime; na opinião do Che, o governo deveria ter criado milícias populares para
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defender a capital, o que teria evitado a débâcle. Segundo Hilda Gadea, em um artigo que o Che
escreveu por esses dias intitulado "Eu vi a queda de Jacobo Arbenz" — e perdeu quando deixou a
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Guatemala — ele argumentava que o regime teria sobrevivido se tivesse armado o povo. Gadea
afirma: "Ele estava certo de que, caso dissessem a verdade ao povo e lhe dessem armas, a
revolução poderia salvar-se. Mesmo que a capital caísse, seria possível continuar lutando no
interior;
na Guatemala há zonas montanhosas apropriadas".*
Talvez o Che ainda acreditasse, em sua postura juvenil, radical e relativamente ingénua, que era
possível ter tudo: primeiro, um exército que promovesse a reforma e em seguida uma instituição
militar que se tomasse revolucionária de repente e abandonasse o monopólio das armas,
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entregando fuzis aos operários e camponeses. O exemplo das milícias populares da Bolívia, que
tanto o impressionara poucos meses antes, evidentemente inspirava seu raciocínio. Guevara, em
boa medida com razão, atribuiu a derrota de Arbenz à falta de unidade das forças progressistas do
país, à sua carência de decisão e liderança, e à duplicidade das forças armadas diante da investida
violenta dos Estados Unidos.** Mas, na opinião do Che e na realidade, a responsabilidade principal
pelo fracasso da revolução guatemalteca recaía sobre Washington. O grande ensinamento que o
jovem revolucionário argentino extraiu foi a oposição a priori e implacável dos Estados Unidos a
qualquer tentativa de reforma económica e social na América Latina. Convinha então preparar-se
para combater a interferência norte-americana e não buscar formas de evitá-la ou neutralizá-la.
Outra lição se
(*) Hilda Gadea, op. cit., p. 74. É um pouco difícil compreender como o Che poderia saber, nesse
momento, quais zonas montanhosas eram "apropriadas" para a defesa e quais não eram.
(**) Os próprios norte-americanos também detectaram um perigo na formação anterior do exército
guatemalteco e tiraram suas próprias conclusões para a política militar dos EUA na América Latina.
E o que demonstra o seguinte memorandum Top Secret do Conselho de Segurança Nacional,
liberado em 1985: "Buscaremos uma padronização definitiva de acordo com linhas estadunidenses
de organização, treinamento, doutrina e equipamento das forças armadas latino-americanas;
enfrentar as tendências para o esta' belecimento de missões militares europeias, ou de agências ou
indivíduos com funções semelhantes que não procedam dos Estados Unidos, e facilitar a compra de
equipamento norte-americano, oferecendo aos países da América Latina preços competitivos,
entrega rápida e crédito acessível [...]".
refere à liberdade excessiva que, no parecer de Guevara equivocadamente, Arbenz deu aos seus
adversários, em particular na imprensa.*
O Che deveria ter uma experiência política mais vasta, um conhecimento mais sólido de história e
sem dúvida mais maturidade para assimilar com maior discernimento as duras lições da Guatemala.
Ele ainda não sabia quase nada sobre os três grandes países da América Latina. Nunca pusera os
pés no México; sua passagem pelo Brasil limitara-se à contemplação da beleza das mulatas, e sua
vivência na Argentina fora apolítica ou desdenhosa. Os dois países que melhor conhecia eram
talvez os mais pobres e menos desenvolvidos do continente: a Bolívia e a Guatemala. O resto da
América Latina se resumia para ele em Machu Picchu e Chuquicamata, as culturas indígenas e a
United Fruit Company na América Central. Seu conhecimento acerca dos exércitos da região
reduzia-se a Arbenz e aos postos militares de fronteira nos Andes e nos trópicos. O enfrentamento
efetivo entre a empresa bananeira e a república bananeira se torna uma caricatura se extrapolado
para o resto do hemisfério com sua complexa história. A especificidade do caso guatemalteco foi
diluída na visão emocional e às vezes brilhante do Che: particularidades incontestáveis
transformaram-se em generalizações questionáveis. Enquanto a transposição envolveu situações
similares — no caso de Cuba —, produziu conclusões válidas; quando se estendeu a situações
distintas, levou a truísmos e erros fatais.
Na Guatemala, Ernesto Guevara era ainda um pesquisador. A atitude perante os pais ("creio que já
78
deveriam saber que mesmo que esteja morrendo não vou pedir-lhes grana"), os comentários
posteriores ao golpe de 26 de junho ("é um tanto envergonhado que admito ter me divertido imensa-
mente durante esses dias. Aquela sensação mágica de invulnerabilidade [...] fazia com que eu me
babasse de gosto quando via as pessoas correndo como loucas assim que viam os aviões [...] Aqui
foi tudo muito divertido, com tiros, bombardeios, discursos e outras distrações que quebraram a
79
monotonia em que eu vivia") e a explicação dada por sua mãe sete anos mais tarde ("Ele solicita
que lhe permitam colaborar na defesa. Comunicam-lhe que não haverá defesa. Oferece-se para
80
organizá-la. Mas quem é ele? Qual experiência ele tem, afinal?") denotam uma politização
crescente. Ele ainda se
(*) Segundo o testemunho de um dirigente guatemalteco que estabeleceu uma amizade duradoura e
estreita com Guevara na embaixada argentina naquele ano, o Che atirmou: "Deu-se demasiada
liberdade, deu-se liberdade até aos conspiradores e aos agentes do imperialismo para que
destruíssem a democracia" (Rolando Morán, entrevista com lancis Pisani, inédita, posta à disposição
do autor por Pisani, México, DF, 18/11/85).
rebela contra os pais, embora menos do que antes, e sua personalidade política toma-se cada vez
mais definida.
Aos 26 anos, Che Guevara é um grande defensor e admirador da União Soviética. Pretendia dar um
nome russo, Viadimiro, a seu filho (se tivesse tido um homem) em homenagem à pátria do
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socialismo. Como recorda sua esposa, "Guevara demonstrava grande simpatia pelas realizações
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da Revolução Soviética; já eu tinha algumas reservas". O jovem tinha uma evidente inclinação
pelo comunismo, tanto pelo partido guatemalteco* como pelo conceito geral, e havia optado por
engrossar as fileiras do Partido (com P maiúsculo) em algum lugar do mundo.**
Dias após a renúncia de Arbenz, Ernesto pediu asilo na embaixada argentina, depois de um amigo
que trabalhava lá tê-lo avisado de que corria perigo. Embora os riscos reais fossem relativos,*** há
indícios de que as atividades dele foram detectadas. David Atlee Phillips, o chefe da unidade da CIA
na Guatemala durante os acontecimentos de junho, recorda em suas memórias:
Um analista da companhia me apresentou uma folha de papel poucos dias depois do golpe.
Continha informação biográfica sobre um médico argentino de 25 anos que pedira asilo na
embaixada do México [sic] [...] "Parece-me que seria melhor fazermos uma ficha", disse eu. Embora
seu nome significasse pouco para mim naquele momento, a ficha de Ernesto Guevara [...] chegaria
a ser uma das mais volumosas da CIA.****
(*) "Tomei uma posição firme do lado do governo guatemalteco, e dentro dele no PGT, que é
comunista, relacionando-me bastante com intelectuais desta tendência que editam uma revista aqui,
e estou trabalhando como médico nos sindicatos" (Ernesto Guevara de Ia Sema a Beatriz Guevara
Lynch, 12/2/54, cit. em Guevara Lynch, Aqui vá, op. cit., p. 38).
(**) "Depois da queda [...] os comunistas foram os únicos a manter sua fé e seu companheirismo
intatos e são o único grupo que continuou em trabalho [...] Cedo ou tarde entrarei no Partido". E o
Che acrescenta, em um rompante de candura e entusiasmo: "O que me impede de fazê-lo é que eu
tenho uma vontade enorme de viajar pela Europa" (Ernesto Guevara de Ia Sema a Célia de Ia Sema
de Guevara, nov. 1954, cit. em ibidem, p. 80).
(***) "O Che ficou até o último e depois saiu. Na realidade, não havia nada contra ele, nem ordem
de captura, nem nada. Ele pôde sair da Guatemala legalmente" (Morán, op. cit.).
(****) David Atlee Phillips, The rúght watch. Nova York, Atheneum, 1977, p. 54. É difícil saber se
Phillips fabricou essa lembrança anos depois, para mostrar sua presciência, ou se de fato fez uma
ficha do Che na Guatemala. A ficha não figura nos arquivos liberados pela CIA.
Sua condição na embaixada correspondia mais à de hóspede que à de refugiado político, o que lhe
permitia sair com alguma frequência.* Passou aproximadamente um mês ali, acompanhado de
muitos argentinos, mas também de jovens de outros países e da própria Guatemala, entre eles, o
futuro fundador e dirigente do Exército Guatemalteco dos Pobres (EGP), Rolando Morán, e Tuia
Alvarenga, já então companheira do secretário-ge-ral do Partido Comunista de El Salvador,
Cayetano Carpio (mais tarde o legendário Marcial da época da Frente Farabundo Martí de
Libertação Nacional, a FMLN). Formou-se na embaixada argentina um contingente comunista
liderado por Víctor Manuel Gutiérrez, segundo homem do PGT, que rapidamente foi separado dos
demais e confinado na garagem da casa. O Che juntou-se a eles, como recorda Morán, que iniciou
então uma longa amizade com Ernesto. O grupo mais próximo ao Che na embaixada foi claramente
83
o dos comunistas.
Já estamos diante de um indivíduo que mostra uma curiosidade política insaciável, aliada à
carência de espírito militante; com opiniões políticas de esquerda, mas desprovidas de uma
formação marxista.** Trata-se do sobrevivente de uma derrota trágica, e previsível, que
universalizaria seus ensinamentos. A necessidade da luta armada, a convicção sobre a hostilidade
implacável dos Estados Unidos e a impossibilidade de negociar com Washington, a afinidade com
os partidos comunistas e a União Soviética, o imperativo de cortar o caminho dos adversários antes
que eles tirassem vantagem das liberdades em vigor: eis aqui uma série de convicções que se con-
solidariam no México ao longo dos dois anos seguintes. Elas acompanhariam o Che na sierra
Maestra, e em seu primeiro período em Havana, apenas paulatinamente temperadas por sua
excepcional inteligência e realismo, assim como pelas lições demolidoras que a realidade haveria
de impor-lhe, para seu profundo pesar.
O Che não pôde participar da defesa do regime; ninguém o quis, e as versões sobre seu suposto
arivismo desenfreado procurando organizar uma
(*) "E que tecnicamente o Che não era um refugiado em busca de asilo, pois era um argentino que
estava, poderíamos dizer, sob a proteçao de sua embaixada" (Morán, op. cit.).
(**) "Para falar com absoluta honestidade [...] Ernesto e eu, embora já sob grande influência da
ideologia do marxismo-lenimsmo, ainda conservávamos em nosso pensamento político ideias
próprias das teses populistas tão em voga" (Alfonso Bauer Paiz, entrevista a Aldo Isidrón dei Valle,
cit. em Testimonios sobre ei Che, Havana, Editorial rabio de Ia Torrente, 1990, p. 80). Bauer Paiz foi
um dos grandes amigos do Che durante sua estadia na Guatemala.
reação miliciana na Cidade da Guatemala são simplesmente falsas.* Em algumas declarações
atribuídas a ela, por ocasião da morte do Che, Hilda Gadea afirma que de fato ele participou em
84
grupos de defesa antiaérea e no transporte de armas de um lado da cidade para outro, mas no
seu livro limita-se a mencionar a intenção frustrada de fazê-lo por parte do companheiro. Em uma
entrevista na sierra Maestra, o Che permitiu a si mesmo certa licença poética a respeito, afirmando:
"Tratei de formar um grupo de homens jovens como eu para fazer frente aos aventureiros
bananeiros da United Fruit. Na Guatemala era preciso lutar, e quase ninguém lutou. Era
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imprescindível resistir, mas quase ninguém quis fazê-lo". Os biógrafos oficiais cubanos (ou
"cronólogos", como às vezes se autodesignam) retomam a tese do traslado de armas e da
"intenção" de agrupar jovens para combater, mas não fornecem nenhuma fonte nem apresentam
M
provas. O máximo que o Che menciona nas cartas — e podemos supor que, caso ele tivesse feito
outra coisa, teria contado a algum de seus múltiplos correspondentes — é que se alistou no serviço
médico de emergência e "me inscrevi nas brigadas juvenis para receber instrução militar e ir aonde
87
quer que fosse. Mas não creio que a água chegue ao rio". Isso uma semana antes do golpe que
derrubou Arbenz.
Abatido pela derrota mas decidido a seguir adiante, Ernesto Guevara desistiu de voar para casa no
avião enviado por Perón para repatriar os exilados argentinos. Em vez disso, resolveu viajar para o
México enquanto o perigo ainda não tivesse passado. Em fins de agosto, deixou a missão
diplomática; conseguiu ver Hilda, que fora presa uma vez, tendo sido libertada poucos dias depois.
Combinaram encontrar-se no México quando pudessem. Enquanto esperava seu visto, o Che partiu
com seu saco de dormir rumo a Atitián, onde passou alguns dias à margem de um dos mais belos
lagos do mundo. Em meados de setembro ele chegava à Cidade do México, capital da corrupção,
88
como escreveu a sua tia Beatriz.
Levou da Guatemala vários tesouros, entre eles a amizade e simpatia para com os cubanos
exilados que conheceu e a admiração que eles lhe provocaram:
Quando eu ouvia os cubanos fazerem afirmações grandiloqüentes com uma absoluta serenidade,
sentia-me minúsculo. Posso fazer um discurso dez vezes
(*) Por exemplo, esta, procedente de "investigações realizadas por uma equipe de funcionários da
Seção de História do Departamento de Política das Forças Armadas Revolucionárias": "O golpe do
traidor Carlos Castillo de Armas [sic] aconteceu no mesmo dia em que o Che, alistado no exército da
Guatemala, estava para ser enviado ao front" (Centro de Estúdios de Historia Militar, De Tuxpan a
La Plata, Havana, Editorial Orbe, 1981, p. 10).
mais objetivo e sem lugares-comuns, posso lê-lo melhor e posso convencer o público de que estou
dizendo a verdade, mas eu convenço a rnim e os cubanos o fazem. N iço deixava sua alma no
89
microfone, e por isso entusiasmava até um cético como eu.
Nico, seu primeiro amigo cubano de verdade, é Nico López, que participara do assalto ao quartel de
Batamo — uma operação cuja finalidade era impedir que chegassem reforços a Santiago de Cuba e
ao Meneada — e lhe contou não só pormenores da façanha, mas também descreveu as virtudes de
seu líder, Fidel Castro. Conheceu Nico, Mário Dalmau e Darío López nos cafés e bate-papos dos
intensos meses anteriores à queda de Arbenz. O vínculo entre eles se fortaleceu a seguir, na
embaixada argentina, onde o Che os assistia como médico, lia para eles seus textos sobre a
Guatemala e os pôs em contato com sua família em Buenos Aires quando partiram para o Sul no
Constellation enviado por Perón. Os cubanos recordam três características do Che: a solidariedade
para com eles, sempre que podia ajudar; as eternas dificuldades financeiras dele, e as conversas e
escritos nos quais expunha suas opiniões antiimperialistas e argumentos em favor da defesa
90
armada da capital. Em sua bagagem levava uma última recordação da Guatemala: o apelido que
os amigos tinham posto nele, por causa de sua nacionalidade e modo de falar — o Che.
Os primeiros meses no México, em fins de 1954, não foram fáceis para Guevara: sem dinheiro, sem
trabalho, sem amigos. Tinha apenas o endereço de vários conhecidos de seu pai, um deles, um
roteirista de cinema chamado Ulises Petit de Murat, recebeu-o afetuosamente. O Che comprou uma
máquina fotográfica e, junto com um companheiro que havia conhecido durante a viagem de trem
depois de passada a fronteira guatemalteca, começou a ganhar a vida tirando fotos de turistas
norte-americanos nas ruas da Cidade do México. Conseguiu um mal remunerado emprego de
pesquisador de alergia no Hospital Geral, na equipe do dr. Mário Salazar Mallén, mas, como ele
dizia, "não faço nada de novo".* Confessa que se organizou um pouco mais: "Faço minha comida,
além de tomar banho todo dia, [mas] lavo roupa poucas vezes". Pretendia ficar em tomo de seis
meses no México e depois visitar os Estados Unidos, a Europa e a seguir os países
(*) Exceto escrever o esquema de um ambicioso livro, que nunca escreveria, sobre o médico na
América Latina, cuja elaboração iniciou nos momentos livres na Guatemala. Teria catorze capítulos,
incluindo uma espécie de história da medicina latino-americana, assim como reflexões diversas
sobre o contexto económico, político e social da medicina no continente. (Ver Maria dei Carmen
Ariet Garcia, cit. em Korol, El Che, op. cif, p. 101).
socialistas da Europa Oriental e a União Soviética. Flertava com a possibilidade de obter uma bolsa
de pós-graduação em alguma universidade europeia, graças a seus trabalhos científicos já
publicados e a sua experiência como pesquisador com o dr. Pisani, em Buenos Aires.
As primeiras impressões do México não foram particularmente gratas:
"O México está totalmente entregue aos tanques [...] A imprensa não diz absolutamente nada [...] A
situação económica é terrível, os preços sobem de'maneira alarmante e a degradação é tamanha
que todos os líderes operários estão comprados e fazem contratos iníquos com as empresas ian-
ques, em troca da extinção das greves [...] Não existe indústria independente, muito menos
91
comércio livre".
Em março de 195 5, uma agência de notícias argentina contratou o Che como fotógrafo para cobrir
os Jogos Pan-americanos. Quando tinha tempo, ele redigia artigos científicos sobre alergia e tomou
parte em um congresso em Veracruz. Graças a essas atividades, conseguiu uma bolsa do Hospital
Geral que lhe permitiu viver com mais folga. Participava de excursões exóticas, delirantes para um
asmático, como a escalada do Popocatépeti e do pico de Orizaba:
Assaltei o Popo, mas, apesar do heroísmo, não consegui chegar ao cume. Eu estava disposto a
morrer para atingi-lo, mas um cubano que é meu companheiro de escaladas me assustou porque
dois dedos de seus pés haviam se congelado [...] Tínhamos lutado por seis horas com neve, que a
cada passo nos enterrava até a virilha, com os pés encharcados, já que não tivemos o cuidado de
levar o equipamento adequado [...] O guia se perdera na neblina ao contornar uma fenda na geleira
[...] e estávamos todos exaustos em consequência da neve mole e infinita [...] Os cubanos não
sobem mais; mas eu, assim que j untar um dinheirinho, vou de novo desafiar o Popo, e em setembro
92
o Orizaba.
Ele explorou também os arredores da Cidade do México, mas não empreendeu nesses meses
nenhum dos passeios que normalmente o teriam atraído, assim como atraem muitos outros
estrangeiros. Seu abatimento por tudo era tamanho que ignorou as deslumbrantes belezas do país,
que já fascinaram tantos viajantes, detendo-se unicamente nos defeitos— indiscutíveis mas
insignificantes para uma pessoa tão sofisticada como ele era agora. Desde novembro de 1954
passara a se encontrar de novo com Hilda. Foi outra vez graças a ela que começou a relacionar-se
com militantes e políticos de outros países, entre eles Laura de Albizu Campos, esposa do
nacionalista porto-riquenho encarcerado pelo governo dos Estados Unidos. A relação do Che com
Hilda era complexa e contraditória, como já mencionamos: o cari
nho e a lealdade do Che para com a exilada peruana eram contrabalançados por um certo
distanciamento. Hilda não fazia parte de seus planos: não aparecia em seus sonhos de viagens,
aventuras e ocupações. Nas palavras de Paço Ignacio Taibo li, Ernesto Guevara era, naquele
momento, essencialmente um andarilho, um fotógrafo ambulante, um pesquisador médico mal pago,
um exilado permanente e um marido insignificante — um aventureiro
9
de fim de semana. '
Um dia, no hospital, topou casualmente com Nico López, refugiado no México ao fim de um longo
percurso desde a Guatemala, via Argentina, que
fora consultar um amigo do Che.
Em meio a essa existência apática e arrastada, ainda que esperançosa, surgiu a chance de
encontrar aquilo que faz a diferença entre a epopeia e o simples tédio. A sorte se somou à
disposição de agarrar a oportunidade. Em junho, o médico argentino nómade foi apresentado a Raul
Castro, líder estudantil cubano recém-saído de uma prisão de Havana. Poucos dias depois, o irmão
deste chegou ao México, e Raul levou o Che para conversar com ele. Foi em julho de 1955 que
Ernesto Guevara conheceu Fidel Castro e descobriu o caminho que o conduziria à glória e à morte.
4 NO FOGO COM FJDEL
Fidel Castro chegou à Cidade do México de ônibus em 8 de julho de 1955, vindo de Veracruz,
Mérida, Havana e do presídio da islã de Pinos, em Cuba. Trazia um temo, nenhum centavo, e a
cabeça repleta de ideias audaciosas que três anos depois abririam seu caminho para a história.
Passara 22 meses na prisão por ter planejado o assalto de 26 de julho de 1953 ao Quartel
Meneada; devia sua libertação à temerária anistia decretada pelo ditador Fulgencio Batista. Dirigiu-
se de imediato ao México, com um único objeri-vo em mente: dar início a uma insurreição contra a
ditadura de Batista.
Ex-líder universitário e jovem político militando no Partido Ortodoxo, Castro provinha de um país
encantador e atormentado com apenas 6 milhões de habitantes, devastado por meio século de
independência tardia, turbulenta e incompleta. Em l O de março de 195 2, Batista liderara uma clás-
sica quartelada na véspera das eleições presidenciais. Diante da expectativa de um sombrio
desempenho de sua parte, o ex-sargento preferira pôr um termo ao único lapso de governo
democrático que o país já conhecera. As eleições foram suspensas e o governo constitucional no
poder desde 1940 foi interrompido. Apesar das grandes mobilizações e protestos, somente três
anos mais tarde o regime sentiu-se forte o bastante para indultar seus principais adversários — um
erro fatal.
Espécie de semicolônia dos Estados Unidos, a maior ilha das Antilhas se beneficiava enormemente
do boom norte-americano dos anos 50. Os preços do açúcar — desde tempos imemoriais a única
monocultura carihe-nha — permaneceram estáveis durante a década, permitindo um modesto
porém seguro crescimento per capita. A safra, estagnada entre 1925 e 1940,
voltou a crescer moderadamente — um elemento decisivo, já que a metade da terra cultivada de
Cuba era destinada à cana. O setor açucareiro representava 50% da produção agrícola, um terço da
produção industrial e 80% das exportações; empregava 23% da força de trabalho e gerava 28% do
PIB.' Quase a metade do açúcar produzido era exportada para os Estados Unidos:
a monocultura significava, de fato, um só destino.
Os turistas da costa Leste dos Estados Unidos faziam de Cuba seu play-ground. A construção de
hotéis expandia-se; proliferavam cabarés, casas de veraneio e bordéis. Uma classe média dedicada
ao serviço e prazer dos turistas crescia a passos largos. A capital caribenha do entretenimento se
regozijava com o aumento de consumo e prosperidade que estava ilusoriamente identificado ao
restante do país. Os norte-americanos, até os anos 50 proprietários da maioria das usinas
açucareiras, continuavam a dominar tudo o mais: a economia, a política e, acima de tudo, a
psicologia coletiva — para sorte e alegria de alguns, desgraça e humilhação de outros.
Os índices de renda per capita, alfabetização, urbanização e bem-estar figuravam entre os mais
elevados da América Latina. Ocultavam, todavia, uma desigualdade descomunal entre a capital,
algumas cidades do Leste e o resto do país, entre a cidade e o campo, e, em especial, entre
brancos e negros. E fato que a exata posição de Cuba na América Latina, no que se refere aos
dados estatísticos, se converteria em um dos pontos de grande controvérsia nos anos seguintes.
Em 1950, a renda per capita de Cuba só era superada pela da Argentina e do Uruguai —
2
logicamente —, assim como pelas da Venezuela e da Colômbia. A expectativa de vida, em 1960,
alcançava quase sessenta anos, a mais elevada do hemisfério depois das duas repúblicas do Prata.'
A proporção de médicos ou leitos hospitalares por habitante também estava entre as melhores da
América Latina, e as principais causas de mortalidade entre adultos eram aquelas típicas de países
ricos:
tumores malignos e distúrbios cardiovasculares. Os níveis educacionais tampouco ficavam atrás.
Em fins da década, Cuba ocupava o quarto lugar na América Latina, vindo após a Argentina, o
4
Uruguai e a Costa Rica.
A distribuição da renda, contudo, em virtude da monocultura do açúcar e do consequente
desemprego em massa durante nove meses do ano, era das mais injustas do continente. No final da
década de 50, a porção da renda nacional correspondente aos 20% mais pobres da população
representava apenas 2,1% do total, ou seja, um terço da cota equivalente na Argentina e menos que
5
a correspondente no Peru, México e Brasil. Quase todos os indicadores sociais e económicos
registravam discrepâncias entre a cidade e
o campo, e sobretudo entre Havana e o resto da nação. Com 26% da população do país, a capital
acumulava, em 1958,64% da renda nacional. Assim, às vésperas da conspiração de Castro tramada
na Cidade do México, Cuba possuía uma classe média relativamente ampla (em torno de um terço
da população), o que era razoavelmente próspero para os padrões latino-ame-ricanos. Mas era
também um país por demais desigual, profundamente dividido em termos de raça, geografia e
classe.
Os princípios políticos de Cuba, portanto, eram um tanto bizantinos. Assim como os próprios
cubanos, eram violentos, passionais, intrincados e personalizados. E o assalto a Moncada foi
excepcional em razão das cruéis represálias exigidas pela nova ditadura de Batista; mas não foi
uma ocorrência incomum. Não surpreendia a ninguém que um grupo de agitadores tentasse
derrubar o governo com um espetacular coup de main. Tampouco parecia inusitado que a luta de
Fidel Castro se concentrasse inicialmente na restauração da ordem constitucional de 1940, como
ficou claro durante a épica defesa que apresentou em seu próprio julgamento. Com certeza, à época
do golpe, o regime constitucional instalado em 1940 tinha poucos partidários em Cuba. No entanto,
em um clima de corrupção, violência e desordem generalizada, a Constituição de 1940 era um
símbolo de esperança para amplos setores da população.
O traço distintivo da política e da cultura cubana, porém, eram sem dúvida as intermináveis dores do
parto da república. Desde a guerra de 1898 contra a Espanha e da Emenda Platt de 1902 —
segundo a qual os Estados Unidos se reservavam o direito de intervir nos assuntos internos de
Cuba caso a ordem pública se visse ameaçada —, a ilha vivia em uma espécie de purgatório
nacional. Superara o inferno do regime colonial, mas sem alcançar o suposto paraíso da
independência. O desejo de Cuba de se tornar independente foi frustrado. Os Estados Unidos
ganharam a guerra, e Cuba perdeu a chance de se emancipar. Em 1902, os sobreviventes da longa
batalha (seus principais heróis, como José Martí e António Maceo, já haviam morrido, e Máximo
Gómez estava exausto e isolado) viram-se obrigados a escolher entre a aceitação da independência
nos termos da Emenda Platt e, na prática, a condição de colónia. A soberania nacional de Cuba foi
ferida ao nascer. O trauma que resultou disso duraria pelo menos meio século, e suas sequelas se
fariam sentir até o final do milénio. Não admira que o povo cubano conserve até hoje um obstinado
— e com frequência desconcertante — nacionalismo.
A vida política em Cuba entre a Emenda Platt e sua revogação em 1934 refletiu o pecado original no
coração da república. Desde o fim do domínio
espanhol até 1933, a política na ilha se caracterizara pela fraude eleitoral, a corrupção e a constante
ingerência dos Estados Unidos para restaurar a ordem, proteger seus interesses e mediar entre as
diferentes facções da elite cubana. O descontentamento do povo, o das classes dirigentes crioiïos e
o da baixa oficialidade do exército finalmente irromperam em 1933. Uma revolta inevitável, liderada
por António Guiteras, pôs fim a uma trágica etapa da história independente de Cuba. Porém, a
coalizão reformista surgida da revolução mostrou-se insustentável. Mal teve tempo de rescindir a
Emenda Platt, logo foi derrubada pela chamada Rebelião dos Sargentos dirigida por Fulgencio
Batista. O sargento mulato estabeleceu-se no poder até 1940, quando foi eleito presidente sob uma
nova Constituição.
A revolta militar modificou os parâmetros básicos da vida política em Cuba. A revogação da Emenda
Platt e a consolidação dos setores económicos nacionais foram acompanhadas pela emergência de
um poderoso movimento operário e do Partido Comunista. Por meio da Confederação de
Trabalhadores de Cuba (CTC), a classe trabalhadora organizada desempenhou um papel
considerável nas coalizões de apoio a Batista e a seu sucessor na Presidência em 1944, Ramón
Grau San Martín.* Embora nunca tivesse recebido mais que 7% dos votos, o Partido Comunista —
cujo nome em 1944 passou a ser Partido Socialista Popular (PSP) — conquistou um lugar
proeminente na ilha, e principalmente em Havana. Sua influência ia além dos números, graças à
honestidade e dedicação de seus quadros e militantes, e à sua ascendência sobre os sindicatos.
Os comunistas eram ativos também no Congresso e nos governos de Batista e Grau. Juan
Marinello, o líder do partido, foi nomeado ministro sem pasta em fevereiro de 1942; pouco depois,
Carlos Rafael Rodríguez, um economista de 31 anos, também foi nomeado ministro no gabinete.**
Assim, o PSP e o setor da classe operária sob sua égide foram protagonistas na política cubana até
serem expulsos dos sindicatos em 1947, no começo da guerra fria. Quando reapareceram em 1958,
às vésperas da queda de Batista,
(*) Exemplo dessa força foi o índice de sindicalização alcançado às vésperas da Revolução:
aproximadamente l milhão de trabalhadores pertenciam a algum sindicato. (Ver Hugh Thomas,
Cuba: Ia lucha por Ia libertad, 1909-1958, Barcelona e México, Grijalbo, 1974, t. 2, p. 1512.)
(**) O talento de Rodríguez para a sobrevivência e a diplomacia suplanta o de Talleyrand: meio
século mais tarde (até o inicio dos anos 90, quando adoeceu) ele continuava ocupando um alto
cargo no governo, possivelmente como o terceiro da hierarquia revolucionária de Cuba.
e sobretudo após o triunfo da Revolução Cubana, não estavam surgindo do nada. Sua
reemergência derivava de uma longa tradição e de uma história significativa, ainda que nem sempre
gloriosa.
A corrupção, o gangsterismo e a agitação social marcaram os sucessivos quadriénios das
administrações de Batista, Grau e Carlos Prío Socarrás, culminando no golpe de 1952. Os partidos
políticos de Cuba e o Congresso foram suspensos; os cargos de presidente e de vice-presidente
foram abolidos. Um novo código constitucional foi promulgado, incluindo a revogação automática
dos direitos e liberdades individuais em determinadas circunstâncias. Ninguém defendeu o regime
derrubado, de Prío Socarrás, alinhado com o partido "Autêntico", inimigodo "Ortodoxo". Os cidadãos
estavam fartos dos dois partidos tradicionais. Sua rivalidade interminável e suas divisões internas,
loquazes mas com frequência infundadas ou irrelevantes, contribuíram para o desencanto da
população. O golpe de Batista, em 1952, sem dúvida careceu do apoio popular— mas o status quo
tampouco o tinha.
Logo depois, militares de média patente, velhos políticos e jovens universitários se lançariam à luta
contra a ditadura, por vias distintas e com diferentes perspectivas de êxito. Um deles, Fidel Castro,
um advogado "ortodoxo" de origem galega, candidato ao Congresso em 1952, mobilizou mais de
150 oposicionistas inflamados em uma desesperada tentativa armada de derrubar a ditadura.
Fracassaram, foram violentamente reprimidos e encarcerados, mas conquistaram um lugar
privilegiado na imaginação do povo cubano e entre as classes médias de Havana e Santiago. Com
efeito, ao assaltar Mon-cada, Fidel Castro consagrou-se como uma figura central na turbulenta
política de Cuba. A partir do México, e por meio de seu grupo embrionário, o Movimento Vinte e Seis
de Julho, tomou-se a ponta-de-lança do grupo oposicionista mais íntegro e intransigente,
rechaçando qualquer contempo-rização com Batista. Afastou-se, assim, dos partidos tradicionais e
inclusive do Partido Socialista Popular, que repudiou o ataque ao quartel.*
Em um país onde a corrupção e a crise institucional eram endémicas desde a independência e as
afinidades partidárias infinitamente mais débeis que as lealdades pessoais, havia uma extrema
ânsia de liderança honesta, radical e audaz. E em uma nação amorfa, onde a intervenção dos
Estados
(*) "Nós condenamos os métodos putchistas, próprios dos grupos burgueses, empregados na ação
em Santiago [...] O heroísmo dos participantes dessa ação é falso e estéril, pois guiado por ideias
burguesas equivocadas [...] Todo o país sabe quem organizou, inspirou e dirigiu a ação contra o
quartel, e sabe que os comunistas não têm nada a ver com ela" {Daily Worker, Nova York, 5/8/53 e
10/8/53, cit. em Thomas, Cuba, op. cit, p. 1090).
Unidos era um fato inevitável e congénito, uma personalidade capaz de captar a necessidade
popular de recuperar o amor-próprio da ilha encerraria enorme potencial. Faltavam apenas alguns
detalhes teóricos e um pouco de sorte. O encontro de Fidel Castro com Che Guevara proporcionaria
ao primeiro ambos os ingredientes. O último extrairia dele a convicção profunda de que "vale a pena
6
morrer em uma praia estrangeira por um ideal tão puro".
Nem os biógrafos de Fidel Castro nem os do Che concordam sobre a data exata do primeiro
encontro dos dois revolucionários: julho, agosto ou setembro de 1955. Só é certo que Raul Castro, o
irmão mais novo de Fidel, conheceu o Che graças a Nico López. Raul — que advogava "ideias"
7
comunistas, segundo Hilda Gadea — já era um militante experiente no movimento comunista
internacional, tendo participado do Festival da Juventude de Viena em 1951. Ao retornar da Europa
de navio, conheceu um personagem-chave para sua história: Nikolai Leonov, então um jovem
diplomata da URSS que se dirigia ao México para estudar espanhol. Leonov posteriormente
trabalharia como tradutor para o comando soviético, e seria um dos primeiro elos entre Moscou e a
Revolução Cubana; já nos anos 80, seria general reformado da KGB.
N a oração fúnebre ao Che, em 18 de outubro de 196 7, Fidel Castro mencionou os meses de julho
e agosto de 1955 como data do primeiro encontro deles." E improvável que eles tenham se
conhecido poucos dias após a chegada do cubano, embora Castro tenha assinalado em um
9
discurso no Chile, em 1971, que conheceu o Che "poucos dias depois de sua chegada ao México".
Hilda Gadea relata em suas memórias que o Che contou-lhe que conheceu Fidel "em princípios de
10
julho". Já o relato semi-oficial das forças armadas cubanas assevera que a amizade entre eles
remonta a setembro de 1955." Nem as biografias do Che, nem as mais recentes biografias de Fidel
Castro, fornecem informações adicionais, embora muitas afirmem que os dois estiveram juntos nas
12
comemorações do Vinte e Seis de Julho em 1955.
A data precisa só é importante se a versão consagrada de um fascínio mútuo e instantâneo for um
exagero. Contudo, não parece impossível que os dois jovens tenham se conhecido e inclusive
trocado algumas palavras antes de terem a depois célebre conversa de uma noite inteira, em que
selaram uma lealdade e um respeito mútuo que durariam mais de uma década. Em todo caso, a
afinidade entre eles daria estrutura conceituai à brilhante intuição política de Castro e sentido à vida
do Che. O Che evocou aquela noite pouco tempo depois:
Conheci-o durante uma daquelas noites mexicanas frias, e lembro que nossa primeira discussão foi
sobre política mundial. Poucas horas depois — de
madrugada —, eu já era um dos futuros expedicionários. Na realidade, depois da experiência vivida
em minhas caminhadas por toda a América Latina e do arremate na Guatemala, não era difícil
incitar-me a participar de qualquer revolução contra um tirano, mas Fidel impressionou-me como um
homem extraordinário. As coisas mais impossíveis, ele encarava e resolvia [...] partilhei do seu
otimismo. Era hora de fazer, de combater, de planejar. De deixar de chorar para começar a lutar."
Em seu diário de viagem, escrito impulsivamente, Guevara anota: "É um acontecimento político eu
ter conhecido Fidel Castro, o revolucionário cubano, um jovem inteligente, muito seguro de si e dono
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de extraordinária audácia; creio que simpatizamos um com o outro". O comentário, mais
espontâneo e imediato que o anterior, confirma o impacto e a admiração que Castro provocou no
argentino. Também revela que, desde o primeiro momento, o Che detectou os principais traços do
caráter de Castro, os bons e os maus.
Fidel Castro, por sua vez, conservou uma lembrança precisa da reunião na casa de Maria Antonia,
na rua de Emparán, em que se tornaram amigos:
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"Em uma noite ele se transformou em um futuro expedicionário do Gran" ma". Castro também
contou em uma confissão ainda mais interessante — porque feita dez anos mais tarde — que "o
desenvolvimento revolucionário [do Che] estava mais avançado que o meu, ideologicamente
falando. Do ponto de vista teórico, tinha uma formação melhor, era um revolucionário mais
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avançado que eu". Uma namorada de Fidel, que também foi amiga do Che e de sua esposa,
corrobora a avaliação de Castro:
A paixão de Fidel por Cuba e as ideias revolucionárias de Guevara se uniram como a chama de
uma centelha, em um intenso clarão de luz. Um era impulsivo, o outro ponderado; um emotivo e
otimista, o outro frio e cético. Um esta' vá ligado unicamente a Cuba; o outro, vinculado a uma
estrutura de conceitos económicos e sociais. Sem Ernesto Guevara, Fidel Castro talvez jamais
tivesse se tomado um comunista. Sem Fidel Castro, Ernesto Guevara talvez jamais tivesse sido algo
além de um teórico marxista, um intelectual idealista.''
Sabemos, contudo, que, apesar de ter lido Marx e Lenin no México,* o Che tinha apenas uma
formação desestruturada e autodidata na teoria
(*) Sua esposa menciona -outros livros: Insurgem México, de John Reed, e, já durante os
preparativos para a expedição cubana, Keynes, Smith e Ricardo, assim como vários romances
soviéticos. (Ver Gadea, op. cit., pp. 110, 147-8). Porém, Juan Ortega Arenas, amigo do Che no
México e um de seus principais provedores de livros, lembra que ele solicitava sobretudo literatura
marxista. (Juan Ortega Arenas, entrevista com o autor, México, DF, 23/5/96.)
marxista, e um mero conhecimento superficial de história, filosofia e economia. Sua experiência
política na Guatemala e sua visão dos acontecimentos assemelhavam-se às de um espectador
apaixonado e perceptivo — mas, afinal de contas, distante. A explicação apresentada pêlos
biógrafos de Castro (ou dos que conheceram os dois homens na época) é de fato atraente: postula
uma amizade baseada em personalidades e talentos semelhantes. Mas a eminência intelectual ou
teórica atribuída ao Che por Fidel e outros deve ser restringida. Em 1955, o Che era um leitor
esporádico dos textos marxistas, um homem interessado pêlos acontecimentos mundiais que trazia
consigo a bagagem cultural humanista já descrita. Veio de uma família de leitores, tinha recebido
uma excelente educação pré-universitária e um curso superior adequado, e era imensamente
curioso por tudo o que o rodeava. Porém, ele mesmo confessou, um ano depois: "Antes eu me
dedicava precariamente à medicina e passava o tempo livre estudando São Kari [Marx] de uma
maneira informal. Esta nova etapa de minha vida exige uma mudança nas prioridades: agora São
Kari vem em primeiro lugar, é o eixo".*
Ernesto Guevara não era ainda um homem de letras ou de especulação teórica infindável. Assim o
sugere uma conversa (sem fonte) atribuída aos dois homens por um biógrafo do Che em tomo do
programa do Movimento Vinte e Seis de Julho: "Fidel: Escuta, rapaz, tudo isto não lhe interessa?
Guevara: Interessa, sim, claro que sim... Mas... não sei, che. Eu formaria primeiro um bom exército
[...] e depois de ganhar a guerra, teríamos que conversar...".** O Che, mais que um pensador ou um
teórico, era naquele momento alguém que buscava uma saída para a vida dependente no Méx iço e
a perspectiva desagradável de um retomo prematuro à Argentina. Ele brindava seus interlocutores
com uma certa serenidade conceituai, uma cultura humanista e uma estrutura histórica e
internacional capaz de abranger um programa político. Castro, em compensação, era um homem de
ação por excelência. Deve ter ficado fascinado pela visão sofisticada e cosmopolita do Che, que
sempre admiraria mas nunca conseguiria alcançar; porém, não
(*) Ernesto Guevara de Ia Serna a Célia de Ia Serna de Guevara, out. 1956, cit. em Ernesto
Guevara Lynch, Aqui vá, Buenos Aires, Sudamerica/Planera, 1987, p. 150.
(**) Gambini, op. cit., p. 105. Castro confirma o teor dessa conversa na já citada entrevista com Lee
Lockwood: "Mas naqueles dias [do México] não falávamos desses assuntos [a teoria revolucionária].
O que discutíamos era a luta contra Batista, o plano Para desembarcar em Cuba, começar a
guerrilha... Foi o temperamento combativo do Che, como homem de ação, que o impulsionou a unir-
se à minha luta" (Fidel Castro, cit. cm Lee Lockwood, op. cit., pp. 143-4).
seria então, nem mais tarde, verdadeiramente sensível à influência de Gue-vara. Sentia, sim,
confiança e respeito por ele — por esses motivos e pela simpatia natural do argentino —,
cimentando as bases para que, alguns anos depois, o "líder máximo" prestasse muita atenção no
Che, em virtude de sua valentia e dedicação à causa, mas não por sua habilidade teórica e política.
A reação do Che diante da derrubada de Perón em setembro de 1955 — mencionadas no capítulo 3
— reflete essa postura bem conhecida do recém-recrutado expedicionário. Os comentários que fez
à família em Buenos Aires são mordazes, mas não particularmente lúcidos ou penetrantes. Sua
ênfase na suposta interferência de Washington é lógica e compreensível; acabou de chegar da
Guatemala, e suas ideias antiamericanistas são típicas daquele período altamente polarizado na
guerra fria.* Porém, pouco têm a ver com a realidade argentina.** Sua defesa do Partido Comunista
e a importância que lhe concede — por exemplo, no relato à sua mãe de uma conferência-debate
em que participou em novembro de 1955 — eram típicas da época, mas pouco relevantes para a
situação política de seu país. Em última instância, Ernesto Guevara era um brilhante e bem-inten-
cionado "companheiro de viagem" do movimento comunista internacional, como o foram milhões de
jovens do mundo todo naqueles anos heróicos do Chamamento de Estocolmo, do Movimento pela
Paz, de Louis Aragon e JoIiot-Curie, de Pablo Neruda e Jorge Amado, Palmiro Togliatti e Maurice
Thorez, Mão e Ho Chi Minh, e da vitória de Dien Bien Phu. O XX Congresso do PCUS e a denúncia
do stalinismo ainda não haviam se consumado; tampouco a invasão da Hungria de 1956.*** Nada
mais natural,
(*) Segundo Hilda Gadea, Guevara responsabiliza o FBI inclusive por um roubo ocorrido no
apartamento dos dois na rua Rhin, sem nenhum fundamento nem corrobo-ração posterior em
arquivos ou testemunhos. (Ver Hilda Gadea, op. cit., p. 130.)
(**) Perón acabara de fazer as pazes com Washington e com a comunidade financeira internacional;
nenhum historiador menciona algum envolvimento norte-americano na derrocada do general. Pelo
contrário: "Na busca de capitais estrangeiros, Perón procurou desde 1953 uma aproximação com os
Estados Unidos [...] A aproximação foi levada a cabo no contexto de seu fracasso em criar uma
'Grande Argentina'" (Marvin Goldwert, Democracy, militarism and nationaiism in Argentina, 1930-)
966, Austin, University of Texas Press, 1972, pp. 122-3).
(***) Carlos Franqui relata como, quando conheceu o Che, no México, em 1956, o argentino estava
lendo os Fundamentos do ieninismo segundo Stalin. Ao perguntar-lhe se lera o informe de Kruschev
ao XX Congresso, o Che replicou que aquilo era apenas propaganda imperialista (Carlos Franqui,
entrevista com o autor, San Juan de Puerto Rico, 19/8/96). Um biógrafo hostil faz um relato análogo:
"Em outubro de 1956, quando o exército soviético interveio para esmagar a revolta nacionalista
húngara, Che Guevara
para um jovem altamente politizado e sensível, do que acreditar na infinita maldade do imperialismo,
nas incontáveis virtudes da pátria do socialismo (A cortisona, como o Che a designou, em
homenagem à cortina de ferro) e ver nos militantes comunistas os arautos da revolução mundial.*
Nada disso, contudo, fez do Che um teórico do marxismo. O Che levaria mais cinco anos para
alcançar essa distinção autodidata.
A partir do encontro com Fidel Castro a vida de Ernesto Guevara mudou. Ele se casou em agosto,
como já vimos. Em novembro, durante uma visita de Castro aos Estados Unidos (e por insistência
deste, segundo Hilda Gadea), viajou em lua-de-mel para o Sudeste mexicano. Lá ele finalmente
explorou Palenque, Uxmal e Chichen-Itzá, onde sem dúvida as ruínas maias o maravilharam, mas
ele não fez nenhum comentário sobre elas nas cartas aos pais. A única referência feita a sua mãe,
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em termos ligeiramente depreciativos, cita sua "viagenzinha pela região maia". No fim da viagem
escreveu um poema passável intitulado "Palenque", que não é digno de registro, a não ser por seu
antiamericanismo ("te golpeia o rosto a insolente ofensa do estúpido 'oh' do turista gringo"), sua
invocação dos saudosos inças
teve enérgicas discussões com um de seus companheiros, defendendo a intervenção" (Roberto
Luque Escalona, Yo ei mejor de todos: una biografia no autorizada dei Che Guevara, Miami,
Ediciones Universal, 1994, p. 71). LUÍS Simón, um universitário que passou algum tempo com o Che
na sierra em 1958, afirma que, ao contrário, Guevara criticou a invasão soviética da Hungria; mas
também relata que o Che lhe disse ter sido trotskista na Argentina, o que não era verdade. (LUÍS
Simón, "Minhas relações com o Che", Revista Cuadernos, Paris, maio 1961.) Em um telegrama da
embaixada norte-americana em Havana ao Departamento de Estado, datado de 31 de julho de
1959, o correspondente da revista Time cita por sua vez um relato feito a ele por Andrew St.
George, outro correspondente e possivelmente informante do serviço secreto norte-americano. De
acordo com St. George, o Che defendera em sua presença, na sierra, a intervenção soviética na
Hungria e afirmara que "a insurreição de Budapeste foi uma conspiração fascista contra o povo"
("Ernesto Che Guevara Serna: political orientation", Braddock/Amembassy Habana to Dept. ofState,
31/7/59 (secreto), US State Department Files, vol. VIU, Despatch
163, National Archives, College Park, Maryland).
(*) Em um poema escrito por ocasião da morte de uma enferma no Hospital Geral
da Cidade do México, o Che toca as teclas do sentimentalismo de esquerda da época:
Escuta, avó proletária, crê no homem que chega, crê no futuro que nunca verás...
•sobretudo terás uma rubra vingança, juro-o pela exata dimensão de meus ideais, teus netos
^verão a aurora, morre em paz, velha lutadora" (Ernesto Che Guevara, poema sem títu-
1
", cit. em Gadea, op. cit., p. 232).
19
("morreram") e uma observação sagaz sobre a eterna juventude da cidade do rei Pakal. Essa
omissão era um sinal de sua duradoura depressão mexicana ou de sua concentração na luta
iminente? Em todo caso, não foram escritas as páginas nas quais descreveria as belezas e
mistérios do México — um país que deve tê-lo fascinado muito mais que as outras nações latino-
americanas — com o mesmo carinho e talento com que narrou sua vivência no resto da América
Latina. Ou talvez elas permaneçam fechadas nos arquivos cubanos.
O treinamento para a luta armada em Cuba logo começou. No início era rudimentar e um tanto
frívolo, consistindo em caminhadas pela avenida Insurgentes na Cidade do México, remo no lago do
parque Chapultepec, dieta e exercícios físicos sob a supervisão de um praticante de luta livre me-
xicano, Arsacio Venegas. Depois tornou-se mais sério, estendendo-se aos arredores da capital, na
Fazenda Santa Rosa, município de Chalco, onde um acampamento foi montado. Como relatou Fidel
Castro em seu primeiro regresso à Cidade do México, em 1988, o Che tentava escalar o Popo-
catépeti todo fim de semana, sem jamais alcançar o cume.* Uma vez associado com os cubanos, é
provável que perseverasse nas tentativas mais como exercício de treinamento que como repto
individual.**
A decisão final do Che de unir-se ao grupo revolucionário cubano na realidade não foi tomada na
noite em que ele conheceu Fidel Castro. Em numerosas cartas a seus pais e outros
correspondentes, entre julho de 1955 e o início do ano seguinte, surgem menções a novos e
igualmente excêntricos planos de viagens, a bolsas de estudo e a projetos de vida. Em setembro,
ele anuncia a intenção de morrer lutando no Caribe, mas também a de continuar viajando "o tempo
necessário para completar minha educação e proporcionar-me os prazeres que me propus em meu
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projeto de vida". Em 1° de março de 1956, ele confessa a Tit ã Infante que ainda estava tentando
21
conseguir uma bolsa de estudo na França.
(*) Carlos Fazio, "Castro relata seu primeiro encontro com o Che no México", Proceso, 12/12/88. O
dr. León Bessudo, um alpinista mexicano, contradiz Castro e assevera que Guevara chegou, sim, a
fincar uma bandeira na cratera do Popocatépeti, em 12 de outubro de 1955 (David Bessudo, cit. em
Testimonios sobre el Che, Havana, Editorial Pablo de Ia Torrienre, 1990, p. 121).
(**) Segundo o pai do Che, desde antes de conhecer Castro, as fracassadas excursões de Ernesto
ao vulcão faziam parte do treino para a guerrilha. Comentando uma carta do Che, datada de 20 de
julho de 1955, que fala de seus "assaltos" ao Popocatépeti, o pai afirma: "O Che já estava treinando
com os cubanos para libertar Cuba". (Ver Guevara Lynch, Aqui vá, op. cit., p. 106.)
O fascínio do Che pelo projeto insurrecional é contrabalançado pela lucidez que ele já demonstrara
em diversas ocasiões. Ele tinha vários bons motivos para guardar distância: seu ceticismo e cinismo
argentinos; seu cálculo realista das probabilidades de um grupo heterogéneo, inconsistente e sem
força de cubanos sem rumo na Cidade do México derrubar uma ditadura militar apoiada por
Washington e em pleno miniboom económico, e finalmente sua tendência para buscar sempre outra
opção — todas essas considerações o inclinavam a guardar certa distância. Ele deve ter refletido
também na possibilidade de a inclusão de um estrangeiro na expedição tornar-se politicamente
perigosa para Fidel, e de fato ocorreram vários incidentes ligados à sua nacionalidade. O mais
relevante foi o mal-estar generalizado que Castro suscitou ao nomear o argentino chefe de pessoal
no campo de treinamento de Chalco em abril de 1956. Convém lembrar ainda que pelo menos um
outro estrangeiro que manifestou o desejo de unir-se ao grupo em dezembro de 1956 foi rejeitado
por Fidel justamente por causa de sua nacionalidade.* O próprio Che reconheceria suas reservas
iniciais alguns anos mais tarde: "Minha impressão quase imediata, ao ouvir as primeiras preleções,
foi de que havia possibilidade de triunfo, para mim muito duvidosa quando me alistei como
22
comandante rebelde".
Vários fatores devem ter influenciado no processo gradual de incorporação de Guevara, entre julho
e agosto de 1955 e fins de 1956, quando zarpou do porto mexicano de Tuxpan a bordo do Granma.
A aproximação com dirigentes cubanos, que viajaram ao México para discutir e forjar alianças com
Castro, pode ter influído em seu ânimo. Entre eles estavam Frank País, o jovem dirigente cubano do
Movimento Vinte e Seis de Julho, José António Echevarría, líder do Diretório Estudantil
revolucionário, e, mais tarde, o dirigente comunista Flavio Bravo, assim como (segundo o historiador
2
inglês Hugh Thomas) Joaquín Ordoqui, Lázaro Pena e Blas Roca, todos do PSP. ' O Che conheceu
a maioria deles durante suas visitas (não Frank; o encontro com ele só se daria na sierra Maestra), e
logo compreendeu que as perspectivas da iminente Revolução Cubana não repousavam
exclusivamente sobre os largos ombros de Fidel Castro e seu bando de conspiradores temerários;
(*) Segundo Castro, quatro estrangeiros — o Che, o mexicano Guillén Zelaya, o italiano Gino Doné e
o dominicano Ramón Mejías dei Castillo — já bastavam. O amigo guatemalteco do Che, Júlio
Cáceres, ou Patojo, foi descartado por Fidel "[...] não por algu-nia qualidade negativa, mas para não
fazer de nosso exército um mosaico de nacionalidades" (ver Ernesto Che Guevara, "O Patojo", em
"Pasajes de Ia guerra revg^uc6»ana", Escritos y discursos, Havana, Ed. de Ciências Sociales, t. 2,
p. 292).
dependiam de uma ampla rede de opositores ao regime, incluindo ativistas sindicais e estudantis,
comunistas e até mesmo alguns empresários.
A crescente amizade e admiração por Fidel Castro também desempenharam um papel importante.
A lealdade e solidariedade de Castro para com seus homens, a confiança cada dia maior que ele
depositava no Che, atribuindo-lhe grandes responsabilidades — desde o aluguel da fazenda para o
campo de treinamento até a nomeação de Guevara para chefe de pessoal —, contribuíram para
dissipar as dúvidas do argentino, fortalecendo a sua decisão de se reunir à expedição. Um fato
determinante, ainda que tardio, foi o comportamento de Fidel em 24 de junho de 1956, quando os
cubanos foram detidos pela polícia mexicana. As autoridades detiveram Fidel Castro na Cidade do
México por solicitação dos serviços de informação de Batista, e em consequência de uma delação
interna, assim como da corrupção infinita da maior parte do aparelho de segurança mexicano.
Depois de examinar a possibilidade de resistir, Fidel decidiu — com o mesmo instinto político
assustador que o manteve no poder por quase quarenta anos — que era preferível entregar-se,
evitar o confronto e garantir sua libertação por meio de uma combinação de suborno, retórica e a
ajuda de partidários mexicanos. Fernando Gutiérrez Barrios, na época um jovem funcionário do
Departamento Federal de Segurança, e mais tarde, e por mais de um quarto de século, o principal
responsável pêlos serviços de segurança e informação do governo mexicano, relembra sua primeira
conversa com Fidel Castro:
"Encontramos armas no Packard de vocês e alguns documentos. Do que se trata?". Castro
permaneceu calado durante algumas horas, porém a polícia logo encontrou um esboço com a
localização da Fazenda Santa Rosa, em Chalco. Gutiérrez Barrios imediatamente despachou seus
subordinados para o local; o relatório não demorou a chegar: "Num armazém perto da Fazenda
Santa Rosa, senhor, disseram que alugaram a Fazenda e estão treinando ali. O pessoal do
24
armazém diz que eles são cubanos, pelo jeito de falar e pêlos hábitos". O czar do serviço de
informação mandou trazerem Fidel Castro e confrontou-o com as provas, em tom quase amistoso.
Instou-o a não perder tempo e evitar um enfrentamento, que não convinha a nenhum dos dois, nem
a suas respectivas nações. Fidel concordou, e o mexicano sugeriu que ambos se dirigissem para o
Chalco, a fim de que Fidel pudesse ordenar a seus homens que se entregassem pacificamente.
Assim foi feito, e Castro e Gutiérrez Barrios iniciaram uma amizade que já completou quarenta
anos."
Fidel se dá por vencido e começa a negociar com as autoridades mexicanas a libertação dos
demais revolucionários. Logo a obtém para todos,
exceto para ele próprio, Calixto Garcia e o Che. No final, permanecem presos apenas Garcia e o
argentino, ambos em situação migratória e política mais delicada que a de seus companheiros. O
Che recorda, em seu diário, os sentimentos daquele momento:
Fidel fez algumas coisas que, quase poderíamos dizê-lo, comprometiam sua atitude revolucionária,
por causa da amizade. Lembro que lhe expus o meu caso específico: um estrangeiro, em situação
ilegal no México, com uma série de acusações nas costas. Disse-lhe que de forma alguma a
revolução poderia ser detida por minha causa e que ele podia me deixar, que eu compreendia a
situação e trataria de ir lutar ali onde me mandassem, que a única coisa que eu lhe pedia era que
me enviassem a um país próximo e não à Argentina. Também lembro a resposta de Fidel: "Eu não
vou abandoná-lo". E foi o que aconteceu, pois foi preciso empregar tempo e dinheiro preciosos para
tirar-nos da cadeia mexicana. Essas atitudes pessoais de Fidel para com as pessoas de quem gosta
são a chave daquele fanatismo que ele desperta nos outros [...]*
A detenção do pequeno exército revolucionário ocupa um lugar privilegiado na fase mexicana do
Che e dos cubanos. Existem várias referências atribuídas a Guevara e a historiadores cubanos
sobre o papel dos serviços de informação dos Estados Unidos na montagem da operação e no
subsequente interrogatório dos detidos. Tudo indica, porém, que se tratou de uma diligência
estritamente mexicana e cubana.** Ebastante benevolente, com exceção dos maus tratos sofridos
por alguns dos prisioneiros. Mais tarde Castro os denunciaria em seus devastadores comentários
sobre os hábitos da polícia mexicana. A propósito da detenção de três companheiros, entre eles um
mexicano, ele observa:
Por mais de seis dias não lhes deram alimentos nem água. Durante a madrugada, com uma
temperatura de quase zero grau, eles eram introduzidos, comple-
(*) Ernesto Che Guevara, Pasajes, op. cit., p. 6. É difícil estabelecer se um poema do Che dedicado
a Fidel (uma comprovação de que os grandes narradores não são necessariamente bons poetas) foi
escrito logo antes ou logo depois do ato de solidariedade de Fidel para com seu amigo argentino.
Em todo caso, ambos — o poema e a demonstração de lealdade de Fidel — ocorreram a poucos
dias um do outro.
(**) Segundo Gutiérrez Barrios: "Não, não me parece que os americanos tenham exercido alguma
pressão, em absoluto. Fidel viajava a Miami para encontrar-se com os lideres, inclusive com Prío,
que de alguma forma o apoiava, por intermédio do Partido Autentico, ia a Nova York também, e
mantinha reuniões com grupos cubanos, o que quer "Ker que os Estados Unidos não o viam com
hostilidade, pois o governo de Batista estava "esmoronando por si só. Os americanos nunca
estiveram presentes, e isso eu sei porque estava no comando, especialmente no Ministério do
Interior" (Gutiérrez Barrios, op. cit.).
tamente nus, em tanques de água gelada, com os pés e mãos amarrados; eram mergulhados e,
quando estavam a ponto de se afogar, puxados pêlos cabelos por breves segundos e a seguir
mergulhados outra vez. Depois de repetir muitas vezes essa operação, os policiais os tiravam da
água e batiam neles até que perdessem a consciência. Um homem — encapuzado — com sotaque
cubano fazia os interrogatórios.*
Foi o primeiro contato de Che Guevara com a prisão, as forças da polícia e a repressão, e na
realidade o único período em que ficou preso, até as vésperas da execução em La Higuera. A
detenção teve importância crucial para o Che, tanto por ter comprovado a solidariedade de Castro e
dos demais cubanos, como porque-ele sentiu na própria carne o que podem ser o cárcere, a
agressividade pessoal e direta das forças da lei. Foi uma oportunidade de autodefinição: Guevara
teve a chance de afirmar repetidamente sua identificação com a ala dura, comunista e pró-soviética
do movimento revolucionário internacional.
Desde dezembro de 1955 o Che começara a ter aulas de russo no Instituto Mexicano-Soviético de
Relações Culturais, situado na rua Rio Nazas, Colónia de Anzures, na Cidade do México. Já
falamos de sua inclinação nitidamente pró-soviética, mas esse passo adicional deve ser destacado.
Todos os mexicanos e exilados que viviam no México naquela época sabiam que as diversas
representações soviéticas na capital — a embaixada em Tacubaya, Intourist, Tass e o Pravda, os
institutos culturais e de idiomas — estavam sob a cuidadosa vigilância das autoridades mexicanas e
seus "sócios" norte-americanos. Isso ficaria provado poucos anos depois, por ocasião da
investigação das atividades de Lee Harvey Oswaid no México. Seria, portanto, inverossímil que o
Che tivesse decidido procurar o instituto apenas para ler Pushkin e Lermontov dans lê texte. E
provável que desejasse afirmar, pública e provocativamente — embora talvez de maneira
(*) Fidel Castro, Prisão de Miguel Schultz, México, DF, 9/7/56. Notas para o manuscrito de Carlos
Franqui, Diário de Ia Revoiución Cubana, Arquivo Carlos Franqui, COÓ44, Princeton, New Jersey,
Princeton University, Box 2, File 2. Na sua grande maioria, as notas do Diário de Ia Revoiución
Cubana entregues por Franqui à Biblioteca Firestone da Universidade de Princeton foram
reproduzidas textualmente no livro publicado. Não é o caso deste texto de Fidel Castro, talvez
devido precisamente aos comentários que ele faz sobre o México. As passagens anteriores e
posteriores de Castro aparecem na página 141 de Carlos Franqui, Diário de Ia Revolución Cubana,
Barcelona, R. Torres, 1976. Daqui por diante, quando citarmos Franqui, faremos referência ao
arquivo de Princeton apenas quando as notas não aparecerem no livro; nos demais casos, faremos
referência à edição de R. Torres.
inconsciente — seu respeito e afinidade pela União Soviética. Conseguiu o que pretendia: suas
visitas ao Instituto de Cultura se destacam em um dos primeiros informes dos serviços de
informação estadunidenses a mencionar o Che.* Quando as autoridades mexicanas e a máquina de
propaganda de Batista fizeram uma distinção entre ele e os demais presos, justamente em
consequência de suas constantes visitas às representações da URSS, ou ele pagou um preço
altamente previsível, ou logrou justo o que buscava: ser considerado, com muita honra, um
comunista e um defensor da União Soviética, embora sem partido.**
Algo semelhante ocorreu em seus encontros com Nikolai Leonov. Segundo relata o agora general
reformado da KGB, tanto em suas memórias como em uma entrevista com o autor em Moscou,
iniciou sua amizade com Raul Castro de maneira puramente casual. Após o Festival Internacional
da Juventude de Viena, em 1951, o irmão de Fidel retornou da Europa de navio;
a bordo viajava também Leonov, comissionado no México para estudar espanhol mas igualmente
acreditado na embaixada da URSS. Quatro anos depois, por puro acaso, segundo Leonov, ele
26
topou com Raul Castro numa rua da Cidade do México, onde renovaram sua amizade. O cubano
contou a Leonov os motivos de sua estadia no México; Leonov fez o mesmo. Em um de seus
diversos encontros na casa de Maria Antonia, a anfitriã e fada-madrinha de Fidel e seus seguidores
no México, apareceu o Che. Segundo as palavras de Leonov:
O Che parecia muito bem, radiante de felicidade por estar com um representante de outro mundo,
do campo socialista, e começamos a discutir um pouco
(*) Um documento confidencial do Departamento de Estado, sem data porém provavelmente de fins
de junho de 1958, que analisa "as possibilidades de vínculos comunistas do Vinte e Seis de Julho",
anota que o Che "pode" (sic) ter pertencido ao Instituto Mexicano-Soviético de Relações Culturais.
Também destaca as relações de Hilda Gadea com dois "agentes soviéticos" no México, Jorge
Raygada Cauvi e o major salvadorenho Humberto P. Vilialta (National Archives, Box 2, College Park,
Maryland).
(**) Aquela que é provavelmente a primeira menção a Che Guevara em um documento oficial
estadunidense acusa o "comunista argentino" de ser um protegido de Vicente Lombardo Toledano,
o dirigente operário, intelectual e político mexicano, a cujo rartido Popular afirma-se que o Che se
filiou e a quem se atribuem os empregos que üuevara conseguiu no México. Tudo indica que a
informação é falsa: o Che não era membro do Partido Popular, não era amigo de Lomhardo
Toledano e não lhe devia seus empregos (Foreign Broadcast Information Service (FBIS), Daily
Report, 25/7/56, n" 145, p. 5. rossibility of Communist connections", Department of State, National
Archives, College Park, Maryland, Lot 60 D 513, MER 1137, Box 7-8).
de tudo. Aproximei-me de Raul pela mesma razão, no navio; com o Che foi na mesma base, pois a
conversação já partia de um ponto em que éramos como iguais. Ele me perguntava sobre a União
Soviética, pois naquele ano, 1956, muitas coisas tinham sucedido. Estava basicamente bem
informado, mas as coisas concretas, as reuniões do Comité Central, não interessavam ao Che. Ele
sabia como era a União Soviética, como a sociedade estava estruturada, como funcionava a
economia, ou seja, tinha fundamentos básicos sobre o que era a União Soviética. Naquela época
todos tinham a mesma visão, a mesma admiração. Ele era um admirador da União Soviética."
Conversaram por um bom tempo. Guevara expressou seu interesse pela literatura soviética; Leonov
entregou-lhe seu cartão de adido à embaixada e se ofereceu para emprestar livros ao jovem
argentino. Este queria livros que o ajudassem a entender o povo soviético. "'Por que não?', con-
testou o soviético. Indicou-me três: Assim foi temperado o aço, de Ostrovski, Um homem de
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verdade, de Polevoi, e A defesa de Stalingrado." Um dia o Che apareceu na embaixada; Leonov já
separara os livros. O russo lembra que o Che estava apressado: "Tinha coisas muito mais
importantes para fazer, decerto; quando o convidei a entrar e conversar, ele disse que precisava
29
ir".
Na versão de Leonov, quando o Che foi detido algumas semanas depois, as autoridades mexicanas
fizeram grande alarde ao acharem em sua carteira o cartão de visita do diplomata russo. Logo o
acusaram de ser um agente do comunismo internacional, quando, segundo Leonov, tinham se
encontrado apenas algumas vezes. Se o russo foi despachado rapidamente para casa, por um
embaixador iracundo, como castigo, foi unicamente por excessiva prudência de seu superior.
E absurda a suspeita de que o Che tenha sido recrutado pela URSS durante aqueles meses, graças
ao fino trabalho de Leonov. Todavia, o relato do ex-general da KGB peca por ilusório ou simplista.
Guevara devia ter consciência de que qualquer contato com o pessoal soviético no apogeu da guer-
ra fria, em um lugar tão importante como o México (naqueles anos comparável a Viena ou Berlim),
acarretava um grande risco de ser detectado pêlos serviços de informação mexicanos ou norte-
americanos. Devia estar consciente também, de uma maneira ou de outra, de que o mero fato de
levar na carteira o cartão de um diplomata soviético — e isso em pleno campo de treinamento
guerrilheiro, a cinquenta quilómetros da Cidade do México — podia ser visto como uma provocação.
Era quase uma garantia de que, na hipótese sempre presente de uma detenção, seria acusado de
relações com Moscou. Por outro lado, ainda que Leonov possa não ter pretendido inicialmente
recrutar o argentino, suas conversas com ele, assim como seu cres
cente conhecimento sobre os projetos do grupo de cubanos, podem ter-lhe sugerido a ideia de
aproximar-se de Guevara, um jovem mais comprometido ideologicamente, mais acessível e
talentoso que a maioria dos revolucionários. Podemos especular que, se Leonov não recrutou o
Che, não foi por indiferença; e se o Che não foi recrutado, não foi por falta de vontade.
Por último, figura nos arquivos a insistência do Che em sua orientação marxista-leninista durante os
interrogatórios do Ministério do Interior. Além de reconhecer que era marxista-leninista, ele discutiu
até onde foi possível com as autoridades, defendendo diversas teses marxistas e arguindo
incessantemente António Viliada, o promotor público. Segundo Gutiérrez Barrios:
Nesse momento nos deslocamos para a Miguel Scultz [seção de imigração] e ali tomaram-se as
declarações de todos. O único que confessou sua ideologia foi o Che. Quando o promotor público o
interrogou, afirmou com toda a clareza que sua ideologia era marxista-leninista. Os demais, não,
pois nenhum deles tinha aquelas características. Fidel Castro era um seguidor de Martí. Mas o Che
fez uma declaração sobre a situação, expressando sua profundidade ideológica e sua convicção. O
promotor público era uma pessoa que eu tinha como o nosso homem de maiores conhecimentos
sobre o comunismo, como chamávamos a isso, sem matizes, e foi esse especialista em comunismo
que interrogou o Che. Este já tinha confessado que era marxista-leninista quando esse advogado
começou a querer discutir sobre essa filosofia, mas seu conhecimento da matéria era muito limitado
comparado ao do Che. Quando passaram a discutir, e eu vi que nosso advogado estava em maus
lençóis, chamei-o e disse: "Doutor, ele já disse que era marxista-leninista; passe direto aos delitos e
nada mais". Porque o Che estava sendo muito arrogante, com toda a carga de seu conhecimento, e

estava ganhando a discussão, em um debate ideológico completamente irrelevante.
Em outras palavras, o Che não só não dissimulava sua inclinação ideológica ou política — o que
todos os demais detidos estavam fazendo — como se vangloriava dela, quase buscando converter
seus captores.* Dificilmente
(*) Outro dado corrobora essa análise. Na entrevista a Jorge Masetti na sierra Maestra, citada no
capítulo anterior, o Che afirmou, a propósito de sua participação nos acontecimentos da Guatemala:
"Eu nunca ocupei um cargo no governo de Arhenz". '"ontudo, em sua declaração perante o promotor
público no México, disse "que chegou a esta capital há aproximadamente um ano e meio,
procedente da Guatemala, de onde saiu spos a queda do regime de Jacoho Arbenz, do qual era
simpatizante e a cuja administração servia" (ver Adys Cupull e Froilán Gonzáiez, Un hombre bravo,
Havana, Editorial Capitán ^n Luis, 1994, p. 384).
se pode imaginar Fidel Castro, seu irmão Raul ou qualquer outro dos líderes cubanos alardeando
suas convicções ideológicas e políticas e sustentando um acalorado debate com seus carcereiros. O
Che trazia à flor da pele sua nova fé comunista, soviética e revolucionária; longe de escondê-la,
jactava-se dela. Enquanto seu impacto no pensamento político do Movimento Vinte e Seis de Julho
permaneceu limitado, as consequências de seu orgulho militante foram pequenas; mas à medida
que sua influência política aumentou, sua vaidade assumiria considerável importância histórica.
Uma razão adicional que ajudou a convencê-lo de embarcar rumo ao Oriente cubano foi seu
desempenho no treinamento físico e militar realizado sob a direção de Alberto Bayo, um antigo
oficial do exército republicano espanhol. Em fins de abril de 1956, Castro conseguiu o dinheiro para
comprar a Fazenda Santa Rosa, perto do município de Chalco, no Estado do México. Já então
persuadira Bayo a treinar seus companheiros. O Che participou dos exercícios físicos, de tática, de
tiro e resistência junto com os demais, ao mesmo tempo em que desempenhava a função de chefe
de pessoal. Desincumbiu-se da segunda tarefa sem maiores problemas, mas deve ter sido uma
enorme satisfação para ele descobrir que, apesar da asma e da altitude, podia manter-se à altura de
seus companheiros e obter as melhores classificações do grupo. Em seus apontamentos, Bayo
refere-se a seu aluno predileto: "Assistiu a umas vinte sessões práticas regulares, disparando em
tomo de 650 cartuchos. Disciplina excelente, qualidades de liderança excelentes, resistência física
excelente. Algumas escorregadelas disciplinares por pequenos erros na interpretação de ordens e
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leves sorrisos". Por certo, à noite o Che "estava cansado das marchas [...] que o deixavam em
32
frangalhos". Contudo, Bayo lembra que: "Guevara foi qualificado como o número l no grupo. Em
tudo teve a nota máxima: 10. Quando Fidel viu minhas classificações, perguntou: 'Por que Guevara
é o número l ?'. 'Porque sem dúvida alguma é o melhor.' 'Eu também tenho essa opinião', disse-me.
'Tenho dele o mesmo conceito'".*
Desde seus tempos de rúgbi em Córdoba e Buenos Aires, Guevara tentara provar a si mesmo que
sua asma não era um empecilho às atividades físi-
(*) Alberto Bayo, Mi aporte a Ia Revolución Cubana, Havana, Imprenta Ejército Rebelde,1960. Nas
memórias de Bayo, publicadas em 1960 com um prefácio do Che, o militar registra o seguinte
comentário sobre a filiação política de Guevara: "Não guardava nenhuma simpatia por Perón, o
ditador que o enfiou no cárcere [sic] chamando-o de comunista, e deduzi em cem ocasiões que
Guevara, como eu, não era comunista, nem o fora"(ibidem, p. 77).
cãs que apreciava. Em boa medida o conseguira. O teste máximo, até o
momento, fora o treinamento de guerrilha no México; foi aprovado com louvor.
Ele já não podia duvidar de sua capacidade de superar os efeitos adversos de
sua enfermidade. Teria sido absurdo, depois de uma vitória como essa, recuar
por outras razões. O treinamento na Fazenda Santa Rosa selou
sua decisão.
Por último, seria preciso acrescentar um outro fator, a situação de seu casamento
com Hilda Gadea. A apreciação do mais recente biógrafo de Fidel Castro — "O
Che estava convencido de que encontrara uma missão e uma maneira de deixar
a esposa" — é indubitavelmente exagerada: Guevara não se alistou na
expedição do Granma para separar-se da mulher." Mas não há dúvida de que o
relacionamento já havia fracassado, aos olhos do argentino embora não de todo
para Hilda. Ernesto intuía que a relação tinha os dias contados. Escreveu a sua
amiga Titã Infante, em Buenos Aires:
[Hildita] me deu uma dupla alegria. Primeiro, sua chegada pôs fim à situação
conjugal desastrosa e, segundo, agora tenho plena certeza de que poderei partir,
apesar de tudo. Minha incapacidade de viver com a mãe dela é maior do que o
carinho que sinto por ela. Por um momento pareceu-me que uma combinação do
encanto da menina e com a consideração pela mãe (que é em muitos aspectos
uma grande mulher e gosta de mim de uma forma quase doentia) poderia
converter-me em um aborrecido pai de família. Agora sei que não será assim e
que continuarei minha vida boémia até não se sabe quando.*
Mais uma vez, o Che decidiu fugir da realidade com que não podia conviver. Ele
já não tolerava a vida conjugal, mas adorava a menina. Resistia à ideia de uma
separação explícita e definitiva. Entre o treinamento, os 5 7 dias na prisão e
depois a semiclandestinidade, o Che ficava cada vez mais ausente de casa —
mas não ousou tomar nenhuma atitude drástica. Logo sobreveio a partida de
Hilda para o Peru, e a sua, no Granma: uma situação incerta a tal ponto que
Hilda, em suas memórias, se dá conta de que se iludia, ao chegar a Havana após
o triunfo da Revolução, pensando que o casamento poderia ser salvo.** Em
compensação, o Che dava o casamento por desfeito desde
(*) Ernesto Guevara de Ia Serna a Titã Infante, l''/3/56, cit. em Adys Cupull e
Froilán Gonzáiez, Cálida presencia, Havana, Editorial Oriente, 1995, p. 80. A
mesma carta, tilada em Guevara Lynch, Aqui vá, op. cit., p. 129, não inclui essa
passagem. O pai do Che, como já observamos, partilha plenamente a mania
cubana de despojar os heróis de todo trauma, dilema ou contradição.
(**) O relato de Hilda Gadea é elíptico mas sugestivo: "Quando cheguei a Havana
[•••] Ernesto me disse que tinha outra mulher [...] e com grande dor de minha
parte [...]
outubro de 1956, em comentários com terceiros, embora não com sua esposa,
nem sua mãe: "Meu casamento está quase completamente destruído, o que
acontecerá em definitivo no mês que vem, pois minha mulher vai para o Peru [...]
Há certo travo amargo nesse rompimento, pois ela foi uma companheira leal e
sua conduta revolucionária foi irrepreensível [...] mas nossa divergência
espiritual era muito grande".'4
Ante esse emaranhado de sentimentos misturados, lançar-se à aventura do
Vinte e Seis de Julho não parecia uma má ideia. Obviamente Guevara não optou
pelo caminho da revolução apenas para deixar sua esposa; seria igualmente
erróneo não incluí-lo nas razões que contribuíram para o colapso do seu
casamento. O Che não era um homem movido por impulsos emocionais-porém,
as grandes linhas divisórias existenciais em sua vida foram acompanhadas por
momentos de angústia ou desilusão sentimental. O essencial, todavia, era sempre
sua busca de um destino. O puramente político e o estritamente pessoal
representaram papéis secundários na vida do Che.
Nem o Che, nem Fidel, nem seus companheiros no México de então,
registram uma participação destacada de Guevara nas discussões estratégicas do
Movimento Vinte e Seis de Julho. Naturalmente, ele empenhou comandos a
preparação política e ideológica dos futuros guerrilheiros; ministrava cursos,
tanto na Fazenda Santa Rosa como no posto migratório da rua Miguel Schultz e
nos demais lugares nos quais Castro e seus homens se abrigaram antes de zarpar
de Tuxpan. Porém, o discurso guevarista não foi muito além de exposições desse
tipo — necessariamente desvinculadas das discussões táticas e estratégicas no
seio do movimento, ou entre este e outros grupos cubanos. Segundo um de seus
amigos mexicanos, seu silêncio devia-se a um misto de convicção e
conveniência. Como estrangeiro, tinha grande respeito pêlos cubanos e não
achava que devesse intervir de maneira imediata ou exagerada:
"Não posso dizer-lhes nada sobre a terra deles". Sua atitude era também uma
questão de conveniência: as opiniões dele poderiam levar a divergências e
comprometer seu objetivo principal, que era participar da invasão de Cuba.'5
Uma outra causa possível para a reserva do Che era o caráter abertamente
reformista do Movimento Vinte e Seis de Julho, ou M-26-7, pelo

decidimos nos divorciar [...] Ao dar-se conta de minha dor ele disse: 'Melhor teria sido morrer em
combate'" (Hilda Gadea, op. cit., pp. 201-2). Certamente o pai do Che tinha a mesma visão fictícia do
relacionamento. Falando em 1957, ou seja, meses depois da separação física e afetiva do casal, diz:
"Trouxe minha nora, Hilda Gadea, e nossa neta Hildita. Viajaram a Buenos Aires para se reunirem a
nós [...]" (Ernesto Guevara Lynch, Mi hijo el Che, Barcelona, Planeta, 1981, p. 23).
menos em suas manifestações públicas. Como já foi amplamente documentado,
as teses políticas, ideológicas, económicas e sociais de Fidel Castro e seus
companheiros (tanto nos cárceres cubanos ou mexicanos, como na sier-ra
Maestra, ou mesmo durante os primeiros meses no poder) foram qualquer coisa
exceto marxistas ou revolucionárias em qualquer sentido clássico. A defesa
sumária de Castro em seu julgamento — "A história me absolverá" —, em
outubro de 1953; o panfleto que redigiu sob o mesmo título, publicado se-
cretamente em abril de 1954; o "Manifesto número l" do M-26-7, distribuído na
Cidade do México, dias depois da chegada de Fidel, e sua carta de afastamento
do Partido Ortodoxo, de 19 de março de 1956, são todos moderados em sua
substância e ortodoxos em seu pensamento. Theodore Draper, um dos críticos
mais conservadores de Castro, vê neles uma moderação crescente e
"constitucionalismo".16 A sinceridade destes textos é um tema distinto: pertence
à biografia de Fidel Castro e aos debates sobre a natureza da Revolução Cubana.
A questão aqui: é a posição vis-à-vis do Che do programa do grupo cubano e sua
hipotética disposição para fazer parte de uma pretensa impostura ou erro.
Em seu projeto original, o programa de Fidel Castro exigia cinco reformas
amplas: o restabelecimento da Constituição de 1940; uma reforma agrária que
concederia terra aos colonos com menos de 150 acres; um esquema de
participação nos lucros das usinas açucareiras; uma reforma limitada da indústria
açucareira, e o confisco das terras obtidas de maneira fraudulenta. Além disso,
ele prometia uma reforma educacional — basicamente o aumento do salário dos
professores —, a nacionalização dos serviços públicos (sistema telefónico) e uma
reforma habitacional." Em si, essa plataforma não era mais radical do que
aquelas adotadas pêlos populistas latino-americanos clássicos como Perón,
Cárdenas, Vargas ou o próprio Batista em 1940. Todavia, nada em Cuba era na
realidade comparável ao restante da América Latina. Como mostrou uma das
análises mais recentes da história da ilha:
No contexto cubano dos anos 50, o Movimento Vinte e Seis de Julho não
era um movimento reformista [...] A substância das reformas que postulava
constituía o cerne de reformas semelhantes em outros países da América
Latina. Mas não em Cuba [...] Os fidelistas exigiam mudança em uma
sociedade na qual os fracassos económicos e sociais tinham debilitado
consideravelmente as possibilidades de reforma, e empregavam meios
radicais para chegar ao poder.'8
Além disso, mesmo depois de seu afastamento do Partido Ortodoxo, Castro
continuou a receber doações generosas de personalidades como o ex-Presidente
Carlos Prío Socarrás; de López Vilaboy, o presidente das Líneas
Aéreas Cubanas, e de diversos exilados cubanos residentes nos Estados Unidos.
O caráter revolucionário da iniciativa residiria, portanto, nos meios empregados
ou na esperança (suscitada pela personalidade de Castro e pela confiança que o
Che depositava nele) de que, depois de conquistar o poder, o movimento se
orientaria por uma vertente mais radical. Tudo sugere que Guevara estava
lutando por um ideal próprio e para estar com Fidel, e não tanto pelo programa
do Movimento, ou pela possível transformação da sociedade cubana. Não seria a
primeira vez que Ernesto Guevara enfatizaria a primazia do método da luta sobre
seu conteúdo. No México, sua decisão tinha pouco a ver com qualquer
conceituação abstrata; tratava-se mais de uma avaliação política e um certo
estado emocional. Se o Che tivesse embarafustado por discussões infindáveis
com os cubanos sobre a plataforma, provavelmente nem teria chegado a um
acordo com eles, nem convencido a si mesmo da viabilidade do projeto e de sua
grandeza inerente.
A partida foi precedida por uma longa série de problemas pessoais e con-
tratempos políticos, logísticos e militares: dias antes, a polícia mexicana confis-
cou aos cubanos vinte fuzis e 50 mil cartuchos na capital. Finalmente, na madru-
gada do dia 25 de novembro o Granma afastou-se do cais de Tuxpan, Veracruz,
zarpando para a costa leste de Cuba. A embarcação, um iate, propriedade de um
norte-americano domiciliado na Cidade do México, custara 15 mil dólares e
mostrou-se lamentavelmente inadequada para a empreitada: pequena e instável, e
de curto alcance. Mas Pidel tinha pressa. Não tanto pelas pressões exercidas
pelas autoridades mexicanas,* nem pêlos perigos derivados da virtual ação dos
agentes de Batista no México, mas pela promessa repetida em várias ocasiões:
"Em 1956 seremos livres ou seremos mártires".** Assim, não havia alternativa
para o grupo a não ser lançar-se ao golfo do México antes que o ano terminasse,
mesmo que eles não estivessem preparados para a travessia.

Na noite de 25 de novembro o Granma deslizou pelo estuário do rio Tuxpan,


com as luzes apagadas e os motores silenciosos. O Che deixava para

(*) Gutiérrez Barrios afirma que o governo do México não pressionou os cubanos para que se
fossem e que ajudou Castro a evitar problemas em Tuxpan, chamando seus homens da região de
volta a'capital.
(**) A versão oficial cubana explica a precipitação da partida pela deserção e subsequente
traição de dois membros do acampamento de Abasolo, no estado mexicano de Tamaulipas, em 21 de
novembro. Sem questionar o fato, pode-se imaginar que muitos outros fatores também estavam
envolvidos — inclusive o início de uma insurreição na própria ilha. (Ver Centro de Estúdios de
Historia Militar, op. cit., p. 70.)
sempre as terras mexicanas, e como se diz no México, "nunca lê habrá dado el
golpe ai país".* A estadia de cerca de dois anos destaca-se mais por seu final, e
não pela inicialmente monótona vida na capital. No México, ele viveu alguns dos
momentos mais significativos de seus 28 anos: lá ele conheceu Castro e
embarcou para a Revolução Cubana. O país em si, porém, pouco teve a ver com
esses acontecimentos; eles poderiam ter se dado em qualquer outro lugar.
O Che participou da expedição como médico. Com a patente de tenente, ele era
encarregado dos medicamentos e de atender os possíveis feridos entre os 82
homens. Já a bordo, só com grande dificuldade se desincumbiu de suas
obrigações; logo foi derrubado por uma crise de asma em alto-mar, agravada pela
ausência de um inalador ou de epinefrina. Os demais membros da tripulação
enjoaram logo que o Granma levantou âncora. O médico não podia ajudá-los,
tendo descoberto que não havia pastilhas antienjôo na embarcação. O iate não
deveria transportar mais que vinte passageiros; além dos 82 homens, carregava
água e comida, armas e munição: dois canhões antitanque, 35 rifles com mira
telescópica, 55 fuzis de fabricação mexicana, três metralhadoras Thompson e
quarenta metralhadoras leves.
O plano fora cuidadosamente coordenado com Cuba. O Movimento Vinte e Seis
de Julho na ilha, dirigido por Frank País, estava pronto para desencadear um
levante popular em Santiago, no dia 30 de novembro. Cumpriu a tarefa de
maneira satisfatória, embora a responsabilidade pelas ações tenha sido
equivocadamente atribuída a outros.** ( O Granma devia ter atracado en
Niquero, na província de Oriente, naquele mesmo dia. Mas encalhou 72 horas
depois, em 2 de dezembro, em Los Cayuleos, perto da praia de Los Colorados,
longe de Niquero e em meio a um charco horripilante.)*** Os planos traçados no
México se depararam com vários obstáculos: a lentidão do iate por causa da
sobrecarga e os motores defeituosos; o mau

(*) Nunca lhe caiu no gosto. (N. T.)


(**) Um informe confidencial datado de 4 de janeiro de 1957, dirigido ao subsecretário de Estado
norte-americano para a América Latina, Roy Rubottom, afirma que "existem provas de que o Partido
Socialista Popular participou das atividades terroristas em Cuba no último mês" (Murphy a Rubottom,
4/1/57, Department of State, National Archives, Lot 60 D 513, MER 1137, BOX 7-8, College Park,
Maryland).
(***) "Encalhamos em um lugar lamacento para nos metermos no pior lodaçal que Já vi [...] Naquele
maldito pântano tivemos de abandonar quase todas as provisões [...] atravessando aquele inferno"
(Raul Castro, "Diário de Ia guerrilha cubana", cit. em Che Guevara e Raul Castro, La conquista de Ia
esperanto., México, DF, Ediciones Joaquín Morttz, 1995, p. 75).
tempo, mais ou menos típico do golfo naquela estação, e os erros de navegação.
Tampouco o desembarque aconteceu conforme o previsto. Em virtude do terreno
inóspito, os rebeldes tiveram de abandonar parte de seus apetrechos, marchando
pelo lamaçal durante horas e dividindo-se em vários grupos isolados. E, como o
iate chegou depois da data combinada, o regime de Batista já se encontrava de
sobreaviso e pronto para contra-atacar. O desastre parecia inevitável; com efeito,
não demorou a acontecer.
Nas horas e nos dias logo após ao desembarque, os tripulantes do Gran-ma
se dispersaram pelo pântano, onde muitos membros foram rapidamente abatidos
pelas forças do governo. O batismo de fogo de Che Guevara ocorreu nos
canaviais da Central de Niquero, propriedade da família Lobo, uma das mais
ricas da ilha. A 5 de dezembro, em Alegria de Pio, houve o primeiro combate da
revolução. O Che foi atingido por uma rajada de metralhadora, que lhe feriu o
pescoço de modo leve, mas preocupante, pois ele sangrou muito. Mais tarde
evocaria algumas linhas clássicas de Jack London sobre a morte no Grande Norte
como o primeiro pensamento que lhe ocorreu naquele instante. Porém, a
passagem que melhor ilustra seu estado de ânimo e a sensação de morte
predestinada são os versos do poeta espanhol León Felipe encontrados em sua
mochila uma década depois, quando foi capturado na Bolívia: "Cristo, te amo,
não porque desceste de uma estrela, mas porque me revelaste que o homem tem
lágrimas e angústias, chaves para abrir portas e cerrá-las à luz. Tu me ensinaste
que o homem é Deus, um pobre Deus em pecado como Tu, e aquele que está à
tua esquerda no Gólgota, o mau ladrão, também é Deus".
O conflito acabou na debandada desordenada dos revolucionários. Uns
caíram sob os disparos do exército e da marinha de Batista; outros foram
capturados; os demais se dividiram em pequenos grupos, isolados e desmo-
ralizados. O Che, já em condições físicas lastimáveis, iniciou a marcha para sierra
Maestra com quatro companheiros, aos quais no dia seguinte se uniram outros
três. Sem água, praticamente sem comida, com armas rudimentares e
pouquíssima munição, dirigiram-se para as montanhas com a esperança de se
encontrarem com os outros — se ainda estivessem vivos — e se esquivarem de
uma nova ofensiva do exército. Entre os companheiros do Che figuravam Ramiro
Vaidés, Camilo Cienfuegos e Juan Almeida, todos destinados a desempenhar
papéis-chaves nos meses e anos seguintes. Dezes-seis penosos dias depois,
castigados pela sede, fome, cansaço e abatimento, chegaram ao sítio de um
camponês chamado Mongo Pérez, nas imediações da base da cordilheira do Leste
cubano, onde reencontraram os demais sobre
viventes, entre eles, Fidel e Raul Castro. No caminho, tinham guardado suas
armas na casa de um camponês, onde elas foram quase imediatamente confis-
cadas em uma batida do exército. Fidel Castro ficou furiosos: nunca se deviam
abandonar as armas e "deixá-las foi um crime e uma estupidez".39
Os revolucionários do Grani-na se salvaram por duas razões: a excepcional força
de vontade e autoconfiança de Fidel Castro, que declarou a sobrevivência deles a
um triunfo e prometeu ao minúsculo bando de guerrilheiros exaustos a vitória
final, e a ajuda dos camponeses da região. Ambos os fatores permitiram que os
rebeldes entrassem em contato com os núcleos urbanos do movimento (em
particular Célia Sánchez, na cidade vizinha de Manzanillo) e se agrupassem ao
abrigo dos cumes da sierra Maestra. Aí o formidável senso de oportunidade de
Fidel Castro os conduziu ao êxito no assalto a um posto militar em La Plata, um
povoado próximo da costa, em meados de janeiro — apenas três semanas após o
reencontro dos sobreviventes.
O ataque foi significativo por várias razões. Primeiramente, anunciou-se ao
restante de Cuba, e em especial aos partidários do movimento, que o grupo
continuava vivo e pronto para infligir baixas e perdas ao exército. Em segundo
lugar, o ataque reforçou o próprio moral deles, demonstrando-lhes que com
calma, determinação e audácia poderiam superar a derrota de dezembro e retomar
o caminho da vitória. Por fim, mostrou ao campesinato local que os rebeldes
eram uma força real, capaz de guerrear contra o inimigo, ao mesmo tempo em
que protegiam os partidários e puniam os traidores. De fato, foi durante o
combate de La Plata que teve lugar a primeira execução do Movimento Vinte e
Seis de Julho: o chivato [informante do exército] Chicho Osório, depois de cair
na armadilha que os guerrilheiros armaram para que ele os levasse ao pequeno
quartel, foi fuzilado assim que começou o tiroteio.
A sierra Maestra e a parte oriental de Cuba, onde o Che e seus companheiros
passariam a maior parte do ano e meio seguinte, eram uma região pobre,
escassamente povoada e quase exclusivamente rural. Pertencia a um punhado de
proprietários de terras; a agricultura limitava-se à cana-de-açú-car e ao café, e os
indicadores sociais ficavam atrás até mesmo da maioria das áreas carentes da
ilha. Os camponeses — brancos, negros e mulatos em igual proporção —
enfrentavam uma existência precária, dura e violenta. Não tinham nada a perder e
tinham muito a ganhar com uma mudança radical em suas condições de vida. Os
guerrilheiros, como eles próprios reconheciam, j amais tinham tido um contato
próximo com uma população cam
ponesa tão miserável, e muito menos vivido no meio dessa gente. Foi um
encontro comovente. A solidariedade, a simplicidade e a nobreza dos gua-jiros
[camponeses] da sierra foram uma verdadeira revelação para muitos deles. Nas
palavras de Raul Castro: "É admirável ver o desvelo com que esses camponeses
da sierra nos atendem e cuidam de nós. Toda a magnanimidade e generosidade de
Cuba estão concentradas aqui".40
Durante dois anos, o conhecimento do Che sobre Cuba se restringiria a essa
região. Naturalmente, ele iria encontrar muitos outros cubanos da cidade e de
posições sociais que se dirigiam à sierra por vários motivos — mas apenas breve
e esporadicamente. Para quem já tinha predisposição para admirar o
desconhecido, a predileção pelo campesinato foi natural.*
Os meses iniciais na sierra foram agridoces para Ernesto Guevara, encerrando
uma série de experiências importantes e contraditórias. Durante o segundo
combate, apropriadamente denominado arroio do Inferno, ele matou seu primeiro
inimigo. Conheceu Frank País, que chegou em meados de fevereiro para
coordenar a distribuição de armas e restabelecer o contato entre os grupos
revolucionários da cidade e da sierra. O Che conseguiu enviar uma curta nota a
sua família em Buenos Aires, assegurando-lhe que ainda estava vivo, apesar das
reportagens da imprensa que afirmavam o contrário .** Pediu à cidade livros de
álgebra, história e geografia cubanas, assim como textos em francês para ensinar
o idioma a Raul Castro.***
Durante esses meses, o Che levou a cabo a primeira execução de um

(*) Júlio Zenon Acosta foi um dos primeiros camponeses a se somarem à rebelião, e o primeiro
a ser alfabetizado pelo Che. A propósito da sua morte, Guevara anotou no diário: "O homem era
incansável. Conhecia bem a região, e estava sempre pronto a ajudar um companheiro em dificuldades
ou um companheiro da cidade que ainda não era forte o bastante para defender-se sozinho. Era ele que
trazia água da nascente distante, que conseguia fazer uma fogueira rapidamente, o que achava os
gravetos da cuaba [árvore] para se fazer fogo em um dia de chuva" (Ernesto Che Guevara, cit. em
Che Guevara e Raul Castro, op. cit., p. 310). A publicação em Cuba, em 1991, e no México, em 1995,
de fragmentos dos diários originais do Che em Sierra Maestra (que serviram de base para o seu
posterior Pasajes de Ia guerra revolucionaria) confirma que o próprio Che era de fato seu melhor
editor. Não há quase nada nos diários que valha a pena e que o Che não tivesse incluído no texto
publicado.
(**) "Queridos velhos, estou perfeitamente bem. Só gastei duas e ainda tenho cinco. Continuo
trabalhando na mesma coisa. As notícias são esporádicas e continuarão a ser, mas tenham fé que Deus
é argentino. Um grande abraço para todos, Teté" (cit. na Revista Cosa de Ias Américas, maio-jun.
1988, n° 168, p. 6).
(***) Como conta Raul Castro, "o multifacetado Che solicitara todos os livros" (Raul Castro,
op. cit., p. 157).
traidor entre as fileiras da guerrilha, Eutimio Guerra.* Sofreu uma violenta crise
de malária em princípios de fevereiro, quando o pequeno bando de rebeldes foi
alvo de sistemáticos ataques de surpresa por parte do exército e já aeronáutica.
No final desse mês, a asma o derrubou. As crises tornaram-se mais frequentes e
intensas, e a falta de epinefrina ou mesmo de um ina-lador impossibilitou-o de
prosseguir com os demais: "A asma era tão forte que não me deixava avançar [...]
Consegui chegar, mas com uma tamanha crise de asma que dar um passo para
mim já era difícil [...] Eu tinha de tomar uma decisão, pois para mim era
impossível continuar [...] [sem] pelo menos
comprar os remédios".41
Finalmente, a obtenção do medicamento e o descanso, ao lado de sua vontade
indomável, permitiram-lhe alcançar a pouco numerosa coluna (de apenas dezoito
homens) em meados de março de 1957. Seriam os piores dias da guerra para o
Che. Dentro de pouco tempo ele sofreria os reveses militares, crises de asma e a
escassez de remédios. Felizmente, passaram-se apenas três semanas, entre o
acesso de malária e a chegada à casa de Epifanio Díaz, onde voltou a reunir-se
com Fidel e os demais. Ele extraiu lições contraditórias do infeliz episódio.
Aprendeu que mesmo nas piores condições ele era capaz de superar os efeitos de
sua enfermidade e seguir em frente. Porém, não reconheceu que isso só era
possível em circunstâncias excepcionais. Sua recuperação se deu porque ele
encontrou um lugar para descansar e uma família para cuidar dele; porque seus
companheiros o ajudaram e ele conseguiu a epinefrina ou adrenalina necessária
na cidade de Man-zanillo, e finalmente porque o inimigo, embora próximo, não
concentrou seus esforços em capturá-lo. Essas afortunadas condições não se
repetiriam necessariamente. No final, talvez o Che não tenha chegado a assimilar
um ponto crucial. Sua incapacitação temporária não afetava a campanha, pois
esta era conduzida por outro líder: Fidel Castro.
Mas a mesma incapacitação, temporária ou duradoura, leve ou grave, teria tido
consequências devastadoras se coubesse ao Che conduzir a coluna, o movimento
ou a luta.
As perspectivas da guerrilha começaram a se realizar já no fim de fevereiro, e em
março. Foi quando Fidel Castro concedeu sua famosa

(*) Paço Ignacio Taibo II, em sua recente biografia de Guevara, sustenta que foi o Che que
executou a sentença de Guerra, citando uma entrevista inédita de Universo Sanchez com LUÍS Adrián
Betancourt. (Ver Paço Ignacio Taibo II, Ernesto Guevara, tam' i"en conocido como E! Che, México,
DF, Planeta, 1996, pp. 163 e 780.) Essa é também a versão de Jon Lee Anderson, citando documentos
do próprio Che.
entrevista a Herbert Matthews, do New York Times, provando ao mundo que
ainda vivia e fornecendo uma brilhante, ainda que exagerada, descrição do
exército rebelde.* Em março chegaram os primeiros reforços das cidades: uns
cinquenta recrutas sob o comando de Jorge Sotús. Nessa ocasião ocorreu um dos
poucos atritos entre o Che e Fidel naqueles anos. Guevara foi comissionado por
ele para receber os aspirantes a guerrilheiros procedentes da ala urbana do
Movimento Vinte e Seis de Julho. Porém Sotús "afirmou que tinha ordens de
transmitir o comando da tropa para Fidel e que não poderia transmiti-lo a
ninguém mais, que ele continuava sendo o chefe. Naquela época eu ainda tinha
meu complexo de estrangeiro e não quis chegar a medidas extremas, embora se
pudesse ver certa insatisfação [...] na tropa".42 A questão foi afinal resolvida, mas
em uma espécie de reunião dez dias depois, quando Castro chegou ao
acampamento. Fidel "criticou [...] minha atitude de não impor a autoridade que
ele me conferira e deixá-la nas mãos do recém-chegado Sotús, contra quem não
havia animosidade mas cuja atitude, no entender de Fidel, não deveria ter sido
permitida".43
O papel de Guevara permanecia indefinido. Ele já era mais que um médico, e seu
relacionamento com Fidel o colocava em uma posição excepcional. Porém,
continuava a ser um estrangeiro, e não havia um reconhecimento formal das
tarefas que ele desempenhava. Além disso, com frequência suas opiniões não
eram levadas em conta.** Uma primeira evidência de sua ascensão ocorreu em
meados de maio de 1957, quando, ao chegar um carregamento de armas, Castro
cedeu a Guevara uma das quatro metralhadoras de tripé: "Iniciava-me como
combatente direto, o que eu já era ocasionalmente, embora minha posição fixa
fosse a de médico. Começava para mim uma nova etapa na sierra".44 Ao mesmo
tempo, durante aquelas semanas consultaria os habitantes dos pequenos povoados
da região. Para

(*) O comentário confidencial do embaixador dos Estados Unidos em Havana, Arthur Gardner, sobre
a entrevista é um clássico de falta de perspicácia: "A controvérsia sobre se Fidel Castro está vivo ou
morto não tem importância real" (Arthur Gardner a Roy Rubottom, 28/2/57, Department ofState, op.
cit.).
(**) A honestidade do Che contrasta com a de seus epígonos. Em uma biografia recente, Jean
Cormier atribui a Guevara a autoria da tática de devolver os prisioneiros ao exército inimigo.
Contudo, o próprio Che afirma em seu diário: "Contra a opinião dos mais enérgicos, entre os quais eu
me achava, os prisioneiros foram interrogados, detidos por uma noite e depois libertados" (Che
Guevara e Raul Castro, op. cit., p. 254. A afirmação de Cormier aparece em jean Cormier, Che
Guevara, Paris, Editions du Rocher, 1959, p.131).
critérios urbanos modernos, sua inexperiência e suas deficiências como médico
eram incontestáveis.* Mas, em aldeias e choupanas que jamais viram um médico,
sua chegada era um verdadeiro acontecimento.
O Che começava a tomar e propor iniciativas fora do âmbito de sua
incumbência formal. Em fins de maio, ele sugeriu a Fidel Castro que se
emboscassem e atacassem um dos numerosos caminhões do exército que
patrulhavam a região. Fidel rejeitou a ideia, argumentando que seria mais
proveitoso assaltar um quartel vizinho, próximo da costa. Como narra o próprio
Guevara, a "ânsia de combater" estava tomando conta dele. O Che menosprezava
os aspectos políticos e psicológicos da ação militar, ao passo que Castro os
valorizava em extremo. Porém, o ponto principal não reside nos méritos militares
ou políticos da posição de cada um dos revolucionários, que já debatiam esses
assuntos como pares, se não como iguais. Além do mais, isso revela que
poderiam resolver suas divergências rápida e eficazmente, sem que restassem
mágoas. Assim seria por vários anos.
Ironicamente, Ernesto Guevara foi um dos mais beneficiados pela decisão de
Castro de atacar o quartel. A batalha de Uvero, em 28 de maio de 1957, assinalou
a maioridade do exército rebelde. Nela, o Che atingiu um posto militar consoante
com seu talento, bravura e responsabilidade. Apesar da tarefa precisa e limitada
que lhe foi reservada no ataque, segundo Castro "o Che pediu três ou quatro
homens, e em questão de segundos empreendeu a marcha para dar início ao
ataque naquela direção".45 O argentino destacou-se não só na batalha, mas
também no atendimento dos feridos, tanto entre os seus homens como entre os
inimigos. Não conseguiu salvar seis dos seus companheiros, ao passo que o
adversário perdeu catorze homens, outros catorze prisioneiros e teve dezenove
feridos. Participaram do combate oitenta guerrilheiros e 53 soldados. Foi a maior
batalha da guerra que se iniciava.
Durante o mês de junho o Che permaneceu ao lado dos feridos, afastado da
coluna principal de rebeldes. Mais uma vez sem remédios para a sua asma, ele
estava quase tão incapacitado quanto seus pacientes — e também com o moral
baixo, apesar da vitória de Uvero. O pequeno destacamento registrou deserções e
novas admissões em ritmo vertiginoso. Ao cabo de duas semanas, foi
restabelecido o contato com a coluna principal. A primeira experiência do Che de
comando independente transcorreu calmamente,

(*) Um ex-combatente da sierra, citado por um biógrafo norte-americano, lembra que os cuidados do
Che com a higiene estavam longe de ser perfeitos: "Ele nem mesmo lavava as mãos" (Francisco
Rodríguez, cit. em Martin Resnick, The Black Beret: the Ufe and "leaning of Che Guevara, Nova
York, Ballantine Books, 1969, p. 88).
embora não tenha sido espetacular. A situação da guerrilha se estabilizava;
eles agora controlavam uma área onde o inimigo não poderia penetrar, pelo
menos até o momento. Havia, portanto, uma certa liberdade "para conversar
durante a noite", consolidando as relações com os camponeses e recebendo
visitantes políticos em um contexto de relativa calma.
Graças a sua valentia e tenacidade, o Che foi promovido a comandante em
21 de julho de 1957. Em suas palavras, "a dose de vaidade que todos temos
dentro de nós fez com que eu me sentisse o homem mais orgulhoso da terra".46 A
segunda coluna do exército rebelde ficou sob o seu comando. Consistia em três
pelotões de 25 homens, mais ou menos bem equipados, e tinha alguma autonomia
de ação e movimento. Embora Fidel desse as ordens, em despachos semanais ou
quinzenais levados por mensageiro, o Che tinha um considerável grau de
independência. Guevara dirigiu diversas batalhas, de importância variada, nos
meses que se seguiram: El Bueyci-to, em julho, El Hombrito, em fins de agosto,
Pino dei Agua, em princípios de setembro. Alguns conflitos foram favoráveis aos
rebeldes, outros não. Em certos casos, os combatentes fidelistas receberam
elogios de seu chefe; ao passo que em outros sua avaliação foi mais crítica. A
propósito de sua primeira experiência no comando de uma batalha, o Che
escreveu a Fidel:
"Minha estreia como comandante foi um êxito do ponto de vista da vitória e um
fracasso em termos de organização".47 Em dezembro de 195 7, depois de um ano
na sierra, o Che foi ferido em um pé durante uma batalha em Altos de Conrado.
Castro o repreendeu: "Recomendo-lhe seriamente que tenha muito cuidado.
Ordeno-lhe que não assuma o papel de combatente. Encarregue-se de dirigir bem
sua gente, que é o indispensável neste momento".*
Durante a segunda metade de 1957, a posição do Che como chefe de coluna
estava firmemente estabelecida. Pela primeira vez ele começou a participar
ativamente das discussões, polémicas e divergências do Movimento Vinte e Seis
de Julho. Seus diários e cartas expõem opiniões frequentemente semelhantes às
de Fidel Castro, mas por vezes ele assume posturas mais espontâneas ou radicais.
Ele passa a recordar suas reflexões sobre temas delicados que acompanhariam a
Revolução Cubana até o fim do século como uma sombra negra e triste. Logo
após o desembarque do Graniria, a execução de traidores, informantes ou oficiais
inimigos particularmente

(*) Fidel Castro a Ernesto Guevara, cit. em Carlos Franqui, Diário, op. cit., p. 385. O Che
replica: "Sinto muito por ter desacatado seus conselhos, mas o moral das pessoas estava muito baixo
(...] e considerei necessária a minha presença na linha de fogo" (Ernesto Guevara a Fidel Castro, dez.
1957, cit. no Gramna, 16/10/67, p. 15).
cruéis instituiu-se como prática permanente da guerrilha; foi como Raul Castro
apresentou em seu diário, pouco depois da execução do informante Chicho
Osório, a quem j á nos reierimos. * Logo após a batalha de El Hombri-to, quando
há um intervalo na guerra que lhe permite, entre outras coisas, fixar residência,
construir um forno de pão e lançar o jornal El Cubano Libre, o Che perguntava
se a pena de morte se justificava plenamente.
Sua análise concentra-se em um camponês chamado Arístido, um bandido
que se juntara à guerrilha sem nenhum motivo especial e que alardeava ser sua
intenção desertar assim que as forças rebeldes se deslocassem. Guevara mandou
fuzilá-lo "após uma investigação sumariíssima",48 e em seguida deu início a um
tortuoso processo de reflexão: "Perguntamo-nos se ele era realmente culpado a
ponto de merecer a morte, e se não poderíamos ter salvado sua vida para o
período da construção revolucionária".49 O novo comandante resolve o dilema
com uma bravata analítica e discursiva. A execução, explica ele, ocorreu porque
a situação a exigiu: a guerrilha era demasiado frágil para poder se dar ao luxo de
qualquer outra punição, e forte o bastante para punir a traição. Também o
inquietava o caso de um jovem chamado Echevarría, cujo irmão veio no Gmnma
e que logo se dedicou a atos de banditismo e a assaltos nas áreas sob controle
revolucionário. Novamente o Che vacilou — mas apenas em pensamento:
Echevarría poderia ter sido um herói da revolução [...] mas teve a má sorte
de cometer crimes durante aquele período e teve de pagar um preço por
seus delitos (...] Serviu de exemplo, trágico por certo mas também valioso,
para que o povo compreendesse a nossa necessidade de fazer da Revolução
um fato puro, não contaminado pelo vandalismo a que os homens de Batista
tinham nos acostumado.50
Por fim, o Che analisa outro caso, que na época e hoje em dia parece cruel e
desnecessário: o das execuções simbólicas. Estas envolveram fuzilamentos
simulados, nos quais as vítimas não suspeitavam do caráter exclusivamente
cerimonial do paredón contra o qual eram encostadas. Guevara comentou que
isso podia parecer um exercício "bárbaro", cuja justificativa residia, mais uma
vez, na falta de alternativas. Por um lado, eles não mereciam morrer; por outro,
não havia formas alternativas de punição.
O raciocínio, ainda que impecável, não é nem justo nem aceitável; seu
mérito é apenas o de existir. Decerto os outros dirigentes da saga cubana nem

(*) "A sorte de Chicho já estava lançada havia tempo, assim como a de qualquer chefe da
companhia que caísse em nossas mãos, e a punição era o fuzilamento sumário, a "nica maneira de
lidar com aqueles vira-casacas" (Raul Castro, op. cit., p. 201).
sequer formularam as perguntas levantadas pela mente inquisidora do Che.
Porém, simplesmente analisar os fatos não bastava. O raciocínio do Che era
rápido e peremptório. Essa lógica tática, simplista e burocrática impediria
qualquer reflexão mais profunda em outras circunstâncias mais sombrias _ já não
tão longínquas. Em princípios de 1959, ele teve em suas mãos o destino de
centenas de condenados à morte em La Cabana, e avalizou um dos episódios
mais obscuros da Revolução. Confirma-se o caráter contraditório do pensamento
de Guevara. Ele toma nota da complexidade do problema pondera-o e decide dar
uma resposta que lhe permitirá seguir adiante — sem contudo, realmente resolver
o dilema.
A crescente participação do Che no debate político do Movimento Vinte e Seis
de Julho, todavia, referia-se sobretudo às grandes questões: o rumo da batalha, as
políticas de aliança e a ideologia da liderança. Em julho de 1957 chegaram a
sierra duas figuras-chaves: Raul Chibas, irmão de Eddy, o velho líder "ortodoxo"
e protagonista do primeiro suicídio da história transmitido ao vivo pelo rádio, e
Felipe Pazos. Economista, Pazos era um ex-diretor do Banco Central e protótipo
de economista em desenvolvimento — progressista mas não revolucionário. Com
Regino Boti, um economista de inclinações semelhantes, ele redigira a "Tese
económica do Movimento revolucionário Vinte e Seis de Julho", divulgada no
México em 1956. Sua intenção — como a de Fidel Castro ao recebê-los em seu
esconderijo montanhês — era simples. A meta era forjar e consolidar uma
aliança entre os guerrilheiros da sierra e os políticos reformistas da planície,
incluindo dirigentes urbanos como Frank País (que faleceria semanas depois) e
os herdeiros de José António Echevarría (que sucumbiria em um atentado
frustrado contra Batista no Palácio Nacional, em 13 de março de 1957) no
Diretório Estudantil Revolucionário. Chibas e Pazos não pertenciam a nenhuma
dessas alas da aliança das forças antiditatoriais, mas eram figuras importantes da
oposição moderada, que poderiam talvez ser induzidas a assumir posições mais
radicais. Castro chegou a estampar sua assinatura em um acordo datado de 12 de
julho, sobre o qual o Che expressou sérias reservas, embora terminasse por
aceitar sua necessidade. Em suas anotações sobre a visita de Chibas e Pazos e
suas "mentalidades cavemícolas",51 Guevara revela sua intensa animosidade para
com ambos, e sua dura oposição a suas posturas reformistas.
O Che expressa também suas reservas e objeções ao acordo propriamente dito,
em particular ao capítulo dedicado à reforma agrária. Ele observa
sarcasticamente: "Era uma política que teria sido aceita pelo [conser
vador] Diário de Ia Marina. Estabelecia — era o que faltava — "indenização
prévia dos proprietários anteriores'"." O texto incluía uma série de promessas: a
realização de eleições livres após a derrubada do governo, o retorno a um regime
constitucional e a criação de uma Frente Cívica Revolucionária, composta de
representantes de todos os setores da oposição. Guevara compreendeu por fim
que a aliança com Pazos e Chibas, como outras, eram necessárias para a guerrilha
continuar a receber armas e recursos e evitar o isolamento. Ele reconhecia
também que o compromisso de Castro exigia certos ardis e silêncios. Atribuía
aos acordos um caráter provisório: durariam apenas o tempo que o processo
revolucionário permitisse. Eles continham uma dimensão de logro — não para os
co-signatários, que não eram novatos na política cubana, mas para certos setores
da opinião pública. Estes setores poderiam facilmente acreditar que o programa
do Vinte e Seis de Julho limitava-se ao texto do Manifesto, publicado em 28 de
julho na Bohemia, a revista de maior circulação em Cuba.
O documento não era nem mais prudente nem menos radical do que qualquer
das declarações anteriores do Vinte e Seis de Julho. O que induziu o Che a
manifestar suas reservas foi sua nova posição dentro da guerrilha. Ele já não era
um médico estrangeiro, exposto ao risco de uma expulsão repentina, mas um
comandante, que tinha conquistado sua estrela em combate e que agora
participava por inteiro das discussões substantivas da Revolução. Talvez a
principal diferença entre o Che e Fidel e os demais revolucionários se baseasse
nas metas transparentes e bem definidas que o médico e guerrilheiro tinha fixado
para a luta. Ele perseguia uma revolução muito mais radical. Atribuir a suposta
transformação gradual de Fidel de democrata em marxista-leninista à influência
do comunista argentino é um absurdo, mas a tática de Castro de fato incluía uma
orientação estratégica menos definida que a ideologia abstrata do Che. Este, por
sua vez, era menos ligado à realidade imediata e mais firmemente ancorado em
um ideário definido. As cartas trocadas entre o Che e Daniel (René Ramos
Latour) no final de 1958 expressariam essas diferenças.
Ramos Latour era o colaborador mais próximo de Frank País no front urbano de
Santiago. Após a morte de País, sucedeu-o na direção clandestina do Movimento
Vinte e Seis de Julho. Viajou para a sierra Maestra pela primeira vezeml957e
retomou em maio de 1958, morrendo em combate em julho do mesmo ano. No
fim de 1957, passou a se corresponder com o Che, que enfatizava as sérias
divisões dentro do movimento sobre o chamado Pacto de Miami. Beneficiando-
se do acordo que firmaram com Castro, Felipe
Pazos e Raul Chibas, junto com outras figuras moderadas da oposição, entre elas
o ex-presidente Carlos Prío Socarrás, tentaram dar um passo adicional em
outubro. Convocaram uma mediação dos Estados Unidos na guerra civil, uma
declaração de "independência" da oposição civil e urbana dos setores militares e
rurais, e a designação de um presidente interino — mais precisamente Pazos. O
novo pacto foi firmado em outubro e as primeiras notícias sobre ele apareceram
na imprensa norte-americana um mês mais tarde. Semanas após a assinatura,
Castro e o comando da guerrilha repudiaram o Pacto de Miami, embora
representantes deles o tivessem aprovado.
Escrevendo para Daniel em 14 de dezembro de 1957, o Che começa expondo
uma série de controvérsias técnicas e logísticas menores. Ele e Latour já tinham
tido suas desavenças, sobretudo no que dizia respeito à notória compulsão do
Che para receber em sua coluna combatentes de todo tipo e fomentar relações
entre a "sierra e a planície" independente da Direção Nacional. Guevara passava
por cima das direções municipais do movimento, aceitando recrutas, ajuda ou
informação de setores não controlados por Ramos Latour.5' Como lembra Carlos
Franqui, "o Che tinha desencadeado uma guerra virtual contra o Vinte e Seis de
Julho 'da planície'e uma das formas como ele mantinha essa gente era recorrendo
a gente que tinha conflitos com a organização, em vez de usar o pessoal do
movimento".54
Nesta carta, que ele mesmo qualificaria de "bastante idiota"," Guevara revela a
intensidade de suas próprias convicções ideológicas e coloca os termos do debate
entre a "sierra" e a "planície" — entre os reformistas das cidades e os
revolucionários das montanhas, entre os liberal-nacionalistas e os emergentes
marxista-leninistas. Ele tacha o Pacto de Miami de "execrá-vel", asseverando que
"em Miami [eles] deram o eu provavelmente no mais desprezível ato de
bestialidade que a história cubana recorda".56 Depois afirma que Ramos Latour
se recusou a chegar a uma solução conciliatória, e se lança a uma uma feroz
diatribe, que é também uma confissão:
Em virtude da minha preparação ideológica, sou um dos que acreditam que a
solução dos problemas deste mundo está atrás da chamada cortina de ferro
[...] Sempre considerei Fidel um autêntico líder da burguesia de esquerda,
ainda que seu caráter seja valorizado por qualidades pessoais de
extraordinário brilho, que o colocam muito acima de sua classe. Com esse
espírito ingressei na luta; honestamente, sem esperança de ir além da
libertação do país, disposto a partir quando as condições da luta guinassem
para a direita (para aquilo que vocês representam) [...] O que nunca imaginei
foi uma mudança radical das posturas de Fidel no que se refere ao Manifesto
de Miami. Julguei que fosse impossível aquilo que aprendi depois, ou seja,
que os desejos dele, que é o
autêntico líder e único motor do movimento, deveriam portanto estar distor-
cidos. Envergonho-me do que pensei naquela época.57
O Che reafirma seu direito a estabelecer relações com quem quiser e receber
ajuda — armas, dinheiro, suprimentos — de quem quer que seja — inclusive
supostos bandidos da planície. Escreve "para a história" (a ideia de um destino
próprio já parece fortemente arraigada).* Embora em sua opinão as diferenças
entre eles sejam provavelmente intransponíveis, é preciso pô-las de lado para se
conservar a unidade. Reconhece que Latour poderia cortar relações com ele; mas
"o povo não pode ser derrotado".
Podemos apenas especular sobre o sucedido. Segundo vários relatos
históricos, Castro enviou a Miami um de seus colaboradores mais próximos,
Lester Rodríguez, para negociar e referendar o Pacto de Unidade. Quando o
acordo foi firmado, vários companheiros de Fidel devem ter ficado indignados —
começando pelo Che. Já desapontados ou irritados com o Manifesto de 12 de
julho, talvez tenham considerado que o conclave de Miami, as pessoas envolvidas
e a decisão de proclamar a candidatura de Felipe Pazos para depois da retirada de
Batista constituíam uma série de concessões perigosamente equivalente à traição.
E possível que tenham censurado iradamente Castro por sua aparente anuência, a
qual, considerando-se as precárias comunicações entre Miami, a planície e a
sierra, quase com certeza nunca existiu.* * Após um silêncio sepulcral de várias
semanas, Castro repudiou o acordo e realinhou com a sua ala esquerda, agora
liderada por Gue-vara.*** O Che deve ter exprimido em uma nota ou recado sua
desaprovação ou total rejeição ao Pacto de Miami.**** Talvez o Che nunca tenha
acreditado que Fidel tivesse firmado previamente o malfadado documento, mas
agora ele conhecia bem seu amigo e chefe: Fidel nunca partilhava nada com
ninguém. Pode-se imaginar facilmente o desgosto do argentino radical com as
declarações públicas de Castro contra as expropriações e o comu-

(*) "Meu nome histórico não pode estar ligado a esse crime [o Pacto de Miami] [...] Faço-o para
ter um dia uma história que testemunhe minha integridade" (ibidem, p. 362).
(**) Esta é a opinião de Carlos Franqui, que viveu intensamente os acontecimentos: "Não houve
consulta nem à liderança da planície nem a Fidel. Havia uma base para um pacto, ou seja, se Pazos
tivesse feito esse pacto sem incluir esses pontos controversos, teria sido diferente. Mas Fidel nunca o
assinou" (Carlos Franqui, entrevista, op. cit.).
(***) Franqui afirma que os opositores do Pacto de Miami desde o início foram Raul Castro e o
Che, Evelio Martínez, Júlio Martínez e o próprio Franqui, do exílio, assim como Daniel, na
clandestinidade. (Ver Franqui, Diário, op. cit., p. 371.)
(****) Tad Szulc enfatiza que "por alguma razão desconhecida, Che Guevara inicialmente
pensou que Castro havia autorizado o Pacto de Miami" (Szulc, op. cit., p. 469).
nismo, com o hábito de Fidel de batizar todas as crianças camponesas nascidas na
sierra e com as leis conservadoras que Fidel estabeleceu na montanha. Daí a supor
que a estadia de Pazos com Fidel na sierra os aproximara em excesso, era apenas
um pequeno passo. Este é, quem sabe, o sentido da afirmação do Che em sua carta
a Daniel, de que Fidel era originariamente um "burguês de esquerda" (entenda-se:
não um verdadeiro revolucionário).
Uma carta do Che ao comandante-em-chefe, enviada imediatamente após o
incidente, resume suas opiniões:
Você sabe que eu não tinha a menor confiança nas pessoas da Direção
Nacional, nem como líderes nem como revolucionários. Tampouco acreditei
que chegassem ao extremo de traí-lo de forma tão aberta [...] Creio que sua
atitude, Fidel, de silêncio, não é a mais aconselhável em momentos assim.
Uma traição de tal magnitude indica claramente os caminhos diversos que
foram tomados. Creio que um documento escrito pode ter a eficiência
necessária e posteriormente, se a coisa se complica, com a ajuda de Célia,
você poderia destituir integralmente a Direção Nacional.58
O documento sugerido pelo Che fora redigido no dia anterior, 14 de
dezembro. A destituição proposta pelo argentino se consumiria no dia 3 de maio
seguinte. Ao descobrir que Castro ou realmente não firmara o pacto ou se
retratara, o Che manifestou sua alegria em nova carta a Fidel: "Já lhe disse que
você sempre terá o mérito de haver demonstrado a possibilidade da luta armada,
apoiada pelo povo, na América. Agora você empreende outro caminho, maior,
para ser um dos dois ou três da América que chegaram ao poder por meio de uma
luta armada multitudinária".59
Em contrapartida, a Latour, o Che, como o apóstolo Pedro, confessou sua
culpa por ter duvidado do líder. Em tal hipótese, as "faltas" na sierra, que o Che
mencionou em sua carta a Fidel em 1965, seriam justamente essas.* Seu
arrependimento brotava da retificação operada por Castro, que rapidamente
retornou ao redil revolucionário e ao âmbito da convergência com seu amigo e
aliado.
René Ramos Latour não ficou de braços cruzados. Contestou imediatamente
Guevara, e em sua resposta entrevemos as divergências crescentes entre as
distintas facções do Vinte e Seis de Julho, que estourariam em 1959, depois do
triunfo da Revolução. Latour rejeitou as imputações do

(*) "Minha única falta de alguma gravidade é não ter confiado mais em você desde os primeiros
momentos da sierra Maestra e não haver compreendido com suficiente rapidez suas qualidades Je
dirigente e revolucionário" (Ernesto Che Guevara, "Carta a Fidel Castro", Escritos y discursos,
Havana, Ed. de Ciências Sociales, 1985).
Che, reafirmando que não se sentiria atingido por suas expressões. Recriminou o
desprezo com que o Che se referiu ao material a ele enviado, sublinhando que
ainda que a cidade careça do clima de heroísmo imperante na sierra, os que
reúnem o dinheiro, compram as armas e víveres e os transportam à montanha não
são menos revolucionários ou valentes que os combatentes das montanhas.
Sobretudo, escreve Daniel, a salvação do mundo não se encontra atrás da cortina
de ferro. Recusa-se a ser classificado como "de direita", mas marca distância em
relação ao Che: "Os que têm a sua preparação ideológica pensam que a solução de
nossos males está em nos libertarmos do nocivo domínio 'ianque' por meio do não
menos nocivo
domínio soviético".*
Latour fez uma crítica apenas dissimulada às predileções do Che no que toca às
alianças: "Sou operário, mas não dos que militam no Partido Comunista e se
preocupam excessivamente com os problemas da Hungria e do Egi-to, que não
podem resolver, e não são capazes de renunciar a seus postos e se incorporar ao
processo revolucionário".60 Por fim, sobre o Pacto de Miami, responde a Guevara
que nunca viu com bons olhos a associação de Fidel com o ex-presidente Prío.
Recorda que sempre rejeitou o acordo da Flórida, na medida em que não reiterava
a liderança das forças oposicionistas da ilha e que a "unidade" em questão devia
com efeito ser rompida. Mas faz uma reserva: que se diga "aonde vamos e a que
nos propomos".61

Além de ganhar a merecida fama de colocar-se como o "comunista" ou radical da


guerrilha, foi também nessa época que o Che firmou sua reputação de homem
organizado. A clareza e a engenhosidade do comando abundavam em sua coluna.
Ele consolidou mais que os outros comandantes os espaços territoriais. Ali
estabeleceu escolas, clínicas, fomos, pequenas oficinas, hospitais e uma disciplina
férrea. Atendia aos camponeses e educava os guerrilheiros em seus momentos de
descanso. Iniciou a publicação do jornal

(*) A carta de Daniel, datada de 18 de dezembro de 1957, foi publicada em Franqui, Diário, op.
cit., pp. 365-9. Embora este intercâmbio epistolar não apareça em nenhuma das recopilações das cartas
do Che, nem nas diversas biografias que já citamos, ou em outros textos de história da Revolução
Cubana, não há razão para duvidar de sua autenticidade. Nos arquivos de Franqui na Universidade de
Princeton podem-se revisar as notas originais do livro. Todas concordam com o texto publicado; os
cubanos jamais responderam ao texto de Franqui avalizando-o, porém tampouco o desmentiram. A
referência do próprio Che sobre sua carta "bastante idiota" a Daniel autentica na prática a existência da
carta, se não seu conteúdo preciso.
Eí Cubano Libre e, pouco depois, as transmissões da Radio Rebelde. Começou a
receber alguns jornalistas estrangeiros e transformou seus acampamentos em
modelos de limpeza, eficiência e generosidade. Sua legenda crescia em meio à
tropa e ao campesinato. Nas narrativas e na história oral da guerrilha, suas proezas
vinham acompanhadas de relatos sobre a organização meticulosa de seus
acampamentos e campanhas.
Surgia também nessa época a saga de seu trato igualitário e reto para com a tropa,
que tão fortemente impressionou um dos mais jovens recrutas de sua escolta
imediata. Como recorda Joel Iglesias,62 eles chegaram certa vez a uma palhoça
nas encostas do pico de Turquino, onde negociaram alimento e repouso com uns
guajiros. Guevara indicou quantas bocas havia e esperou junto com os
camponeses que a comida estivesse pronta para levá-la aos integrantes de sua
coluna. Os anfitriões, no entanto, serviram três pratos, cada um com o triplo da
ração que caberia ao resto dos guerrilheiros, convidaram o Che e seus
acompanhantes a sentar e almoçar enquanto o resto do alimento terminava de
cozinhar. O Che recusou, ordenando que os pratos servidos fossem despejados em
uma lata grande que mais tarde seria repartida entre todos. Não se tratava de
receber uma porção mais farta que os demais, mas simplesmente de aproveitar o
tempo, almoçando antes; nem isso aceitou:
toda a comida foi transportada para onde estava o resto do pelotão, e ali, em fila,
todos se alimentaram, ficando Guevara no lugar que lhe cabia.
Dispomos de poucos relatos jornalísticos diretos sobre o Che nesses meses.
Um correspondente do New York Times, Homer Bigart, foi enviado à sierra
Maestra em fevereiro de 1958; acompanhou-o um jovem repórter uruguaio,
Carlos Maria Gutiérrez, que mais tarde se tornaria amigo e candidato a biógrafo
do comandante. O uruguaio recorda uma sensação de serenidade e camaradagem
no acampamento, uma grande naturalidade no Che, mesclada com uma série de
defesas para evitar intimidades ou cumplicidades incómodas ou indesejáveis.
Guriérrez conservou na memória a imagem de um indivíduo "muito magro e com
uma barba rala que mal cobria seu rosto quase infantil"." Seriam os
acontecimentos de 1958 que envelheceriam e amadureceriam o Che,
convertendo-o na figura iconográfica da entrada em Havana.
Bigart, de sua parte, informou a embaixada dos Estados Unidos em Havana sobre
suas conversações com Guevara, ressaltando seus "sentimentos antiamericanos
bastante fortes". Narrou também sua entrevista com Fidel Castro; quando o
jornalista o questionou sobre a sensatez de depender tanto de um argentino,
comunista e antiamericano, Fidel respondeu que "na
verdade não importavam as convicções políticas de Guevara, já que ele, Fidel
Castro, fixava o rumo da guerrilha".* Outro jornalista, o argentino Jorge Masetti,
que também percorreu os acampamentos em fevereiro de 1958, observou: "O
famoso Che Guevara parecia-me um rapazola argentino típico da classe média. E
também uma caricatura rejuvenescida de Cantinflas".64
Ernesto Guevara encontrava tempo para a leitura e, segundo um recruta, para
os amores. Constantemente pedia livros à planície, entre outros a História da
filosofia de Will Durant, assim como obras de Proust, Hemingway, Faulkner, de
Graham Greene e Sartre, poesias de Neruda, Milton e Góngo-ra.65 Seu ascetismo
era proverbial, mas ao mesmo tempo sensato. O próprio Joel Iglesias relata: "Em
Lãs Vegas de Jibacoa, o Che encontrou uma garota negra, ou melhor, mulata, de
corpo muito bonito, chamada Zoila. Muitas mulheres ficavam loucas por ele, mas
nesse sentido ele foi muito severo e respeitoso, apesar de que gostou daquela
moça. Encontraram-se e ficaram
juntos algum tempo".66
A jovem se chamava Zoila Rodriguez Garcia e sem dúvida lembrava as
"belas mulatas" de sua passagem por Porto Alegre e Trinidad e Tobago quando
jovem. Ela contava dezoito anos, e por seu relato podemos deduzir que a relação
com o Che durou vários meses, desde princípios de 1958 até agosto, quando
Castro concebeu os planos da "invasão" do centro da ilha e Guevara resignou-se a
não levar a moça consigo. Segundo Zoila, o fascínio do Che pelo exótico não se
perdeu na sierra. Talvez tenha se aguçado:
Ele me olhava do jeito como os rapazes olham as garotas, e me deixou muito
nervosa [...] Era um olhar um pouco travesso [...] Como mulher, gostei
muitíssimo dele, sobretudo do olhar; tinha uns olhos tão bonitos, um sorriso
tão tranquilo que mexia com qualquer coração, comovia qualquer mulher [...]
Em mim despertou um amor muito grande e muito bonito; comprometi-me
com ele, não só como combatente mas como mulher.67
As experiências do Che na sierra foram com frequência retomadas por
outros. Raul Castro, em particular, reproduziria muitas das inovações de Guevara
no Segundo Front Frank País, aberto em março de 1958, na sierra de Cristal. O
argentino introduziu uma mudança de qualidade na guerra: "do bate-e-foge para
um combate de posições, que deve resistir aos ataques inimigos para defender o
território rebelde, onde se constrói uma nova rea-

(*) O conteúdo do informe de Bigart aparece em um telegrama da embaixada dos Estados


Unidos em Cuba ao Departamento de Estado, datado de 3 de março de 1958, publicado em Foreign
Reiatíons of the United States, 1958-69, Cuba, vol. VI, p. 46.
lidade".68 Naturalmente, havia ocasiões em que se adiantava. Tinha tino
estratégico, mas não tático. Sedentarizou prematuramente sua coluna, carecendo
de condições militares para defender o território e as instalações ocupadas. Fidel
aplicou as ideias originais do Che, mas no devido tempo; sem Fidel, muitas de tais
teses teriam fracassado. Para o futuro, porém, definia-se um precedente alarmante:
"Se o Che atuava de modo tão diferente, a dois passos de Fidel, fora da sierra o
fenómeno se acentuaria, para o bem ou para o mal. Na medida em que a distância
ou no espaço ou na situação eram maiores, as dificuldades e complicações se
aguçavam".69
Teses como a da estabilidade dos acampamentos convinham a Castro por muitos
motivos. Manter bases sedentárias, perturbadas apenas por deslocamentos
esporádicos, à espera de que algo acontecesse, era uma táti-ca atraente para Fidel.
Graças à embalagem conceituai do Che, passava a ser mais atraente ainda. Até a
fracassada greve geral de 9 de abril e a subsequente ofensiva do exército, o líder
guerrilheiro não dispunha de uma estratégia militar para tomar o poder. A magra
força acumulada não o autorizava. No fundo, sua única aposta consistia em
derrubar o regime por meio da greve geral, embora depois do fracasso da mesma
Fidel Castro tivesse tentado responsabilizar a direção da planície. Entre muitos
outros paradoxos da guerra revolucionária figura o fortalecimento descomunal de
Fidel Castro após o fracasso da greve de 9 de abril de 1958, que na realidade ele
ordenara e concebera. Com a Direção Nacional do Vinte e Seis de Julho
responsabilizada pela débâcle urbana, abriu-se um vácuo preenchido pelo líder da
sierra. Como afirmava o Che depois da greve e do ajuste de contas dentro do
movimento: "Desde então, a guerra seria conduzida militar e politicamente por
Fidel, em seu duplo cargo de comandante-em-chefe de todas as forças rebeldes e
secretário-geral da organização".711
A partir da tumultuada reunião de 3 de maio nos Altos de Mompié — onde se
repartiram culpas e se construíram defesas retroativas em torno da greve falida —,
formou-se um duplo movimento no seio da coalizão rebelde. Por um lado, os
moderados, a planície e os civis foram deslocados pelo próprio Fidel e seu grupo.
O Che desempenhou um papel importante nesse desalojamento, ao participar pela
primeira vez de uma reunião da Direção Nacional do Movimento Vinte e Seis de
Julho. Ocupou, junto com Castro, a função de acusador dos dirigentes da planície:
Faustino Pérez, René Ramos Latour, Marcelo Fernández e David Salvador. Por
outro lado, houve uma gradual substituição de alianças. O Partido Socialista
Popular começou a adquirir uma presença e uma força que não tinha antes.
Também nessa
mudança o Che representou um papel crucial: a incorporação de quadros
comunistas se verificou sobretudo nas fileiras de sua coluna e, naturalmente, no
Segundo Front, comandado por Raul Castro.
Durante os oito primeiros meses de 1958, abriu-se um compasso de espera, tanto
na guerrilha fidelista como na função nela desempenhada por Ernesto Guevara. A
partir da greve geral e seu fracasso estrepitoso, até o final da contra-ofensiva —
desesperada, falida e de grande alcance — empreendida por Batista em maio, o
exército rebelde viveria seus piores momentos na sierra. A sobrevivência, porém,
transformou-se em uma garantia de triunfo. O Che participou, é claro, da defesa
contra a investida do regime, mas sem se destacar de maneira especial. Sua coluna
combateu nas batalhas de El Jigüe, em 20 de julho, e Santo Domingo, mas foi a
concentração obsessiva de Fidel Castro, movimentando pela sierra tropas, armas,
víveres, recursos, pedindo reforços, recriminando colaboradores, tomando
decisões, que decidiu o êxito da resistência. A extrema irritação de Castro
demonstrava a dimensão do perigo. Ele chegou a insultar amargamente inclusive
Célia Sánchez, sua colaboradora mais leal e próxima até 1980, quando faleceu. A
carta que segue é datada de 18 de junho de 1957 (um dia antes daquele que Castro
indicará como o pior desses meses), em plena ofensiva do exército. Para o Che,
em compensação, não há uma só carta em que transpareça a mais leve
animosidade, recriminação ou exasperação:
Quando lhe apetece você julga as coisas da maneira mais caprichosa que se
pode conceber. Algumas das suas atitudes me fazem temer que você esteja
se convertendo pouco a pouco em uma cega absoluta. Creio que sempre a
tratei com respeito, fundamentalmente no que se refere às expressões [...]
Em sua carta de ontem você transgrediu todas essas considerações. Não vou
lhe escrever na linguagem que posso usar com qualquer outro companheiro
[...] Eu, ao contrário de você, não escrevo com o propósito de amargurar, ou
ferir, ou preocupar, ou sem preocupação alguma [...] Se tenho a esperança de
que você me entenda? Nenhuma! Quando escrevi com maior clareza você
entendeu o que bem quis.*

(*) Fidel Castro a Célia Sánchez, 18/6/57. Huber Matos, que combateu sob as ordens do Che durante
alguns meses na sierra, conserva uma recordação semelhante:
"Fidel sempre tratava de impor sua autoridade, levantando a voz ou falando coisas insolentes, ou
pretendendo ter sempre razão. No entanto, nunca o vi chocar-se com o Che. Fidel se conduzia com
seus subordinados de um modo às vezes insultuoso e despótico. Havia exceções. O Che era uma delas.
Nunca o vi falar com o Che de modo grosseiro ou rude" (Huber Matos, entrevista com jornalistas
ingleses, Londres, out. 1995).
A ofensiva da ditadura duraria 76 dias. Mais de 10 mil soldados participaram,
enquanto os combatentes guerrilheiros somavam no total apenas 321 homens.
Batista sofreu mais de mil baixas, os rebeldes fizeram mais de quatrocentos
prisioneiros, tomaram quinhentos fuzis modernos e dois carros de combate.
Depois do fracasso da ofensiva, o destino na guerra estava selado: a queda de
Batista era questão de tempo, e questão de força, habilidade e audácia o seu
substituto.
Nesse período, à medida que o regime de Batista se deteriorava e a vitória dos
revolucionários se tomava verossímil, começaria também um jogo de sombras e
negaceios entre o Movimento Vinte e Seis de Julho e o governo dos Estados
Unidos. O conjunto dos flertes, contatos e controvérsias incluiu mensagens
cruzadas, entrevistas na imprensa, incidentes na base norte-americana de
Guantánamo, sequestros de cidadãos norte-americanos e ataques a empresas
oriundas dos EUA, esforços da guerrilha e seus aliados para interromper o fluxo
de suprimentos e armamentos para Batista, e deste, para manter intacta a ajuda
militar, e, por último, a assistência da CIA a algumas facções do Vinte e Seis de
Julho. Tampouco nessa frente o Che ocupou um lugar privilegiado. Sua atuação
se manteve principalmente na penumbra diplomática: não foi porta-voz, nem
negociador, nem teve influência decisiva em uma ou outra direção.
Porém, como já observamos, tudo indica que sua interferência foi essencial no
princípio da substituição de alianças que se inaugurou com o rompimento do
Pacto de Unidade, em fins del957.Apartirde então desencadeou-se uma luta feroz,
que iria até meados de 1959, já depois de tomado o poder, no seio do Movimento
Vinte e Seis de Julho e na frente de oposição a Batista. O encarniçado combate
incluiu choques entre a sierra e a planície, entre revolucionários e liberais, entre
partidários do advento de uma ditadura militar e defensores da luta até o fim, mas
não se limitou a eles. Em meio ao combate houve um realinhamento gradual:
Fidel Castro afastou-se cada vez mais de seus antigos aliados liberais — Prío,
Chibas, Pazos, o Diretório Estudantil, a Direção Nacional do Movimento — e
aproximou-se dos quadros do Partido Socialista Popular (PSP). Não foi um
processo acelerado ou incisivo, com início e fim, nem necessariamente derivou de
um plano consciente tramado de antemão e executado ao pé da letra pelo
caudilho.
O primeiro contato entre Castro e o PSP deu-se justamente no fim de 1957,
quando um dirigente operário comunista, Ursinio Rojas, chegou a sierra. Ele
informou a Fidel que a direção do partido decidira autorizar seus membros a se
incorporar às fileiras do exército rebelde. Um deles estabele
ceria possivelmente o primeiro vínculo de Che Guevara com os comunistas
cubanos. Junto com um certo Hiram Prats, chega à coluna do Che Pablo Rivalta
um funcionário jovem mas curtido do Partido Socialista Popular, com uma
bagagem de viagens ao exterior e alguma militância em Praga, dentro do aparato
do movimento comunista internacional. Rivalta não se separaria de Guevara até
quase dez anos depois, na Tanzânia, onde foi embaixador e serviu de ligação entre
Havana e a expedição guevarista no Congo. Em meados de 1957, o Che "tinha
pedido gente com as minhas características: um professor, com algum grau de
instrução política e experiência de trabalho político".71 Rivalta poderia ter
acrescentado uma característica a mais: origem africana. Segundo ele, o Che
instruiu-o a não revelar a ninguém sua filiação ao PSP, muito menos seu cargo na
direção da Juventude do partido. Os demais membros da coluna souberam que
Rivalta era comunista em novembro do ano seguinte.72
Estranhamente, os norte-americanos não detectaram com rapidez e clareza a
inclinação pró-PSP do Che.* Os dois documentos dos serviços de informação dos
Estados Unidos que mencionam o argentino nesse período, ainda que apresentem
os dados pertinentes — sua proximidade com a representação soviética no
México, a orientação ideológica de Hilda Gadea, seu veemente antiimperialismo
—, não extraem as conclusões lógicas. Nas escassas menções de um vínculo entre
o nome do Che e a influência comunista no seio do Movimento Vinte e Seis de
Julho, a causalidade aparece de maneira confusa. Assim, por exemplo, um
telegrama do consulado dos Estados Unidos em Santiago, datado de 21 de
fevereiro de 1958, diz:
O oficial que informa perguntou a vários cubanos sobre a acusação de que
um dos lugar-tenentes mais confiáveis de Fidel Castro, o dr. Ernesto
Guevara, um argentino, é comunista ou simpatizante dos comunistas.
Invariavelmente eles respondem com negativas veementes, mas reconhecem
que ignoram seus antecedentes e preferem desviar toda a conversação,
sugerindo que o dr. Guevara é um aventureiro idealista.**

(*) No documento sem data dos serviços de informação anteriormente citado, os norte-
americanos concluem que "parece claro, então, que mesmo não sendo membro do Partido Comunista
Guevara é marxista em seu pensamento e mantém alguns contatos com círculos comunistas"
(Po5sií)i!ify of communist connecnons, op. cit.). Subestimavam seriamente tanto a inclinação
comunista (não ao partido, mas ao ideário) como os crescentes vínculos do Che com o PSP.
(**) Despatch from the US combate at Santigoáo de Cuba to the Department cif State.
Foreign Reiations of the United States, op cit., 1958-60, vol. vi, p. 35. Segundo Tad Szulc, o então
vice-cônsul em Santiago, o autor do telegrama foi possivelmente um certo Roben
Em agosto de 1958, a coluna do Che separou-se da de Fidel Castro. O
comandante-em-chefe ordenou a Guevara e a Camilo Cienfuegos a "invasão" do
centro da ilha, dividindo-a em duas zonas militares. A partir de então o processo
de aproximação com os comunistas se acentuou;
aguçaram-se as contradições com o Diretório e os liberais, e afiançou-se a
incorporação dos comunistas à coluna. Nas discussões finais sobre a Lei de
Reforma Agrária — a mais importante reforma promulgada pela guerrilha na
sierra — Guevara assentaria as bases de uma aliança mais sólida com o PSP e em
favor de teses mais radicais, contra a planície, os liberais e as posturas mais
prudentes. Mas essa etapa pertence a outra saga: a da vitória e do início da
legenda. O Che, junto com Fidel Castro, converteu-se então no próprio emblema
da Revolução, identificando para sempre o seu rosto com o de centenas de
milhares de cubanos eufóricos que festejaram sua entrada triunfal em Havana, em
janeiro de 1959.
Wiecha, agente da CIA, que entregou grandes somas de dinheiro ao Vinte e Seis de Julho, talvez como
parte de uma política do governo Eisenhower, ou então como iniciativa própria da CIA. (Ver zule, op.
cit., pp. 469-71.) Entrevistado por Georgie Anne Geyer em 1987, Wiecha negou ter dado dinheiro a
Fidel ou a seu grupo, embora reconhecesse suas simpatias, e as da CIA em geral, por Castro e pêlos
rebeldes. Permanece o mistério sobre se alguém mais da CIA, ou o próprio Wiecha, entregou recursos
a rebeldes não estritamente identificados como do "grupo" de Fidel. (Ver Georgie Anne Geyer,
Guemíia Prince, Boston, Littie Brown, 1991, p. 189.)
5
NOSSO HOMEM EM HAVANA

Em 18 de agosto de 1958 Fidel Castro soube que ganhara a guerra. A derrota da


ofensiva de Batista e a retirada do exército da sierra Maestra e da sierra de Cristal
deixavam pouca margem para dúvidas: o regime estava exausto, cercado, e se
desgastava dia a dia. Agora o problema estava em assegurar que o desfecho
favorecesse os rebeldes entrincheirados nas montanhas e na clandestinidade
urbana, não se prestando a uma quartelada ou a uma mediação imposta por
Washington. Para isso, Castro concebe a manobra militar mais astuta e decisiva
da guerra: a chamada invasão do resto da ilha, a partir do deslocamento das
colunas da sierra Maestra. Sua missão consistia em deslocar-se para oeste,
começar a combater no centro de Cuba, cortar as comunicações da ilha e
empreender a marcha para Havana.
Com o Segundo Front a cargo de seu irmão, Castro dispunha de poucas opções
para o comando das pontas-de-lança da "contra-ofensiva" guerrilheira. Camilo
Cienfuegos, que se distinguira desde o desembarque do Granrna por seu valor,
habilidade, bom relacionamento com os combatentes e a população, era um
candidato natural, embora nunca tivesse efetuado um comando autónomo. O
outro postulante lógico era Che Guevara, que havia quase um ano chefiava sua
própria coluna, rebatizada com o nome de Ciro Redondo, em homenagem a um
dos tripulantes do Granma recém-tombado em combate. Os dotes de liderança e
arrojo militar do médico eram evidentes. Ademais, Fidel Castro já confiava nele o
bastante para lhe dar uma missão cujas conotações políticas envolviam arestas tão
ou mais complexas que as militares.
Assim, coube ao Che a tarefa de atravessar longos quilómetros de território
inimigo, com 150 novatos e já sem o amparo da sierra. Sua incum-
bência incluía "coordenação de operações, planos, disposições administrativas e
de organização militar com outras forças revolucionárias que opereir nessa
província [Lãs Vi l Ias], que deverão ser convidadas a integrar um só corpo de
exército, para dar consistência e unidade ao esforço militar da Revolução".' Em
outras palavras, Guevara teria de entender-se com—ou submeter — os demais
oposicionistas em luta em Lãs Vilias e na sierra dei Escambray. Estes
compreendiam batalhões do Movimento Vinte e Seis de Julho, assim como
grupos isolados do Diretório Estudantil Revolucionário, do Partido Socialista
Popular e de uma certa Segunda Frente Nacional de Escambray, uma cisão do
Diretório, dirigida por Eloy Gutiérrez Menoyo. Portanto, o trabalho era tríplice:
estritamente militar, para debilitar e a seguir derrotar o inimigo no centro da
República; de resistência e comando, requerendo a manutenção de uma imensa
disciplina e coesão, em condições singularmente adversas, sem o recurso do
manto protetor de Fidel Castro, e eminentemente político, exigindo uma destreza
negociadora e uma autoridade excepcionais.
Se o líder cubano carecia de muitas outras opções de partilha das suas
responsabilidades, isso não diminui a magnitude da façanha de Che Guevara nos
três anos de sua convivência com Castro. Ele deixou de ser o mau médico
estrangeiro errante, completamente desprovido de experiência política e militar,
para converter-se no terceiro homem de uma epopeia já encaminhada para a
vitória. Talvez os cubanos do Granma vissem com um travo de ressentimento sua
arrogância, sua lacónica e altiva ironia, sua distância e suas estrangeirices. E
possível que os elementos menos radicais do Vinte e Seis de Julho, na planície
como nas montanhas, olhassem com desconfiança sua predileção pela União
Soviética e sua crescente afinidade com o desacreditado comunismo cubano. E
entre os mais chegados a Fidel Castro, inclusive o irmão deste, não deixaram de
surgir traços de rivalidade e inveja da proximidade, camaradagem e lealdade que
existiam entre os dois. Contudo, nenhum desses sentimentos poderia toldar a
enorme contribuição de Che Guevara à luta, com seus dons de coragem,
organização, disciplina e sangue-frio. Até as características que em primeira
instância poderiam privá-lo do apreço dos cubanos tomavam-no inestimável. Sua
organização argentino-européia, sua pontualidade e formalidade, seu apego à
norma, ao compromisso e à palavra empenhada não eram precisamente virtudes
caribenhas, e até o mero exotismo delas valorizava-o na derradeira etapa da
guerra.
Em fins de agosto de 1958 o Che efetua um duplo expurgo. Despede-se de alguns
colaboradores próximos: Camilo Cienfuegos, seu maior amigo na sierra
Maestra, e Zoila, sua companheira nos últimos meses. De outro lado, exige dos
integrantes de sua coluna uma tomada de posição explícita quanto a participar da
"invasão". Adverte-os do elevado risco de vida: até metade da tropa pode
perecer. Quase 80% dela são jovens sem experiência de combate, garotos recém-
recrutados em Minas de Frio. Finalmente, em 31 de agosto, o Che parte com 148
homens, que por 46 dias suportarão aquilo que o trópico e o isolamento têm de
mais agressivo, a fome, a sede, mosquitos, ciclones e enchentes, caminhos
desprotegidos, uma população indiferente e a exposição ao constante
molestamento do exército de Batista. A travessia se estende por mais de
seiscentos quilómetros; os lodaçais, as torrentes, as privações impõem sacrifícios
quase infinitos. Os caminhões que deveriam transportá-los não tiveram serventia:
o exército cortou o fornecimento de gasolina; todo o percurso foi feito ou a pé ou
a cavalo. Embora apenas seis homens tenham morrido durante a jornada (ou
somente três, conforme alguns relatos), as atribulações logo se converteram em
legenda. Para isso contribuiu bastante o general Francisco Tabemilia Dolz, chefe
do Estado-Maior Conjunto, que anunciou em 20 de setembro o aniquilamento da
"força invasora" e a morte do Che.
Em 16 de outubro terminou o calvário: "Quando a situação era mais tensa,
quando só o império dos insultos, súplicas e interpelações de todo tipo podia pôr
a caminho aquela gente exausta, uma única visão longínqua animou seus rostos e
infundiu novo ânimo à guerrilha. Foi a mancha azul do maciço montanhoso de
Lãs Vilias".2
O Che concluía assim a etapa inicial de sua missão independente. Faltavam
menos de três meses para o triunfo final. Estranhamente, até a batalha de Santa
Clara e a entrada em Havana, nem nas anotações de Guevara nem nos relatos de
seus colaboradores há referências aos pavorosos sintomas de suas recorrentes
crises de asma. Naturalmente, é possível que os ataques tenham ocorrido ao
longo dessas semanas com a mesma intensidade de outros momentos, sem que
ele os tenha registrado no diário. Porém, existem igualmente várias explicações
plausíveis para uma temporária interrupção da enfermidade. Uma possibilidade,
fisiológica, diz respeito aos níveis de adrenalina gerados por uma situação quase
de combate permanente. Se a adrenalina é um broncodilatador por excelência, e
o organismo humano o seu melhor fornecedor, não é absurdo pensar que a tensão
provocada pelo perigo e as incessantes escaramuças tenham ministrado ao corpo
do Che o melhor antídoto possível para a asma.
Outra explicação de sua imunidade temporária pode ser encontrada na ausência
de situações que desencadeavam as crises. Desde que ele abandona a sierra e a
administração dos acampamentos, com seu corolário de discussões e temas, as
contradições voltam a proliferar. Como veremos adiante, até para resolver as
divergências entre as distintas facções oposicionistas, o Che escolhe a melhor
tática político-militar e também a mais eficaz vacina contra sua aflição: o
combate. Se a teoria esboçada desde os primeiros capítulos da nossa história dá
conta de parte da vida deste homem, a associação asma-ambivalência tem um
duplo sentido. A presença da primeira indica a vigência da segunda; a ausência
de uma denota a inexistência da outra.
Este é o verdadeiro capítulo inaugural do Che Guevara como comandante
autónomo. A caminho ele constrói as lealdades, os costumes e a fama que hão de
acompanhá-lo até a morte. Durante a invasão forma-se a sua escolta, integrada
por José Argudín, Alberto Castellanos, Harry Villegas (Pombo) e Hermes Pena.
Os três últimos participarão das equipes internacionais do Che, na Argentina, na
Bolívia e no Congo. Outros três companheiros daqueles dias morrerão na
Bolívia: Eliseo Reyes (San Luís), Carlos Coello (Tuma, cujos restos foram
encontrados na Bolívia em 1996) e Alberto Femández {Pachungo). Também ao
longo daquelas seis semanas começa a se revelar uma das qualidades mais
peculiares e duradouras do Che, matriz de formas superiores de liderança, e
também um traço impossível de se sustentar em um ambiente de normalidade:
sua intransigência para com a fraqueza alheia. Ele não tolera erros de seus
subordinados; recrimina-os, castiga-os e insulta-os. Joel Iglesias recorda um
incidente, em plena invasão:"[...] Vários companheiros desceram do caminhão
atolado [...] [outros] não queriam descer para empurrar. O Che ficou de péssimo
humor, dirigiu-lhes palavras duras, violentas, eu diria, e sua expressão era
colérica. Criticou severamente aquela conduta. Quando ele se indignava, só
vendo e escutando".3
A excepcional decência e nobreza do Che permite-lhe, dias depois, pedir
desculpas às vítimas de sua ira. E por certo, como repetem à exaustão os relatos
cubanos, ele jamais exigia de seus subordinados algo que não impusesse a si
próprio. Porém tais qualidades abstraias se chocavam com a natureza das
pessoas. No mundo real, elas não possuíam seu sentido da história ou do destino,
nem sua força de vontade ou intelecto. As explosões de desagrado para com seus
seguidores, cuja devoção por ele não conhecia limites, começaram a integrar o
anedotário inédito de sua vida. Na "invasão", no Congo e sobretudo na Bolívia,
seus arroubos se tornaram proverbiais: nunca injustos, jamais tendenciosos,
sempre extremados e devastadores para o comum dos mortais. Não é impossível,
ademais, que seu caráter impetuoso, suas "descargas", como chegaram a ser
conhecidas entre
os colaboradores, seguidas de momentos de delicadeza e contrição, possa
eventualmente ter sido efeito das injeções de epinefrina ou adrenalina contra a
asma. Estes broncodilatadores, embora não acarretem efeitos a longo prazo,
geram bruscas elevações da pressão, ansiedade e uma espécie de rushes de média
duração — de até trinta minutos. Para alguém que — correta-mente, do ponto de
vista médico — consumia medicamentos antiasmáticos com grande frequência, é
possível que os altos e baixos do humor e atividade fossem provocados por essas
substâncias químicas.*
A chegada a Lãs Vilias obriga-o a dedicar-se por inteiro à tarefa de unificar as
forças oposicionistas e a medidas administrativas ligadas às grandes promessas da
revolução vindoura, em particular a reforma agrária. São os meses em que, por
um lado, Guevara, Cienfuegos e outros líderes rebeldes porão em prática um
drástico processo de distribuição de terras, começando pela suspensão do
pagamento da renda das pequenas parcelas e pela isenção fiscal para alguns
pequenos produtores, de café, por exemplo. Por outro lado, a expansão da prática
dessas medidas passa a demandar a elaboração de uma estrutura jurídica, o que
desembocará na lei n2 3 da sierra Maestra, sobre a reforma agrária, datada de 10
de outubro de 1958.
Para o Che, a integração do campesinato à guerrilha tem uma dimensão
purificadora, para além da militar ou da política. O guerrilheiro se "une" ao povo
quando este se incorpora ao exército rebelde. Como o "povo", nas zonas rurais, é
por definição composto de camponeses, poucas mudanças na guerrilha têm
impacto tão decisivo para o Che como a aproximação da população rural aos
revolucionários. Em suas próprias palavras: "Simultaneamente à incorporação dos
camponeses à luta armada, por suas reivindicações de liberdade e justiça social,
surgiu a grande expressão mágica que foi mobilizando as massas oprimidas de
Cuba na luta pela posse da terra: a reforma agrária".4
Ora, em zonas como a sierra Maestra, onde se dá o encontro primordial do médico
argentino com o problema da terra e da pobreza rural, a aspiração básica do
morador do campo é a posse de uma gleba e a eliminação da renda. Essa não é
necessariamente a demanda mais sentida de assalariados agrícolas das plantações
de açúcar e tabaco de outras regiões. Mas nas regiões onde Che Guevara faz seu
aprendizado da vida e mentalidade camponesas, a terra é essencial. E, portanto, a
reforma agrária adquiria uma importância crucial

(*) Devo essa hipótese a uma esclarecedora conversa com o dr. Roberto Krechmer, um dos
mais destacados especialistas mexicanos em asma infantil (México, DF, 6/7/96).
para o processo de incorporação do campesinato à guerrilha. Daí também que o
Che qualifique o exército rebelde de "exército camponês" e o Vinte e Seis de
Julho de "movimento camponês",5 termos ambíguos, pois sua veracidade e
pertinência dependem do momento, do sentido da palavra camponês e da ênfase
que se queira dar a cada um dos fatores da luta. Para o Che, que só opera por
conta própria a partir de meados de outubro de 1958, em Lãs Vilias, o tema da
distribuição da terra e da supressão dos impostos e taxas de arrendamento
adquirirá uma grande transcendência. Terá forte impacto no enfoque que adotará
nas demais esferas, incluindo as relações com os comunistas e a unificação com
as outras tendências presentes no centro da ilha.
A Lei de Reforma Agrária garantia o respeito à propriedade da terra em imóveis
com menos de sessenta hectares; os possuidores de menos de 25 hectares
receberiam parcelas, e os donos das fazendas improdutivas que fossem
desapropriadas seriam indenizados. Tratava-se de uma reforma agrária modesta e
prudente: sem cooperativas nem arrendamento comunal ou cole-tivo de terras.
Segundo vários testemunhos e fontes, o Che lutou por um pro-jeto mais radical,
embora tampouco incendiário. Ele escreveria que a legislação finalmente
aprovada "não era completa".6 Castro tomou o partido da ala moderada do Vinte e
Seis de Julho, dirigida nesse campo por Humberto Sori Martín, um advogado
medianamente conservador que seria fuzilado alguns anos mais tarde. Embora
alguns observadores sugiram que os comunistas adotaram uma posição
contemporizadora sobre a reforma agrária, advogando uma postura discreta, a
literatura indica que eles se inclinaram mais para as teses de Guevara, procurando
atacar frontalmente a propriedade latifundiária. O Che se opôs, desde julho de
1958, à expulsão do dirigente comunista Carlos Rafael Rodríguez do
acampamento de La Plata, onde se encontrava Fidel e para onde fora enviado
visando negociar o apoio do partido à guerrilha, e o fez em parte, porque os dois
coincidiam sobre o tema "reforma agrária". Os dirigentes do Movimento Vinte e
Seis de Julho, Faustino Pérez, Manuel Ray e Carlos Franqui, haviam exigido a
retirada de Rodríguez; Guevara, Raul Castro e Camilo Cienfuegos o defenderam.
O Che declarou que "os únicos que devem ser expulsos da sierra são os jornalistas
norte-americanos. Se perseguirmos os comunistas estaremos fazendo aqui em
cima o que Batista faz lá embaixo".7 Ray foi por certo o primeiro economista a
quem Castro encarregou de redigir um rascunho da Lei de Reforma Agrária. Mais
tarde, Guevara relata: "Nosso primeiro ato [em Lãs Vilias] foi ditar uma
proclamação revolucionária estabelecendo a reforma agrária. Nela se deliberava
[...] que os donos de pequenas parcelas de terra
deixariam de pagar sua renda até que a Revolução decidisse sobre cada caso. Na
prática avançávamos com a reforma agrária enquanto ponta-de-lança do exército
rebelde".8
Esse procedimento logicamente provocou atritos com os demais grupos
oposicionistas da região, menos convencidos que o Che das vantagens de tais
atos unilaterais e da criação de precedentes de natureza semelhante. O debate
sobre a distribuição da terra se resolveria em maio de 1959 com a Primeira Lei de
Reforma Agrária e, em 1964, com a Segunda. Desde o início da Revolução o Che
insistia em dois aspectos que a seu ver uma reforma agrária autêntica precisaria
incluir: a destruição dos latifúndios e a anulação da indenização obrigatória e
prévia em moeda corrente.
Mas, de imediato, tal conclusão conflita com o problema da unidade das forças
de oposição a Batista. A missão do Che é diáfana: unir todos em Lãs Vilias.
Cumpri-la já é mais difícil, embora não impossível. Nas condições para
completar essa unidade transparecem as tendências do pensamento e ação do
próprio Guevara, que se mostrarão determinantes nos meses seguintes. Durante a
marcha da sierra Maestra a Escambray, houve dois encontros com integrantes do
PSP ilustrativos da crescente aproximação entre o Che e os comunistas. Em um
comentário a Fidel com data de 3 de outubro, ou seja, dez dias antes da conclusão
do abominável trajeto pela planície, Guevara se queixa amargamente do Vinte e
Seis de Julho: "Não pudemos estabelecer contato com a organização do Vinte e
Seis de Julho, pois alguns supostos membros se recusaram quando lhes pedi
ajuda e só a recebi [...] dos membros do PSP, que me disseram ter solicitado
apoio dos organismos do movimento, recebendo a seguinte resposta: 'Se o Che
manda um papel por escrito, nós o ajudamos; senão, foda-se o Che'".*
(*) Ernesto Che Guevara, Fidel Castro, "Sobre ta invasión", cit. em Ernesto Che Guevara,
Escritos, op. cit., t. 2, p. 277. No esforço permanente de uns e outros para reescrever a vida de
Guevara, há os que buscam desentranhar um ódio precoce do Che aos comunistas, criando a efígie do
Che "bom", sempre anticomunista, em oposição à do Fidel "mau", comunista desde a primeira hora.
Horacio Rodríguez, por exemplo, lê essa mesma passagem de maneira exatamente oposta à
interpretação acima: identifica "os organismos do movimento" com a direção do PSP, e o trecho se
converte em uma queixa contra o partido. A interpretação aqui apresentada é corroborada pelo próprio
Guevara: "Até agora temos recebido pouca ajuda do movimento. Quem tem feito muito por nós é o
PSP" (Enrique Oituski, "Gente dei llano", Revista Cosa de Ias Américas, Havana, vol. Vil, n" 40, jan.-
fev. 1967, p. 52. Ver Horacio Daniel Rodríguez, Che Guevara iAventura o revolución?, Barcelona,
Tribuna de Plaza y ]anés,1968,p.l22).
Podemos especular que Castro, desde a assinatura em Caracas de um pacto
de unidade com toda a gama de opositores da ditadura, exceto os comunistas,
precisava, aos olhos do Che, ser convencido das virtudes da unidade com aqueles.
As longas semanas passadas na sierra por Carlos Rafael Rodríguez cumpriram em
pane essa função. Ali se estabelece ademais a amizade entre o ex-ministro
comunista de Fulgencio Batista e Guevara;
trocam livros, entre eles Sobre a guerra de guerrilhas, de Mão, e discutem
extensamente sobre o decreto de reforma agrária em vias de elaboração. Em
julho, Carlos Rafael Rodríguez expressa abertamente sua admiração pelo
argentino da sierra: "E o mais inteligente e capaz de todos os chefes rebeldes".9
Embora muito provavelmente verdadeiro, o elogio reflete a aproximação política
entre ambos; também um quadro comunista de Santa Clara, Armando Acosta,
integra-se em setembro à coluna como virtual assistente número l do Che, o que
dá um toque mais pessoal à aproximação.* Não haveria como enganar-se quanto
às implicações dessa incorporação. Além do ingresso de Pablo Ribalta na coluna
— relatado no capítulo anterior —, o PSP já tinha enviado em fevereiro de 1958
um outro quadro, Sérgio Rodríguez, para "fornecer lápis, tinta e papel para
imprimir o jornal El Cubano Libre",10 conforme recorda Enrique Oituski, o
dirigente clandestino do Vinte e Seis de Julho em Lãs Vilias: "Eu conhecia
Acosta, que era encarregado do PSP em Lãs Vilias. Conhecia Acosta como
encarregado do PSP e de repente vejo-o como integrante da tropa do Che. Nós
sabíamos as inclinações do Che e não foi uma surpresa para mim. O Che ia
jogando com tudo isso"."
Outro sintoma de aproximação é a integração à coluna de Ovídio Díaz
Rodríguez, secretário da Juventude Socialista Popular de Lãs Vilias, em outubro
de 1958. Seu testemunho mostra a discrição que o Che preferia adotar no tocante
a suas relações com o partido. Certo dia, chegou a uma reunião um membro do
PSP com um presente para ele (o Che); era uma latinha de mate argentino, e ele
disse diante de todos: "Veja, comandante, este presente é da direção do partido".
O Che o aceitou sem dizer nada, mas depois instruiu Ovídio para que fizesse
saber ao partido que não devia enviar companheiros tão indiscretos.12
Já em novembro, Guevara seria mais explícito em sua apreciação sobre os
méritos e fraquezas dos distintos grupos de contestação da ditadura. Em uma
amarga queixa dirigida a Faure Chomón, chefe do Diretório Estudantil
Revolucionário em Lãs Vilias, informa com certo desdém que "em conver-

(*) Segundo Carlos Franqui, Acosta uniu-se à coluna do Che "rompendo a disciplina do Partido
Comunista", desde a sierra (Carlos Franqui, Diário, op. cit., 1976, p. 604).
sacões oficiais realizadas com membros do Partido Socialista Popular estes
mostraram uma postura claramente favorável à unidade e puseram sua orga-
nização na planície à disposição dessa unidade".13 Por trás dos matizes da
avaliação do Che sobre os grupos oposicionistas, figurava um juízo de valores
compreensível. Quando o Che alcançou Lãs Vilias, os comunistas se subor-
dinaram a ele sem reservas; os outros setores foram mais reticentes, lentos ou
francamente contrários à ideia. Assim como os integrantes do PSP se alinharam
com Raul Castro, aceitando incondicionalmente sua liderança, com o Che
aconteceu algo semelhante.
As relações de Che Guevara com o Partido Socialista Popular representam
um dos temas mais espinhosos desse período. Os biógrafos do con-dottiere que
preferem enfatizar suas diferenças dos comunistas empregam como epígrafe
algumas frases lapidares. Uma, a mais célebre, diz: "Os comunistas são capazes
de formar quadros que se deixam dilacerar na obscuridade de um calabouço sem
dizer uma palavra, mas não de criar quadros que tomem de assalto um ninho de
metralhadora".14 A outra, expressa mais ou menos na mesma época, aborda tema
análogo: "O PSP não vira com suficiente clareza o papel da guerrilha, nem o
papel de Fidel em nossa luta revolucionária".15 Vários estudiosos da época e de
seus personagens — inclusive, entre outros, o mais recente biógrafo de Fidel —
insistem que o argentino não era comunista naquela época.* Todavia, o próprio
Che confiou sua filiação ideológica a uma das combatentes da sierra, Oníria
Gutiérrez, que ingressou na sua coluna em agosto de 1953, pouco depois de se
conhecerem: "Não posso esquecer a primeira noite em que ele conversou comigo
[...] Falou sobre minhas ideias religiosas e isso me levou a perguntar se ele era
religioso. Não, respondeu, 'não posso ser religioso porque sou comunista'".16
Talvez seja o caso de analisar brevemente o sentido desse punhado de
frases do Che. Suas divergências com os comunistas derivam de conside-

(*) O Che "não era ainda comunista, nem de acordo com seu próprio relato, nem de acordo
com o testemunho de outros" (Robert E. Quirk, Fiáel Castro, Nova York, Norton, 1993, p. 197).
Hugh Thomas, o mais ilustre dos historiadores da Revolução Cubana, faz afirmação semelhante:
"Contudo, em 1959, Guevara falava com certa ambiguidade. Não era comunista e nunca tinha sido
membro do partido". Convém recordar que o magistral texto de Thomas, escrito em 1971, não pôde
mencionar, por desconhecê-los, todos os materiais, cartas, entrevistas e documentos sobre as
inclinações ideológicas e políticas do Che que citamos nestas páginas. (Ver Hugh Thomas, Cuba: ia
lucha por Ia Ubertad, 1958-1970, México, Grijalbo, 1974, t. 3, pp. 1345-6.)
rações táticas ou quase pessoais: por não saberem brigar, nem preparar sua gente
para isso. Ademais, por não darem valor à luta armada, nem ao papel de Castro e
seu exército rebelde no combate a Batista.* Porém, as dis-crepâncias de Guevara
não são estratégicas ou ideológicas. Ele se considera comunista com c
minúsculo, na mais genuína acepção do termo naquele momento: um soldado da
luta internacional pelo socialismo liderada pela União Soviética. Não se sente
um comunista com C maiúsculo, ou seja, membro do partido cubano,
principalmente em virtude de desavenças sobre o papel da guerrilha. Portanto,
ultrapassado o obstáculo da forma de luta, com a unanimidade em torno do
combate armado, em janeiro de 1959 a aliança natural do Che será com o PSP.
Não haverá, nesse momento, nada que os separe, até que os avatares da gestão
revolucionária, da política internacional e da revolução na América Latina façam
com que se enfrentem novamente.
Provavelmente, o debate mais interessante sustentado pelo Che, entre sua
chegada às encostas de Escambray e a batalha de Santa Clara, será a polémica
com Enrique Oituski, o engenheiro judeu de origem polonesa que dirigia o
Movimento Vinte e Seis de Julho em Lãs Vilias. Oituski terá uma trajetória
acidentada: aos 28 anos será nomeado ministro, o mais jovem do governo
revolucionário, para logo ser demitido e encarcerado, e novamente colaborar
com o Che no Ministério da Indústria. Em fins dos anos 90, continuava
colaborando com o governo cubano no setor de recursos naturais.
O intercâmbio foi veemente, substantivo e, como sempre nas cartas do Che,
revelador de seu estado de ânimo e itinerário político. Concentrou-se em
discordâncias sobre a reforma agrária. Oituski propugnava uma distribuição
paulatina da terra, ao passo que Guevara defendia um confisco e partilha
imediatos das parcelas. Para contestar a expropriação das grandes áreas, Oituski,
entre muitas outras razões, argumentava que medidas drásticas como essa
conduziriam inelutavelmente a um enfrentamento com os Estados Unidos. A
reprodução do diálogo entre os dois é saborosa:
Oituski: "Toda terra ociosa devia ser dada aos guajiros, e devia se taxar
pesadamente os latifundiários para poder comprar as terras com seu próprio
dinheiro. Então a terra seria vendida aos guajiros pelo que custasse, com
facilidades de pagamento e crédito para produzir".

(*) Theodore Draper estabelece essa mesma distinção entre Castro e os comunistas:
"A linha divisória entre Castro e os comunistas se reduzira a um só tema: a luta armada. Para lograr a
aliança, os comunistas tinham de transpor essa diferença" (Theodore Draper, Cas-troism, theory
andfraace, Nova York, Praeger.1965, p. 34).
"Mas essa tese é reacionária!" O Che fervia de indignação. "Como vamos cobrar a terra daquele que
trabalha nela? Você é igual ao resto do pessoal da
planície."
"Porra, e o que é que você quer? Entregá-la de presente? Para que a deixem
destruir, como no México? O homem deve sentir que aquilo que possui custou-lhe esforço."
"Caralho, olha quem fala!", gritava o Che, com as veias do pescoço saltadas. "Além disso, é preciso
disfarçar as coisas. Não pense que os americanos vão cruzar os braços se nos virem fazer as coisas
tão abertamente. E preciso ter
manha."17
Pior ainda, aos olhos do Che. Sua resposta bate duro:
"Portanto, você é dos que acreditam que podemos fazer uma revolução pelas costas dos
americanos! Que borra-botas! Temos que fazer a revolução em luta de morte com o
imperialismo, desde o primeiro momento. Não se pode disfarçar uma revolução de verdade."18
Aqui reside um germe da futura discordância — de pouca intensidade —
com Fidel Castro. Apenas alguns meses antes, o caudilho discutira asperamente
com Raul Castro quando este sequestrou vários cidadãos norte-ame-ricanos,
inclusive engenheiros dos complexos de mineração de Moa e Nicaro, e alguns
marines. Fidel intuía que era imprescindível manter o embargo estadunidense da
venda de armas a Batista. Não havia chegado o momento do choque com o
vizinho do Norte, e não se devia precipitá-lo. Castro repreendeu ser irmão mais
jovem, que rapidamente libertou os presos, e o embargo persistiu. O que não se
sabia na época era o nível da discussão que o sequestro e a renovação do
abastecimento de armas suscitaram no governo de Washington. A seguinte
passagem de um documento do Departamento de Estado, etiquetado como
"secreto", mostra o teor do debate:
Nossa embaixada em Havana recomendou que a política de envio de armas
a Cuba seja revista à luz dos sequestros [...] Crêem que devemos permitir
ao governo cubano a compra de armas nos Estados Unidos, para que
esmague a revolta de Castro e como estímulo à realização de eleições
confiáveis [...] As principais razões em favor de tal mudança são que a
recusa de vender armas debilita o governo constituído de Cuba, assim como
os relatórios de nossos cônsules que negociaram a libertação dos norte-
americanos no Oriente, indicando uma possível influência comunista nas
forças de Raul Castro. As razões em contrário da permissão da venda de
armas incluem as considerações de que o armamento enviado ao governo
Batista no passado não permitiu que ele negociasse efetivamente com
forças mais fracas que as reunidas agora pelo Vinte e Seis de Julho, de que
a maior parte do povo cubano está descontente com o regime, de que
Batista se prepara para deixar a presidência em fevereiro

próximo [...] e um apoio aberto ao governo nos prejudicaria na maioria das demais repúblicas
americanas. A Subsecretária para Assuntos Interameri-canos acredita que as razões contra o
envio de armas sobrepujam aquelas favoráveis a um tal procedimento.19

O que diferenciava Fidel Castro do Che e de Raul era justamente a maneira de


aproveitar as dissensões e titubeies do adversário e o magnífico senso de
oportunidade do primeiro. Os lugar-tenentes tinham uma propensão para
menosprezar a tática e o tempo; para Fidel, estes eram decisivos.
Outra discussão com Oituski, da qual o Che deixou registros carregados de
violência e paixão, girou em tomo do confisco dos recursos dos ricos da
província de Lãs Vilias. Guevara ordenou a Oituski que assaltasse o banco da
cidade de Sancti Spíritus; o jovem dirigente local negou-se terminantemente a
fazê-lo. Argumentou que o ato seria uma loucura. Acarretaria a oposição de
muita gente que os apoiava. Além do mais, não era necessário. O movimento
tinha mais dinheiro do que nunca, o qual Oituski se prontificava a partilhar com
o Che. Oituski estava seguro de que Fidel não apoiaria uma decisão daquela
natureza.20 O Che respondeu por meio de carta com uma de suas temidas
"descargas": "[Se] os líderes dos povoados ameaçam renunciar [...] que o façam.
Mais ainda, exijo que o façam agora, pois não se pode permitir um boicote
deliberado a uma medida tão benéfica à Revolução".
Evidencia seu posto ("Vejo-me na triste necessidade de recordar-lhe que fui
nomeado comandante-em-chefe [...]") e estabelece um vínculo preciso entre a
distribuição de terras, o recurso aos assaltos e o que poderíamos chamar
conteúdo de classe da Revolução: "Por que nenhum guajiro achou defeitos em
nossa tese de que a terra é para quem trabalha nela mas os latifundiários
acharam? E isso não tem relação com o fato de a massa combatente concordar
com o assalto aos bancos, onde nenhum deles possui nem um centavo? Você não
se pôs a pensar nas raízes desse respeito à mais arbitrária das instituições
financeiras?".2'
O Che percebia o desenvolvimento da luta de seu ponto de vista. Para efetuar
uma "verdadeira revolução", como costumava dizer, a expropriação dos
banqueiros, dos latifundiários ou dos próprios norte-americanos era incidental.
Poderia inclusive ser benéfica, ao provocar represálias que obrigariam a
radicalização do processo revolucionário, o que depuraria as fileiras da facção
anti-Batista, definindo com maior clareza o rumo revolucionário dos grupos
restantes. Ele podia se permitir esses luxos discursivos e conceituais. Primeiro,
porque não mandava: a responsabilidade era de Fidel Castro, do qual o Che era
apenas a ala esquerda ou a consciência crítica. Em
''segundo lugar, sua condição de estrangeiro abria um campo infinito para
posturas extremas. Ele não recebia reclamações dos amigos de infância, da velha
tia, do companheiro de universidade — fatores que, de alguma maneira, afètavam
o estado de ânimo e as posições dos dirigentes cubanos. E, por último, convém
lembrar que Guevara de fato possuía, distintamente dos demais, uma visão
estratégica e uma concepção da meta que perseguia:
o socialismo, a colocação de Cuba na órbita da "cortisona" — a União Soviética
— e um confronto indispensável com os Estados Unidos. Para tais propósitos, as
medidas ditadas em Lãs Vilias apresentavam perfeita coerência e lucidez, se bem
que na ausência dessa visão de longo prazo, ou na presença de uma concepção
contrária, conflitavam violentamente com as aspirações e táticas dos dirigentes
cubanos, reformistas e ligados à planície.
Mas nesses dias de combate tudo é conflito e precipitação. O Che exibe
brilhantes dotes políticos no cumprimento da missão que Castro lhe confiou.
Pouco a pouco se entende com os distintos grupos de oposição: o Vinte e Seis de
Julho de Lãs Vilias, o Diretório, os comunistas e até o Segundo Front de
Escambray, a cargo de Eloy Gutiérrez Menoyo e de Jesus Carrera. Com este
último ocorre uma perigosa altercação. Quando a coluna do Che penetra na zona
onde operava a pequena dissidência do Vinte e Seis de Julho, Carrera pede uma
contra-senha aos homens do Che, que naturalmente a desconhecem. Carrera
interpela o próprio comandante Guevara. Antes que o incidente se agrave, os dois
dirigentes se entendem, graças ao pragmatismo e inteligência de ambos.* Porém,
em uma carta ao Diretório, de 7 de novembro, o Che descarta a possibilidade de
um acordo com Gutiérrez Menoyo, que hoje recorda como se evitou o pior:
Pode ser que o Che tenha guardado algum ressentimento contra os oficiais
que enviei e que o detiveram, em especial o comandante Jesus Carrera. Ele
me mandou uma carta queixando-se de Jesus Carrera. Quando me
entrevistei com o Che, disse-lhe que não havia por que fazer queixa
nenhuma, pois o comandante Jesus Carrera cumpria ordens minhas. Ou
seja, ao entrar nas zonas guerrilheiras, para evitar um confronto é preciso
estar de acordo no que

(*) Em um texto publicado em fevereiro de 1961 na revista Verde Oiivo, o Che afirmava, sobre sua
relação com Gutiérrez Menoyo: "Em 1° de janeiro, o comando revolucionário exigia que todas as
tropas combatentes se pusessem sob minhas ordens em Santa Clara. O Segundo Front Nacional de
Escambray, pela boca de seu chefe, Gutiérrez Menoyo, imediatamente se pôs às minhas ordens. Não
havia problema" (Ernesto Che Guevara, "Un pecado de Ia Revolución", Verde Oliva, Havana,
12/2/61. Linhas abaixo, o Che denuncia o comportamento da gente de Gutiérrez Menoyo, mas em
relação a outras questões).
diz respeito às contra-senhas. São territórios que nós libertamos, onde
operam nossas guerrilhas; portanto, se você pede uma contra-senha a uma
tropa \ tarde ou à noite, e ela não pode responder, é tropa inimiga. Então,
isso é urna coisa elementar, que ele mais tarde entendeu perfeitamente.22
Os acordos que o Che estabeleceu com os diferentes grupos foram parcialmente
expressos no Pacto de El Pedrero, firmado em princípios de dezembro em um
povoado de Lãs Vilias, perto do quartel-general guevarista Embora o pacto fosse
celebrado apenas entre o Diretório — representado por Rolando Cubela — e o
Che, simboliza o entendimento entre a coluna comandada pelo argentino e as
demais forças. As tropas do PSP com Felix Torres à frente se integram ao
contingente dirigido por Camilo Cienfuegos-e o próprio Gutiérrez Menoyo chega
a um "pacto operacional" com o Che. Semanas depois, Castro recriminará
asperamente seu subordinado por esse acordo, acusando-o de reviver um morto.2'
Em 26 de dezembro, na véspera do triunfo, Castro adverte o Che: "Neste
momento a situação em Lãs Vilias constitui minha principal preocupação. Não
compreendo por que vamos incorrer precisamente no mesmo mal que motivou o
seu deslocamento e o de Camilo para essa província. O resultado é que o
agravamos, quando podíamos tê-lo superado em definitivo".24
Segundo Carlos Franqui, "a nota de Fidel ao Che desaprova claramente a
importância dada ao Diretório", para não falar de Gutiérrez Menoyo.25 Apesar das
reclamações, em boa medida o acordo atinge o obje-tivo de Castro de unir todas
as forças e submetê-las ao seu comando. Novamente, Gutiérrez Menoyo — que
passou vinte anos em um cárcere cubano — resume o bom relacionamento que
tinha com Guevara:
Mas depois essa etapa foi superada, reuni-me com ele, firmamos o pacto da
reforma agrária, firmamos o pacto operacional, cujo esboço inclusive ficou
com ele. Imagino que esteja nos arquivos, prisioneiro, até que queiram abrir
a verdadeira história de Cuba e não apenas uma parte. Em consequência
disso, dali por diante as relações foram normais; bem, eles operaram na costa
norte, nós na costa sul; inclusive contribuímos com armamento para reforçar
a posição de Camilo Cienfuegos quando mantinha o cerco de Yaguajay, que
durou tempo demais; na ocasião emprestamos uns 75 rifles ingleses com
grande quantidade de munição.26
A unidade das forças oposicionistas em Lãs Vilias permitirá ao Che
desenvolver uma campanha eficaz visando perturbar e inclusive impedir a
realização das eleições organizadas por Fulgencio Batista em 3 de novembro. Em
vista da vertiginosa deterioração militar, a ditadura começava a
sentir'se pressionada por seus aliados, cada vez mais relutantes, a buscar urna
solução política para a guerra. O recurso óbvio, apoiado pêlos norte-arnericanos e
por um setor importante do empresariado da ilha, consistia em promover eleições
antecipadas, nas quais Batista não participaria. Elas abririam caminho para uma
retirada decorosa do ex-militar, uma troca de governo e para a possibilidade,
ainda que remota, de impedir que Fidel Castro e o exército rebelde ascendessem
ao poder. O caudilho da sierra entendeu toda a manobra e concentrou sua
imaginação e força em fazer malograr o ardil de Batista e Washington. Apelou à
população para que não votasse, sabotou os comícios nas áreas urbanas e impediu
sua realização nas zonas rurais. Quatro quintos do eleitorado satisfizeram o seu
pedido. Segundo os apontamentos do Che:
Os dias que antecederam o 3 de novembro foram de extraordinária atividade:
nossas colunas se movimentaram em todas as direções, impedindo quase por
completo a anuência às umas dos eleitores dessas zonas. Em geral,
detivemos desde o transporte de soldados de Batista até o trânsito de
mercadorias. No Oriente praticamente não houve votação; em Camagüey, a
porcentagem foi um pouquinho mais elevada, e na zona ocidental notava-se
um evidente retraimento popular.27
São semanas em que o feroz ascetismo do Che começa a ceder perante as
duras realidades da gestão administrativa, da política de alianças e das reações
peculiares, mas lógicas, dos habitantes da região diante das circunstâncias
excepcionalíssimas. Uma vez tomado o povoado de Sancti Spíritus, por exemplo,
Guevara trata de impedir o consumo de bebidas alcoólicas e cancela a loteria. O
povoado se rebela e o Che desiste do intento de pôr em prática seus próprios
padrões e experiências procedentes de outros países da América Latina. Procura
regulamentar as relações entre homens e mulheres no seio da coluna, sobretudo à
medida que esta se expande com o inelutável avanço do combate contra Batista.
Porém, finalmente rende-se à exuberância do trópico e das condições de luta: o
puritanismo sexual não há de ter maior eco no seio da tropa, jovem e irreverente.
Logo o Che se recicla e autoriza as relações que cada um considerar
convenientes.*

(*) Em palavras escritas posteriormente pelo Che: "E preciso [...] evitar toda classe de
desmandos que possam ir minando o moral da tropa, porém deve-se permitir, com o simples apoio da
lei da guerrilha, que pessoas sem compromissos, que se queiram mutuamente, contraiam núpcias na
sierra e tenham vida de casados" (Ernesto Guevara, "La guerra de guerril-•ss", 1960, em Ernesto Che
Guevara, Escritos y discursos, op. cit., t. l, p. 133). Vimos que o Próprio Che considerava seu
casamento com Hilda Gadea, formalmente intacto embora emotivamente cancelado, não equivalente a
um "compromisso".
Em El Pedrero, no início de novembro, Guevara conhece aquela que se
converterá em sua futura esposa, a mãe de quatro de seus cinco filhos reco-
nhecidos e sua principal companheira para o resto da vida. Aleida March era uma
jovem militante clandestina do Vinte e Seis de Julho de Lãs Vilias. Perseguida
pela polícia, refugiou-se no acampamento do Che em Escarn-bray. Com 22 anos
recém-completados, era excepcionalmente bonita; um cubano que a conheceu
bem afirmou pouco depois da morte do Che que "ela era a mulher mais bela de
Cuba, e sua preferência pelo Che não podia deixar de causar algum ressentimento
contra esse argentino que conseguiu arrebatá-la como presa de guerra em Santa
Clara".28 Universitária, branca e de classe média alta, Aleida rapidamente se
transformou em assessora e grande amiga do argentino. Durante as últimas
semanas da guerra, aparecerá sempre ao seu lado e entrará com ele em Havana.
Voltaremos ao tipo de relacionamento que construíram; por ora, basta dizer que o
exotismo de Hilda Gadea ou de Zoila Rodríguez obviamente não explica a
atração que Aleida exerceu sobre o Che. A cubana era uma versão adocicada de
Chichina: bela, por certo, e mais de acordo com os traços característicos de
Guevara que outras mulheres que lhe foram próximas, mas sem a alteridade
complexa de Chichina. E inegável que Ernesto se enamorou dela; a intensidade
de seu afeto durou anos. Mais misteriosa seria a distância que desde muito cedo
se interpôs entre eles. Alguns a atribuem à Revolução; outros, ao fato de que
Aleida perdeu logo sua beleza física; outros, ainda, a um sentimento de posse
feminino que sobreviveu à morte dp marido e se estendeu a seus filhos, arquivos
e memória.
Em novembro e dezembro de 1958, alem de se encontrar com Aleida, cimentar a
unidade das forças de oposição e participar dos debates subsequentes, Che
Guevara cortou até onde foi possível as vias de comunicação no centro de Cuba,
suspendendo os transportes através da ilha. Na tomada de um povoado, ele
escorrega ao saltar de um terraço, torcendo gravemente o pulso (terá de engessar
o antebraço) e cortando-se em uma das sobrancelhas. Os dois ferimentos fazem
parte da legenda: as fotos do Che entrando em Havana o retratam com o braço em
uma tipóia e com uma cicatriz ainda visível na fronte. As vitórias militares
começam a se precipitar. Em 21 de dezembro cai a localidade de Cabaiguán —
onde a guerrilha captura noventa presos e recupera sete metralhadoras e 85 fuzis.
Alguns dias mais tarde, tomam a cidade de Placetas, outra vez com prisioneiros e
armas perdidas. Cada dia fica mais evidente a resistência da tropa de Batista a
continuar combatendo. Os soldados se rendem mesmo quando têm superioridade
mi
litar, ainda que estejam rodeados por uma população civil francamente hostil a
eles e favorável aos rebeldes. Esboça-se então a possibilidade — e até a
necessidade — de preparar o assalto a Santa Clara, uma cidade de 150 mil
habitantes, capital da província de Lãs Vilias, o principal núcleo urbano do '
centro de Cuba. Será a grande batalha da guerra, aquela que desferirá o tiro de
misericórdia na ditadura de Batista e consagrará Che Guevara como herói
revolucionário e estrategista militar.

A guarnição militar da cidade compreendia mais de 2500 homens e dez


tanques. Nos arredores, estavam acantonados outros mil soldados. Com
trezentos combatentes, na maioria fatigados, desnutridos e sem experiência,
Guevara empreendeu a ofensiva contra Santa Clara. Ao fazê-lo, já sabia que
partira de Havana para a capital da província um trem blindado — célebre em
meio à legenda do Che — composto de duas locomotivas, dezenove vagões,
catorze metralhadoras e quatrocentos soldados estupendamente equipados.
Algo diz a Guevara que a batalha pode durar várias semanas; nas primeiras
horas de 28 de setembro, ele suspeita que se prolongará por um mês.29
Na madrugada de 28 de dezembro, com a cidade cercada e as tropas de
Batista encerradas em seus quartéis, a coluna do Che investe sobre a entrada
de Santa Clara. O comandante avança em um jipe; seus trezentos homens estão
divididos em vários pelotões. Primeiro alcançam a universidade, em seguida
capturam uma estação de rádio e então se defrontam com um blindado que
mata cinco guerrilheiros e deixa vários feridos. Simultaneamente, os soldados
do trem, posicionados em uma elevação, começam a disparar sobre a coluna.
Pela manhã, tropas do Diretório entram na cidade por outra estrada e se
aproximam do quartel Leoncio Vidal, onde está entrincheirado o grosso da
força do exército. Na mesma manhã a aviação de Batista começa a metralhar e
bombardear os homens do Che, atemorizando a população civil, que se refugia
em casa. Os militares pedem a Havana reforços e mais apoio aéreo, porém
essas não conseguem chegar por causa da ocupação dos subúrbios e das vias
de acesso à cidade pelas tropas rebeldes. Ao anoitecer os soldados continuam
aquartelados, e a população civil, protegida dos bombardeios pelas trevas,
começa a erguer barricadas para dificultar a passagem dos blindados. A noite
servirá para os rebeldes se infiltrarem na cidade em pequenos grupos; com o
adversário aferrado a suas guarnições, e contando ao menos com a
cumplicidade passiva da população, o Che consegue espalhar suas tropas por
todo o centro de Santa Clara.
Guevara compreende que o fator crucial da batalha está em imobilizar o trem
blindado, impedir que as tropas e os blindados deixem os quartéis e mobilizar a
população civil. Como recorda Oscar Fernández Mell, médico e oficial do
exército rebelde, se, em lugar de refugiar-se dentro da cidade, o inimigo tivesse
organizado a defesa de Santa Clara apoiando-se nas elevações circundantes e
fortificando-as, o exército rebelde teria perdido mais tempo e sofrido baixas mais
numerosas.'0 O segredo do êxito residiu na negativa do exército a combater. Essa
foi a vantagem que era preciso aproveitar ao máximo. Quando os comandantes
do trem blindado procuraram evitar o combate e buscaram refúgio, aproximando
o trem do quartel, os trilhos levantados na véspera para paralisá-lo produziram
um tremendo descarri-lhamento. Dos 22 vagões, três tombaram de imediato; os
guerrilheiros concentraram seus tiros e coquetéis Molotov nos vagões restantes.
Logo a situação dos soldados dentro do trem se tornou insuportável, em meio ao
calor, às bombas e ao tiroteio. Pediram trégua, negociaram com o Che e
finalmente, ao entardecer, se renderam.
O episódio do trem blindado revelar-se-á decisivo, pois, com o armamento
recuperado na ferrovia, a coluna do Che entrará dias depois em Havana com um
poder de fogo muito superior ao de qualquer outra unidade rebelde, em particular
o Diretório ou o Segundo Front de Escambray. Gutiérrez Menoyo insiste em uma
interpretação alternativa dos fatos, justamente porque foi, segundo ele, o mais
prejudicado pela rendição do trem ao Che:
O trem blindado foi uma operação decisiva que eles não esclareceram
historicamente. Quem manejava o trem blindado era o tenente Rossel. A
primeira pessoa com quem o irmão do tenente Rossel se entrevistou visando
entregar o trem fui eu. Ofereci-lhe garantias para sua tropa, ofereci uma
promoção para o tenente Rossel, e concordaram que iriam entregar o trem
para mim. Depois o irmão do tenente Rossel falou com Che Guevara; não sei
o que Guevara lhe ofereceu que eu não ofereci, mas o fato é que o trem foi
entregue a eles. Sempre comemoraram isso como o heróico assalto ao trem
blindado, mas o trem é que tinha se entregado."
O certo é que a tomada do trem permitiu iniciar a ofensiva final. Como
relata Gutiérrez Menoyo, "em duas ou três oportunidades comentei isso com
Guevara; disse-lhe: 'Guevara, o que você ofereceu que eu não ofereci?'. Ele se
punha a rir e nunca me contou. Se eles tivessem se entregado a mim, havia uma
quantidade incrível de equipamento, e isso teria permitido que nós iniciássemos a
ofensiva final. O Che nunca me deu uma resposta concreta".32 António Nunez j
iménez, que escreveu sobre a história do trem blindado e já
então fazia parte da coluna do Che, desmentiu categoricamente essa versão,
insistindo que Gutiérrez Menoyo nada teve a ver com o trem e que o que houve
foi mais um descarrilhamento que uma rendição." Em uma estranha nota de
rodapé para a história, Fulgencio Batista afirma que o trem efetivamente foi
entregue por Rossel, que "desertou depois de ter recebido 350 mil dólares, ou l
milhão de dólares, do Che Guevara". Para Batista, a captura do trem foi uma
venda.14 Proliferam as versões contraditórias. Ramón Barquín, o único oficial
superior de Batista encarcerado por conspirar contra o ditador, afirma que com
efeito houve um entendimento prévio entre os militares e o Che para a entrega do
trem; Ismael Suárez de Ia Paz, ou Echemendia, o homem do Vinte e Seis de julho
em Santa Clara, jura que não houve acordo."
O Che pediu a Aleida March que se colocasse diante do trem descar-rilhado:
"Aleida, vou tirar uma foto sua para a história".36 O resultado da contenda já não
permitia nenhuma dúvida. O butim foi impressionante, decisivo para o desenlace
das hostilidades: seis bazucas, cinco morteiros de 60, catorze metralhadoras, um
canhão de 20 mm, seiscentos fuzis automáticos e l milhão de cartuchos." E a mais
importante apreensão de armas inimigas em toda a guerra. Quase quatrocentos
soldados caem prisioneiros. A notícia da rendição do trem se espalha pela cidade
e pêlos quartéis do exército como um rastilho de pólvora; o efeito desmoralizante
será devastador para o inimigo; o impacto entre os habitantes de Santa Clara,
explosivo.38
Os combates continuam em 30 de dezembro. As forças guevaristas avançam, mas
não sem dificuldades. Na estação central de polícia, enfrentam uma tenaz
resistência de quatrocentos soldados de Batista que não se entregam facilmente,
temerosos das consequências da maneira como vinham tratando a população: os
fuzilamentos por maus tratos, torturas, traição etc. tinham se multiplicado nas
últimas semanas. Esse reduto e o quartel Leoncio Vidal, com 1300 militares em
seu interior, constituem os últimos baluartes de Batista em Santa Clara. Ao
romper a alvorada do último dia do ano, ainda não foram vencidos, e a ofensiva
guerrilheira estanca. Finalmente a ação da polícia cede, e o quartel é o último
fortim importante da ditadura na cidade. Assim amanhece o Ano-Novo em Santa
Clara.
Durante a madrugada começam as negociações para a rendição do quartel,
que imediatamente se imbricam com os acontecimentos no resto da ilha. Antes de
terminarem os festejos de Ano-Novo em Havana, Batista foge de Cuba, na cena
celebrizada por dezenas de filmes antigos e recentes. O impacto em Santa Clara é
demolidor: "Ao ficar claro que Batista tinha fugido, criaram-se as condições
favoráveis para que, no quarto dia do ataque a Santa Clara, a guerra acabasse"."
Uma junta militar improvisada, enca-
beçada pelo general Eulogio Cantillo, trata de evitar o completo desmoronamento
do exército e o triunfo final dos rebeldes. Cantillo envia por rádio a todos os
chefes das guarnições do país a ordem de não se render, insinuando que já chegou
a um acordo com Fidel Castro em Oriente: "O que acabamos de fazer aqui em
Columbia [a principal unidade militar de Havana] tem a aprovação do dr. Fidel
Castro".40
O líder do Movimento Vinte e Seis de Julho lança dos arredores de Santiago uma
proclamação por rádio. Castro condena a tentativa de golpe de Estado, rechaça
qualquer negociação com os quartéis assediados e instrui o Che e Camilo
Cienfuegos que marchem imediatamente para Havana. Minutos antes de se
esgotar o prazo dado pelo ultimato do Che aos oficiais do quartel, a tropa começa
a deixar o prédio, desfazendo-se das armas. A batalha de Santa Clara terminou. A
população sai às ruas, festeja a vitória, aclama o Che e os barbudos. Estes
empreendem imediatamente a marcha rumo à capital: a Revolução triunfou.

Cabe ao historiador responder a uma questão: a batalha de Santa Clara foi


decisiva7 Já ao biógrafo cabe outra: foi o génio l^ilitar do Che que permitiu o
triunfo na capital de Lãs Vilias? ou se tratou de uma vitória tanto militar como
política, tanto do combate como da psicologia? Sem dúvida, Santa Clara, ao lado
da resistência na sierra à ofensiva de Batista em maio-junho de 1958, foi a única
baralha campal digna desse nome em toda a campanha. Por sua data, localização
e pelas forças em luta, foi o confronto mais significativo de toda a guerra
revolucionária. Sem ela, talvez Batista não tivesse rugido; e se o ditador tivesse
permanecido em seu posto, talvez o exército não tivesse desmoronado como
desmoronou a partir do fim de dezembro, e a correlação de forças militares —
embora extraordinariamente favorável aos rebeldes — teria se mantido por algum
tempo. Sem a captura do trem blindado, a guarnição de Leoncio Vidal não se
renderia, e sem o butim dos dois a coluna do Che não se transformaria
repentinamente na mais poderosa de todas as unidades rebeldes. Sem Santa Clara
talvez se verificasse essa assombrosa análise da CIA, a um mês do triunfo
castrista:
Castro não pôde convencer a maioria da população cubana de que vale a
pena lutar por sua pessoa e seu programa e não pêlos de Batista. Cuba
contínua a desfrutar de relativa prosperidade económica e uma boa parte da
população, provavelmente temendo que a Revolução ponha em risco seu
bem-estar, parece esperar que aconteça uma transição pacifica do
autoritarismo para um governo constitucional.41
Mas também é certo que Santa Clara foi uma batalha em que morreram seis
guerrilheiros, em uma guerra na qual o exército de Batista não perdeu mais de
trezentos homens e, segundo um cálculo da revista Bohemia baseado nos mortos
identificados, dificilmente sucumbiram mais de quinhentos oposicionistas no total.
E igualmente verídico que Raul Castro na sierra Cristal, Fidel Castro em Oriente e
Camilo Cienfuegos junto com o Che no centro avançavam a passos largos rumo à
destruição do exército. Como Castro explicou ao Che um dia antes da batalha: "A
guerra está ganha, o inimigo desmorona estrepitosamente".42 Sem Santa Clara,
tudo teria se retardado, e as consequências da demora poderiam ter sido decisivas
em muitos sentidos. Mas o epílogo teria sido necessariamente o mesmo.
Ademais, é preciso reconhecer — em parte contra a reescrita oficial da
história — que nem o Che foi tudo na esfera militar nem a esfera militar foi tudo
na luta. Sem que ninguém possa questionar ou subestimar o sacrifício de milhares
de cubanos para derrubar um regime corrupto e odioso, e sem menosprezar em
nada o aporte militar na derrubada de Batista, todos os testemunhos concordam
que a vitória de janeiro de 1959 não foi nem exclusiva nem principalmente militar.
Sem dúvida o papel do Che nos últimos dias da guerra foi contundente. Sua
têmpera, sua vontade indomável, sua clareza de objetivos e seu espírito de
sacrifício foram insubstituíveis em Santa Clara. Sem sua capacidade de comando,
sem a implacável centralização da tomada de decisões, caso os rebeldes não
contassem com sua frieza e senso estratégico, uma vitória em condições tão
adversas se afiguraria impossível. Sua absoluta concentração nos imperativos da
luta e seu desdém por qualquer distração sentimental se patenteiam nesta passagem
de suas próprias recordações:
Eu admoestara um soldado por estar dormindo em pleno combate e ele me
contestou, dizendo que o tinham desarmado em virtude de um tiro que lhe
escapara. Respondi com minha secura habitual: "Conquiste outro fuzil indo
desarmado à linha de frente [...] se é capaz". Em Santa Clara, quando
consolava os feridos [...] um moribundo tocou-me a mão e disse: "Lembra,
comandante? Você me mandou buscar a arma [...] e eu fui". Era o
combatente do tiro que escapou, que morreria minutos depois, e se fazia
notar, contente por ter mostrado seu valor. Assim é o nosso exército
rebelde.43
Faltaríamos, porém, com a verdade se não acrescentássemos ao balanço de
Santa Clara os elementos adicionais que influíram na vitória, justamente para dar
seu valor a cada uma das contribuições de Guevara. O exército de Batista se
recusava a sair dos quartéis, e quando se aventurava longe de seus muros não
queria combater. Seu moral estava por terra, sofria
pomba pousa em seu ombro, o caudilho pronuncia a célebre frase: "Estou bem,
Camilo7", e o guerrilheiro responde: "Está bem, Fidel".
O fato é que Camilo chega a Havana em 3 de janeiro, aclamado por uma
população transbordante, aduladora, festiva e em delírio, ao passo que o Che entra
na capital nas primeiras horas da madrugada seguinte, discreto e solitário,
acompanhado de Aleida e de seus colaboradores mais próximos. Em La Cabana
transcorrerão seus primeiros dias havaneses; ali se iniciará como governante e
personagem público. Entrou na capital como combateu:
cansado, sujo, despenteado e quase em farrapos, porém com um olhar e um sorriso
que cativaram milhares — e em seguida milhões — de cubanos, lati-no-
americanos e cidadãos do mundo, que identificarão a ambos com a Revolução cujo
triunfo era tão seu como de qualquer outro.
Em 7 de janeiro o Che vai a Matanzas para receber Fidel, a caminho de
Havana; não se viam desde agosto do ano anterior. Entram juntos na capital,
encarapitados num tanque: uma multidão delirante e extasiada os recebe, e as fotos
do encontro de um povo com seus heróis percorrem não só as redações do mundo
inteiro, como também o coração dos simpatizantes desamparados desde a
libertação de Paris e Dien Bien-Fu. Ninguém punha em dúvida a legitimidade da
luta, nem a justiça da vitória. Tampouco se questiona o viço, a pureza espiritual, o
espetacular carisma individual e cole-tivo dos imaculados barbudos vestidos de
verde-oliva: sorridentes, ingénuos e talentosos, valentes e puro», triunfantes e
prontos para tomar de assalto o céu e todos os palácios de inverno.
Em tais condições, seria preciso um milagre de maturidade e modéstia para
evitar dois mal-entendidos, políticos e conceituais, que logo imporiam um
elevadíssimo custo a Cuba e a todo o continente. Como Fidel — aclamado por
centenas de milhares de cubanos embevecidos por sua oratória cativante, seus
olhos e seu deslumbrante uso da gestualidade retórica — poderia não estar
convencido de que a vitória pertencia a ele, e só a ele? Como resistir à tentação do
contraste entre sua audaz precocidade e o ranço medíocre da velha classe política,
que continuava presente na pessoa de vários ministros do novo governo e do
próprio presidente Manuel Urrutia? Era inevitável o desvio para a reconstrução
imaginária da épica: venceu a sierra, não a planície; o Vinte e Seis de Julho cuidou
de tudo, sem aliados de maior monta; a direção, sábia e genialmente intuitiva, foi o
factótum da vitória; Fidel, o líder máximo, o comandante-em-chefe, foi o artífice
de uma conquista de poder by the book. As consequências de tudo isso eram
apenas perceptíveis naqueles dias efervescentes. Logo, porém, apenas uma semana
após o desmoronamento da ditadura, começaria a romper-se o idílio ilhéu e o
romance do mundo com Fidel e seus barbudos.
Conceitualmente, a visão retrospectiva da guerra teria sua expressão máxima nos
escritos do Che, fecundados por seu talento e seus horizontes. Não lhe escaparia a
sua visão do mundo e da história, sintetizada nesta frase lapidar dirigida ao
escritor argentino Ernesto Sabato: "A guerra nos transformou completamente.
Não há experiência mais profunda para um revolucionário que a ação da guerra;
não a ação isolada de matar, nem a de carregar um fuzil ou estabelecer um
combate de tal ou qual tipo, mas a ação da guerra no seu conjunto".47
Para o Che, a saga multidimensional, complexa e idiossincrática da sierra se
transformaria em uma proeza magnífica mas simples, plana e passível de
reprodução ao infinito desde que homens justos e valorosos assim o quisessem.
Apenas Fidel, o Che, Raul e Camilo tinham autoridade moral para escrever a
história oficial da guerra. Ao primeiro faltava tempo, paciência e ambição literária
ou teórica. Seu irmão aquilatou desde muito cedo as vastas virtudes do silêncio:
seria por quase quarenta anos o homem das sombras. Camilo carecia de vocação,
e também não teve tempo: morreu em novembro. Por eliminação, sobrava o Che,
que além do mais tinha aptidão inata para a tarefa.
Mas ele não poderia realizá-la senão com a bagagem intelectual e cultural que
carrega ao desembarcar, figuradamente, no cais de Havana. Não conhecia a
capital; a única cidade cubana em seu firmamento era Santa Clara em ruínas. A
vida política, intelectual e cultural havanesa, vibrante como poucas na América
Latina, era-lhe totalmente estranha. Não era de admirar que sua ênfase recaísse
sobre os únicos aspectos da guerra e da vitória que ele viveu pessoalmente. As
ideias militares e radicais tomariam o lugar de outros critérios na análise não só de
Cuba mas de toda a América Latina:
Demonstramos que um pequeno grupo de homens decididos e apoiados pelo
povo e sem medo de morrer [...] pode se impor a um exército regular [...] Há
outra [lição] para nossos irmãos da América, situados economicamente na
mesma categoria agrária que nós: é preciso fazer revoluções agrárias, lutar
nos campos, nas montanhas, e dali levar a revolução às cidades, não
pretendendo realizá-la nestas sem conteúdo social integral.48
Até o fim de sua vida essa visão do Che permaneceria intacta, embora
tivesse sido refinada e ajustada por meio de diferentes matizes. Deve-se a ela a
reverberação guevarista ao longo do continente, e também seu fracasso. O Che
descreve de maneira insuficiente e em parte falsa o que ocorreu em Cuba; extra-
pola indevidamente para outras regiões os supostos ensinamentos cubanos e
ignora o ponto central: o que se acontece uma vez raramente pode se repetir.
Essa interpretação se baseia em uma longa conversa do Che com Fran-qui,
cinco anos depois, em 1964, na qual transparecem as diferenças de enfoque na
redação da história da guerra. Guevara privilegia a guerrilha e o campo, Franqui a
cidade e a política. O argentino enfatiza a maneira como o Diretório foi dizimado
nas cidades e a consequente liderança primordial da sierra; Franqui recorda o
impacto dos vários sacrifícios do Diretório. O Che se escuda no radicalismo e no
apego aos princípios da guerrilha; Franqui retruca com as provas de verticalidade
e firmeza da clandestinidade. Guevara, por fim, evoca a ação militar da guerrilha
e sua influência na rendição do exército; Franqui contesta:
Eu sei, Che, que sem a luta e o apoio da clandestinidade em 57a guerrilha
teria sido liquidada. Sem o apoio organizado dos camponeses do Vinte e
Seis, não dos outros camponeses, o núcleo do Graniria não se reagruparia.
Sem as armas enviadas de Santiago e Havana, como reconhecem suas
crónicas de guerra, Che, sem nossas ações em toda a ilha, que paralisavam o
aparato militar e repressivo da tirania, sem o reforço em homens, remédios,
alimentos, sem a ajuda do exílio, a guerrilha sozinha não teria vencido.49
Após a marcha vitoriosa do Che com Fidel em Havana, acontecimentos decisivos
se precipitam. Em 7 de janeiro o Che ocupa com Aleida uma das residências para
oficiais do exército em La Cabana: é sua primeira casa cómoda e decente desde a
partida de Buenos Aires. Célia mãe e filha, Ernesto pai eJuan Martín chegam a
Havana em 9 de janeiro, em um avião da Cubana de Aviacón que Camilo
Cienfuegos envia a Buenos Aires para repatriar os exilados da ilha residentes na
capital portenha. O Che os espera no aeroporto Rancho Boyeros e rapidamente os
conduz ao Havana Hilton (logo rebatiza-do Havana Libre). O reencontro da
família é feliz, obscurecido apenas pela tensão que vem da incerteza sobre o
futuro, revelada em respostas abstraias para as indagações paternas: "O que você
vai fazer ? Vai voltar à medicina ? Por que não volta à Argentina?". Duas
semanas depois chega a ex-esposa, com a filha dos dois. Hilda Gadea e Hildita
viajam para Havana vindas de Lima, para conhecer a Revolução e sua nova pátria.
A situação se toma cada vez mais tensa para Ernesto: em meio à tormenta política
sobre suas tarefas, a presença dos pais com sua carga de ambivalência e
recordações, a aparição das duas Hildas e o caso com Aleida, era quase inevitável
um esgotamento físico. Ele chega junto com as eternas dúvidas introspectivas
sobre o seu destino.
Uma conversa com seu pai revela a persistência da personalidade errante do
Che: "Eu mesmo não sei onde hei de deixar os ossos".50 António Nunez Jiménez,
que entrou com ele em La Cabana, e em Santa Clara se encarregara da negociação
com os chefes do quartel Leoncio Vidal, recorda esse mesmo traço:
Ele me contou no dia em que chegamos a Havana, 3 de janeiro de 1959,
entrando na fortaleza de La Cabana. Quando cruzamos o túnel de Havana,
pois íamos no mesmo jipe, ele disse: "Minha missão, meu compromisso com
Fidel, termina aqui, na chegada a Havana, porque o acordo que fiz com Fidel
foi de participar da luta guerrilheira em Cuba e depois ter liberdade de opção
para ir a outro lugar e fazer o mesmo que tinha feito em Cuba.51
Os pais permanecem na ilha até 14 de fevereiro, quando zarpam para Buenos
Aires em um navio de passageiros; Célia, a mãe, voltará em l2 de maio, sozinha.
Mas ainda acompanham os acontecimentos de 2 de fevereiro, quando o Conselho
de Ministros expede um decreto genérico, mas dedicado ao Che, outorgando a
nacionalidade cubana por nascimento aos estrangeiros que combateram pelo
menos por dois anos contra a ditadura derrubada. Evidentemente, os pais e irmãos
descobrem as mudanças na fisionomia e sobretudo na psicologia do filho pródigo.
Já é um homem maduro, de quase 31 anos, com uma filha, duas esposas e um
emprego. Pode-se ler no seu rosto a intensidade e o desgaste dos últimos dois anos
e meio. Em meados de janeiro, segundo alguns, semanas depois conforme outras
fontes, uma violenta crise de asma o condena a ausentar-se de Havana por vários
meses; fica em uma cidadezinha de veraneio, chamada Tarará, vizinha à capital.
Antes, porém, supervisiona, diretamente ou de sua janela em La Cabana, o
fuzilamento dos colaboradores de Batista: são execuções justas, mas desprovidas
do respeito que impõe um processo. As estimativas variam sobre o número exato
e total de justiçamentos, em particular os de La Cabana durante os primeiros dias
do ano. Telegramas da embaixada dos Estados Unidos, datados de 13 e 14 de
janeiro, apresentam a cifra de duzen-tas execuções.* Historiadores e biógrafos
exibem cálculos que vão desde as

(*)Smith(Habana) to SecretaryofState(Dept.ofState), 14/1/59 (secreto), e Foreign Service Despatch,


EarI Smith/Embassy to Dept. ofState, 13/1/59 (secreto), Despatch 725. No telegrama datado de 29 de
dezembro de 1959, a estimativa da embaixada aumentou para "mais de quinhentos".
Braddock/Amembassy to Dept. of State, Subject: indications and manifestations ofCommunism and
anti-Americanism in Cuban revolutionary regime, 29/12/59 (copyLBjLibrary).
mesmas duzentas até setecentas vítimas do paredón.* Fidel Castro, anos depois,
disse a propósito do número dos fuzilados em 1959 e 1960 que chegou a 550.
Alguns casos tiveram lugar fora de Havana: mais de cem prisioneiros foram
assassinados por Raul Castro em Santiago, em princípios de janeiro.**
E conhecida a data em que a maioria das execuções ultrapassou o âmbito de
responsabilidade do Che. Em meados de janeiro, em parte por causa da onda de
protestos da imprensa e do Senado dos Estados Unidos Castro decide realizar
julgamentos públicos no estádio desportivo de Havana. Tais tribunais adquiriram
notoriedade com o processo, realizado em meados de janeiro, contra o major Jesus
Sosa Blanco, um partidário de Batista particularmente sanguinário de Oriente, e os
coronéis Grau e More-jón. Embora essa decisão tenha sido desastrosa do ponto de
vista da imagem do regime, eximiu o Che de qualquer autoridade sobre a vida ou
morte dos presos de La Cabana. Esse poder se traduzira em dezenas de execuções,
consumadas por outro "internacionalista", o norte-americano Herman Marks, um
ex-condenado de Milwaukee que se unira a Guevara no Escambray.52
Existem várias interpretações sobre o papel do Che nos fuzilamentos de La
Cabana. Alguns biógrafos que pertencem à oposição anticastrista no exílio acusam
o argentino de apreciar as cerimónias fúnebres e realizá-las com deleite, mesmo
reconhecendo que as ordens vinham de Fidel Castro. Outros relatam que Guevara
sofria com cada justiçamento e perdoou a quantos pôde, embora não vacilando em
acatar as instruções quando estava convencido delas. José Castano Quevedo, o
chefe da repressão anticomu-nista de Batista, cujo indulto foi pedido pela Igreja e
outros setores da sociedade cubana, mesmo assim foi fuzilado sem delongas pelo
Che. Huber Matos, banido do exército rebelde em novembro de 1959, acusado de
traição por Fidel Castro e sentenciado a vinte anos de prisão, recorda como
Guevara "[...] se comunicou com familiares meus para dizer-lhes que não
(*) Essa cifra é citada, entre outros, pelo padre Inaki de Aspiazú, um sacerdote católico basco
que investigou o tema em profundidade e com simpatia pelo regime revolucionário.(Ver Aspiazú,
Justicia Revolucionaria, cit. em Leo Huberman, Anatomy ofa ré' voluúon, Nova York, Monthly
Review Press, 1969.)
(**) Daniel James afirma que Guevara contou a Féiix Rodríguez, em La Higuera, Bolívia, que
ele próprio, Che, mandara fuzilar 1500 inimigos da Revolução. (Ver Daniel James, Che Guevara,
Nova York, Stein and Day, 1969, p. 113). Mas Rodríguez não menciona tal fato em suas memórias
nem em seu informe à CIA ou em uma entrevista concedida ao autor eml955emMiami.
concordava que me aplicassem a pena de morte e acreditava inclusive que Fidel
tinha conduzido erroneamente o meu caso. E sugeriu que, imediatamente depois
de concluído o julgamento, interpuséssemos uma apelação".*
A responsabilidade guevarista pêlos atos de La Cabana — embora intransferível,
pois em nenhum momento o Che se esquiva dela — deve ser vista no contexto da
situação naquele momento. Nem se tratou de um banho de sangue nem se
exterminaram pessoas inocentes em número mesmo minimamente significativo.
Depois dos excessos de Batista, e em vista da exacerbação das paixões em Cuba
nesses meses do inverno, é até surpreendente que a quantidade de execuções e
abusos tenha sido tão pequena.
Também é certo, contudo, que o Che não tinha maiores dúvidas existenciais
sobre o recurso à pena de morte, ou a julgamentos sumários e cole-tivos. Estava
disposto a dar a vida por seus ideais, e julgava que os demais deviam fazer o
mesmo. Se a única maneira de proteger a Revolução era fuzilando delatores,
inimigos e conspiradores, nenhum argumento humanitário ou político poderia
dissuadi-lo. Desprezou as críticas — indubitavelmente hipócritas — vindas de
Nova York e Washington, alegando o imperativo superior da defesa da
Revolução. Nunca permitiu nem o vislumbre de uma reserva sobre o vínculo
entre meios e fins, precedentes e ação futura, antecedentes históricos e
consequências nefastas.
Como vimos, pouco depois de instalar-se em La Cabana, atormentado pêlos
múltiplos dramas de sua existência, ele é derrubado por uma crise asmática que
na realidade supera a gravidade ordinária de sua enfermidade. Os deflagradores
da doença podem ter sido os de sempre: a angústia provocada pela ambivalência
imperante, pessoal, afetiva e, agora, política. Com efeito, ele pertence ao grupo
vitorioso, mas foi posto à margem do sítio preciso que lhe corresponderia e é
objeto de uma série de comentários inquie-tantes vindos de Fidel Castro. Ou pode
se tratar de um simples esgotamento geral. Ele padece de um princípio de
enfisema,** assim como de fadiga, fraqueza, anemia e estresse.
Um conjunto de circunstâncias fortuitas fez da estância de veraneio de Tarará o
centro das atividades políticas e ideológicas do Che em fevereiro-

(*) Huber Matos, entrevista com jornalistas ingleses (transcrição), Londres, out. 1995. Segundo
Carlos Franqui, "em um dado momento, Raul e o Che pediam o fuzilamento de Matos e dos demais
acusados, mas depois o Che mudou de ideia, quando viu o valor dessas pessoas, conversando com
Fidel" (Carlos Franqui, entrevista, op. cit.).
(**) O informe radiológico do serviço médico das forças armadas diz: "enfisema pulmonar
duplo e difuso". (Ver Cupull y Gonzáiez, ün hombre bravo, op. cit., p. 392.)
Em abril de 1959, um grupo de cem cubanos e exilados panamenhos
desembarcou no Panamá. O governo revolucionário negou qualquer
responsabilidade, mas Raul Castro fez uma viagem relâmpago a Houston para
encontrar Fidel durante sua turnê para os Estados Unidos e a América Latina,
prestar-lhe contas da questão e ser novamente repreendido pelo irmão. Em junho
ocorre a invasão da República Dominicana, liderada por Delio Gómez Ochoa, um
oficial do exército rebelde e ex-combatente da sierra Maestra. Os dez cubanos e
duzentos compatriotas de Trujillo foram massacrados horas depois de
desembarcar.
A expedição à República Dominicana estava conectada a outra, análoga e
simultânea, no Haiti. Já nos primeiros dias de janeiro um poeta haitiano, René
Depestre, aterrissou em Havana vindo de Porto Príncipe. Um dia depois de sua
chegada, Che o recebeu em La Cabana, onde conversaram longamente sobre
poesia, Jacques Roumain e os Donos do orvalho, Haiti e América Latina. Logo o
Che se convenceu da necessidade de derrubar Duvalier, o recém-instalado ditador
da metade francófona da ilha de His-paniola, que cometera, entre outras vilanias,
a de ser aliado de Batista. O poeta imediatamente promoveu um encontro entre
Guevara e Louis Desjoie, um idoso senador haitiano de centro-direita, que
disputara com Papa Doe as eleições de meados da década. Formaliza-se um
acordo entre os haitianos e o Che, visando organizar e treinar durante os meses de
abril e maio em torno de cinquenta haitianos, brancos e negros. Eles recebem
instrução militar na província de Oriente. Segundo Depestre, o Che os visitava
com frequência — uma vez por semana — e era o verdadeiro supervisor da
operação. Da invasão do Haiti, que devia ocorrer dias após a da República
Dominicana, embora se previsse antes uma ação de assalto que uma guerrilha
prolongada, participaram meia centena de haitianos e trinta voluntários cubanos,
alguns deles ex-combatentes da sierra Maestra. Com o fracasso dominicano, a
operação foi cancelada, embora Desjoie já tivesse começado a titubear em virtude
da radicalização do processo cubano.*

grupos com direções comunistas e se opõe aos demais". (Department ofDefense, "Working paper for
Castro visit: summary 01 the present status of the Cuban armed forces, 15/4/59" (secreto). National
Archives, RO 59, Lot. file 61D248, Reg. Affairs 1951/1962, Box 16 orl8, College Park, Maryland).
(*) Essa versão provém do próprio René Depestre que, para além da licença poética própria de
um [...] poeta, parece ser uma fonte digna de confiança (Entrevista com o autor, Princeton, 27/10/96).
Finalmente, em l2 de junho, aviões procedentes da Costa Rica desembarcaram
numerosos "internacionalistas" na Nicarágua, onde ocorreram vários choques, até
que os guerrilheiros foram expulsos para Honduras. Ali a tropa hondurenha os
capturou, encontrando em sua posse uma carta de Che Guevara às autoridades
cubanas, pedindo-lhes que ajudassem os nicaragüenses antes de partir de Cuba.16
Trinta anos depois, Tomás Borge, o dirigente sandinista, recordaria a débâcle de
24 de junho de 1959 em território hondurenho, quando um dos guerrilheiros
nicaragüenses "tombou disparando uma submetralhadora M-3. Ele a adotara
desde que chegaram os dois aviões de Cuba com o carregamento de armas
enviado por Che Guevara, o que foi possível graças à cumplicidade do presidente
[de Honduras] Ramón Villeda Morales, admirador do Che".*
As reuniões de Tarará e Cojimar terão maior impacto no que diz respeito à
reforma agrária, o ponto mais sensível da política económica e da relação com os
Estados Unidos. Como António Nunez Jiménez recordaria vinte anos depois,
"durante dois meses realizamos reuniões noturnas em Tarará, onde o Che
recupera sua saúde [...] O trabalho é secreto".57 Também na praia se cristalizará o
papel do Che em duas outras questões de primeira importância: a formação
ideológica do novo exército e a aliança com os comunistas. A convergência dos
três temas no espaço e com as pessoas envolvidas tem confundido muitos
observadores desde então.
A radicalização do regime a partir dos primeiros meses de 1959, e sobretudo
depois de maio, não se devem a uma influência maior dos Comunistas com
maiúscula, cuja aproximação foi um efeito e não uma causa da inclinação para os
extremos. Dois personagens conformam e impulsionam a ala esquerda, a
orientação comunista genérica e com minúscula: Raul Castro e Che Guevara, mas
em especial o segundo. Fidel Castro obviamente dirige o processo, toma as
decisões, animado por seus próprios motivos, mas, como todo político de
inspiração genial, é sensível a pressões, influências, opiniões e argumentações
daqueles em quem confia. No terreno da formação do exército, no da distribuição
das terras e em menor medida no que toca aos comunistas, é em Che Guevara que
tem mais fé.
A primeira posição radical de Guevara a propósito da reforma agrária surge na
conferência que realiza em 27 de janeiro perante a Sociedade Nosso Tempo. Essa
conferência tem sido frequentemente destacada por seu con-

(*) Tomás Borge, La paciente impaciência, Manágua, Editorial Vanguardia, 1989, p. 149.
Borge também menciona que o Che "nos deu 20 mil dólares que [...] foram usados na guerrilha de Rio
Coco e Bocay" (ibidem, p. 167).
teúdo e pelo contraste entre as teses ali defendidas, assim como pelas posturas
públicas de Castro e do governo no momento." Porém, sua transcendência é na
realidade maior do que supuseram analistas como Theodore Draper, que nada
sabiam sobre as reuniões de Tarará. Naquele mesmo período, começaram a
reunir-se, entre outros, Alfredo Guevara, jovem cineasta comunista, amigo íntimo
de Fidel Castro desde que frequentavam a universidade; Oscar Pino Santos,
jornalista de economia próximo do partido;
António NunezJiménez, o geógrafo que se uniu ao Che em Lãs Vilias, também
identificado com a doutrina marxista no estilo do PSP; Vilma Espin esposa de
Raul Castro, e o Che. Trabalham vários meses, à margem de outras instituições do
governo, inclusive o ministro da Agricultura, Humberto Sorí Marín, autor da lei
anterior, lançada da sierra Maestra em novembro de 1958. Alfredo Guevara
recorda o trabalho do grupo: "Reuníamo-nos toda noite, até de madrugada, na
casa do Che; depois vinha Fidel e mudava tudo. Ninguém sabia em que pé
estávamos".59
Na conferência de 27 de janeiro, e em uma entrevista posterior com dois
jornalistas chineses, publicada anos depois, o Che é muito explícito sobre o
caráter insuficiente da reforma anterior. E indica em que direção deve orientar-se
o novo e definitivo esforço de distribuição da terra: transformar os latifúndios em
cooperativas. A entrevista com os chineses é significativa, pois embora a conceda
em 16 de abril, um mês antes da promulgação da nova Lei de Reforma Agrária, o
Che afirma categoricamente que ela acontecerá; revela seu conteúdo e as
principais disposições, com detalhes e sem falhas.60 Ele já sabia perfeitamente
como seria; seu conhecimento vinha de sua própria participação. A lei se delineou
em sua casa sob seus auspícios. O propósito da lei não era distribuir pequenos
lotes entre os camponeses, mas estatizar ou transformar em cooperativas as
grandes plantações de açúcar, café, tabaco e outros produtos.
O objetivo guevarista é mais político que económico: destruir o latifúndio
enquanto fonte de poder da oligarquia e dos senhores de terras estrangeiros, mais
que redistribuir riqueza por meio da fragmentação da terra atomizada em milhares
de pequenos lotes. O Che deduz que uma reforma dessa índole provocará um
severo confronto, tanto com os proprietários cubanos, principalmente os de
plantações de cana-de-açúcar, como com os norte-americanos. Guevara também
trata o melindroso dilema da inde-nização: compreende que sob o esquema de
compensação estabelecido na Constituição de 1940 e na lei da sierra, a
desapropriação de terras será lenta e tediosa. Por fim, entende que a criação de um
hipotético instrumento de
aplicação da reforma agrária, o futuro Instituto Nacional da Reforma Agrária
(iNRA), pode se converter em poderosa alavanca de radicalização revolucionária.
Poderá funcionar como uma espécie de governo paralelo institucionalizado, com
ordem do dia, ritmos e recursos próprios.
O problema económico é real. A economia cubana dificilmente progredirá
somente à base de açúcar. Em 1925, a safra superara 5 milhões de toneladas; em
1955, fora ligeiramente superior a 4 milhões. Porém, a população aumentou 70% e
suas exigências se multiplicaram em escala muito maior. Daí serem a
diversificação e a industrialização as palavras da moda, não só entre
revolucionários e marxistas, mas também no seio da comunidade tecnocrática e
empresarial. Contudo, se as exportações representavam quase 40% da renda
nacional, e 80% delas correspondiam ao açúcar, não haveria oportunidade para
diversificar, industrializar ou mesmo obter crescimento sem afetar a estrutura
agrícola do país.* A cana permitia lucros elevados a curto prazo, com um mercado
seguro e preços atraentes; enquanto o capital estrangeiro e cubano se concentrasse
nela, e enquanto esse setor empresarial dominasse a política e a economia da ilha,
não haveria futuro. Quebrar o poder da oligarquia, desconcentrar a economia e
elevar a renda dos camponeses pobres, eis o teor verdadeiro da agenda do Che.
Para tanto, era fundamental expropriar os latifúndios, coletivizar a propriedade da
terra e diversificar os cultivos e as exportações. O Che é claro:
Quando propusemos uma reforma agrária e promulgamos leis revolucionárias
para alcançar rapidamente essa meta, consideramos em especial a redis-
tribuição da terra, a criação de um grande mercado interno e de uma econo-
mia diversificada. Por enquanto, o propósito da reforma agrária é promover a
produção de açúcar e melhorar as técnicas de produção. Em segundo lugar,
devemos permitir ao cultivador que tem sua própria gleba a abertura de terras
virgens e o cultivo de toda terra cultivável. Em terceiro lugar, devemos
aumentar a produção e reduzir as importações de grãos básicos [...] devemos
perseguir a industrialização nacional [...] que requer a adoção de medidas de

(*) O informe de uma missão do Banco Mundial que visitou a ilha em 1950 não diverge desse
diagnóstico e dos remédios propostos: "Deve-se perseguir os seguintes objetivos: l) tomar Cuba menos
dependente do açúcar, promovendo outras atividades, sem reduzir a produção açucareira; 2) expandir
as indústrias existentes e criar outras novas, que processem produtos derivados do açúcar ou usem o
açúcar como matéria-prima; 3) promover energicamente exportações não açucareiras para reduzir a
ênfase no produto único; 4) avançar na produção para o consumo interno cubano de alimentos,
matérias-primas e bens de consumo hoje importados" (Banco Mundial, "Informe sobre Cuba", cif. em
Huberman, Anatomy, op.cit.,p. 108).
proteção às novas indústrias e um mercado de consumidores para os novos
produtos. Se não abrirmos as portas do mercado para os guajiros sem poder
de compra, não haverá como expandir o mercado interno.61
O Che tinha plena consciência das implicações de suas teses e do rumo que
efetivamente traçavam. Inseria-as em uma estratégia de longo prazo, límpida a
seus olhos e em harmonia com futuros processos revolucionários em outros países.
"O regime antipopular de Cuba e seu exército foram destruídos, mas o sistema
social ditatorial e seus fundamentos económicos ainda não foram abolidos. Parte
da mesma gente de antes continua trabalhando nas estruturas nacionais. Para
proteger os frutos da vitória revolucionária e permitir o desenvolvimento contínuo
da Revolução, devemos dar outro passo adiante".62
A reforma agrária foi promulgada em 17 de maio de 1959, dias após o retorno de
Fidel Castro de uma viagem proveitosa aos Estados Unidos, Brasil, Uruguai e
Argentina. Embora se revista de um tom moderado, seus efeitos não o serão tanto
assim. Por certo permitia a subsistência de grandes plantações de cana-de-açúcar e
arroz, previa o pagamento relativamente acelerado das indenizações, com taxas de
juros compensadoras, e as cooperativas se diferenciavam notoriamente dos
kolkhozes soviéticos. Porém, os Estados Unidos atacaram com rigor as medidas
em uma nota diplomática de 11 de junho; a cotação das companhias açucare iras
na Bolsa de Nova York baixou, e as atingidas pêlos confiscos — a United Fruit
Company e a King Ranch Company, para mencionar algumas — imediatamente
iniciaram a preparação de represálias. Os pecuaristas de Camagüey, também
atingidos, lançaram-se a todo tipo de conspirações; durante anos a região será um
reduto contra-revolucionário.
Em consequência da tempestade deflagrada pela Lei de Reforma Agrária, o
presidente Manuel Urrutia se demite em 13 de julho, depois de uma astuciosa e
transitória renúncia de Fidel Castro ao posto de primeiro-ministro. Abre-se assim a
porta para expulsar muitos dos liberais do governo e selar uma aliança bem mais
estreita com os comunistas. O detonador da crise era a intenção do Che de levar a
cabo uma reforma agrária de fundo, sua decisão e sua capacidade de impulsioná-la
nas reuniões de Tarará, e mais tarde, de Cojimar. A criação do INRA, conforme
seus planos, completava o processo. O INRA passa a responder pela saúde,
habitação e educação no campo; pode criar centros de fornecimento de máquinas e
serviços agrícolas, e se encarrega do processo de industrialização do campo.
Transforma-se, assim, justamente no tipo de "órgão revolucionário" que o Che pre
tendia.* O primeiro diretor do INRA, sob a presidência formal de Fidel Castro,
será nada menos que NunezJiménez, o autor da lei e íntimo colaborador do
argentino desde Santa Clara, e o primeiro administrador do Departamento de
Indústrias do INRA, um virtual Ministério da Indústria, será precisamente Che
Guevara.
Desde antes de convalescer em Tarará e durante todo o período que se encerra
em julho com sua viagem ao redor do mundo, Guevara desempenhará outro
papel central no curso da Revolução: a formação do exército, em particular sua
preparação ideológica. Ele promove uma série de projetos de instrução e
educação da tropa na fortaleza de La Cabana. A ideia dos dirigentes a respeito
não permitia maiores vacilações: segundo Raul Castro, "o exército rebelde é um
exército político cujo objetivo é defender os interesses do povo".6' O Che formula
a meta com maior precisão e franqueza:
"Temos que marchar rapidamente para a reestruturação do exército rebelde, pois
até agora improvisamos um corpo armado de camponeses e operários, muitos
deles analfabetos, incultos e sem preparo técnico. Temos de capacitar esse
exército para as elevadas tarefas que seus membros precisam conduzir, capacitá-
los técnica e culturalmente. O exército rebelde é a vanguarda do povo cubano".64
As novas forças armadas serão o principal pilar do regime revolucionário,
desde esses meses até o final do século. Isso se deverá em parte à missão que o
Che lhe confia e à maneira como ele lhe inculca uma ideologia e uma motivação
determinadas. Em pouco tempo o Che inaugura vários cursos rápidos para a
formação de oficiais e da tropa. Seguindo os passos das Escolas de Instrutores de
Tropas do Segundo Front de Raul Castro (unidades em mãos de membros do
PSP), instalam-se em La Cabana as entidades precursoras das futuras Escolas de
Instrução Revolucionária (EIR). Os colaboradores comunistas do Che na sierra
ou na "invasão" — Armando Acosta, Pablo Ribalta — e outros, como o hispano-
soviético Angel Ciutah, formam o núcleo de instrutores. Ligar a formação
ideológica do exército à presença dos comunistas em La Cabana não era um
absurdo. As divergências entre o Che e o PSP eram sobretudo táticas; o argentino
era, então, um marxista-

(*) "O INRA, presidido por Fidel, foi o bastião a partir do qual se realizou a Revolução naqueles
primeiros meses; foi o organismo que deu a estocada profunda na burguesia e no imperialismo. Não
era tático mudar de um só golpe o Conselho de Ministros. Nosso povo ainda não estava preparado
ideologicamente para uma batalha aberta entre a Revolução e a Contra-Revolução emboscada dentro
do próprio governo. Fidel duplicou no INRA as funções mais importantes do governo revolucionário"
(Nunez Jiménez, En marcha, op. cit., p. 309).
leninista ortodoxo. Muitos de seus melhores quadros pertenciam ao PSP, e ele
não dispunha de recursos humanos ilimitados para iniciar o treinamento do
exército. Era preciso trabalhar depressa e lançar mão dos homens disponíveis.
Convicções e conveniências voltavam a se fundir na ação do Che; ele recorreu ao
PSP porque concordava com os comunistas no essencial e porque carecia de
alternativas para uma tarefa que devia ser cumprida rapidamente.
Logo começa a correr o boato de que La Cabana punha em marcha um processo
de formação ideológica radical. Um primeiro indício de que algo importante
sucedia na fortaleza aparece em uma nota da embaixada norte-americana, datada
de 20 de março, avisando que "a embaixada tem recebido informes cada vez mais
frequentes nas últimas semanas sobre a penetração comunista em La Cabana. Os
informes se referem ao pessoal que o comandante Ernesto Che Guevara
incorporou à orientação dos cursos de educação e ao funcionamento dos tribunais
revolucionários. Foi difícil, porém, obter provas concretas e precisas da
infiltração comunista em La Cabana".65
Logo depois o telegrama faz referência a uma série de exposições de arte, sessões
de bale e recitais de poesia organizados pelo Departamento ou Diretoria de
Cultura em La Cabana.* Outro relatório, de classificação secreta e redigido pelo
Departamento de Defesa praticamente na mesma data, menciona a criação de
uma entidade renovadora nas forças armadas. Com a designação de G-6 e o título
de Diretoria da Cultura, surge uma unidade cujo propósito ostensivo é a
alfabetização dos recrutas iletrados mas que oferece também instrução marxista.
O informe conclui que "a penetração comunista foi particularmente eficaz na
região de Havana graças à posição do comandante Ernesto Che Guevara, o
número 3 em Cuba e um esquerdista, caso não seja comunista".66
Passemos ao terceiro aspecto básico da atividade do Che durante esses meses.
Em princípios de janeiro, Fidel Castro inicia um esforço de aproximação e
aliança com o Partido Socialista Popular. O ponto de partida são as

(*) Em um telegrama de 14 de abril de 1959, a embaixada dos Estados Unidos confirmava que
"boa parte do esforço comunista em Cuba se dirige à infiltração nas forças armadas. La Cabana
parece ser o principal bastião comunista e seu comandante, Che Guevara, é a principal figura, cujo
nome aparece vinculado ao comunismo. Sob seu comando, estabeleceram-se cursos de doutrinamento
político da tropa em La Cabana. Os materiais empregados nesses cursos, alguns dos quais a
embaixada examinou, seguem a linha comunista". Foreign Service Despatch, Braddock/Emhassy to
Dept. ofState, 14/4/59, Growth ofcommunism in Cuba (secreto), Foreign Relations ofthe United
States, 1958-1960, Department ofState, Central Files, LB] Library).
convergências que se deram na sierra Maestra a partir da estada de Carlos Rafael
Rodríguez, da incorporação de quadros do PSP ao Segundo Front de Raul Castro
e à coluna do Che, e em consequência da criação, em outubro de 1958, da Frente
Obrero Nacional Unificado (FONü), que reuniria sindicalistas do PSP e do Vinte
e Seis de Julho. O empenho não carecerá de contradições, atritos — abundarão as
polémicas entre Hoy, o órgão reeditado do PSP, e o Revolución, diário do Vinte e
Seis de Julho — e segredo. Segundo o relato de Fábio Grobart a Tad Szulc em
1985, os dirigentes máximos da sierra e do PSP começaram a se reunir
sigilosamente na casa de Fidel em Coj imar desde janeiro. A casa foi emprestada
a Castro por um senador ortodoxo, Agustín Cruz. Fidel se fazia acompanhar do
Che, de Camilo e Osmany Cien-fuegos (o irmão do líder guerrilheiro da sierra,
membro do PSP, que permaneceu no México durante a guerra), Ramiro Vaidés e,
às vezes, Raul Castro. Pelo partido figuravam Carlos Rafael Rodríguez, o
secretário-geral Blas Roca e Aníbal Escalante, membro do Birô Político. De
acordo com Roca:
"Começamos a nos reunir quando Fidel, o Che e Camilo chegaram a Havana. Não
informamos os militantes, apenas um grupo de dirigentes. O êxito das
negociações implicava impedir que os norte-americanos tivessem um pretexto
para intervir, como haviam feito na Guatemala, e tivemos de manter segredo".67
Os problemas surgiram prematuramente, com as eleições sindicais de fins
de janeiro. Com a desintegração da velha direção oficialista da Confederação dos
Trabalhadores de Cuba, tanto os sindicalistas do PSP como os do Vinte e Seis de
Julho trataram de manobrar para assumir o controle da antiga central. Os últimos
venceram, marginalizando os comunistas em uma política de exigências salariais
maximalistas visando recuperar sua velha hegemonia no seio do movimento
operário. A polémica foi pública — ocupou páginas inteiras do Hoy e do
Revolución ao longo do verão — e durou o ano inteiro, até que em novembro o
PSP foi varrido nas eleições do Congresso da CTC. Só a intervenção de Fidel
Castro evitou a recuperação completa do sindicalismo cubano. Porém, as brigas e
rivalidades entre militantes sindicais — e outros — do Vinte e Seis de Julho e do
PSP não devem obscurecer o fato fundamental, a unidade que aos poucos foi se
formando entre as duas direções. A personalidade do Che ocupou um lugar
privilegiado nesse processo.
A explicação de fundo para sua ingerência na construção da aliança com os
comunistas não reside em alguma simpatia pessoal por eles, embora Guevara
contasse com mais colaboradores do PSP que qualquer outro diri-
gente, exceto Raul Castro. O ponto de apoio da convergência eram as posições do
Che sobre um leque de temas que o aproximavam naturalmente dos comunistas.
Na verdade, o comunista do Vinte e Seis de Julho era ele tanto como Raul Castro,
e, como recorda Carlos Franqui, "Raul era em determinado momento mais
discreto que o Che".6" A força e a presença dos chefes e militantes do PSP se
deviam em boa parte à sua concordância com o argentino, e não o inverso.
Amoldo Martínez Verdugo, ex-secretário-geral do Partido Comunista Mexicano,
que passou vários meses daquele ano de 1959 em Havana, recorda como o Che
protegia o PSP. Em um escritório do partido onde vários mexicanos aguardavam
seu retorno à pátria, certo dia bateram à porta; era um homem com uma ordem
assinada pelo Che exigindo a desocupação imediata do local, pois ele fora
requisitado pela Comissão de Recuperação de Bens, que Guevara dirigia. O
quadro do PSP que recebeu o aviso disse ao mensageiro: "Sente-se, pelo visto
você não sabe onde está;
nós somos um partido revolucionário que participou da vitória de 1a de janeiro".
Pegou o telefone, falou com o Che, e não os despejaram.69 Para além da reforma
agrária e da formação ideológica do novo exército, o Che ia gradualmente
assumindo as posições clássicas do marxismo na América Latina. Se mais adiante
rompe com essas posturas, com os comunistas cubanos e seus padrinhos
soviéticos, isso não impede que compartilhe estritamente seus enfoques durante
quase quatro anos.
Em várias intervenções públicas ao longo desses meses o Che ao mesmo
tempo se diferenciou, formalmente, do PSP e se definiu com clareza como a ala
esquerda do movimento. Nos primeiros dias de janeiro reinava ainda certa
confusão nos círculos oficiais norte-americanos sobre a essência ideológica de
Che Guevara.* Em abril, particularmente depois de uma longa entrevista
concedida no dia 28 ao programa Telemundo pergunta, suas opiniões tinham
interessado notoriamente setores importantes da socie-

(*) Em uma reunião do subsecretário de Estado, Roy Rubottom, com o embaixador da


Argentina em Washington, em 6 de janeiro, o alto funcionário norte-americano foi informado de que
"o embaixador disse que tinha conversado durante duas horas com o general Montero, que é amigo do
pai de Guevara. O embaixador disse que perguntou ao general sua opinião sobre o jovem Guevara. O
general respondeu que os Guevara eram uma velha e conservadora família de San Juan [sic] e que os
sentimentos do rapaz eram completamente democráticos e nada comunistas. Ele lutara contra Perón e
logo se fora para o Peru, onde se casou com uma moça peruana. O embaixador disse que comentava
isso com o secretário Rubottom porque sabia que alguns viam em Guevara tendências comunistas"
(Department ofState, "Mernorandum ofconversation between Roy Rubottom and Argentine
ambassador Barros Hurtado" (secreto), 6/1/59).
dade havanesa e da embaixada dos Estados Unidos. A embaixada, embora sem
tirar todas as conclusões decorrentes, compreendeu que:
Ernesto Che Guevara, o chefe de La Cabana, se não é formalmente um comunista, está tão
identificado com a doutrina comunista que não se diferencia dos comunistas [...] Por sua
orientação política, sua popularidade e o controle que exercem sobre as forças armadas, Che
Guevara e Raul Castro representam o mais importante perigo de infiltração comunista dentro do
governo atual. Não se conhece a medida de sua influência sobre Fidel Castro, mas provavel-
mente ela é considerável. Pode sobretudo constituir um elemento significativo da resistência de
Castro a alinhar-se claramente com o mundo livre no conflito Leste/Oeste.70
No citado programa de televisão, o Che exibiu talento diplomático e
retórico para responder a uma série de questões a respeito de suas inclinações
ideológicas e seus pontos de vista sobre a União Soviética, o PSP, a reforma
agrária, a participação cubana em uma revolta no Panamá etc. Mas apesar de sua
habilidade ficou evidente, para quem assistiu à entrevista, que ele não só estava
próximo das posições comunistas como defendia em princípio e na prática uma
aliança com o PSP. O argentino deve ter se manifestado de forma semelhante
em diversas reuniões privadas; não costumava usar uma dupla linguagem.
Assim o confirma o relatório que um fumicultor cubano apresentou à embaixada
norte-americana em maio de 1959.*
O dr. Napoleón Padilia foi um dos participantes do Fórum do Tabaco, um
grupo criado pelo governo revolucionário para melhorar as condições e a
produção na indústria. O representante do governo era o Che, por isso Pa-dilia
pôde observá-lo de perto e ouvi-lo com atenção ao longo de várias semanas, a
tal ponto que, segundo seu relato, o Che ofereceu-lhe a gerência da fábrica
estatal de cigarros que pretendia fundar. Segundo seu relato, Guevara era
violentamente antiamericano, opondo-se à venda de produtos estadunidenses,
inclusive os fabricados em Cuba, como a Coca-Cola, os ténis marca Keds ou os
cigarros norte-americanos; não desejava a presença de capital dos Estados
Unidos em Cuba, nem boas relações com Washington.

(*) A veracidade do relato é corroborada pelo comentário final do Che sobre as causas que, no
seu entender, motivaram a queda de Arbenz na Guatemala, um tema da moda em Cuba naqueles dias.
Segundo o informante da embaixada, o Che considerava que a liberdade de imprensa fora um dos
fatores da derrota de 1954, que ela deveria ter sido limitada e que era imprescindível evitar que o
mesmo acontecesse em Cuba. Graças às recordações de Rolando Morán sobre suas conversas com o
Che na embaixada argentina na Guatemala, sabemos que o jovem Guevara com efeito pensava assim.
Descrevia o exército rebelde como o "defensor do proletariado" e o "principal
braço político da revolução do povo". Padilia também assevera que, segundo o
Che, o novo exército constituiria uma das principais fontes de
"doutrinamento"do povo cubano e participaria de obras úteis, mas estaria sempre
pronto a defender a Revolução, que inevitavelmente seria atacada pêlos Estados
Unidos, já que contrariava seus interesses fundamentais.71
O relato de Padilia contém exageros — menciona que o Che "falou com
frequência sobre a maneira como controla Fidel Castro" — e deduções próprias
— "Guevara e Raul Castro querem criar um sistema soviético em Cuba" —, mas
oferece uma versão que parece plausível. O Che com efeito pensava assim e
expressava sem rodeios seus sentimentos. Esse tipo de comentário ocorria no
mesmo momento em que Fidel Castro percorria a costa oeste dos Estados
Unidos, tratando de convencer a opinião pública e o establishment norte-
americanos de suas "boas intenções" quanto a uma série de assuntos delicados —
a reforma agrária, o comunismo etc.*
Essa visível incongruência pode ter sido produto de vários fatores. E possível
que Fidel Castro, graças ao seu extraordinário talento teatral, tenha buscado fazer
boa figura perante seus anfitriões estadunidenses, intuindo exatamente o que
queriam escutar, para ganhar tempo no inelutável enfrentamento com
Washington. Castro mostrou, ao longo de quase quatro décadas no poder, que é
plenamente capaz de sustentar sem maiores problemas dois ou mais discursos
contraditórios e simultâneos. Dessa perspectiva, Castro dizia uma coisa do outro
lado do estreito da Flórida, o Che e Raul diziam outra na ilha, e caso alguém
apontasse a incompatibilidade entre os

(*) Segundo a opinião do Departamento de Estado, o Fidel Castro que veio a Washington foi um
homem mais comportado, que seguiu o conselho dos ministros que o acompanhavam e aceitou a
orientação de um especialista em relações públicas com os norte-americanos. O resultado logrado por
Castro, em termos de recepção favorável do público e da mídia, pode ser considerado como tramado.
Ao mesmo tempo, não se deve subestimar o efeito causado em Castro pela amizade e abertura do
povo e dos funcionários dos Estados Unidos, sua disposição de entender as razões da Revolução
Cubana. Quando Fidel partiu de Washington para Princeton, em 20 de abril, estava certamente mais
receptivo em seu comportamento para com os funcionários do departamento que foram à despedida.
Com sua aparente franqueza e sinceridade, ele conseguiu neutralizar muitas das críticas da imprensa
e do público em geral. No que toca à posição perante o comunismo e a guerra fria, Castro cuida-
dosamente deu indícios de que Cuba permaneceria no campo ocidental (Robert Murphy (deputy
Undersecretary ofState) to Gordon Gray (specialist assistant to the president for National Security
Affairs), 1/5/59, "Unofficial visit of prime minister Castro to Washington — a tentativo evaluation"
(secreto). Declassified Documents Catalogue, Carrollton Press, Washington, jan.-fev. 1989, n" de
série 137, vol. xv,# l).
dois pronunciamentos, Fidel simplesmente desmentiria seu irmão e o Che, com o
pleno conhecimento e consentimento de seus subalternos.
Ou talvez Fidel, naquele momento, ainda não tivesse definido o curso da
Revolução e buscasse situar-se em uma posição de centro, instável, efémera mas
eficaz por algum tempo. Por último, há a possibilidade de que naquela conjuntura
Castro dissesse a cada interlocutor o que este desejava ouvir, com a convicção do
político magistral que era, a qual só nasce de uma autoconfiança absoluta.
Quando Fidel conversava com seus acompanhantes nos Estados Unidos —
Regino Boti, Felipe Pazos etc. —, dando razão a seus conselhos cautelosos e
sensatos, era tão sincero como quando concordava com Raul e o Che sobre a
necessidade de a Revolução avançar aceleradamente para uma direção mais
radical. Uns acabariam por se sentir enganados, outros veriam confirmados seus
vaticínios e aspirações, mas no momento da interlocução com Fidel todos
jurariam que ele lhes dizia a verdade. E era assim que ele atuava.
O relacionamento entre Fidel e o Che se consolida nesses meses, embora
atravessado por algumas pequenas tensões. O estilo era demasiado diferente para
que não surgissem de vez em quando altercações ou discordân-cias. Fidel falava
sem falar; o Che preservava seu laconismo. Fidel era um político que dosava a
expressão pública de seus pensamentos e definições; o Che levava a público tudo
o que pensava. Fidel vivia em suntuosa e permanente desordem; o Che era um
homem organizado, disciplinado, pontual e austero. O Che acreditava saber o que
queria, politicamente falando; Fidel estava sempre à procura de um rumo, e era
capaz de corrigi-lo, matizá-lo ou revertê-lo súbita e repetidamente. Fidel
retornava da sierra ao seu mundo, estava em seu elemento. O Che descobria um
ambiente novo; seus amigos, sua família, sua juventude estavam longe e
pertenciam a uma etapa superada da vida dele.
Os comentários atribuídos a Fidel nesses meses, em particular durante a visita aos
Estados Unidos e imediatamente depois de seu regresso a Cuba, devem ter ferido
o Che em algum desvão de sua sensibilidade. Nem por isso o argentino os tomou
demasiado a sério, já que conhecia as manhas e subterfúgios do Caballo. Desde
janeiro circulavam rumores de afirmações críticas ou sarcásticas de Fidel sobre o
Che. Lázaro Ascendo, um combatente do Escambray que jantou com Fidel Castro
na cidade de Cienfuegos durante sua marcha triunfal de Oriente para Havana,
recorda um estranho comentário do líder máximo. Falando do comandante norte-
americano William Morgan — colega de Gutiérrez Menoyo e que seria fuzilado
mais tarde —,
Fidel advertiu que ele deveria deixar Cuba. Quando Ascencio discordou, Castro
arremeteu contra o Che: "Todos esses estrangeiros são uns mercenários. Você
sabe o que vou fazer com o Che Guevara? Vou mandá-lo a São Domingos para
ver se Trujillo o mata. E meu irmão Raul, eu o enviarei como ministro ou
diplomata, como embaixador na Europa".* A tal ponto se espalhou esse boato que
um jornalista perguntou ao Che, em 6 de janeiro, se "é certo que você vai liderar
uma expedição para libertar São Domingos e acabar com Trujillo".72
Mais tarde, e talvez mais realisticamente, Jules Dubois, um jornalista norte-
americano que entrevistou Castro na sierra e mantinha contatos (para dizer o
mínimo) cornos serviços estadunidenses, informou em 10 de junho o encarregado
de assuntos do Caribe e do México do Departamento de Estado sobre suas
recentes conversações. Pessoas ligadas a Castro, disse, lhe asseguraram que este
se convencera da existência de um processo de infiltração e propaganda
"comunista" em La Cabana e iria corrigi-la de imediato. O primeiro passo
consistiria em expulsar o Che do país. Para isso, propunha-se utilizar o convite
oficial do presidente do Egito, Gamai Abdel Nasser, para comemorar a
expropriação do canal de Suez. Dubois inclusive vaticinou que, durante a turnê
pelo Oriente Médio, Guevara poderia ter uma grave e prolongada crise de asma."
Embora as observações de Castro fossem fictícias, ele sem dúvida deve ter
pronunciado algo semelhante. Isso não significava que Castro pensava
necessariamente o que dizia; na prática, provavelmente, tratava-se de testes ou
manobras para despistar e confundir, as quais lhe permitiram sobreviver quase
quarenta anos em circunstâncias terrivelmente adversas. O Che não podia ignorar
o procedimento de seu amigo e chefe, mas tampouco desconhecia a frieza
implacável de suas alianças e lealdades. Ao longo de toda a sua permanência no
poder — e antes, desde a universidade — Castro exibirá simultaneamente uma
grande fidelidade aos amigos, enquanto eles se encontram fora da política real, e
uma capacidade insólita de voltar as costas a companheiros de grande
proximidade quando os imperativos políticos assim exigiam.
Nesses inocentes e memoráveis primeiros dias da vitória, o Che podia acreditar
mais nas bem-intencionadas manobras de Fidel que em sua duplicidade e
impiedosa indiferença. Porém, deveria suspeitar que talvez pudesse

(*) Cit. em Georgie Arme Geyer, GuemSa Prince, op. cit., p. 201. A autora afirma que outra
testemunha da cena, Emílio Caballero, corroborou a versão de Ascencio.
haver algo de verdadeiro nos boatos. Por trás deles ocultava-se uma lógica
tipicamente fidelista. Uma aguda contenda entre o que Franqui chamou de lado
nacionalista do Vinte e Seis de Julho e a ala pró-comunista dirigida por Raul e o
Che estava em marcha. Como recorda Franqui, "Fidel Castro, sendo um político
muito mais hábil que seu irmão e seu lugar-tenente preferido, pensava que seria
fatal afrontar os Estados Unidos antes do tempo. Por isso, tratava de fazer com
que todos acreditassem que ele mantinha sua clássica postura contrária aos
comunistas".74 Ocorreram alguns conflitos, inclusive no que se refere à reforma
agrária, quando o Che, Raul Castro e os comunistas mandaram os camponeses
ocupar terras e Castro pronunciou um violento discurso contra esse procedimento.
Em uma ocasião, no Tribunal de Contas de Havana, houve uma altercação tão
ríspida entre os irmãos Castro que Raul "acabou chorando".75
Tudo isso ficava ainda mais desconcertante no contexto da viagem de Fidel
Castro aos Estados Unidos, à qual o Che se opusera* e durante a qual os
conselheiros moderados de Castro se instalaram na sua intimidade. As
declarações de Castro em Washington e Nova York fortaleciam a sensação de
incerteza e ceticismo que possivelmente invadira um pequeno nicho do
inconsciente guevarista. Apesar disso, o Che manteve sua posição, travou suas
batalhas e venceu muitas delas. A Lei de Reforma Agrária de maio representou
um triunfo parcial do argentino. Não era a grande reforma de suas aspirações, mas
foi muito além do previsto. A saída de Sorí Marín do governo e, semanas depois,
a de Manuel Urrutia da presidência, assim como a radicalização incipiente de
julho de 1959, também foram conquistas do herói de Santa Clara.
Em 2 de junho, Ernesto se casou pela segunda vez. Depois de finalmente romper
com Hilda e formalizar o divórcio, ele abrira caminho para desposar Aleida. Até a
morte, a militante peruana acreditaria ter perdido seu marido para Aleida:
"Quando um homem se enamora de outra mulher, não há nada que uma esposa
possa fazer".76 A isso se deveu, em parte, a tensão e antipatia que prevaleceriam,
também até a morte, entre Hilda Guevara e sua madrasta.77 A cerimónia realizou-
se na casa de um dos membros da escolta do Che, Alberto Castellanos, com duas
testemunhas: Raul Castro, outra vez, e Efigenio Amejeiras, influente chefe de
polícia do regime revolucionário. Os noivos partiram imediatamente para Tarará
em viagem

(*) "O Che [...] não concordava com a ideia da viagem, embora tenha tido o cuidado de não
dizê-lo" (Gambini,op.cit.,p. 231).
de núpcias: não muito distante, não muito diferente, não muito prolongada.*
Mesmo assim os dias de lua-de-mel causaram forte impacto no Che. Durante a
viagem à índia, onde partilharia um quarto com Guevara, José Pardo Liada
cometeu a indiscrição de ler uma carta do comandante a sua esposa, explícita em
extremo, sexualmente falando, e "absolutamente pornográfica".78 Depois de seu
relacionamento com Hilda e das condições que prevaleciam na sierra, pouco
propícias ao amor, passar dias de folga na cama com uma atraente e experiente
cubana forçosamente provocou uma forte impressão no ardoroso guerrilheiro.
Em 5 de junho Fidel Castro confirmou a decisão de enviá-lo em uma
interminável turnê pelo Oriente Médio, índia e Japão. Uma semana depois, o Che
partiu ao encontro de um mundo desconhecido, com sua velha e querida amiga: a
desejada alteridade. Passaria três meses fora de Cuba, em uma viagem repleta de
contradições e incertezas. Era a primeira de uma longa série de missões em torno
do globo, que eram úteis para a Revolução e cativantes para ele, mas
inevitavelmente ensombrecidas pela sensação de exílio — ainda que necessário,
proveitoso e transitório. Todas essas viagens encerram um mistério. A última,
para a Bolívia, o conduziria à morte.

(*)Jean Cormier assinala, sem dúvida em virtude de um equívoco de suas fontes, que Aleida
estava grávida e insinua que Ernesto casou-se com ela por causa do compromisso assumido na sierra
de que todo guerrilheiro que engravidasse sua companheira devia casar com ela (Cormier, op. cit., p.
265). Aleidita, a primeira filha do Che com sua segunda esposa, nasceu em novembro de 1960,
portanto sua mãe não poderia esperá-la desde junho de 1959. A única possibilidade seria uma gravidez
interrompida, voluntariamente ou não.
6
"CÉREBRO DA REVOLUÇÃO",
CRIA DA URSS

A julgar por um telegrama da embaixada dos Estados Unidos, a partida do Che


para sua viagem afro-asiática, originalmente prevista para 5 de junho de 1959,
aconteceu uma semana depois.' Há duas possibilidades que explicam o atraso:
sua lua-de-mel em Tarará, ou a chegada a Havana, naqueles dias, de Enrique
Lacayo Farfán, um revolucionário nicaragüense suscetível de receber apoio
cubano. O mais provável é que o prorrogamen-to da viagem se devesse à
conspiração na Nicarágua, e não a uma inesperada fraqueza sentimental.
Finalmente, em 12 de junho, Guevara partiu para a África acompanhado por uma
delegação —José Argudín, Ornar Femández e Francisco Garcia Valls —, alguns
funcionários e um matemático chamado Salvador Vilase-ca, que se reuniu à
comitiva no Cairo; na índia, juntou-se a eles o jornalista José Pardo Liada. A
tumê incluiu países de evidente interesse e importância política e económica para
Cuba—Japão, lugoslávia, índia e Egito—e outras nações menos relevantes, como
o Ceilão, a Indonésia, o Paquistão, o Sudão e o Marrocos. Nunca se esclareceu a
verdadeira natureza da viagem, embora circulassem múltiplas especulações,
todas com certa lógica. Depois dos já mencionados triunfos do Che na luta
interna, era compreensível que Castro optasse por resguardá-lo por meio de uma
longa ausência. Nesse período, sucedeu a primeira grande crise da Revolução: a
renúncia do presidente Urru-tia, o abandono do governo por vários ministros
liberais e a consolidação da guinada do regime à esquerda. Em 26 de julho,
comemorou-se o aniversário do assalto de Moncada com uma grande festa.
Ninguém poderia culpar o Guevara da radicalização do governo: ele estava a
milhares de quilómetros.
Por certo a pressão de diversos setores cubanos e norte-americanos contra
Guevara estava aumentando. As sérias derrotas dos liberais e dos Estados Unidos
eram atribuídas cada vez mais frequentemente — e em parte com razão — ao
fortalecimento do Che e de Raul Castro. Mas se a viagem constituiu um "semi-
exílio", como considera Pardo Liada, ele não durou muito tempo.* Ao regressar,
em setembro, o Che imediatamente responsabilizou-se pelo Departamento de
Indústrias do INRA e, semanas depois, pelo Banco Nacional de Cuba.
Talvez Guevara fosse o único colaborador próximo e confiável de Fidel dotado
dos atributos necessários para cumprir cabalmente missões de representação
revolucionária no exterior. Raul Castro, que compareceu de última hora a uma
sessão especial da OEA, realizada em Santiago do Chile em 15 de agosto de
1959, fez um discurso pobre. Ele era despreparado, mal vestido e inábil. Por sua
vez, o Che ainda não assumira responsabilidades específicas que requeressem sua
presença constante. Fidel podia muito bem privar-se por algum tempo de seus
serviços e conselhos. Além do mais, o ofício diplomático e a habilidade
internacional dos rebeldes triunfantes ainda eram virtualmente nulos. Eles podem
ter imaginado que um percurso de três meses como o do Che se revestiria de
enorme importância para a Revolução, embora a viagem fosse perfeitamente
prescindível. Por fim, ao cabo de seis meses em Havana, é provável que o
argentino ansiasse pêlos novos lugares e horizontes incluídos no itinerário; eles
eram por demais atraentes para um fanático pelo desconhecido: a viagem
representaria o primeiro encontro do Che com o mundo distante da América
Latina.
O ponto de partida foi o Cairo, onde o presidente Gamai Abdel Nas-ser, já então
um herói do nacionalismo árabe e do pan-islamismo, recebeu o Che com todas as
honras. Guevara visitou as pirâmides e Alexandria, onde pernoitou no palácio
real de Montaza; conheceu os trabalhos iniciais de construção da represa de
Assuan, o canal de Suez e Port Said. Em quinze dias de estadia conseguiu
consolidar uma amizade duradoura com Nasser; regressaria às margens do Nilo
duas vezes, pouco antes de deixar Cuba. A crise do canal de Suez, em 1956, e o
boicote inglês ao algodão egípcio impressionaram o Che; aquilo "provocou uma
situação de extraordinário perigo, felizmente superado pela aparição de um
comprador para toda a colheita, a

(*) Na opinião de Carlos Franqui, dois fatores se combinaram: "Cada vez que alguém se
achava em desgraça em Cuba, enviavam-no ao exterior; era uma maneira de afastá-lo;
além do mais, talvez o Che tivesse algum interesse em conhecer esses países" (Carlos Franqui,
entrevista, op. cit.).
União Soviética".2 Ele teria podido chegar à mesma conclusão a propósito de
Assuan. Quando Eisenhower e John Foster Dulies suspenderam o financiamento
norte-americano, Nasser dirigiu-se a Krushev e conseguiu sua ajuda. Um ano
depois, os Estados Unidos cancelariam suas compras de açúcar cubano e as
empresas Esso, Shell e Texaco se negariam a refinar petróleo soviético em Cuba.
Em ambos os casos, a União Soviética apareceria como
substituta.
O Departamento de Estado considerou a visita ao Egito um sucesso,*
mas Nasser guardaria uma lembrança diferente de sua primeira conversa com o
condottiere. Sem dúvida, o Che se empenhou em não discutir com seus anfitriões,
como recorda Salvador Viliaseca, a quem o argentino apontou especificamente
alguns temas delicados; também instruiu cada membro de sua delegação sobre os
temas que não deviam mencionar, em cada um dos países. Por exemplo, Cuba
realizara uma reforma agrária radical, mas no Egito os visitantes foram proibidos
de tocar no assunto, já que, segundo o Che, muitos dos líderes egípcios eram
latifundiários. "Não vínhamos para brigar, mas, pelo contrário, para fazer
amizades",3 relata Viliaseca.
Contudo, Nasser evoca em suas memórias um breve diálogo sobre a
reforma agrária, muito diferente, suscitado por uma estranha pergunta do Che:
"Quantos refugiados políticos tiveram que deixar o país?". Quando o presidente
respondeu que muito poucos e que a maioria eram "egípcios brancos", pessoas de
outras nacionalidades, naturalizadas, o Che contestou: "Isso significa que não se
fez muito nessa revolução. Eu meço a profundidade da transformação pelo
número de pessoas afetadas por ela e que sentem que não cabem na nova
sociedade". Nasser explicou que pretendia "liquidar os privilégios de uma classe,
mas não os indivíduos dessa classe". Guevara insistiu em seu ponto de vista e, ao
final, pouco resultou da visita. O presidente egípcio dedicou escassa atenção aos
cubanos e sua política.4
A etapa seguinte foi a índia: doze dias dedicados ao turismo (Agra e o Taj
Mahal), à economia (fábricas de aviões e centros de pesquisa) e à sociologia (a
pobreza de Calcutá). O calor mormacento provocou no Che repetidas crises de
asma. Pardo Liada considerou a visita inútil; ele relata um longo jantar com
Nehru, na antiga residência dos vice-reis do Império, onde o Che tentou em vão
extrair do fundador da república alguma reflexão substantiva sobre qual-

(*) "Nesse país [o Egito] a missão foi aparentemente um sucesso." ("Memorandum from the
Deputy Director of Inreiligence and Research to the Secretary of State. Subject:
Che Guevara's mission to Afro-Asian countries", 19/8/50, cit. em Foreign Reiations ofthe UnitedStates
(FRUS), Í958-1960, vol. Vi, p. 590).
quer um dos temas do momento.5 Os serviços de informação de Washington, em
seu balanço sobre a rota guevarista, também apontaram que "não se esta-
beleceram vínculos comerciais com a índia, onde a missão cubana teve pouco
êxito".6 A vasta cultura e sensibilidade do Che lhe permitiram, todavia, interessar-
se pelas complexidades da civilização indiana e abordar seus clássicos dilemas
com mais perspicácia que outros visitantes. Guevara extraiu da experiência
ensinamentos que aplicaria em Cuba, não necessariamente com razão, mas ao
menos com uma lógica inegável: "A base do desenvolvimento económico de um
povo é determinada por seus avanços técnicos".7
No Japão o Che "causou boa impressão", segundo os norte-americanos, embora
tampouco tenha conseguido acordos de comércio ou financiamento.8 A estadia
também durou doze dias e alternou sessões de trabalho — visitas a fábricas,
portos, reuniões com empresários — com turismo cultural (o monte Fuji, lutas de
sumo) e político (Hiroshima, Nagasaki). Mais uma vez a experiência foi
sobretudo didática; vincula-se à bagagem cultural de Guevara e conecta-se com
os objetivos futuros: "E preciso ter presente que, no mundo moderno, a vontade
de realizar é muito mais importante que a existência de matérias-primas [...] Não
há nenhuma razão para não implementar a indústria siderúrgica em nosso país".9
Com efeito, para o Che, o segredo do êxito japonês parecia baseado na vontade;
para que outros repetissem o milagre nipônico, bastaria que superassem esse
prodígio de decisão e disciplina que foi o Império do Sol Nascente. Essas
crónicas de viagem do Che, publicadas no seu regresso a Cuba pela revista das
forças armadas, Verde Olivo, que ele acabara de fundar, não se prestavam a
longas inquisições e finos matizes. Mas salta aos olhos como a sensibilidade
cultural e social do Che ainda superava amplamente seu discernimento
económico e mesmo político.
A aparente admiração pelo regime de Sukamo, na Indonésia, ilustra a defasagem.
O Che estabeleceu a seguinte analogia: "De todos os países visitados, talvez tenha
sido a República da Indonésia o que desenvolveu nos últimos tempos uma
trajetória histórico-social mais semelhante à nossa".10 Pôs lado a lado as lutas
indonésia e cubana pela emancipação nacional; descobriu em Sukamo "um
autêntico líder nacional", que, "interpretando a vontade popular e as necessidades
reais do povo", nega aos "contra-revolucionários o direito de semear a cizânia e
atentar contra o regime, que é expressão da luta armada do povo".'' Situa-o em
uma categoria privilegiada ao indagar: "Não será Fidel Castro um homem de
carne e osso, um Sukamo, um Nehru, um Nasser?"."
Para além das imposições do protocolo, o Che revela nessas passagens uma
incompreensão acerca do povo e dos fatos, uma certa ingenuidade e sua
ansiedade, que conduzirão ao seu fracasso africano de 1965. Sukamo era efeti-
vamente um dirigente nacional, surgido da luta pela independência de seu país, e
na Conferência de Bandung, em 195 5, cumpriu um papel de destaque na criação
do que seria o Movimento dos Países Não Alinhados. Mas, assim como a maioria
dos líderes da descolonização afro-asiática (com exceções como Ho Chi Minh,
Nehru, Nyerere e talvez, por alguns anos, Nasser), também era um político
profundamente corrupto, velhaco e reacionário, que preferia mil vezes conservar
os privilégios da nova elite, à qual pertencia, a organizar as massas desamparadas
de sua pátria e depender delas. Conjugou uma retórica inflamada e a inegável
dignificação da identidade nacional indonésia com um esbanjamento e ostentação
faraónicos; seu autoritarismo conduziu, por fim, ao conhecido e sangrento
desenlace: o contragolpe do general Suharto, em 1965, e o massacre de meio
milhão de comunistas. Não seria o único líder terceiro-mundista a engabelar Che
Guevara. A história da aventura africana de Guevara é, em boa medida, a história
dos sucessivos embustes em que caiu, preso no Congo. Como veremos, a
expedição africana nunca superou a indolência e corrupção de dirigentes
congoleses como Gaston Soumialot, Laurent Kabila e Christopher Gbenye, que
supostamente lideravam a luta de libertação em seu próprio país. O Che acabaria
se dando conta de como estava enganado, mas tarde demais. Em uma carta
inédita, dirigida a Fidel Castro das margens do lago Tanganika em 5 de outubro
de 1965, o Che se refere nos seguintes termos aos líderes congoleses, que tinham
sido recebidos como reis em Havana e nos quais também ele havia depositado
sua confiança:
Soumailot e seus companheiros lhe venderam uma ponte de enormes dimen-
sões. Seria prolixo enumerar a grande quantidade de mentiras que lhe con-
taram [...] Conheço Kabila o bastante para não alimentar nenhuma ilusão
sobre ele [...] tenho alguns antecedentes de Soumailot, como a penca de
mentiras que lhe contou, o fato de que tampouco se digna a vir a estas terras
esquecidas por Deus, os frequentes pileques que toma em Dar-es-Salaam,
onde vive nos melhores hotéis [...] dão somas enormes aos passeadores, de
uma só vez, para que vivam bem em todas as capitais do mundo africano,
sem contar que são alojados por conta dos principais países progressistas,
que muitas vezes lhes pagam os gastos de viagem [...] o uísque e as
mulheres também não figuram nos gastos cobertos pêlos governos amigos, e
isso custa, se a qualidade é boa.*
(*) Ernesto Che Guevara, Pasajesde Ia guerra revolucionaria (el Congo}, Dar es Salaam,
1966, p. 86. Como já assinalamos no capítulo 2 deste livro, o texto do Che, baseado em seus diários
de campanha do Congo, permanece inédito até hoje, embora tenha sido citado frequente e
Quando o Che se
prolixamente, sobretudo no livro El ano en que estuvimos en ninguna parte,
deu conta do caráter de seus aliados no Congo, sua expedição agonizava. A
explicação reside não só em sua ignorância sobre a situação no terreno, mas em
seu afã de desencavar virtudes políticas inexistentes em uma alteridade sempre
encantadora. A alteridade cultural e étnica, envolta na ideologia da "multidão de
irmãos desta parte do mundo que espera [...] o momento de consolidar o bloco e
destruir [...] o domínio colonial", exerceria uma formidável atração sobre o Che.11
Seu compromisso com a Revolução, a política e a luta já é demasiado firme para
que despreze a embalagem ideológica dos objetos de seu desejo ou admiração.
Contudo, trata-se de um homem fascinado em excesso pelo encanto da alteridade,
pelas diferenças que distinguem cada civilização, raça, literatura, arquitetu-ra e
história, para reduzir tudo ao reino da política. A partir dessa viagem, duas
facetas terão que conviver no seio do imaginário guevarista: a afinidade política e
a diversidade cultural. Em vista das insuperáveis dificuldades para inventar uma
alteridade cultural na Europa Oriental ou Ocidental — inexistente para alguém
com os antecedentes familiares do Che —, ou na já conhecida América Latina, e
em razão da escassez mundial de coincidências de cultura e política, seu
horizonte seria cada vez mais povoado por montagens artificiais de convergência
política. Os dirigentes congoleses tinham de ser revolucionários, pois eram
"outros"; os indígenas das alturas bolivianas tinham de estar prontos para
empunhar armas; Mão e os líderes chineses tinham de se dispor a ajudar a
revolução mundial e em particular a africana. As desilusões do Che seriam
inesgotáveis; seu empenho em encontrar novas convergências, perpetuamente
renovado.
Suas passagens pelo Ceilão e pelo Paquistão não merecem maiores co-
mentários, exceto para insistirmos no caráter um tanto quixotesco da viagem.
Permanece inexplicável o fato de o terceiro homem da Revolução Cubana, em
um momento de plena exacerbação das lutas internas e externas da ilha, estar
passeando em Colombo e Karachi, onde passou três dias. Em compensação, a
semana na lugoslávia mostrou-se estimulante em extremo para o Che. Era o
primeiro país socialista que ele visitava, ainda que se tratasse de um socialismo
ligeiramente sui generis; ele identificou alguns aspectos que o atraíram, por lhe
parecerem aplicáveis em Cuba, e de qualquer forma dignos de elogio. Para Gue-
vara, é "talvez o mais interessante de todos os países visitados".14

surgido no México em 1994, editado por Paço Ignacio Taiho II, Froilán Rodríguez e Felix 1-iuerra. A
autenticidade do manuscrito completo da obra, em poder do autor, foi verificada por diversos leitores
que conhecem o texto original, entre eles Jesus Parra, um dos secretários do Che na sien-a Maestra.
Interessante e surpreendente: só coletivizou 15% da terra, apesar de ser um país
"declaradamente comunista";15 goza de "uma liberdade de crítica muito grande,
embora exista apenas um partido político [...] e os jornais [...] logicamente
seguem as orientações governamentais dentro de certa margem de discussão e
polémica [...] Posso assegurar [...] que na lugoslávia há uma ampla margem de
liberdade dentro das limitações impostas pelo domínio de uma classe social sobre
as outras".16 Sua marcada resistência ao modelo da autogestão reside na excessiva
disponibilidade de produtos de luxo, diante da carência de um rumo estratégico
de longo prazo: "Não há em meu juízo uma insistência suficientemente grande
em destacar os grandes rumos da industrialização, o que deveria ser feito em um
país pobre e subdesenvolvido como a lugoslávia".17 Em uma entrevista realizada
trinta anos depois, seu acompanhante Ornar Femández recorda corno o Che
solicitou armas a Tito durante um prolongado almoço em seu pavilhão de caça de
Brioni, pedido que Tito recusou explicando que seu país não produzia armas
suficientes. Dias depois, o Che leu a notícia de uma venda de armas iugos-lavas a
um país árabe: "Bela neutralidade!", ele exclamou.18
Tal como na Bolívia cinco anos mais tarde, é desconcertante que o Che omita por
completo qualquer referência ao nexo entre a localização geopo-lítica da
lugoslávia e seu regime interno. As análises do Che não registram um vínculo
entre as reformas moderadas e os níveis mais elevados de liberdade e consenso,
internamente, e o menor enfrentamento com Washington, externamente. Mais
ainda, brilham pela ausência de qualquer comentário sobre as ações contraditórias
dos Estados Unidos. Assim, no Egito ele não menciona que um fator importante
para a devolução do canal de Suez fora justamente a condenação estadunidense
na ONU, em novembro de 1956, aos preparativos da invasão franco-britânica de
Port Said. Sem a condenação de Washington, o eixo Tel Aviv—Londres—Paris
talvez tivesse revertido a expropriação do canal e conseguido derrubarNasser. O
Che tampouco relaciona os traços "peculiares" do "comunismo" iugoslavo com a
virtual neutralidade do marechal Tito no conflito Leste/Oeste. Ele poderia se opor
ao "socialismo goulash" à lugoslávia (anterior à variante húngara), ou, ao
contrário, louvar o quadro interno que lhe dava margem para uma notável
neutralidade internacional. Optou por simplesmente deixar de lado o papel de
Tito no cenário mundial.
Na realidade, o Che não desejava tratar de nenhum assunto que debilitasse ou
matizasse suas posições ou as de Fidel na luta em Cuba. Reconhecer para o
público cubano a hipotética compatibilidade entre neutrali-
dade e comunismo (ainda que em seguida fosse necessário precisar a definição
deste) poderia esvaziar a firmeza da resistência às investidas norte -americanas. E
talvez tivesse embotado o maniqueísmo necessário para o futuro confronto com
os Estados Unidos (aos olhos do Che, inevitável e desejável). Podemos nos
atrever a insinuar que, em seus primeiros escritos públicos posteriores ao triunfo
da Revolução, o Che já subordinava aos imperativos políticos os temas abordados
e a maneira de abordá-los. Não escondia a verdade, mas adaptava-a às exigências
da briga política cubana.
Não é de estranhar que àquela altura o Che se entregasse de corpo e alma à
Revolução; tudo o mais era acessório. A melhor fonte a respeito é uma carta do
próprio Ernesto, em que abria seu coração para a mulher mais importante de sua
vida, Célia, sua mãe. Em uma insólita comunicação, o Che explica por que ela
não deve estranhar que ele submeta o conteúdo de seus escritos ao objetivo
político perseguido. Convém reproduzi-la na íntegra, já que revela a evolução de
Guevara melhor que qualquer descrição:
Querida velha, um antigo sonho de visitar todos os países se realiza hoje [...]
Além do mais sem Aleida, a quem não pude trazer por um complicado
esquema mental desses que tenho [...] Desenvolveu-se muito em mim o
sentido do coletivo, em contraposição ao pessoal: sou sempre o mesmo
solitário que vai buscando seu caminho sem ajuda de ninguém, mas agora
tenho o sentido de meu dever histórico. Não tenho casa, nem mulher, nem
filhos, nem pais, nem irmãos; meus amigos são amigos enquanto pensam
politicamente como eu; e, contudo, estou contente, sinto-me importante na
vida — não só uma força interior poderosa, que sempre senti, mas também
uma capacidade de influenciar os outros e um absoluto sentido fatalista de
minha missão que me livra de todo medo. Não sei por que lhe escrevo isto,
talvez eu esteja com saudade de Aleida de novo.*
Causa estranheza que um homem recém-casado confie a sua mãe que não
tem esposa, ainda que seja no sentido figurado. Mas a carta revela muitos
sentimentos além das tácitas desventuras matrimoniais. Indica que o Che
decidira, tão conscientemente como só pode sê-lo um homem da sua têmpera,
que sujeitaria tudo na sua vida à devoção por sua causa. Os amores, os

(*) Uma fotocópia do texto original, com o timbre da Air índia, foi entregue a Chichi-na
Ferreyra por José Gonzáiez Aguilar. Chichina a mostrou ao autor. A carta não traz data, mas pelo
itinerário deve ter sido escrita em 2 ou 3 de julho de 1959. (Foi citada em Roberto Massari, Cfie
Guevara: grandeza y risgo de Ia utopia, Navarra, Txalaparta Editorial, 1993, P. 342, e ofac-símile em
Guevara Lynch, Ernesto, Mi ?ii)o, op. cit., 1981, p. 232, e Paço Igna-cio Taibo, Ernesto Guevara, op.
cit.)
amigos, tudo o que é pessoal seria subordinado à sua "missão", ao seu "dever
histórico". Se ele sentia falta de Aleida — citada duas vezes —, também ela
estava em um segundo plano; não ocuparia um lugar central em sua vida. O
"sentido fatalista", que o "livra de todo medo" e o conduziria à morte em La
Higuera, já o impregnou por completo. Por mais que o filho tenha exagerado
para sua mãe alguns dos seus traços mais recentemente assimilados, temos aqui
uma figura com uma clara noção da morte e de possuir um destino próprio. Nada
do que o Che tenha feito a partir de então pode ser abstraído dessas balizas
mentais e emocionais: um desafio à morte e um sentido de destino para a vida.
Em 10 de setembro Guevara regressou a Havana. Muita coisa mudara,
e logo o torvelinho caribenho o envolveu. Começou seu trabalho no INRA,
como diretor de indústrias. Seu cargo adquiriria mais significado por causa da
expropriação de muitas usinas açucareiras (em Cuba chamadas centrais) sob a
égide do INRA; assim, o Che assumia o principal setor da economia do país.* A
princípio, o próprio Fidel e Nunez jiménez, diretor operacional do INRA, se
abstiveram de confirmar em público a designação do Che; não houve nenhum
anúncio público.** Mas Washington já tinha plena consciência dos recentes
reveses.
Contrariamente às nossas esperanças anteriores, as forças moderadas (em
particular o grupo do Banco Nacional) até agora perderam a batalha por
uma influência maior sobre Castro. Nossos inimigos jurados, Raul Castro e
Che Guevara, estão no comando. Podemos contar que acelerarão a reforma
agrária radical, assim como as medidas para destruir ou ferir os interesses
norte-ame-ricanos na mineração, petróleo e serviços públicos.19
Poucos dias depois, em 26 de novembro, tomou-se pública a nomeação de
Ernesto Guevara para diretor do Banco Nacional de Cuba (a instituição central
de emissão de moeda). Durante mais de quatro anos, primeiro no Banco e a
seguir no Ministério da Indústria, o Che responderia pela economia da ilha. Para
o bem e para o mal, um dos fronts decisivos do avanço revolu-

(*) E não só pela economia; em 30 de setembro uma fonte confiável informava à


embaixada dos Estados Unidos que o Che presidira duas reuniões de dirigentes militares, das
quais Raul Castro também participara. (Ver Amembassy Habana to Sec. State, Despatch
509,5/10/59, US Department Files IX, 814-7 (secreto), p. 2.)
(**) A dissimulação de nada serviu. Em um telegrama datado de 2 de setembro de 1959,
uma semana antes do retorno do Che a Havana, o embaixador Philip Bonsal informava a
Washington que Guevara "poderia ocupar um lugar importante nos programas de indus-
trialização" (Bonsal a Rubottom, 2/9/59 (secreto), in FRUS, op. cit., p. 594).

cionário caiu nas mãos de um médico argentino, pró-soviético e radical, com


escassos conhecimentos económicos, mas com uma ideia cristalina do que
queria e uma disciplina e organização únicas em Cuba naquele momento.
A designação do Che para o Banco Central não ocorreu como reza a
anedota, segundo a qual Fidel perguntou em uma reunião quem era econo-
mista e o Che respondeu que ele era, para só depois, tarde demais, esclarecer
que tinha entendido "comunista" em vez de "economista". Fidel Castro
sabia perfeitamente que o Che tinha pouca ou quase nenhuma experiência
em economia, mas os economistas à disposição não mereciam a sua con-
fiança. Das pessoas confiáveis, o Che era quem tinha maiores conheci-
mentos de economia. Já lera algo e tivera alguns meses de experiência no
INRA. Sua viagem em missão relativamente comercial também incluíra
algumas negociações. Portanto, a decisão de confiar-lhe o comando da
economia e a política financeira das novas empresas criadas pelo INRA não
era de todo absurda do ponto de vista político. A morte de Camilo Cienfue-
gos em novembro e a designação definitiva de Raul para a Defesa deixavam
o caudilho sem opção.
O momento também era oportuno para que Castro enviasse um sinal
aos norte'americanos e à oligarquia cubana sobre quem mandava na ilha e
como o fazia. Washington compreendeu antes das mudanças no gabinete,
no fim de novembro, que seus aliados do grupo do Banco Nacional tinham
perdido a batalha no que já era uma guerra. A posse do Che no Banco
Nacional acompanhou outras substituições de liberais por castristas institu-
cionais: Fidel designou Raul Castro para o Ministério da Defesa e Augusto
Martínez Sánchez, secretário de Raul, para o Ministério do Trabalho, visan-
do consolar o PSP de sua estrepitosa derrota nas eleições para o Congresso da
CTC. As mudanças se consolidaram com a detenção e o encarceramento de
Huber Matos, cujo julgamento desencadeou a nova guinada de Fidel para a
esquerda, em novembro. O caso de Matos também deu lugar ao surgimento
do aparato de segurança e do terror em Cuba. Matos foi acusado junto com
outros de conspirar contra a Revolução. As provas apresentadas contra ele
eram proto-soviéticas e tipicamente fabricadas pelos serviços de infor-
mação: rumores, cartas, conversas telefónicas, delações. A verdade da con-
juração nunca foi comprovada; em contrapartida, a oposição de Matos ao
rumo escolhido por Fidel não requeria maior demonstração.
O Che permaneceria à frente do Banco Nacional durante catorze
meses. Nesse período, ele não se ocupou exclusivamente da política mone-
tária, das reservas de divisas ou mesmo da política macroeconômica em seu
conjunto. Além de se ocupar com o exército, a diplomacia e de escrever,
teve aulas de matemática, economia, aviação e, por fim, russo. Porém, as
atividades do banco eram prioritárias; foi aí que se tornaram conhecidas sua
organização, pontualidade e enorme capacidade de trabalho. Aparecia no
escritório no meio da manhã e não o abandonava antes das duas ou três da
madrugada. Sua mesa estava sempre em ordem; despachava papéis com rapi-
dez e por algum tempo a verbosidade típica de seus colaboradores cubanos
foi banida de alguns escritórios.
No mesmo ano consolidaram-se dois outros aspectos em sua vida
diária: sua eterna irreverência e as intermináveis conversas noturnas, às
vezes conspirativas, às vezes simples bate-papos: qualquer um podia visitá-
lo no seu escritório do banco para conversar sobre o que quer que fosse. Sua
irreverência configurou-se nas famosas emissões de notas cubanas assinadas
"Che". Criticado por isso por um correspondente cubano, contestou: "Se
minha maneira de assinar não é a de costume entre os presidentes de banco
[...] isso não significa de modo algum que eu dê menos importância ao do-
cumento, mas que o processo revolucionário ainda não terminou e, além do
mais, que precisamos mudar nossa escala de valores".20
A vocação iconoclasta do Che se refletia na informalidade de seus tra-
jes e na maneira como tratava seus interlocutores. Recebia seus visitantes
sempre vestido de verde-oliva, às vezes com os pés sobre a mesa de trabalho.
Obrigava os interlocutores com quem antipatizava a intermináveis esperas
na ante-sala, e mantinha relações de igualdade e camaradagem com seus
subalternos. Tratava-se, como quase tudo o que se referia ao Che, de uma
irreverência maquinada, apenas parcialmente espontânea: o argentino
tratava de projetar uma imagem e confirmar a que tinha de si mesmo. A
irreverência não afetava a essência de seu trabalho; pelo contrário, o Che
desses meses será lembrado por sua seriedade no estudo dos documentos, sua
pontualidade, eficiência e empenho.
Muitos conservam também a lembrança da impressionante versatili-
dade intelectual do Che, de sua verdadeira inclinação pelo universal. Todos
os temas, todos os países, todas as personalidades o atraíam — uns mais,
outros menos. Em primeiro lugar estavam os argentinos, fossem revolu-
cionários ou intelectuais. Mas naqueles anos proliferavam no mundo da
esquerda latino-americana, europeia e estadunidense os "amigos do Che",
os quais recebia à meia-noite em seus aposentos, com o chimarrão na mão e
o charuto na boca, descontraído e ávido de informação, de ideias, de
mensagens. Por ali desfilaram Sartre e Simone de Beauvoir, René Dumont
e Charles Bettelheim, John Gerassi e C. Wright Mills, Ernesto Sabato e
Lázaro Cárdenas. Ali se tramaram incontáveis conspirações, cumplicidades
e projetos disparatados; ali também se construíram lealdades e afeições que
sobreviveriam ao Che e à sua tragédia.
Guevara ocupava-se do banco sem ter maiores conhecimentos econó-
micos; por isso, suas primeiras determinações foram prudentes e relativa-
mente ortodoxas. A preocupação inicial foi proteger as magras divisas
disponíveis: limitou as importações, a começar pelos artigos de luxo; acele-
rou as vendas de açúcar no primeiro trimestre de 1960, para acumular reser-
vas, e procurou substituir algumas compras em dinheiro por permutas ou
acordos de longo prazo. A necessidade de poupar divisas, escapar da camisa-
de-força dos pagamentos em dólares ou moedas mais fortes, as delícias
aparentes do escambo e da "zona do rublo" marcariam sua estreia na gestão
governamental. A exiguidade de recursos seria uma obsessão, e em mais de
uma ocasião ele se deixou cativar pela tentação de soluções rápidas e simples
contra o calvário do dólar como intrumento internacional de câmbio.
A ideologia conduziu-o a certos disparates iniciais, como, por exem-
plo, a redução imediata dos salários e vencimentos daquela que era — como
em quase todos os países latino-americanos — uma burocracia honesta,
competente, conservadora e bem paga. Ernesto Betancourt, subdiretor do
banco no momento da posse do Che, que renunciaria em três semanas,
recorda-o com respeito e afeto, simultaneamente ingénuo e eficiente. A for-
ma como tratou da questão sobre os elevados honorários dos funcionários do
banco ilustra essa combinação. A secretária de Betancourt ganhava na
ocasião 375 dólares por mês. Chegou o Che e exclamou: "O maior salário
que se deve pagar aqui é 350 dólares, ninguém deve ganhar mais de 350
dólares". O chefe dos empregados explicou que muitos haviam comprado
casas e tinham um nível de vida que exigia uma renda mais alta; simples-
mente iriam embora. "Não me importa, podem ir; traremos estivadores ou
canavieiros para fazer aqui o trabalho do campo, e lhes pagaremos esse
salário." Depois se deu conta das asneiras que os "proletários" fizeram, e
mudou de ideia.21
O mesmo ocorreu com a retirada de Cuba do Fundo Monetário Inter-
nacional. Vendo-se obrigado a dar instruções a seu subdiretor sobre o voto
de Cuba no Fundo, o Che decidiu se opor à recomendação técnica dos espe-
cialistas. Betancourt recorda o seguinte diálogo:
"Não, veja, vamos deixar eventualmente o Fundo Monetário porque vamos
nos unir com a União Soviética, que está 25 anos à frente dos Estados Unidos
em tecnologia."
"Comandante", disse eu, "se é decisão do governo retirar-se do Fundo Mo-
netário, perfeito. Eu quero que você tenha clara só uma coisa: nós temos neste
momento um empréstimo de 25 milhões de dólares do Fundo Monetário, que
teremos de pagar se nos retirarmos, e não nos resta nada além de 70 milhões de
reservas. Neste momento não nos convém esgotar essas reservas, pois estamos
no final do ano e até que comece a safra de janeiro não entrarão mais dólares."
"Ah! mas eu não sabia, me disseram que não nos emprestaram nada."
"Informaram-lhe errado", disse eu, "Quem nunca emprestou dinheiro a
Cuba, nem no governo de Batista nem agora, foi o Banco Mundial, mas o Fun-
do Monetário emprestou."
O Che mudou de ideia; Cuba se retirou do Fundo Monetário um ano
depois.22
Guevara ainda não se imbuíra das teorias económicas que um grupo de
assessores marxistas chilenos, mexicanos e argentinos logo lhe impingiria,
muito menos das ideias soviéticas das quais se aproximaria no futuro.
Procurou operar com a equipe demissionária do banco; por desgraça, seus
integrantes decidiram partir, primeiro para casa, depois para Miami. Tanto
por motivos ligados à prisão de Matos e à remoção de Felipe Pazos como por
resistência a avalizar a política do Che, a maioria dos funcionários paulati-
namente se retirou do Banco Central. O Che aprendia rápido,* mas assim
mesmo precisava de técnicos e começou a convocar os que se achavam
disponíveis. Estes adotaram as suas prioridades mais éticas e políticas do que
económicas. Betancourt assim o recorda:
O Che jamais foi um marxista integrado. Era um típico esquerdista latino-
americano, com noções marxistas mas sem formação de partido. Tanto assim
que chegou ao banco e, sabendo que seus conhecimentos de economia mar-
xista eram limitados, pediu umas aulas a Juanito Noyola, um economista
marxista mexicano. O Che era muito sistemático em relação a tudo, e assistia
às aulas de Juanito duas vezes por semana, para que este lhe explicasse os ele-
mentos da economia marxista.2'
Naquele tempo, como agora, as grandes teses do desenvolvimento
económico da América Latina partiam de alguns eixos simples: a industria-
lização via substituição de importações, a diversificação dos mercados, dos

(*) Segundo um dos assessores argentinos, Néstor Lavergne, "o Che acompanhou um
seminário de economia em que se dedicou uma grande parte do tempo ao estudo de O capi-
tal. Foi apresentado por Anastasio Mancilla, um doutor, espanhol soviético, um refugiado
que era realmente um brilhante conhecedor da economia marxista" (Entrevista com o autor,
Buenos Aires, 16/2/95).
investimentos e dos produtos de exportação; um papel económico determi-
nante ou pelo menos central para o Estado, e a necessidade de uma reforma
agrária significativa — mais ou menos radical, dependendo do país. Nisso
consistia o chamado consenso da Comissão Económica para a América
Latina (CEPAL). A esquerda latino-americana se distinguia do CEPAL basica-
mente por critérios quantitativos: industrialização maior e mais rápida,
diversificação maior e mais profunda, uma reforma agrária mais drástica e
um Estado, mais poderoso, que interviesse mais na economia e na sociedade.
O Che, em um primeiro momento, não tinha ideias sobre economia
muito mais ambiciosas e audazes que as da CEPAL. Contemplava medidas
semelhantes às sugeridas por seus assessores de esquerda, como Noyola, o
chileno Alban Lataste, o equatoriano Raul Maldonado, e o argentino La-
vergne, entre outros. Entre elas, segundo Maldonado, destacava-se a ambição
de monopolizar o comércio externo, que representava a metade do produto
nacional da ilha. O projeto do Che para o Banco Nacional consistia justa-
mente em transformá-lo em uma espécie de Banco do Comércio Exterior.24
O Che comprovaria paulatinamente que o monopólio dos intercâmbios
externos era uma condição sine qua non para uma relação institucional com
a União Soviética, como a que se propôs negociar em fins de 1960, durante
sua visita aos países socialistas. Porém, a estratégia política do confronto
com os Estados Unidos e com a oligarquia cubana despedaçaria toda articu-
lação estritamente económica, e esse era o ponto fraco — ou forte, conforme
o ponto de vista — da ideologia do Che. Até o fim de seus dias ele pensaria
que a esfera económica devia ocupar um lugar secundário na política e na
vida dos homens. Impregnado de um pensamento mais ético e humanista
que marxista e histórico, insistiria sempre na necessidade de abolir as
relações mercantis ou baseadas no dinheiro. Buscaria constantemente fazer
com que as sociedades fossem regidas por outro tipo de regras. Daí a escala-
da contra os norte-americanos em torno de vários temas: a cota de açúcar, o
refino do petróleo soviético, a compra de armas na Europa e depois na União
Soviética e a expropriação de ativos norte-americanos.
Em todas essas frentes produziu-se uma inevitável radicalização política
do regime e uma ruptura gradual com os Estados Unidos. Para o Che tratava-
se de fins em si mesmos e poderosas alavancas transformadoras, uma tese
■que ele chegou a partilhar com Castro, mas com ritmo e modo próprios.
O^mo ele proclamava, "a presença de um inimigo estimula a euforia revo-
lucionária e cria as condições necessárias para realizar mudanças de fundo".25
Em um documento secreto datado de 23 de março de 1960, o diretor da Cen-
trai de Informação dos Estados Unidos resumia a situação de Cuba e ilus-
trava o papel do Che no antagonismo com Washington, atribuído justa-
mente a suas posições: "Sob a direção de Raul Castro e a influência de Che
Guevara, as forças armadas, a polícia e as agências de informação foram
unificadas, purgadas de profissionais da época de Batista e outros elementos
anticomunistas e submetidas a um processo de doutrinamento comunista;
treina-se e arma-se uma milícia civil de operários e camponeses".26
O confronto com os Estados Unidos, assim como a necessidade impe-
riosa de encontrar outros compradores de açúcar, possibilitava a aproxi-
mação com a União Soviética, aos olhos do Che necessária e desejável. Por
fim, ele esperava que tudo aquilo permitiria ampliar a força do Estado
cubano na economia, não tanto como uma meta, mas como um avanço
rumo ao banimento do aspecto económico das relações humanas. Se o Esta-
do controlar tudo, as relações entre os homens não melhorarão porque
estarão livres de problemas envolvendo dinheiro, salário, competição e
rivalidade.
O processo de expropriação de terras se acelerara nos últimos meses de
1959, em parte graças à mobilização camponesa e às guinadas para a esquer
da de Fidel Castro. As indenizações se faziam esperar, e quando eram for
malizadas careciam por completo dos requisitos solicitados pelos Estados
Unidos: não eram imediatas, nem adequadas, nem efetivas. As tensões
internas e externas se exacerbavam, e assim seria durante todo o ano de
1960, particularmente entre janeiro e julho. Nesse último mês coincidiram
dois acontecimentos cruciais: os Estados Unidos cancelaram a compra da
cota governamental de açúcar; e Castro confiscou as refinarias do país por
se recusarem a refinar o petróleo soviético que substituiria o venezuelano.
O Che cumpriu um papel decisivo na crise de julho de 1960 e na solução
soviética que foi aplicada.
As relações com Moscou se estabeleceram desde o início. Em outubro
de 1959, António Nuftez Jiménez foi abordado por um personagem-chave
de nosso relato: Alexander Alexeiev, um homem inteligente e sensível, que
35 anos depois tinha um grande carinho por Cuba e os cubanos, assim como
pela Revolução, que lhe permitiu aproximar-se do trópico e de sua história.
Ele chegou a Havana em 1" de outubro de 1959, enviado formalmente como
funcionário do Ministério de Relações Exteriores da União Soviética, junto
com uma delegação de jornalistas cubanos e com visto de jornalista. Por
isso era visto como correspondente de imprensa, mas nunca dissimulou sua
verdadeira missão.* Conseguiu uma audiência com Fidel, para entregar-lhe
um presente e estabelecer contato em nome do governo soviético. Reuniu-
se antes com o Che, a quem considerou "quase um comunista":27 "Foi o
primeiro dirigente cubano que me recebeu, em 12 de outubro de 1959, no
INRA".28 Segundo Alexeiev, "nossas avaliações em relação a diferentes acon-
tecimentos mundiais se mostraram idênticas, sem divergências de crité-
rios".29 O Che se encarregou de articular rapidamente o encontro com Cas-
tro, que aconteceu em 16 de outubro.
Da conversa com Castro surgiu uma ideia. Depois de sua passagem por
Nova York e as Nações Unidas, em novembro, o vice-primeiro-ministro da
União Soviética, Anastas Mikoyan, tinha prevista uma viagem ao México
para inaugurar uma exposição industrial soviética. A exposição poderia ser
levada em seguida para Havana; Mikoyan compareceria à inauguração. Os
dados sobre a autoria da iniciativa sobre a exposição são obscuros; Nufíez
Jiménez a atribui a Camilo Cienfuegos.** Castro, por sua vez, apresentou-a
ao soviético como uma ideia de Nunez Jiménez, que visitara a exposição em
Nova York. De qualquer forma, Alexeiev incontinenti viajou ao México
para tratar do assunto com Mikoyan, que aceitou de imediato; fixou-se pre-
liminarmente a data de 28 de novembro. Mas logo os cubanos preferiram
que a visita soviética não coincidisse com um congresso religioso convoca-
do para a ocasião, e tudo foi adiado para o ano seguinte. Ramiro Valdés, o
homem do Che, e Héctor Rodríguez Llompart, um colaborador de Carlos
Rafael Rodríguez, deslocaram-se para o México visando reprogramar a
agenda.'0 Em poucos meses foi confirmado que Mikoyan compareceria à
inauguração da Feira Industrial de Havana, em 3 de fevereiro de 1960.
Aqui entra em cena outro curioso personagem soviético: Nikolai
Leonov, o funcionário da KGB que conhecera Raul Castro em Viena, em
1953, e o Che no México, em 1956. Leonov acompanhou Mikoyan ao Mé-
xico em 1959, como intérprete e guarda-costas, e escoltou-o também quan-
do o número 2 da União Soviética viajou a Cuba. Recebeu uma delicada

(*) Segundo várias fontes, desde a Segunda Guerra Mundial Alexeiev trabalhava para
os serviços de informação da União Soviética. É a opinião, entre outros, de Karen A.
Jachaturov, ex-diretor da agência de notícias soviética Novosti, de quem se diz o mesmo
(Entrevista com o autor, 1/11/95).
(**) Ver Nunez, En marcha con Fidel, Havana, Letras Cubanas, p. 318. Segundo
Georgie Anne Geyer, a ideia da exposição foi de Fidel, ao passo que a visita de Mikoyan foi
sugerida por Alexeiev. (Ver Georgie Anne Geyer, Guerrilla Prince, Boston, Little, Brown,
1991, p. 250.)
missão: escolher os presentes para os anfitriões cubanos; "Para o Che, que
gostava de armas, compramos duas, uma excelente pistola e uma pistola de
modelo esportivo de alta precisão, com munição. Para Raul comprei um
jogo de xadrez, pois era muito bom enxadrista"." Chegando a Havana,
Leonov procurou o Che em sua casa de Ciudad Libertad, onde — para
desconcerto do russo — seus auxiliares despertaram o argentino, no meio da
manhã. Cumprimentaram-se como velhos conhecidos, talvez com mais
afeto e afinidade do que merecia a fugaz relação mexicana. Haviam transcor-
rido apenas quatro anos desde o encontro anterior, mas que diferença!
Como lembra o russo, "abrimos as caixas com as armas e ele as experimen-
tou, sem disparar; gostou".12
O Che desempenhou um papel de destaque nas negociações com
Mikoyan, sobretudo no momento dos acordos sobre o montante, a duração
e o sentido estratégico da cooperação soviética. Depois da recepção a
Mikoyan no aeroporto, o encontro seguinte foi secreto e histórico. Assim o
relata Leonov:
O Che esteve presente na conversa-chave, que se realizou em uma casinha de
pescador que Fidel tinha na Laguna dei Tesoro. Fizemos a viagem em um
helicóptero soviético que fazia parte da exposição. Fidel chamou o Che como
acompanhante, a segunda pessoa da delegação cubana. Na delegação russa
estavam Mikoyan, o embaixador da União Soviética no México, e eu como
intérprete, com a missão de traduzir e tomar notas, pois não tínhamos grava-
dores por razões de segurança. O helicóptero aterrissou no terreiro daquela
casinha de pescador, onde ficamos todos. A conversa se desenvolveu em uma
situação absolutamente espetacular: nem sequer ficamos sentados, mas pas-
seando pelo terreno, por cima dos pântanos, ouvindo o ronco do sapo-boi, os
sons da noite tropical. A agenda se limitou a dois ou três pontos básicos. Aber-
tura de relações: era fevereiro, não tínhamos embaixada, Mikoyan disse que
para manter contato era preciso abrir uma embaixada, lá e aqui, para ter um
contato formal; isso se resolveu rapidamente. Depois surgiu outra pergunta, o
crédito; aqui Che Guevara participou, apoiando a tese de Fidel. A essência foi
que Mikoyan tinha instruções para prometer nada mais que 100 milhões de
dólares. Fidel dizia que era pouco, que com 100 milhões de dólares não se pode
começar a reorganização de toda a vida económica, em pleno conflito com os
Estados Unidos. O que se colocava era a reorganização económica de Cuba no
campo socialista, e 100 milhões de dólares era pouco. Mikoyan disse: "Bom,
esgotemos esses 100 milhões e continuaremos falando sobre aumentá-los". O
Che dizia: "Quando se dá um passo histórico, é melhor ter uma decisão muito
mais profunda, de maior segurança para o futuro, não é brincadeira reorientar
um país de um lado para outro. Se vocês nos deixam na metade do caminho,
com 100 ou 200 milhões de dólares, isso não resolve nada"."
Na opinião de Alexeiev, "o Che foi o principal arquiteto da colabo-
ração económica soviético-cubana",14 mas não necessariamente em todos os
seus aspectos. As vendas de armas soviéticas a Cuba, por exemplo, não foram
negociadas durante a visita de Mikoyan.* De acordo com Alexeiev, foi só
um mês mais tarde, após a explosão do barco francês La Coubre, em Havana,
no dia 4 de março, quando morreram mais de cem cubanos e se destruiu um
carregamento inteiro de fuzis e munições, que Castro pediu secretamente
armas à União Soviética, via Alexeiev." Raul Castro negociaria o traslado
em julho do mesmo ano, em Moscou.
O regime revolucionário alcançou vários objetivos graças à visita de
Mikoyan. Obteve 100 milhões de dólares de créditos não comprometidos;
consolidou o compromisso da União Soviética de continuar comprando
açúcar (uma pequena transação fora negociada antes e, na realidade, desde
a época de Batista, Moscou era cliente da ilha açucareira), além de estabe-
lecer relações diplomáticas. Faure Chomón, o ex-dirigente do Diretório que
combateu ao lado do Che em Santa Cruz, foi nomeado embaixador de Cuba
em Moscou. Sergei Kudriavtsev, antes responsável por uma missão de espio-
nagem no Canadá, representaria seu país em Havana. E, finalmente, os
cubanos asseguraram a entrega de petróleo soviético em volume significa-
tivo e crescente, em troca do açúcar que a União Soviética compraria.
A situação do petróleo cubano era desesperadora, e os problemas que
acarretava representaram a primeira experiência de conflito internacional
de Che Guevara. As refinarias norte-americanas importavam óleo da
Venezuela e o vendiam aos consumidores, em pesos que trocavam no Banco
Nacional para, por sua vez, reembolsarem os fornecedores venezuelanos. O
Che ia acumulando atrasos no pagamento das companhias, e estas come-
çaram a pressioná-lo. A primeira entrega de óleo soviético chegou ao porto
de Havana em 19 de abril de 1960: um carregamento pequeno, fruto da
viagem de Mikoyan. As negociações com as empresas não prosperaram; o
representante destas, Tex Brewer, queixava-se amargamente das ameaças e
da teimosia de Guevara. Por fim, o Che aceitou comprometer um saldo do
pagamento de contas anteriores, com a condição de que as refinarias com-
prassem 300 mil barris de petróleo soviético. Em conluio com o Tesouro
norte-americano, e sem consultar a embaixada dos Estados Unidos em

(*) "De armamentos definitivamente não se falou. Falou-se de conselheiros, conse-


lheiros de todo tipo, tanto civis como em outros campos da construção [...] e esse foi o terceiro
ponto ahordado. E com isso terminamos, pois o Che, se bem me lembro, regressou a Havana.
A conversa deixou todos contentes" (Nikolai Leonov, op. cit.).
Havana, as empresas se recusaram a refinar o óleo cru soviético. Em 6 de ju-
lho o embaixador norte-americano, Philip Bonsal, informou em um telegra-
ma "só para seus olhos" a seu superior em Washington, sobre um encontro
com Brewer:
A política de sua empresa [a Esso] tem sido, partindo da premissa de que o go-
verno dos Estados Unidos não se imiscuiria no tema, que seria inevitável refi-
nar o óleo russo, tal como desejava o governo cubano. A premissa, no entanto,
era falsa. Em uma reunião realizada talvez em 3 de junho, no escritório do
secretário do Tesouro, Anderson, com Tom Mann representando o Departa-
mento de Estado e o sr. Barnes a CIA, a Texaco e a Esso foram informadas de
que uma negativa a refinar o petróleo russo seria coerente com a política dos
Estados Unidos para com Cuba [...] Creio que o governo de Cuba intervirá nas
refinarias e tratará de aumentar as entregas soviéticas [...] Se conseguir operar
as refinarias e manter um fluxo adequado de produtos, terá alcançado um
triunfo significativo, semelhante ao do Egito quando demonstrou sua capaci-
dade de operar o canal de Suez.*
Um telegrama do embaixador inglês ao Foreign Office, de 22 de junho,
enfatizou o papel do Che em toda a negociação e seu desenlace. Guevara
compreendeu claramente que "existe uma potência que tem o petróleo, os
navios para transportá-lo, a vontade e a decisão de fazê-lo". O enviado de
Sua Majestade deduziu a conclusão apropriada: "Se é assim, não vejo como
a pressão diplomática e a ameaça de cortar o fornecimento possam surtir o
menor efeito".36 Castro procedeu conforme essa lógica, ordenando que as
refinarias processassem o petróleo da URSS, ou arcariam com as consequên-
cias; em 29 de junho nacionalizou-as, em uma decisão anunciada pelo Che.
Este se saíra bem em seu primeiro enfrentamento internacional. O rumo que
propunha era correto: o confronto inevitável com Washington permitiu
que os adeptos da Revolução se conscientizassem e radicalizassem, e o apoio
de Moscou mostrou-se decisivo e confiável. O Che atuou em grande estilo.

(*) Bonsal a Rubottom, 6/6/60 (secreto). FRUS. Um testemunho oficial confirma que
as empresas foram utilizadas para propiciar um enfrentamento com a Revolução. Provém do
comentário que o representante da Royal Dutch Shell apresenta sobre uma reunião no For-
eign Office, em Londres: "O sr. Stephens explicou que esperava que o governo de Sua Majes-
tade [H M G] se unisse aos governos da Holanda e do Canadá caso fosse adotada alguma ação
diplomática conjunta. Considerou que, como o Departamento de Estado havia decidida-
mente promovido a ação das empresas americanas como uma poderosa contribuição
económica para a queda de Castro, cabia a elas atuar primeiro, inclusive antes que os cubanos
tomassem medidas específicas contra as companhias" (Foreign Office 371/148295, Record
of Meeting, June 20 in Sir Paul Gore-Booth's Room (secreto), p. 8, 20/6/60).
Dias depois, a administração Eisenhower suspendeu as compras de açú-
car cubano; o Che e Castro, invocando os acordos subscritos com Mikoian
em fevereiro, solicitaram a Krushev que realizasse ao menos uma compra
simbólica da cota norte-americana anterior. Graças ao trabalho prévio e à
simpatia de Nikita Krushev pela Revolução Cubana (não necessariamente
partilhada pelo restante da direção soviética), às seis horas da manhã
seguinte o Kremlin anunciou a decisão de adquirir a totalidade da cota
norte-americana daquele ano.''
É preciso introduzir um fator adicional na descrição dos motivos de
Nikita. Embora Cuba pouco soubesse sobre isso e pouco se importasse,
Moscou estava empenhada no conflito sino-soviético. Em 21 de junho cele-
brara-se em Bucarest o Congresso do Partido Comunista (Operário) da
Roménia, no qual se deu o primeiro enfrentamento público entre os grandes
do socialismo real. Em particular, Krushev tachou os membros da delegação
chinesa de "loucos", "trotskistas" e "belicistas".18 O Comité Central do Par-
tido Comunista da União Soviética reuniu-se justamente em 11 de junho
de 1960; a sessão plenária aprovou a proposta de Krushev de retirar todos os
técnicos soviéticos da China. Como assinalou em 1970 o jornalista francês
K. S. Karol, o apoio a Cuba foi a cartada perfeita para a direção russa desen-
cadear sua ofensiva antichinesa. Ninguém poderia acusar os soviéticos de
frouxidão perante os Estados Unidos ou falta de solidariedade aos países do
Terceiro Mundo, no preciso momento em que eles salvavam Cuba do
ostracismo e da ruína económica.'9
O Che lançara desde o princípio de 1960 uma campanha contra a cota
de açúcar, comparando-a a uma forma de escravidão que obrigava Cuba a
continuar produzindo cana. Agora, podia vangloriar-se de seu triunfo.*
Ninguém mais do que ele buscou a interrupção da cota. Conduziu a aproxi-
mação com a União Soviética, dirigiu as negociações económicas com
Mikoian em fevereiro e por fim conseguiu a substituição de Washington por
Moscou. Em 9 de junho, no auge do confronto de Havana com Washington
em torno do petróleo e do açúcar, Nikita Krushev declarou em Moscou que
os artilheiros soviéticos defenderiam Cuba com mísseis caso fosse neces-
sário. Castro confirmou a oferta russa, embora advertisse que ela devia ser
interpretada "metaforicamente".

(*) O Che pensava inclusive que os Estados Unidos não poderiam cancelar a cota: "É
impossível tirá-la [a cota de açúcar], porque Cuba é o maior, o mais eficaz e barato fornecedor
ue açúcar dos Estados Unidos [...] É impossível liquidar a cota de açúcar" (Ernesto Che Gue-
vara, "La guerra de guerrillas", em Escritos y discursos, op. cit., t. 1, p. 182).
Guevara, que nunca se deixou ficar para trás, logo declarou: "Cuba é,
hoje, uma gloriosa ilha no centro do Caribe, defendida pelos mísseis da
maior potência militar da história".40 Por certo os dirigentes modularam dias
depois o tom de sua belicosidade.
Fidel esclareceu que a independência de Cuba se apoiava na justeza de
sua causa e não nos mísseis soviéticos. O Che sublinhou que qualquer ten-
tativa de transformar Cuba em um satélite soviético encontraria resistên-
cia.41 Mas era natural que, após as visitas particulares à URSS de Nufiez
Jiménez, em junho, e Raul Castro, em julho, o comandante Ernesto Gue-
vara liderasse a primeira delegação oficial cubana à União Soviética, em
outubro de 1960. Seria o ponto culminante do entusiasmo guevarista com o
socialismo de fato existente.
Fidel e o Che criaram, por meio das negociações com a União Sovié-
tica, as condições para o aguçamento do antagonismo com os Estados
Unidos. Já dispunham de uma rede de segurança, tanto em matéria de ven-
da de açúcar como de abastecimento de petróleo, e, a seguir, de armas. Po-
diam empreender o endurecimento interno, um castigo que não envolveu
diretamente o Che, mas contou com seu apoio e em certa medida foi inspi-
rado por ele. Foi o Che inclusive quem criou o primeiro "campo de trabalho"
em Cuba, naquele período, precisamente em Guanahacabibes.42 Embora ele
próprio tenha passado alguns dias ali, voluntariamente, estava estabele-
cendo um dos mais odiosos precedentes da Revolução Cubana: o confina-
mento de dissidentes, homossexuais e, mais tarde, aidéticos. Sua justificação
posterior é franca, precisa e lamentável:
Só em casos duvidosos se envia a Guanahacabibes gente que deveria ir para a
cadeia. Eu acredito que quem deve ir para a cadeia deve ir para a cadeia, de
qualquer maneira. Seja um velho militante, seja quem for, deve ir para a ca-
deia. Para Guanahacabibes enviam-se pessoas que não devem ir para a cadeia,
gente que atentou contra a moral revolucionária, em maior ou menor grau,
com sanções simultâneas de privação de cargos, em outros casos não, sempre
como um tipo de reeducação por meio do trabalho. Trabalho duro, não tra-
balho bestial, mas condições de trabalho duras sem serem bestiais [...]4)
A liberdade de imprensa foi limitada. Vários jornais fecharam, e as
principais estações de rádio foram requisitadas pelo governo. A universi-
dade foi pressionada a alinhar-se com o regime; os professores apartidários
abandonaram o país. A radicalização naturalmente atingiu os dois lados. A
oposição ao regime, alimentada por Washington e pelas tradicionais
paixões políticas cubanas, chegou a extremos insuspeitados. Reformistas do
Vinte e Seis de Julho se uniram a ex-colaboradores de Batista, preferidos pela
CIA, para combater seus novos inimigos, os irmãos Castro e Che Guevara. A
contra-revolução passou a ações mais drásticas: a sabotagem, a queima da
safra, os assassinatos de milicianos alfabetizadores no Escambray e várias
expedições armadas enviadas do exterior. Os Estados Unidos puseram em
marcha decisões irreversíveis; buscavam a derrubada de Fidel Castro, fosse
como fosse. Puseram-se em movimento os preparativos que desembocariam
na agressão de playa Girón [baía dos Porcos]. Uma voragem se apoderava de
todos; mas alguns sabiam aonde ela conduzia, outros não.
O Che era um dos que sabiam, e isso lhe dava uma força política colos-
sal. Em um telegrama secreto (só para os olhos de seu superior em Washing-
ton), o embaixador dos Estados Unidos informava em julho sobre o boato
de que o Che patrocinara uma espécie de golpe de Estado. Não se atrevia a
confirmar a informação, mas esclarecia: "Estou convencido de que Guevara
é o verdadeiro governante deste país neste momento, embora não possa go-
vernar por muito tempo sem Fidel".44 Em 8 de agosto, a revista Time dedicou
sua capa ao Che: conferia-lhe o título de Cérebro da Revolução, sendo Fidel
o coração e Raul o punho.45 A revista de Henry Luce pontificava: "Ele é o
mais brilhante e o mais perigoso dos membros do triunvirato. Portador de
um sorriso de doçura melancólica, que muitas mulheres acham devastador,
o Che conduz Cuba com calculismo gélido, vasta competência, uma
inteligência elevada e um grande senso de humor".46
Assim, quando Che Guevara aterrissou em 22 de outubro de 1960 em
Moscou, tinha o mundo e Cuba na mão. Vinha ratificar e aprofundar os pro-
gramas de cooperação com a URSS; era a segunda etapa de uma turnê que
duraria dois meses — outra vez uma longa ausência de Cuba. Novamente a
distância, a alteridade e a inquietação o atraíam. Deixou para trás Aleida,
grávida de oito meses, uma situação económica precária e uma série de "pro-
jetos internacionalistas" pendentes. Não importava: navegar era preciso.
A viagem fora preparada com antecipação. Desde 1" de setembro o
Che informou ao recém-chegado embaixador soviético em Havana que iria
liderar a delegação a Moscou.47 Seu primeiro objetivo concreto era garantir
que a URSS comprasse o açúcar que os Estados Unidos iriam adquirir no ano
seguinte. Guevara colocou sua preocupação para o embaixador soviético: os
Estados Unidos não levariam os 3 milhões de toneladas de açúcar previstos
para 1961, e portanto Cuba esperava que a URSS suprisse o rombo na deman-
da.48 O diretor do Banco Nacional enquadrou a solicitação cubana em um
esquema de integração dentro do bloco socialista e colocou a possibilidade
de realizar "conferências ou encontros em Moscou com representantes de
outros países socialistas". A visita também serviria para resolver alguns
assuntos específicos e outros um tanto espinhosos, como a solicitação de
especialistas financeiros soviéticos (uma espécie de contradição in adjectio),
já que Fidel Castro tinha a intenção de nacionalizar no final do ano todos os
bancos privados. Por último, figurava na agenda a revenda de gasolina
cubana a outros países, como o Canadá, a partir dos excedentes
de petróleo soviético (um ardil que duraria até fins dos anos 80, proporcio-
nando a Cuba uma soma nada desprezível de divisas) ,49
Antes da visita a Moscou programou-se uma escala na Tchecoslo-
váquia, onde se deu o primeiro encontro do argentino com um país do Pacto
de Varsóvia. Ali o Che assinou um convénio de cooperação que compreen-
dia uma linha de crédito de 20 milhões de dólares e o estabelecimento da
indústria automotiva tcheca em Cuba (basicamente caminhões e tratores).
A estadia na URSS durou pouco mais de duas semanas. A delegação cubana
percorreu os lugares obrigatórios: a casa-museu de Lenin, o metro de
Moscou, o mausoléu de Lenin e Stalin, a praça Vermelha no dia do aniver
sário da Revolução de Outubro, oito fábricas moscovitas e um sovkhoz nos
arredores da capital. Os cubanos também assistiram a um concerto da filar
mônica e duas apresentações do Bale Bolshoi. A viagem incluiu entrevista
com Krushev e Mikoian, para conversar, entre outras coisas, sobre a eleiçãd
de john Kennedy para a presidência dos Estados Unidos, que acabara dt
ocorrer, além do percurso obrigatório pelas diversas instâncias do aparate
soviético (a editora de literatura estrangeira, um encontro com o cosmo
nauta Yuri Gagarin, a casa da amizade entre os povos, a universidade, uit
hospital, um circo). A seguir partiram para Leningrado, onde visitaram n
Instituto Smolny e o encouraçado Aurora, o Hermitage e o Palácio de Invei
no, para depois se dirigirem a Stalingrado e a Rostov, às margens do Don.
Ou seja, o Che teve o clássico tour de amigo da heróica URSS socialisfc
Uma revisão cuidadosa do programa de sua visita sugere que faltavam coro
promissos que saturassem a agenda, e foi preciso inventar pretextos, dis
trações e atividades "de recheio", mas, por outro lado, tratou-se de impedi:
que o visitante tivesse tempo livre para dedicar a outras coisas e outra gente'
Claro que o Che não consegue romper o cerco de seus anfitriões e n»
chega a conhecer nenhuma típica residência soviética, nem o campo,i
Sibéria ou qualquer aspecto da vida do país que fosse menos glorioso e alei-
tador. Os soviéticos consideraram esse isolamento perfeito, justificando sa
"falta de contato com as pessoas humildes da rua" com a alegação de que sai
hóspede era "um desses populistas". O Che dedicou seu tempo a conversas
com funcionários junto aos quais podia "resolver problemas de seu governo
que ninguém na rua poderia resolver".51
Em 16 de novembro o Che deixou Moscou com a mesma admiração
pela pátria do socialismo que tinha ao chegar, embora certas descobertas
inegavelmente o tivessem desconcertado. Em um jantar entre amigos na
casa de Alexeiev, o argentino viu que a louça era de porcelana finíssima e
comentou: "Os proletários de verdade comem em pratos deste tipo?"." Mas
Carlos Franqui recorda um episódio mais ilustrativo da inclinação ideoló-
gica do Che naquela época:
De volta a Havana, tive um incidente com Che Guevara em uma reunião do
Conselho de Ministros. Contei o que acontecera em Praga com as tuzeras (as
jovens tchecas dos hotéis) e as lojas dos tuzex (os funcionários tchecos da
Nomenklatura). O Che, que havia passado lá o mesmo tempo que nós, à frente
de uma delegação, desmentiu-me: "Mentira sua; você e os seus preconceitos".
"Eu não minto, Che, nem tenho preconceitos. Nem estoii cego como você,
que enxerga tudo cor-de-rosa." "Digo que é mentira. Passei por lá igual como
você e não vi nada."*
A ingenuidade se explica: ele não conhecia o mundo socialista, não
acompanhara as grandes discussões dos anos 50 na Europa Ocidental, e seu
contato com a intelectualidade marxista do exterior mal começara. Sua
carência de passado militante ou mesmo politizado começava a se fazer sen-
tir. Talvez por isso não tenha se embebido dos vigorosos debates do degelo
Krushevista. Um ano depois de sua breve passagem pela capital russa, pu-
blicou-se em Moscou, entre outros textos heréticos, Um dia na vida de Ivan
Denisovich, de Alexander Soljenitsin. Durante sua estadia em Moscou,
celebrou-se o Congresso dos 81 Partidos Comunistas, procedentes do mun-
do inteiro, no qual chineses e soviéticos se empenharam em uma luta fratri-
cida e irreversível, e onde comunistas italianos e franceses protagonizaram
uma acesa disputa sobre a desestalinização. O Che passou por tudo em bran-
cas nuvens. Ralhou com o embaixador cubano Faure Chomón quando este

(*) Carlos Franqui, Retratode famãia com Fidel, Barcelona, Seix Barrai, Espanha, 1981,
pp. 186-7. Talvez o Che fosse um pouco menos ingénuo do que insinua Franqui. Raul
Maldonado recorda como Alberto Mora, um dos jovens assessores de Guevara, foi acossado
por uma donzela moscovita durante sua estadia na URSS. Orgulhosamente, ele informou a
seu comandante como resistira aos perversos avanços da garota, para receber a réplica in-
clemente do Che: "Que espécie de maricas é você?!" (Raul Maldonado, entrevista,
op. cit.).
se opôs a depositar uma coroa de flores na tumba de Stalin. Os motivos para
não fazê-lo eram tanto cubanos como soviéticos; um ano depois, em novem-
bro de 1961, o Paizinho dos Povos seria retirado do mausoléu, onde repou-
sava junto com Lenin, para ser enterrado nos muros do Kremlin.
Em Moscou o Che recebeu suas primeiras lições sobre a intensidade e
complexidade do incipiente conflito sino-soviético. Desde antes de ele par-
tir, os diplomatas soviéticos sediados em Havana tinham insistido várias
vezes em sua disposição de convocar uma reunião da chamada "mesa-redon-
da" dos países socialistas que se realizaria em Moscou. As razões eram evi-
dentes: a URSS preferia repartir a compra do açúcar cubano com todos os seus
aliados. Dos 3 milhões de toneladas que o Che solicitara que os soviéticos
comprassem, Krushev só aprovou a aquisição de 1,2 milhão. Convidou,
assim, os demais países do bloco a comprar o 1,8 milhão de toneladas restante.
Contudo, o cerne da questão residia na participação chinesa na mesa-
redonda. Anatoly Dobrynin, na época subsecretário de Relações Exteriores,
citou o embaixador chinês em Moscou para informá-lo da visita do Che e
convidar a China a integrar a mesa-redonda. Em Praga, em 26 de outubro de
1960, o Che enviou uma nota a Faure Chomón (carta que estranhamente
aparece nos arquivos do Ministério de Relações Exteriores da URSS) ins-
truindo-o para que a convocação fosse a todos os países socialistas, em par-
ticular à China.51 O Che caiu, por assim dizer, na armadilha soviética- Os
funcionários de Moscou desejavam que a cooperação sino-cubana ocorresse
sob seu patrocínio. Não é preciso dizer que os chineses não morderam o
anzol. Uma nota de Dobrynin ao vice-ministro Pushkin, datada do dia da
chegada do Che a Moscou, informa que, apesar de toda a insistência
moscovita, "ainda não há uma resposta de Pequim" sobre a participação na
mesa.14 Os chineses não assistiram à reunião.*
Houve outros desencontros entre o Che e os avatares do confronto
sino-soviético. Segundo a versão de Leonov — tradutor e sombra perma-
nente do argentino durante sua estadia na Rússia —, o virtual vice-presi-
dente cubano convidou-o a acompanhá-lo a Pequim e Pyongyang. Guevara
temia que a Coreia do Norte não tivesse intérpretes do espanhol para o
idioma local. De Pequim, Leonov só conseguiu uma irada recusa de visto de
entrada." Na terra de Kim II Sung, o intérprete-espião viu-se obrigado a

(*) Segundo o Che, os países que firmaram o Convénio Multilateral de Pagamentos


foram "todos os países socialistas da Europa e a República Popular da Mongólia" (Ernesto
Che Guevara, "Comparecimento televisado à assinatura de acordos com os países socia-
listas", 6/1/61, em Ernesto Che Guevara, Escritos, op. cit., t. 5, p. 8).
albergar-se na embaixada soviética, enquanto a delegação cubana se hospe-
dava em uma casa típica protocolar. Lógico: nem os chineses nem os co-
reanos viam com bons olhos a presença de um agente da KGB na delegação
cubana, ainda que aparentasse ser um simples tradutor.
Por fim, Guevara deparou-se na capital soviética com a já mencionada
Conferência dos 81 Partidos Comunistas e Operários. A reunião se iniciou
durante os primeiros dias do Che em Moscou e prolongou-se até ele regressar
de sua viagem a Pequim e Pyongyang. Para a URSS, o propósito do multi-
tudinário conclave era alcançar uma condenação unânime do movimento
comunista internacional às teses "belicistas e aventureiras" de Mao Tse-Tung.
Ao voltar da China e ser informado das conclusões da conferência, o Che
esclarece que "não participamos da redação do comunicado dos partidos
comunistas e operários, mas o apoiamos totalmente". Asseverou também que
"a declaração dos partidos é um dos acontecimentos mais importantes de nossa
época"; elogiou a "solidariedade militante do povo soviético e do povo
cubano"; e declarou que "Cuba devia seguir o exemplo de desenvolvimento
pacífico mostrado pela URSS".56 Um apoio claro à posição de Moscou.
O congresso de 1960 foi a primeira grande tentativa de Krushev de
excomungar os maoístas da ortodoxia comunista. Embora a tentativa
soviética não tenha prosperado inteiramente, a China ficou isolada e encur- ,,
ralada, a tal ponto que seu único aliado, Enver Hoxha, da Albânia, retirou-se da
reunião em 25 de novembro, batendo a porta. Tudo indica que o Che, apesar da
presença de uma delegação do PSP cubano presidida por Anibal Escalante, não
se inteirou das vicissitudes da enorme contenda sino-soviéti-ca, nem da própria
celebração do congresso.
O fato de que o Che não soubera de nada sobre o desenvolvimento da Con-
ferência dos 81 me foi explicitamente confirmado por um dos que o acom-
panharam a Moscou. Pareceu-me surpreendente, já que a conferência atra-
vessou momentos dramáticos e seu desenlace permaneceu incerto até o
último minuto [...] Por incrível que pareça, a desunida família dos partidos
comunistas, em plena contenda, conservava seus costumes de "segredos entre
iniciados", a tal ponto que um Che Guevara, progressista, revolucionário e
amigo por excelência do bloco socialista, não tinha o direito de ser informado
da situação, nem sequer parcialmente. Esses métodos não deixariam de pesar
sobre a evolução do Che, que, depois de ter sido um dos mais ardentes par-
tidários da URSS em Cuba, converteu-se em um de seus críticos mais severos"."7
O Che permaneceu na China quase duas semanas. Conheceu Chu
En-Lai e foi apresentado a um Mao Tse-Tung de idade avançada mas ainda
lúcido. O Grande Timoneiro, parcialmente substituído por Liu Shao-Shi,
pagava pelos colossais erros do Grande Salto Adiante com um virtual exílio
político interno, que se encerraria três anos depois com sua famosa decla-
ração de "fogo contra o quartel-general", que desencadearia a Revolução
Cultural. O Che teve três encontros com Mao. Segundo um biógrafo
recente, que não cita fontes, o dirigente chinês teria lhe confiado sua dis-
posição de apoiar a luta de Patrice Lumumba no Congo Belga. O Che
deixaria Pequim persuadido da pureza da variante oriental do marxismo-
leninismo contemporâneo.58 A República Popular da China comprometeu-se
a comprar 1 milhão de toneladas de açúcar em 1961, e Chu En-Lai ho-
menageou o Che no Grande Salão do Povo. Em seu discurso, o emissário
cubano assinalou vários pontos de semelhança entre as revoluções cubana e
chinesa, citou o comunismo chinês como exemplo e afirmou que havia se
desvendado "um novo caminho para as Américas". Tudo isso conduziu o
Departamento de Estado de Washington a concluir que o Che tomara o par-
tido de Pequim no conflito sino-soviético, uma conclusão prematura e
superficial, mas premonitória.59 Na realidade, manifestou-se aqui a primeira
postura incómoda e no fundo insustentável do Che em torno do conflito
sino-soviético: se ele avalizava os resultados ligeiramente antichineses da
conferência de Moscou, também expressava simpatia e admiração pela re-
volução dirigida por Mao Tse-Tung. Com o tempo essa acrobacia ideológica
e geopolítica se tornaria impossível. Antes de partir, em 24 de novembro, o
Che foi avisado do nascimento de sua primeira filha do segundo casa-
mento. Sua ausência durante o parto confirmaria as confidências que fizera
à mãe, Célia: a única coisa que contava para ele era a Revolução; as tarefas
que ela impõe se sobrepunham a tudo o mais.
As opiniões sobre a visita do Che a Moscou, Pequim e Pyongyang são
contraditórias, dependendo de sua procedência: um êxito, um fracasso, ou
nada disso. Os norte-americanos a consideraram mais frutífera para Cuba,
embora duvidassem da concretização dos resultados: "O sr. [Allen] Dulles
[diretor da CIA] informou que Che Guevara voltou a Cuba com muitíssimos
acordos que, caso fossem cumpridos [o que era pouco provável segundo
Dulles], fariam com que mais da metade do comércio de Cuba passasse a ser
feito com o Bloco [Socialista]".60
Os ingleses tinham uma suspeita diferente:
Um de meus colegas foi informado pelo embaixador cubano [em Moscou] de
que a missão de Guevara partiu para Pequim decepcionada com os resultados
práticos de sua visita a Moscou, apesar da acolhida pública muito calorosa.
Uma fonte próxima a Krushev informa que a política soviética consiste agora
em evitar qualquer ato que possa pôr em questão as relações com a [próxima]
administração Kennedy e que os cubanos tinham sido notificados de que de-:
veriam evitar provocações descabidas [...] Os cubanos estão sofrendo uma séria
carência de dólares [...] e a URSS nada quis fazer para aliviar essa carência. Talvez,
ao retornar da China, Guevara faça outro esforço para obter dólares da URSS.61
O Che sem dúvida impressionou seus interlocutores. Estes não espe-
ravam que o visitante, caribenho, demonstrasse apego ao trabalho. Mas o
Che sabia dar valor ao tempo, disciplinava sua delegação e cumpria o pro-
tocolo a cada hora e minuto. Como recorda Leonov, "era muito pontual,
contrariamente ao costume dos mexicanos e latino-americanos; não pare-
cia nem um pouco latino-americano".62
Ao mesmo tempo, apresentava uma série de desatinos económicos que
só podiam desconcertar seus sócios:
Queria converter Cuba em um Estado industrializado. Cuba não tem mi-
nérios, o que serviria de base para a construção de máquinas, transportes. Pen-
sava em converter Cuba em um país exportador de metais e laminados para a
zona do Caribe. Todos os técnicos soviéticos se opunham, diziam que era uma
loucura económica, que Cuba não possuía carvão-de-pedra, nem minério de
ferro, seria preciso transportar tudo para lá, o que encareceria muito a pro-
dução de ferro. O Che não encontrava argumentos suficientes para convencê-
los. Davam-lhe mais e mais cálculos indicando que aquilo seria antieconô-
mico, e essa discussão durou vários dias. Ele insistia. Explicava que assim
formaria uma classe operária e um mercado, que no momento não existiam por
não haver siderurgia. Insistia no aspecto social, em especial estratégico, e a
parte soviética ia mais pelos cálculos económicos, de custos, de mercado:
"Vocês não têm mercado bastante, com uma usina siderúrgica vocês têm 1 mi-
lhão de toneladas por ano. Imaginem! Em quinze anos vocês terão 15 milhões
de toneladas de aço. O que irão fazer com isso?".*
Depois de visitar a China e a Coreia do Norte, o Che viajou duas vezes
a Moscou antes de assinar e emitir, em 19 de dezembro, ou seja, dois meses
após sua chegada, o comunicado conjunto e o acordo sobre a compra de açú-
car. Sua rápida visita a Berlim, na Alemanha democrática, ajudou-o a

(*) Assim como Anatoly Dobrynin lembrou anos depois: "Guevara era impossível;
queria uma pequena siderúrgica, uma fábrica de automóveis. Dissemos a ele que Cuba não era
grande o bastante para sustentar uma economia industrial. Eles precisavam de divisas, e a úni-
ca maneira de obtê-las era fazendo o que faziam melhor: produzir açúcar" (Cit. em Richard
Goodwin, Remembering America, Nova York, Harper and Row, 1988, p. 172).
encontrar compradores para o açúcar cubano. A estadia notabilizou-se ape-
nas por uma razão: conheceu ali uma jovem tradutora germano-argentina,
Tâmara Bunke Bider, que seis anos depois morreria metralhada cruzando o
rio Grande, na Bolívia, com o nome de Tânia. Ela começou a colaborar com
o Che em diferentes tarefas desde muito antes de se unir a ele nos Andes.
De volta a Havana, o Che apresentou pela televisão as conclusões de
sua viagem. Por um lado, tratou de dissipar as dúvidas que pudessem ter
surgido em Cuba em vista do prolongamento de sua estadia no exterior e da
demora na assinatura do comunicado. Esclareceu que as negociações se
atrasaram por causa da sua complexidade. Tratava-se de reorientar do dia
para a noite praticamente todo o comércio externo de um país no sentido de
um bloco económico ao qual nada o unia: nem o clima, nem o sistema de
medidas, nem o idioma, nem a cultura. Pareceu convincente. Explicou os
motivos pelos quais os países socialistas finalmente concordaram com suas
solicitações, como os convenceu e as grandes vantagens dos acordos para
Cuba, uma vez rompida a ligação económica com os Estados Unidos. A fala
exibia um domínio dos expedientes, uma presença televisiva e habilidade de
argumentação só superados por Fidel Castro e notável para alguém sem
experiência nesse meio de comunicação.
O Che regressou a Cuba com algumas ideias mais definidas sobre o
mundo socialista e seus diversos componentes. Ao prestar contas de sua
viagem na televisão, confessou uma admiração provavelmente sincera, mas
já destoante da realidade conhecida desses países. Seu comentário sobre a
situação da China, por exemplo, apenas um ano depois da catástrofe do
Grande Salto Adiante, com seus transtornos generalizados na economia, na
sociedade e na política, aproxima-se muito da visão idealizada que muitos
viajantes tiveram naqueles anos ardorosos:
Naturalmente, não se pretenderá dizer que o nível de vida da China alcança
o dos países desenvolvidos do mundo capitalista, mas não se vê absolutamente
nenhum dos sintomas de miséria que se vêem em outros países da Ásia que
tivemos a oportunidade de percorrer, alguns inclusive mais desenvolvidos,
como o próprio Japão. Vê-se todo mundo comendo, todo mundo vestido —
vestido uniformemente, é certo, mas todos corretamente vestidos; todo mun-
do tem trabalho e um espírito extraordinário.*

(*) Ernesto Che Guevara, "Comparecimento televisado", op. cit., em Ernesto Che
Guevara, Escritos, op. cit., t. 5, p. 12. Seu comentário sobre a visita à Coreia do Norte é ain-
da mais revelador: "Dos países socialistas que visitamos pessoalmente, a Coreia é um dos mais
extraordinários, talvez o que mais nos impressionou de todos eles" (ibidem, p. 19).
Suas apreciações sobre os países socialistas em geral, se bem que parti-
lhadas na época por milhões de comunistas pelo mundo, também con-
tradiziam as impressões que muitos outros, antes simpatizantes do socialis-
mo geral, começavam a formular. O Che não parecia estar enganando os
cubanos, acreditava no que dizia, mas começava a isolar-se. A distância
entre suas crenças e a realidade era tamanha e sua honradez intelectual tão
profunda que, na hora da desilusão, o desencanto será demolidor. Tanta
honestidade ao fazer seu balanço conduziria necessariamente à tragédia;
expectativas como as que ele próprio descreveu em seguida eram simples-
mente desproporcionais:
O espírito de humanidade desses povos [socialistas] é algo que realmente con-
vence de que definitivamente não podemos contar com governos amigos,
exceto, em primeiro lugar, desses países do mundo. Além do mais, a força, a
elevada taxa de desenvolvimento económico, a pujança que demonstram, o
desenvolvimento de todas as forças do povo, deixam-nos convencidos de que
o futuro é definitivamente de todos os países que lutam, como eles, pela paz no
mundo e pela justiça, distribuída entre todos os seres humanos.63
Ainda pertenciam ao futuro o distanciamento do Che em relação à
URSS e os estragos que o conflito sino-soviético faria em suas epopeias
africana e boliviana. Mas já se nota o germe de duas grandes incompreen-
sões: a verdade do caráter da União Soviética e a natureza irremediável do
cisma entre Moscou e Pequim, com seus respectivos partidários. Porém, o
tempo em que o Che esteve à frente do Banco Nacional não foi dedicado
exclusivamente à economia e às negociações com a União Soviética e a
China. Duas facetas de sua atividade nesses catorze meses merecem ser
relatadas, não só pela importância que adquiriram na vida do Che, mas tam-
bém por suas consequências para Cuba e a América Latina. Em primeiro
lugar, ele ajudou a lançar o conceito de trabalho voluntário; em segundo,
publicou seu mais influente texto, A guerra de guerrilhas, e prometendo que
Cuba exportaria a Revolução para todo o continente. Foi a marca mais
duradoura e controvertida que o Che deixou.
As jornadas de trabalho voluntário começaram em Cuba desde 23 de
novembro de 1959. A primeira teve lugar na Ciudad Escolar Camilo Cien-
fuegos, em Caney de Las Mercedes, na província de Oriente. A denomi-
nação e o objetivo da escola — batizada com o nome do recém-falecido
Camilo —, assim como a direção da equipe de construção por Armando
Acosta, seu colega comunista de Las Villas, tiveram a influência do Che.
Durante alguns meses, ele aterrissaria todo domingo, em um avião oficial,
para ajudar a construir a escola ao lado dos trabalhadores da indústria de
calçados de Manzanillo e uma centena de soldados do exército rebelde.64
Mas, para além dos detalhes acidentais, nasceu daí um conceito e todo um
programa. Com o início da safra em dezembro, o Che começou a participar
com maior assiduidade nas tarefas voluntárias.
Ele pregava pelo exemplo, na construção, na indústria têxtil, no descar-
regamento dos navios procedentes dos países socialistas e, naturalmente, na
safra de cana. Além do evidente prazer que experimentava ao encontrar-se
com cubanos de carne e osso — gente que, afinal de contas, não conhecia —
e do desafio físico de enfrentar o pó das tecelagens e da cana, sua intenção era
eminentemente política. Desde 1960 ele pensava que o melhor estímulo ao
trabalho devia ser a emulação revolucionária; acreditava que era preciso
motivar os cubanos e engajá-los na Revolução. Para Guevara, o trabalho vo-
luntário era uma tarefa grata, "que se realiza com alegria, que se realiza ao som
de cânticos revolucionários, em meio à mais fraternal camaradagem, em
meio a contatos humanos que revigoram e dignificam a todos".6''
O trabalho voluntário era também um detonador do despertar revolu-
cionário, uma escola, um aprendizado da Revolução: "Tratava-se de uma
escola criadora da consciência, é o esforço realizado na sociedade e para a
sociedade, como contribuição individual e coletiva. Vai formando essa
consciência elevada que nos permite acelerar o processo da transição [...] O
trabalho voluntário é parte dessa tarefa de educação".66
Os fins de semana revolucionários começaram a se tornar famosos.
Alguns compuseram canções exaltando-os (chegariam até o Chile os ecos
dos "domingos solidários do trabalho voluntário", como reza a canção de
Isabel Parra); outros os lamentavam amargamente. A participação de Gue-
vara possuía um duplo efeito. Por um lado, fortalecia sua imagem como diri-
gente disposto a sacrificar-se junto com os demais, e a fazê-lo com ânimo
autêntico e não como uma carga. Por outro, servia de exemplo, possibilita-
va a massificação do trabalho voluntário. Os filmes do Che cortando cana,
tecendo panos, carregando sacos de arroz e cavando canais passaram a fazer
parte da filmoteca e de toda a iconografia do comandante. Como era de se
supor, rendia imensamente em matéria de popularidade. Nenhum dos
outros líderes da Revolução se igualava a ele na paixão pelas fainas
domingueiras.
Surgiram problemas quando, em razão da necessidade imperiosa de
aumentar a produção de açúcar, transformou-se o princípio em um vício de
superexploração do trabalhador cubano. Como preceito político, ideológi-
co e cultural, o trabalho voluntário tinha em Cuba um propósito elogiável.
Como método para prolongar a jornada de trabalho e reduzir o salário real,
era contraproducente e antieconômico. O Che vislumbrou esses dilemas
mais tarde: "O trabalho voluntário não deve ser visto pela importância
económica que tenha hoje para o Estado; o trabalho voluntário é funda-
mentalmente o fator que desenvolve, mais que qualquer outro, a consciên-
cia dos trabalhadores".67
Como se veria na fracassada safra dos 10 milhões em 1970, nada dese-
quilibra tanto uma economia como uma transferência maciça de mão-de-
obra de um setor para outro, inclusive ou mais ainda caso se trate de um
deslocamento "voluntário".
Com o tempo, as aparentes embora fictícias vantagens económicas do
trabalho voluntário lhe imprimirão uma marca cada vez mais coercitiva. O
não-comparecimento como "voluntário" passou a acarretar diversas
sanções, desde o ostracismo até a denúncia como "contra-revolucionário".
O Che não testemunharia isso tudo, e sua contribuição para o inegável
altruísmo da Revolução Cubana faz parte das páginas mais líricas da história
da ilha. Mas a perversão ou deformação de suas teses o seguiria como um
espectro; sua própria morte adviria em parte da distorção guevarista de seus
próprios princípios.
A versatilidade do Che no cumprimento das tarefas do governo e da
Revolução acentuou-se nesses meses. Junto com as responsabilidades orto-
doxas na economia e diplomacia tradicionais, ele continuou a se ocupar com
frequência e atenção crescentes de seu tema predileto. As perspectivas da
Revolução na América Latina eram sua verdadeira paixão, mesmo que na
prática o tempo que consagrava a elas ainda fosse reduzido. Ele começou
então a entrevistar-se com dirigentes latino-americanos, de maneira mais
sistemática e organizada que em 1959, e a adquirir ideias mais nítidas sobre
as diversas correntes. Sua reflexão sobre a América Latina cobre três frentes:
a reação do subcontinente diante das agressões dos Estados Unidos contra a
ilha; o comportamento da esquerda tradicional, e a difusão dos ensinamen-
tos da Revolução Cubana.
A partir da reunião da Organização dos Estados Americanos realiza-
da na Costa Rica em agosto de 1960, ficou evidente que Washington se
dispunha a, tal como na Guatemala de 1954, intensificar sua investida
anticomunista e anti-soviética com a adesão do maior número possível de
governos latino-americanos. Desde 1960, o Che desenvolveu uma sofisti-
cada análise geopolítica da região, e algumas de suas hipóteses aparecem
em artigos para Verde Olivo. O segínte relato, de uma conversa com o
embaixador da União Soviética eu Cuba, apresenta um pensamento
completo e matizado sobre os motivs e a racionalidade das diferentes pos-
turas continentais:
Governos desses países [da Amétta Latina] fazem um jogo duplo — [disse
Guevara]. Da boca para fora, pronnciam-se contra a intervenção nos assun-
tos de Cuba; mas votam com os noç-americanos, contra Cuba. Os governos
reacionários da América Latina rretram-se firmes com relação a Washington
na aparência, para pressionar os iiice-americanos e receber mais créditos e
outras formas de ajuda. Pretenderiaproveitar o simples fato da existência de
Cuba revolucionária para chantajgr os Estados Unidos. Estes, com medo de
que a Revolução Cubana se repúem outros países, começaram a oferecer
uma ajuda mais generosa, visanddeter o desenvolvimento do processo re-
volucionário na região. Mas a Amtiea Latina está fervendo, e no ano que vem
podem-se esperar explosões revckionárias em vários países, em primeiro
lugar no Peru e no Paraguai. Esseotocessos sem dúvida se acelerarão caso os
Estados Unidos, com o apoio dospvemos reacionários, ousem alguma ação
contra Cuba. Claro que o mais proável é que as intervenções revolucionárias
nesses países sejam esmagadas pias forças armadas norte-americanas, que
acudirão ao chamado dos governcireacionários locais. Em outros casos, como
os da Argentina, Uruguai, Chile (Peru, lamentavelmente a União Soviética
e outros países socialistas não podríam ajudar esses povos.6"
O Che compreendia cabalmeite a atitude dos Estados Unidos, assim
como a de seus aliados regionais. /Aliança para o Progresso, lançada por
John F. Kennedy um ano e meio doois do encontro de Guevara com Ku-
driavtsev, obedeceria a essa lógica:;yitar novas centelhas revolucionárias
mediante a hipotética canalizaçãole vultosos recursos para os países ao sul
do Rio Grande. Nesse particular, sprevisões do Che seriam brilhantes.
Também tinha razão — embora eu menor grau — no prognóstico sobre a
postura dos governos latino-amerionos. Predisse que tais governos mante-
riam uma resistência mínima dian; de Washington, sempre que e na me-
dida em que pudessem arrancar m;ís concessões, e com a condição de que
esse enfrentamento não excedesseleterminados limites. Guevara superes-
timou, contudo, a firmeza dos latito-americanos — inclusive por motivos
pragmáticos como os que ele mesnij assinala — perante o conflito em esca-
lada entre Havana e Washingtori Como ficou provado mais tarde, com
exceção do México, todos os govtnos da região aceitaram mais cedo ou
mais tarde o diktat dos Estados Utdos e limitaram suas relações diplomá-
ticas e comerciais com a ilha. P(t último, Guevara também acertou ao
lamentar que a URSS não pudesse tratar outros países com a mesma gene-
rosidade com que tratou Cuba. O Chile, por exemplo, sentiu na própria
carne essa retração soviética, dez anos mais tarde.
Foi no que tange às "explosões" no continente que os vaticínios do Che
se mostraram menos certeiros. As previsões guevaristas não se confirmaram
nem no Peru, nem no Paraguai, nem em qualquer outro país, com exceção
do Chile, por uma via muito distinta e dez anos mais tarde. Foi preciso que
transcorresse quase outra década, após o episódio da Unidade Popular no
Chile, para que ocorressem levantes revolucionários significativos na
América Central. Precisamente porque tinha razão em suas análises, o Che
errou em suas projeções. Os Estados Unidos, com efeito, ajudaram militar-
mente os governos in situ e lhes transferiram consideráveis volumes de recur-
sos (ao menos em comparação com as cifras do passado). Graças em parte a
esse esforço que mais tarde seria chamado "contra-insurgente", a revolução
latino-americana não aconteceu. A outra razão da inexistência do final feliz
que o Che esperava estava em uma de suas apreciações: a caducidade da
esquerda existente.
Em outra conversa do mesmo período com o embaixador soviético,
Guevara, talvez com uma dose de franqueza pouco usual para o enviado de
Moscou, expôs ao seu interlocutor alguns de seus pensamentos sobre a
esquerda latino-americana. Assim o relatou Kudriavtsev:
Guevara começou a falar em tom brusco. Disse: "Os dirigentes de esquerda da
América Latina não aproveitam a situação revolucionária, comportam-se
como covardes, não vão às montanhas e não iniciam a luta aberta contra seus
governos corruptos. Os partidos de esquerda de outros países da América Lati-
na", sublinhou Guevara, "têm condições muito melhores que o povo cubano
para a luta armada e a vitória. Políticos do tipo de [Vicente] Lombardo
Toledano [do México] só entravam o processo revolucionário [...] é um ver-
dadeiro oportunista. Nós estamos seguros de que a luta ativa contra o imperia-
lismo norte-americano que Cuba está levando a cabo revolucionará as massas
populares dos países da América Latina. Ao final das contas ali se destacarão
líderes realmente revolucionários, que serão capazes de levar o povo até a
vitória contra seus governos corruptos e reacionários de agora. Por isso, nós
consideramos que todas as tentativas do governo cubano para realizar nego-
ciações com os EUA e ajustar nossas discrepâncias não terão êxito. Pelo con-
trário, poderiam ser entendidas pelos povos dos países da América Latina
como uma debilidade de Cuba. Ê preciso superarmos o sentimento de fatalis-
mo que está muito difundido entre os povos da América Latina de que é impos-
sível lutar contra o imperialismo norte-americano".6''
É surpreendente que já nessa época o Che pudesse se expressar assim a
propósito dos partidos de esquerda da América Latina. O exemplo que ele
mencionou carecia de pertinência: Lombardo Toledano era tudo isso e mais
ainda, porém não pertencia ao Partido Comunista Mexicano, e sua organi-
zação, o Partido Popular Socialista, já se entregara por completo ao governo
do México. Em contrapartida, era válida sua queixa contra os partidos tradi-
cionais: com efeito, eles não eram revolucionários. E seu presságio sobre o
surgimento de novas lideranças no seio da esquerda latino-americana tam-
bém se verificaria. Em todos os países do continente, graças ao exemplo e ao
apoio da Revolução Cubana, emergiram grupos e personalidades mais
jovens, enérgicos e radicais em seu enfoque libertário. Confirmar-se-ia
assim a premissa segundo a qual a intransigência e firmeza cubanas perante
os Estados Unidos serviriam de exemplo para a nova geração da esquerda no
hemisfério.
Todavia, a parte essencial de sua análise não se cumpriu, e ao fracassar
levou a vida do Che. As massas empobrecidas da América Latina não
seguiram as novas lideranças saídas do crisol cubano. Apesar de todos os
esforços e sacrifícios, os partidos comunistas não se transformaram em
comandantes revolucionários, nem os castristas e guevaristas que prolife-
raram nas universidades e selvas ibero-americanas arrastaram as massas
deixadas à própria sorte pelos comunistas. Mais uma vez o Che teve razão em
sua análise, mas não em suas conclusões. O que é admirável e convém sem-
pre sublinhar é a constância, a perseverança do argentino. Desde o início ele
manteve as mesmas ideias, embasadas em diagnósticos similares, ligadas às
mesmas esperanças. A guerra de guerrilhas foi, naturalmente, onde essa visão
do Che apareceu com maior clareza; seu prólogo foi publicado no princípio
de 1960 no diário Revolución; o texto completo seria editado pelo Ministério
das Forças Armadas na segunda metade do ano. Não foi sem contratempos
que a obra veio a público: no dia seguinte à publicação do primeiro capítu-
lo, Carlos Franqui, diretor do jornal, recebeu uma ligação de Fidel Castro
pedindo-lhe que não divulgasse os demais. Franqui respondeu que de qual-
quer forma os dois dirigentes deviam chegar a um acordo; informou o Che,
com quem não tinha relações particularmente cordiais, e este aceitou a ne-
gativa de Castro.70
As teses mais fortes, célebres e repletas de consequências para a Améri-
ca Latina aparecem logo na primeira página; o Che já adquirira um rigor e
uma concisão notáveis. Segundo o autor, as três contribuições da Revolução
Cubana para a "mecânica dos movimentos revolucionários na América" são:
1) As forças populares podem ganhar uma guerra contra o exército.
2) Nem sempre é preciso esperar que se apresentem todas as condições para
a Revolução; o foco insurrecional pode criá-las.
3) Na América subdesenvolvida o terreno da luta armada deve ser funda
mentalmente o campo."
A isso o Che acrescenta algumas advertências, em certa medida com-
plementares e ao mesmo tempo contraditórias, que, como as primeiras teses,
se converteram em virtuais aforismos da luta armada na América Latina:
Onde o governo tiver subido ao poder por alguma forma de consulta popular,
fraudulenta ou não, e mantiver ao menos uma aparência de legalidade consti-
tucional, o germinar guerrilheiro é impossível por não se terem esgotado as
possibilidades da luta cívica [...] A luta guerrilheira é uma luta de massas, é uma
luta do povo; a guerrilha, como núcleo armado, é a vanguarda combatente do
povo; sua grande força reside na massa da população.72
Aqui o Che deixou várias lacunas conceituais que foram rapidamente
preenchidas por autores das mais variadas exegeses dos escritos do comandante.
A primeira não é a mais significativa, mas ilustra as dificuldades de
interpretação dos dogmas guevaristas, sobretudo quando a vida e a morte de
muitos dependem de sua leitura adequada. A última tese pode dar a entender
que toda a América é subdesenvolvida, e portanto a luta será no campo, ,, em
todo o continente, de um a outro extremo; ou então que a guerrilha terá de
assentar-se em bases rurais naquelas partes da América Latina onde efe-
tivamente existir subdesenvolvimento. Exceto em países nos quais a tese não
cabia — por exemplo, o Uruguai, em cuja capital concentra-se mais da metade
da população —, foi interpretada da primeira forma. E, entendida assim, é
falsa, passageira e perigosa. Naqueles mesmos anos, fatias consideráveis das
sociedades latino-americanas se despojaram de muitos dos traços do
subdesenvolvimento — entre eles, a preponderância da população e da pobreza
rurais; outras o fariam muito em breve. Muitas vidas — entre outras as de dois
amigos queridos do Che, seu guarda-costas Hermes Pena e o jornalista
argentino Jorge Ricardo Masetti — se perderam em selvas e sertões latino-
americanos habitados apenas por guerrilheiros e soldados.
A interpretação da guerra em Cuba, subjacente às três teses centrais, é
pelo menos discutível. Prejulga a questão central em debate: se a guerrilha
ganhou do exército ou se Batista perdeu sem que seu exército fosse derrota-
do. O Che coloca todo o peso de sua autoridade e habilidade no caráter mi-
litar da luta em Cuba e na América Latina. Pressupõe que, em última instân-
cia, dois exércitos se enfrentam, um perde e o outro ganha. Nos 35 anos que
se seguiram à publicação de A guerra de guerrilhas, apenas uma vez o milagre
voltou a ocorrer, na Nicarágua de 1979, e mesmo aí não aconteceu da forma
como o Che vaticinou.
O texto também deixa entrever uma flagrante contradição conceituai.
Se a guerrilha pode criar as condições a partir de um foco, a ausência de
condições obviamente não impede o início de um foco. Entre outras, a
vigência de um regime "democrático", em certas circunstâncias, deixa de ser
um obstáculo, o que contradiz a advertência sobre a vigência de um regime
desse tipo. Em outras palavras, seria possível criar focos insurrecionais inclu-
sive naqueles países nos quais imperasse uma ordem constitucional — a
Venezuela ou a Colômbia, por exemplo —, já que as condições revolu-
cionárias não precisariam anteceder o início da luta. E, com efeito, logo bro-
tarão focos em todo o continente, sem maior respeito pelas precauções ini-
ciais do Che.
Muitas das demais teses já tinham sido expostas em discursos ou relatos
de guerra do Che. A condição de "revolucionário agrário" do guerrilheiro
que reparte as terras em sua travessia pela serra ou pela selva; a analogia com
os jesuítas ("o guerrilheiro é o jesuíta da guerra"); o guerrilheiro que só com-
bate quando tem a certeza de que vai vencer; a transformação paulatina da
guerrilha em exército regular; todos esses temas povoam as páginas de A
guerra de guerrilhas, nas quais revivem, de forma mais sistemática e clara, as
posturas da épica escalada de 195 7 e 1958.
Também se intercalam todos os tipos de indicações técnicas: sobre os
armamentos mais apropriados, a importância do tipo de calçado adequado à
luta armada... O texto está pontilhado de ideias ou reflexões sumamente pers-
picazes e de instruções com uma riqueza de detalhes que, apesar de sua minú-
cia, podem confundir a mais de um. E o caso das indicações sobre os atributos
físicos e psíquicos ideais do guerrilheiro, que incluem a utilidade do cachim-
bo, "pois permite que se aproveite ao máximo, nos momentos de escassez,
todo o tabaco que sobra dos cigarros e charutos".7' O Che não tinha meios de
saber como reagiriam os milhares de jovens universitários que, durante trinta
anos, partiriam iludidos e indefesos para o massacre, com ou sem cachimbo;
ninguém é totalmente responsável pela sagacidade ou imaturidade de seus
leitores. Tampouco o autor poderia prever que um de seus discípulos tardios, o
subcomandante Marcos, de Chiapas, elevaria a receita do cachimbo a níveis
da mídia internacional jamais sonhados pelo próprio Guevara.
Entre as percepções particularmente brilhantes, destacam-se pas-
sagens como a seguinte, sobre a relação inversa entre o terreno desfavorável
para a guerrilha e adequado à vida humana; ela ilustra a impressionante
capacidade do argentino para utilizar a percepção de um neófito inteligente
e culto em áreas geralmente reservadas a especialistas ignorantes em outras
matérias:
Todos os meios propícios, todas as facilidades para a vida do homem fazem com
que este tenda à sedentarização; na guerrilha sucede o oposto: quanto mais
facilidades para a vida, mais nómade e incerta a vida do guerrilheiro. E que, na
realidade, tudo é regido pelo mesmo princípio [...] tudo o que é favorável à vida
humana, com sua sequela de comunicações, núcleos urbanos e semi-urbanos,
grandes concentrações populacionais, terrenos facilmente trabalhados pela
máquina etc, coloca o guerrilheiro em uma situação desvantajosa.71
Outras observações importantes do livro se referem à interação entre
povo e guerrilha, que, como comprovamos nos capítulos anteriores, tem para
o Che um valor vital. O guerrilheiro e o camponês se educam e transformam
um ao outro, este constrói aquele e influi de maneira decisiva sobre ele, radi-
calizando-o e mostrando-lhe a realidade de seu mundo. E não faltam no texto
as gratas referências — de maneira nenhuma falsas ou obsequiosas — à li-
derança de Fidel: "Fidel Castro reúne em si as elevadas aptidões do comba-
tente e do estadista, e sua visão deve ser nossa viagem, nossa luta e nosso
triunfo. Não podemos dizer que sem ele a vitória do povo não teria ocorrido,
mas essa vitória teria custado muito mais e seria menos completa"."
Infelizmente, muitos entusiastas latino-americanos não perceberam
que nem todo mundo é um Fidel Castro e que, sem uma liderança particu-
larmente audaz, visionária e multifacetada, as perspectivas de êxito
inegavelmente enfraquecem. Outros, entre eles o Che, concluiriam que o
talento do caudilho era substituível por outras virtudes. O erro custaria a
vida ao Che e a incontáveis adeptos de suas teses.
Para além dessas considerações, e outras mais sobre a mulher, a saúde,
o doutrinamento, A guerra de guerrilhas deve ser j ulgada por sua função e seus
efeitos, e não tanto por sua intenção e conteúdo. Trata-se de um manual,
forçosamente simplificador e resumido, inevitavelmente exposto a leituras
rápidas, entusiásticas e ingénuas. Encerrará a vantagem de ser ao mesmo
tempo acessível e inteligente, e mobilizar segmentos inteiros da juventude
latino-americana em torno de causas justas. Ensinou que, para triunfar, era
preciso ousar; para ousar, crer. O Che entregou a algumas gerações latino-
americanas a ferramenta para crer e o ardor que nutre a audácia. Mas Che
Guevara também foi responsável por sua cota de sangue e vidas, que teve de
pagar. Seus erros incluem uma ênfase indevida no aspecto militar; os ensi-
namentos que extraiu de uma contenda a cujo filme ele só assistiu pela
metade; a pretensão de remover os enormes obstáculos a toda transformação
social pela mera manifestação da vontade; o desconhecimento radical das
condições políticas, económicas e sociais de grande parte da América Lati-
na, a começar por sua Argentina natal e pelo Brasil; e, por fim, a subesti-
mação de seu próprio impacto, de sua indiscutível excepcionalidade. Mor-
to, ignoraria como e por que tantos universitários da classe média emergente
da região marchariam inocentemente para o matadouro. Seus erros cons-
tituem culpas que pertencem ao menos parcialmente ao seu passivo, dívidas
das quais no mínimo uma cota deve ser posta em sua conta. Não foi o único
responsável pelos despropósitos guerrilheiros da esquerda latino-ameri-
cana, mas foi um dos responsáveis.

O Che deixou o Banco Nacional de Cuba às vésperas do maior triunfo


da Revolução Cubana: a vitória de playa Girón em 22 de abril de 1961. Os
meses em que fez as vezes de banqueiro não o marcaram fisicamente. Só pela
ligeira gordura que adquiriu em muitas viagens, horários impossíveis e pouco
exercício. Mas esta podia se dever a um novo remédio que começava a ser
usado contra a asma: a cortisona. Ricardo Rojo diz que o encontrou com
alguns quilos a mais, em meados de 1961, e Guevara explicou-lhe que era
por causa da cortisona.* Com efeito, médicos especialistas em asma que
examinaram algumas das fotos de Guevara nesses anos detectam a "cara de
lua" e o excesso de peso que costumam acompanhar o uso da cortisona. Qui-
los a mais, quilos a menos, seu anjo da guarda permanece e se revela em uma
das histórias mais fascinantes do Che. Apesar de sua postura ligeiramente
envaidecida nesses meses, do trabalho estafante, da enfermidade e da cos-
tumeira falta de asseio, um fotógrafo cubano de génio e sorte capta-o por aca-
so num dia de glória e luto em Havana.
Mais uma vez a sorte desempenhou um papel insólito na construção das
imagens do Che. A foto que percorreria o mundo, o póster que sete anos
depois o incorporará ao imaginário social de uma geração inteira, que pe-
netrou nas paredes e cadernos de milhões de estudantes, que confirmou a
vocação do Che vivo para o martírio, acompanhando a cena igualmente
messiânica do Che morto estendido na maca de Vallegrande, foi tirada
quase por acidente. Deveu seu sucesso ao caráter completamente natural

(*) "Não é banha, não, aqui não há tempo para isso" (Ricardo Rojos, Mi amigo elCne,
Buenos Aires, Legasa, 1994 ( lded. 1968), p. 102).
e ao mesmo tempo iconográfico: o Che passou pela lente de Alberto Kor-
da por um momento fugaz, em marcha, como sempre, para outro lugar.
Korda relata as peripécias do acaso fotográfico:
No dia seguinte à explosão do La Courbe, improvisou-se um comício na
esquina entre as ruas 12 e 23. Fidel Castro presidia o ato, em que pronunciou
um discurso em homenagem às vítimas da sabotagem; a rua estava cheia de
gente, e flores choviam sobre o cortejo que ia passando. Eu trabalhava como
fotorrepórter para o jornal Revolución, o órgão do Movimento Vinte e Seis de
Julho. Estava num plano mais baixo que a tribuna, com uma câmara Leika de
9 mm. Usei minha teleangular pequena e observei as pessoas que se achavam
em primeiro plano: Fidel, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. O Che esta-
va parado atrás da tribuna, mas há um momento em que eu passo por um
espaço vazio, que está em frente à tribuna, e a figura do Che emerge de um
segundo plano para a tribuna. Emerge de surpresa, enfia-se dentro do visor da
câmara, e eu disparo. Em seguida me dou conta de que a imagem dele é quase
um retrato e tem como fundo o céu, limpo. Viro a câmara para a vertical e tiro
uma segunda foto, isso em menos de dez ou quinze segundos. O Che se retira
dali e não volta. Foi uma casualidade.76
Fazia frio em Havana naquele dia de maio. O Che vestia um casaco
impermeável que um amigo mexicano lhe emprestara, com zíper. O traje
não usual fazia que ele parecesse mais esbelto do que era de fato. O jornal não
publicou a foto de Korda; sobravam cenas marcantes da manifestação. Seis
anos mais tarde, Giangiacomo Feltrinelli, o editor e militante italiano, que
voltava da Bolívia e estava a caminho de Milão, deteve-se em Havana.
Procurou Korda e pediu-lhe umas fotos do Che, convencido de que ele não
sairia vivo da aventura boliviana. Sem pagar um centavo, escolheu a foto do
ato do La Courbe em 1960. Semanas depois, quando o Che morreu, produ-
ziu o póster mais clonado da história, e os estudantes de Milão começaram a
usá-lo como bandeira em suas manifestações de luto e combate. A imagem
é a outra metade de um díptico iconográfico. Se a foto de Freddy Alborta, do
Che morto na lavanderia de Nuestra Senora de Malta, priva milhões de
jovens da presença de seu herói, a de Korda lhes devolve um Che vivo, cabe-
los ao vento, o rosto limpo, os olhos postos em um horizonte distante.
7 A BELA MORTE
NÃO COMPENSA

Che Guevara não nasceu para ser banqueiro. Em 21 de fevereiro de


1961, ele foi nomeado ministro da Indústria, um cargo que na prática equi-
vale a comandar o conjunto da economia cubana. Permaneceria nesse car-
go até sua primeira despedida da ilha, no inverno cubano de 1965; nele ga-
nharia duas grandes batalhas político-econômicas; nele sofreria suas
primeiras e definitivas derrotas, que o levariam a buscar outros caminhos
para o poder e a glória. Talvez ele soubesse que sua passagem pelo Ministério
seria rápida. Seu secretário desde o tempo de La Cabana, Manuel Manresa,
recorda o que ele disse ao assumir o cargo de ministro: "Vamos ficar cinco
anos aqui e depois vamos embora. Com cinco anos a mais, ainda podemos
fazer uma guerrilha".1 Ao longo de três anos, o médico acumularia uma série
de vitórias e conquistas. Imprimiria sua marca em qusae todos os campos da
Revolução Cubana. Foram os anos dourados do Che Guevara em Cuba:
quando nasceram seus filhos, quando escreveu seus livros e quando a
semente do seu mito começou a germinar.
A saída do Banco Nacional coincidiu — com poucos de meses de dife-
rença — com o momento de maior repercussão e encanto da revolução. O
conflito da baía dos Porcos, ou de playa Girón, como é chamado o lado
cubano do estreito da Flórida, consagrou o triunfo cubano sobre o governo
Kennedy e os conspiradores de Miami. Também confirmou as teses do Che
de modo irrefutável. Entre 17 e 21 de abril de 1961, um pequeno exército e
uma numerosa milícia, armados às pressas pela URSS e dirigidos com mestria
por Fidel Castro e seus colaboradores, frustraram um plano audacioso mas
absurdo, concebido nas entranhas da CIA e da própria Casa Branca, para
derrubar o regime revolucionário. A expedição subversiva foi vencida
graças ao apoio do povo ao regime, à sua liderança, aos erros dos exilados e
às vacilações de John Kennedy na Casa Branca, mas também, segundo o
Che, graças às alianças internacionais de Cuba.
Mesmo antes da invasão, o Che já vinculara a defesa da ilha ao escudo
atómico da URSS: "(Os imperialistas) sabem que não podem atacar direta-
mente, que existem mísseis com cargas atómicas que podem ser apontados
contra qualquer lugar".2 Nos dias que antecederam o desembarque, os ve-
teranos da sierra Maestra deram a virada definitiva em sua direção ideoló-
gica. Em um irado discurso em Havana, perante uma multidão tensa, Fidel
Castro proclamou o caráter socialista da Revolução Cubana, confirmando
um rumo na verdade definido meses antes. Já em outubro do ano anterior o
governo tinha nacionalizado, em duas tacadas, a quase totalidade das
empresas nas mãos da burguesia cubana (em 13 de outubro, desapropriando
376 empresas) e dos capitais norte-americanos (em 24 de outubro, toman-
do 166 propriedades). O diálogo entre o então diretor do Banco Nacional e
o fazendeiro mais rico e poderoso de Cuba, Júlio Lobo, ilustra a irreversibi-
lidade do rumo escolhido desde outubro de 1960. Guevara convocou Lobo
ao banco e esclareceu-lhe que "somos comunistas e não podemos permitir
que você, que encarna a própria ideia do capitalismo em Cuba, continue
como está".' Deu-lhe a opção de partir ou integrar-se à revolução, oferecen-
do-lhe, nesse caso, o cargo de diretor-geral da indústria açucareira no país,
obviamente retirando-lhe suas propriedades, mas permitindo-lhe o usufru-
to de seu engenho favorito. Lobo respondeu que pensaria no caso e tomou o
primeiro avião para Miami.
Formalmente, o Che não teve participação direta na batalha de playa
Girón nem na afirmação da natureza socialista do regime, mas desempe-
nhou um papel-chave na determinação do rumo que levaria a esses dois des-
fechos. Suas teses fundamentaram as decisões da cúpula revolucionária; suas
previsões e apostas se confirmaram ao longo daquela primavera que alimen-
tou todas as esperanças e tolerou todos os otimismos. Dois dias antes de
Girón, o cosmonauta soviético Yuri Gagarin tornou-se o primeiro homem a
viajar pelo espaço. Três meses mais tarde, festejou em Cuba o aniversário do
assalto ao quartel de Moncada, na companhia de Fidel Castro e de Che
Guevara. O futuro pertencia ao socialismo. Tudo parecia possível, e muitas
das decisões dos anos seguintes se impuseram devido à inevitável, justifica-
da e compreensível sensação de onipotência dos dirigentes cubanos de
então. Antes de chegar à idade de Cristo, eles haviam "derrotado o impe-
rialismo". Em meados de 1963, os erros cometidos e as imprudências prati-
cadas começariam a revelar-se na escassez, nas lutas internas e nas tensões
com a União Soviética. Durante mais de dois anos, porém, Che Guevara
desfrutou de uma oportunidade única para um revolucionário e um in-
telectual: a de experimentar livremente suas teses em uma economia, em
uma sociedade e, no fundo, na natureza humana. O lugar que hoje ocupa
como um dos grandes mitos do século XX deve-se, antes de mais nada, à
importância que deu a esse último desafio, a sua ardorosa engenharia social.
Tudo começou com playa G irón. Desde março de 1960 a administração
Eisenhower iniciara os preparativos para derrubar Castro pela força. A CIA
começou a recrutar os exacerbados exilados de Miami e treiná-los em diver-
sos pontos da América Central, principalmente a Guatemala. Não era por
nenhum acaso que a atividade se desenvolveria no mesmo local onde a
agência colhera uma de suas maiores vitórias em toda a guerra fria, ao desti-
tuir Jacobo Arbenz da presidência do país, sete anos antes. Vários dos par-
ticipantes da nova conspiração norte-americana, entre eles David Atlee
Phillips, tinham participado da operação de 1954- Quando Eisenhower
entregou o governo a John Kennedy, em 20 de janeiro de 1961, os prepara-
tivos para o desembarque estavam muito adiantados e só aguardavam o sinal
verde da nova administração.
O esquema era relativamente simples e por isso mesmo despropositado.
Partia de um conjunto de análises malfeitas e tendenciosas, segundo as quais
a população cubana, castigada por privações e pelo terror do regime, recebe-
ria de braços abertos uma expedição de notáveis e valorosos exilados. As forças
armadas rebeldes — descontentes e divididas, segundo os informantes da CIA
— se levantariam contra o governo ao primeiro sinal de mudança. Bastava que
os "combatentes da liberdade" conseguissem consolidar uma cabeça-de-
ponte na ilha — perto de Escambray, onde j á havia uma resistência armada ao
governo —, recebessem o reconhecimento e reforços externos (leia-se dos
Estados Unidos) e desencadeassem uma forte ofensiva propagandística, para
que o regime caísse ou, na pior das hipóteses, se enredasse numa guerra civil.
Desde o início o plano previa um envolvimento limitado dos Estados
Unidos. Washington e a CIA se restringiriam a organizar, armar e treinar os
cubanos anticastristas de Miami. Forneceriam as embarcações para trans-
portá-los da Guatemala a Cuba, via N icarágua, e os aviões que destruiriam —
em terra — a esquálida força aérea da ilha. Por último, talvez acompanhas-
sem a invasão através de alguns agentes disfarçados. Mas não haveria uma
presença norte-americana explícita e direta. O Departamento de Estado
opusera-se a ela, e Kennedy, apesar de suas eternas vacilações, acabara acei-
tando o veto de seus conselheiros diplomáticos. A participação norte-ame-
ricana dependeria da consolidação de um governo provisório que a solicitasse.
As mesmas incertezas de Kennedy o levaram a impor várias mudanças
no plano inicial. Mudou-se o local do desembarque para a baía dos Porcos,
no pântano de Zapata — uma escolha estranha, pois se tratava do lugar
preferido por Fidel Castro para suas pescarias (onde se realizara a reunião
com Anastas Mikoian, citada no capítulo anterior), onde o regime revolu-
cionário investira muito dinheiro em ambiciosos e utópicos projetos de
reabilitação social. Os carvoeiros da região, únicos habitantes do pântano,
figuravam entre os filhos diletos da revolução, devido a sua pobreza e mar-
ginalização e ao afeto que o comandante-em-chefe nutria por eles. Mas nem
a CIA, nem os exilados sabiam de nada disso ou, se sabiam, não contaram a
Kennedy e seus principais assessores.4 Tampouco explicaram ao ingénuo
ocupante da Casa Branca que, ao optar pela baía dos Porcos, excluíra-se a
possibilidade, decisiva para os invasores, de se refugiarem em Escambray, tal
como Castro fizera na sierra Maestra, caso fosse impossível resistir no
litoral.5 A cabeça-de-ponte escolhida ficava a muitos quilómetros da serra
protetora, separada deles por um impenetrável pântano.
Do lado norte-americano, playa Girón foi uma trágica comédia de erros.
Kennedy não deteve o desembarque por medo de parecer fraco e vacilante
diante dos veteranos combatentes da CIA e do Pentágono, mas não lhes deu o
apoio necessário para que o plano prosperasse. Quando o chanceler cubano
Raul Roa denunciou nas Nações Unidas o primeiro ataque aéreo, procedente
da Nicarágua, Kennedy condicionou o envio da segunda esquadrilha de bom-
bardeiros (destinada a destruir a aviação cubana) à captura pelos invasores da
pista aérea vizinha à baía dos Porcos. A ideia era alegar que os bombardeiros
B-26 tinham saído dali. Mas a brigada invasora não podia garantir a pista
porque não dispunha do equipamento necessário para tomá-la. Este não
chegara porque os navios ancorados em alto-mar não podiam abastecer os ata-
cantes, impedidos de se aproximar da costa pela aviação cubana. E a aviação
cubana não fora destruída em terra porque Kennedy não o permitira. * No fun-

(*) Desde janeiro, um memorando da CIA deixava claro: "A força aérea e a frota
naval de Cuba devem ser destruídas ou neutralizadas antes que nossos anfíbios se apro-
ximem da praia. Caso contrário, corremos o risco de um desastre". Como assinala Wyden,
autor do livro citado, "a CIA queria o máximo de poder aéreo; o Departamento de Estado
exigia um mínimo de presença na área, para sustentar a mentira de que a invasão partia
de Cuba". (Wyden, Bay ofPigs, the untold story, p. 135.)
do, vista de Washington, a baía dos Porcos foi um grande mal-entendido. A
CIA iludiu Kennedy, persuadindo-o de que a população cubana pegaria em
armas contra Castro, e o presidente, por sua vez, enganou a agência de infor-
mação dizendo a verdade. Os agentes da operação nunca acreditaram que o
presidente dos Estados Unidos permitiria que uma força expedicionária de
1500 homens, armados e organizados pelo seu governo, fosse mandada para o
matadouro. Mas ele permitiu.
Do lado cubano, a baía dos Porcos foi a prova concreta de dois atribu-
tos inegáveis da revolução: sua raiz popular e a intuição política de Fidel Cas-
tro. A cúpula cubana evidentemente sabia da iminência da disparatada
investida de playa Girón. Seus serviços de informação tinham se infiltrado
entre os conspiradores de Miami e até entre os recrutas anticastristas aquar-
telados na Guatemala. Cuba se preparava para resistir e tratava de agilizar o
envio das armas fornecidas pelo bloco socialista. Os Mig-17 soviéticos, os
tanques e blindados de transporte não chegaram a tempo, nem houve o tem-
po suficiente para treinar um exército profissional em condições de com-
bate; as FAR incluíam apenas 25 mil homens. Nessas condições, Castro não
teve outro remédio senão armar a população. Jamais se atreveria a fazê-lo se
não tivesse certeza de seu apoio e lealdade. Os 200 mil milicianos formados
quase às vésperas do ataque na baía dos Porcos desempenharam um papel
decisivo na vitória. Permitiram que Castro mantivesse pequenos contin-
gentes em quase todos os possíveis locais de desembarque, a postos para dar
o alarma. A formação e treinamento das milícias esteve em grande parte a
cargo do Departamento de Instrução das FAR, dirigido desde 1960 pelo Che.
Nesse sentido, a contribuição de Guevara para a vitória, embora indireta, foi
crucial. Sem as milícias, a estratégia militar de Castro era inviável; sem o
Che, os milicianos não teriam sido confiáveis.
Como disse um historiador norte-americano, Castro teve o instinto
político necessário para "acreditar em Kennedy quando este descartou
firmemente o envio de forças dos Estados Unidos contra Cuba".6 Com-
preendeu que o plano da Casa Branca consistia em reproduzir a experiência
guatemalteca: uma invasão por vias indiretas, o estabelecimento de uma
cabeça-de-ponte e a formação de um governo provisório que logo contaria
com apoio e reconhecimento. Para garantir o fracasso da manobra, intuiu
que era preciso desarticular de imediato a força invasora, antes que tudo mais
pudesse acontecer. Portanto, era preciso concentrar todos seus efetivos no
lugar da invasão o mais rápido possível. Também tinha que aproveitar a
minúscula força aérea à sua disposição — quinze velhos e desmantelados
B-26, três T-33 de treinamento e seis Sea Furies — para afundar ou afastar os
navios de abastecimento dos expedicionários, privando-os de reforços,
comunicações, equipamento e combustível para seus veículos anfíbios. A
batalha da baía dos Porcos em boa medida foi ganha no ar.
Mas Fidel também tinha planos estratégicos para defender Cuba no
caso de uma invasão norte-americana no sentido estrito: Raul Castro esta-
va encarregado da província de Oriente; Juan Almeida, do centro da ilha, e
Ernesto Guevara, de Pinar dei Rio, Havana e de todo o extremo ocidental.
Daí o motivo de o Che não ter maior presença nos combates de playa Girón
propriamente ditos. Além do mais, nas primeiras horas do ataque, uma bala
pegou de raspão em seu rosto, no comando de Consolación dei Sur, obri-
gando-o a passar 24 horas no hospital e debilitando-o por vários dias. Cas-
tro, convencido de que playa Girón era o teatro principal da operação dos
contra-revolucionários, desde o segundo dia concentrou ali a totalidade de
suas forças. Apostou todas as fichas na baía dos Porcos, e ganhou. Os
cubanos da ilha perderam 161 homens; os de Miami, 107, mas 1189 parti-
cipantes da malograda expedição foram presos. Depois, Castro trocou-os
com Kennedy por 52 milhões de dólares em alimentos e remédios.
Meses mais tarde, meio brincando, meio a sério, Che Guevara agradeceu
o fiasco da baía dos Porcos ao enviado de Kennedy à Conferência de Punta dei
Este: "Graças a vocês pudemos consolidar a revolução em um momento par-
ticularmente difícil".7 Tinha razão: Girón permitiu ao regime cerrar fileiras e
firmar pé, montar o formidável aparato de vigilância e segurança alicerçados
nos Comités de Defesa da Revolução e o Ministério do Interior, e ao mesmo
tempo tachar qualquer adversário como agente ou títere de Washington.
Como o embaixador da Grã-Bretanha informou ao Foreign Office:
Fidel Castro conseguiu, em 1961, conduzir seu país firme e verdadeiramente
ao campo socialista, contra o desejo e a intuição da maioria de seu povo. Creio
que nem sequer o prodigioso Fidel Castro teria conseguido efetuar esse tour de
force* se não fosse por esse exemplar desastre que foi a invasão de abril, uma
operação que, vista daqui, fez com que a campanha de Suez (de 1956-JGC)
parecesse um agradável piquenique [...] Duvido que alguma vez o prestígio dos
Estados Unidos tenha estado mais baixo que logo após a invasão...8
Entre 15 e 17 de abril, mais de 100 mil pessoas foram detidas em
Havana: o Teatro Blanquita, La Cabana, o campo de beisebol de Matanzas

(*) Expressão idiomática em francês no original: proeza difícil e particularmente


bem-sucedida. (N. T.)
e o Castillo dei Príncipe se encheram de supostos conspiradores contra o
regime. Seus principais dirigentes — várias dezenas — foram fuzilados nes-
ses dias, ou pouco depois. Acentuou-se a tendência para a intransigência e
o "dogmatismo", como foi chamado mais tarde. O Che confidenciaria ao
embaixador soviético: "Os órgãos cubanos de contra-espionagem iam
reprimir com firmeza os contra-revolucionários e não lhes permitiriam reer-
guer a cabeça, como acontecera nas vésperas do ataque".9 Formalizou-se a
aliança com o Partido Socialista Popular, que rapidamente aproveitou a
decisão de formar o novo partido, denominado Organizações Revolu-
cionárias Integradas (ORIs), para torná-lo hegemónico. E, como observou o
embaixador inglês:
Surgiu em todo o país uma rede interligada de comités revolucionários e orga-
nizações como os Comités de Defesa da Revolução, a Juventude Rebelde, as
Associações de Mulheres Revolucionárias, criando células nas fábricas, nas
fazendas coletivas, no exército, nas milícias e nos sindicatos. A evidência
demonstra que desempenharam suas funções com muito mais resolução,
ordem e disciplina do que seria de esperar dos cubanos. O governo opera e
organiza tudo através delas, desde a campanha de alfabetização até os
protestos nos povoados, desde a aplicação das medidas de segurança contra os
contra-revolucionários até a distribuição dos carnes de racionamento. Graças
a elas, o governo se mantém perto do povo e sabe o que ele pensa. Corrige
assim os "pensamentos equivocados" antes que eles se difundam e utiliza todos
os meios, justos e injustos, para atrair a totalidade dos cubanos a sua causa.10
Antes de mais nada, playa Girón permitiu que Cuba consolidasse um
rumo económico e político e desafiasse com vigor os Estados Unidos perante
o resto da América Latina. Com relação a esse último aspecto, seria justa-
mente o Che o encarregado de uma dupla tarefa. Encabeçaria a delegação
cubana na Conferência de Punta dei Este, na qual Douglas Dillon, o
secretário do Tesouro de John F. Kennedy, anunciou os detalhes da Aliança
para o Progresso, lançada com grande pompa em 13 de março de 1961. No
Uruguai, o virtual filho pródigo brilhou como oráculo da denúncia: fortale-
cido pela vitória da baía dos Porcos, criticou não só Dillon e o suposto Plano
Marshall para a região, mas também os governos latino-americanos tímidos
e submissos. Em segundo lugar, seguiu a recomendação de Fidel Castro de
buscar o diálogo com algum representante da administração Kennedy, de
preferência um dos jovens "génios" procedentes das universidades. O Che
se desincumbiu de ambas as tarefas com elegância e habilidade e, por outro
lado, com o estilo hiperbólico e a intransigência que o caracterizavam.
A decisão de comparecer à reunião interamericana fora tomada bem
antes. O Che já a comunicara ao embaixador soviético Kudriavtsev em 26
de julho, mas pedindo-lhe que a mantivesse em segredo. Expusera então seu
propósito de mostrar em seu discurso o contraste entre a ajuda soviética a
Cuba e aquela que Kennedy anunciaria por meio de seu delegado." A esco-
lha de Guevara como chefe da delegação deveu-se ao mesmo motivo de suas
viagens anteriores. Ele era o único dirigente do alto comando da revolução,
além de Castro, em condições de satisfazer todos os requisitos do jogo de
cena internacional. Raul Roa, o chanceler, apesar de seu preparo intelec-
tual, carecia de prestígio interno ou internacional para um papel de tal
envergadura. Além do mais, aquilo tudo era um verdadeiro deleite para o
Che: ele simplesmente adorava as missões internacionais. Permitiam-lhe
ampliar seus contatos, frequentar as mais variadas personalidades e afastar-
se da rotina burocrática de Cuba.
Guevara captara a lógica de Washington. Se a Revolução Cubana
constituía a maior ameaça para os interesses dos Estados Unidos na Améri-
ca Latina, esse país deveria tolerar um mal menor, para evitar que o mal
maior contagiasse o continente. O mal menor consistia acima de tudo na
transferência de recursos e, em menor grau, no apoio a reformas políticas e
sociais que pudessem aplacar os ânimos rebeldes no continente. As
instruções secretas para a delegação norte-americana refletiam uma dis-
posição idêntica à que o Che previra, quase um ano antes, em sua conversa
com o embaixador soviético em Havana:12
1) Prestar uma assistência prioritária à América Latina, sobretudo durante os
próximos dez anos, para melhorar a educação, a saúde, reformar o sistema e a
administração tributários, a moradia, propiciar um melhor e mais equitativo
uso da terra, a construção de estradas e demais equipamentos públicos, esta-
belecer empresas produtivas e melhorar a distribuição da renda. 2) Dar espe-
cial atenção às melhorias nas áreas rurais e nas condições de vida dos grupos
indígenas e camponeses. 3) Conclamar e ajudar todos os países a estabele-
cerem planos de desenvolvimento equilibrados e de longo prazo."
O Che compreendeu que a estratégia era engenhosa e por isso viu-se
obrigado a preparar uma resposta ao mesmo tempo ambiciosa e eficaz.
Elaborou-a bem de acordo com o espírito da época e com suas concepções
sobre as perspectivas de êxito da economia cubana. Recordemos: Era o tem-
po em que Nikita Krushev ameaçava "enterrar" os Estados Unidos e em dez
anos superar a produção norte-americana de aço (produto considerado pela
URSS de então como o paradigma da modernidade industrial). Era o momen-
to em que a tese da coexistência pacífica, idealizada pelo Kremlin, desen-
cadeara uma feroz competição, sobretudo económica, entre as duas super-
potências. Daí a lógica do Che em Punta dei Este: o terreno em que Cuba
mais claramente superaria os demais países latino-americanos enquanto
estes não consumassem suas próprias revoluções seria o económico — pen-
sava ele. Graças à revolução, ao socialismo e à ajuda da URSS, a ilha alcan-
çaria níveis de desenvolvimento e bem-estar inimagináveis nas demais
nações da região, apesar da alardeada "assistência" norte-americana. O Che
escolheu esse terreno por ser o preferido dos marxistas de seu tempo, porque
era essa sua missão e porque parecia o campo adequado para o confronto, em
face dos cruciais dilemas da América Latina.
O avião do Che aterrissou em Montevidéu no dia 4 de agosto. Foi acla-
mado por jovens manifestantes — uma multidão, segundo alguns; uma
decepção, de acordo com outros —, que o escoltaram em caravana até o bal-
neário da oligarquia platina, normalmente fechado no inverno austral. Foi
uma espécie de regresso triunfal à casa: da Argentina vieram vê-lo seus pais,
irmãos, amigos e amigas da escola e da universidade. Como recorda uma de
suas conhecidas da juventude que o visitou em Punta dei Este: "Ele pergun-
tou por todos os amigos, todo mundo de quem ele gostava, o que tinham
feito, o que não tinham feito, por Chichina, por uns senhores, velhos, tios
de Chichina, perguntava muito. E, bom, por alguns amigos com os quais a
gente via que ele tinha algum tipo de contato; não perguntou por todos, mas
por aqueles que lhe interessavam".14
Aleida mais uma vez não o acompanhou. Arriscou-se a deixá-lo a sós
nas mãos de sua mãe e das lembranças amorosas da juventude. Segundo o
memorando secreto que Richard Goodwin escreveu a John Kennedy sobre
seu encontro com o Che, quando este chegou à festa onde conversaram, "as
mulheres literalmente se atiraram em cima dele".H Os dias no Uruguai tive-
ram, portanto, também esse caráter de reencontro com a família e os amigos
de outrora, em meio a intermináveis conversas e conspirações nas suítes e
salões dos hotéis e cassinos de Punta dei Este.
O discurso do Che na Conferência do Conselho Interamericano
Económico e Social lançou várias farpas dignas de menção. A primeira foi
sua insistência em pôr o dedo na ferida: várias vezes recordou aos delegados
latino-americanos que deviam sobretudo à Revolução Cubana os fundos
que eventualmente conseguissem arrancar dos Estados Unidos: "Esta nova
etapa começa sob o signo de Cuba, território livre da América; esta confe-
rência, o tratamento especial que suas delegações tiveram, e os créditos que
forem aprovados, tudo traz o nome de Cuba, gostem ou não seus bene-
ficiários".16
Ele tinha toda a razão, mas essa verdade dificilmente poderia aproxi-
mar o representante de Cuba das demais delegações da América Latina. Em
seguida, comparou o montante de recursos anunciado por Douglas Dillon —
20 bilhões de dólares ao longo da próxima década, na época uma soma
astronómica — com a soma proposta por Fidel Castro — 30 bilhões — em
um discurso pronunciado dois anos antes em Buenos Aires. Fez notar que
"fazendo mais uma forcinha quem sabe dê para se chegar aos 30 bilhões",
para logo advertir que até o momento o Congresso dos Estados Unidos só
aprovara 500 milhões de dólares de financiamento destinados à Aliança
para o Progresso. A tónica era bem pouco diplomática, mas eficaz. No fun-
do, dizia o Che, os Estados Unidos entenderam que a alternativa para a
América Latina era dinheiro ou revolução, um dilema que favorecia até go-
vernos entreguistas, como os ali representados. Mas isso só aconteceria se
estes não se deixassem espoliar pelos "ianques", o que, no caso deles, era algo
impossível de esperar. Por isso, na opinião do Che, a Aliança estava fadada
a um rotundo fracasso a médio prazo. Uma segunda reflexão de Guevara que
se mostraria profética foi sua pauta de reivindicações. Foi uma das primeiras
ocasiões em que se apresentou a agenda do que por muitos anos seria a aspi-
ração de grande parte dos países do Terceiro Mundo, independente de sua
filiação ideológica. Pela primeira vez um país do mundo em desenvolvi-
mento apresentava uma agenda económica internacional, dirigida ao mun-
do industrializado em seu conjunto e em nome do chamado Terceiro Mundo
em sua totalidade. A lista de reivindicações incluía preços estáveis para as
matérias-primas exportadas pelos países pobres, acesso aos mercados ricos,
redução das taxas alfandegárias e demais barreiras, empréstimos livres de
condicionamento político, convénios de ajuda financeira e técnica. Nada
havia ali que organismos como a CEPAL — representada na conferência por
Raul Prebisch, compatriota do Che e virtual fundador do desenvolvimen-
tismo latino-americano — não tivessem proposto anteriormente. Nem
havia grandes diferenças em relação às demandas que diversos governos do
Terceiro Mundo fariam nos anos seguintes. Porém, a eloquência de Gue-
vara, o desembaraço e a precisão de sua fala lhe deram um caráter excep-
cional. Diz o informe secreto de Dillon a Kennedy:
Senhor presidente, o discurso de Guevara foi uma apresentação magistral do
ponto de vista comunista. Identificou claramente Cuba como um membro
do bloco, falando de "nossas irmãs, as repúblicas socialistas". Por ter atacado
a Aliança para o Progresso em sua totalidade e tudo que a conferência se
propõe a realizar, não contou com a simpatia dos delegados. No entanto, Gue-
vara dirigiu-se, por cima dos ombros dos delegados, aos povos da América
Latina, e daqui é impossível avaliar o êxito que possa ter nesse intento.17
O eixo do discurso do Che centrou-se no enfoque comparativo e nas
previsões ufanistas e desmesuradas.
A taxa de crescimento que se apresenta como ideal para toda a América é de
2,5% [...] Nós falamos sem nenhum receio em 10% de desenvolvimento [...]
O que Cuba calcula que terá em 1980 ? Uma renda per capita de 3 mil dólares,
maior que a dos Estados Unidos atualmente [...] Que nos deixem em paz,
que nos deixem crescer, e dentro de vinte anos reunamo-nos todos de novo
para ver de onde vinha o canto de sereia: se de Cuba revolucionária ou de
outro lugar.18
Apesar disso, a postura do Che foi, em termos gerais, moderada e con-
ciliadora. Repetidas vezes, ao longo dos dez dias que durou a conferência, ele
enfatizou a disposição de Cuba de permanecer na comunidade interameri-
cana, incluir-se na recém-criada Associação Latino-Americana de Livre
Comércio (ALALC), não provocar o fracasso da Aliança para o Progresso e
procurar um entendimento com os Estados Unidos. Em seu afã de nego-
ciação, razoável e diplomático, chegou até a dizer meias-verdades (ou francas
mentiras, como se preferir). "O que damos, sim, é a garantia que de Cuba não
sairá um só fuzil, uma só arma para lutar em qualquer outro país da América".19
A promessa poderia, no máximo, ser cumprida no futuro, já que no
passado imediato ocorrera exatamente o contrário, e sob a supervisão do
próprio Che. Mas ela tampouco corresponderia à verdade nos meses e nos
anos seguintes: já estavam em curso os preparativos para diversas incursões
guerrilheiras na Venezuela. Cuba poderia argumentar, como o fez, que sua
promessa dependia do respeito norte-americano a outros princípios e que
o descumprimento estadunidense justificava o cubano. Nessa ocasião,
porém, abriu-se um abismo insólito entre a retórica do Che e seu conheci-
mento dos fatos.
Afora os mecanismos de autoconvencimento, que os cubanos sempre
usaram como justificativa para sua postura cambiante, o fato é que o manda-
to do Che em Punta dei Este incluía claramente a tentativa de suavizar os
atritos com Washington e com o restante da América Latina, fosse efetiva-
mente, fosse aos olhos de terceiros. Seu discurso foi, de fato, prudente em
relação aos Estados Unidos, sobretudo se o compararmos com as expecta-
tivas — exageradas, como sempre — que a imprensa internacional alimen-
tara. Temia-se que o Che sacasse ali mesmo de uma metralhadora e aterro-
rizasse os delegados, que fizesse um chamamento à insurreição continental,
que amaldiçoasse o dia em que os Estados Unidos nasceram.* O próprio
chefe da delegação norte-americana parece ter concluído que a moderação
do Che rendeu-lhe bons frutos entre os latino-americanos, atribuindo-a a
motivos muito precisos:
Guevara não conseguiu subverter a conferência, mas não creio que tenha sido
esse o seu objetivo. Ao manter posições relativamente moderadas nas sessões
de trabalho, ele dificultou sensivelmente qualquer ação a curto prazo no sen-
tido das ideias colombianas (de censurar Cuba na OEA por ter se aliado à URSS-
JGC). Estou convencido de que foi essa sua principal meta aqui, e temo que ele
tenha alcançado um êxito considerável.20
O mesmo objetivo pode ter inspirado a reunião do Che com Richard
Goodwin, o jovem assessor de Kennedy enviado ao balneário do Atlântico
Sul como assessor da delegação norte-americana. Embora a realização do
encontro tenha vindo a público quase de imediato, o que se discutiu nele só
seria parcialmente revelado em 1968 por Goodwin, em um artigo publicado
no The New Yorker. E teriam de passar-se mais de trinta anos para que se
pudesse ter acesso ao memorando no qual Goodwin informava Kennedy sobre
sua conversa com o Che. A história que se segue baseia-se nesse memorando.
Segundo o testemunho de vários jornalistas e diplomatas, além do
próprio informe de Goodwin, a iniciativa do encontro partiu do lado
cubano.** Tudo começou quando um diplomata argentino transmitiu um
típico desafio Guevarista ao assessor norte-americano: "O Che percebeu
que o senhor gosta de charutos. Ele aposta que não se atreve a fumar autên-
ticos havanas de Cuba". Goodwin respondeu que fumaria com o maior pra-
zer, mas já não havia deles nos Estados Unidos. Naquela noite foram

(*) Um discurso pronunciado pelo Che alguns dias antes da baía dos Porcos justifi-
cava até certo ponto esse temor. Ele referiu-se aos norte-americanos como "os novos nazis-
tas do mundo [...] não têm sequer a trágica grandeza daqueles generais alemães que enter-
raram toda a Europa no maior holocausto que a humanidade conheceu e a si próprios num
final apocalíptico. Esses novos nazistas, covardes, falsos e mentirosos (foram) vencidos
pela história". (Ernesto Che Guevara, Discurso a Ias milícias, op. cit., p. 73.)
(**) Um dos jornalistas presentes no início da reunião, o francês Daniel Garric, do
Le Figaro, afirmou que "o presidente Kennedy tinha proposto esse encontro e que Guevara
não colocara nenhuma objeção". (Daniel Garric, LEuropeu, Milão, 14/9/67, cit. em
Gregorio Selser, Punta dei Este contra sierra Maestra, Buenos Aires, Editorial Hernández,
1969, p. 111.)
entregues em seu quarto duas magníficas caixas de mogno repletas dos mais
finos havanas, uma para ele, a outra, com o selo da República de Cuba, para
o presidente Kennedy.* Vinham acompanhadas de um cartão do coman-
dante Ernesto Guevara. No dia seguinte o norte-americano recebeu uma
mensagem do Che, dizendo que desejava falar com ele.21
Em diversas ocasiões ao longo da conferência, vários emissários ten-
taram efetivar o encontro entre Guevara e Goodwin. Programou-se uma
reunião para o último dia, mas Douglas Dillon proibiu-a. O grau de ani-
mosidade entre os dois países, sobretudo depois que Cuba se recusou a assi-
nar a declaração final, impossibilitava uma aproximação. Já no encerra-
mento da conferência, houve mais uma tentativa, desta vez frutífera, em
Montevidéu, durante a recepção oferecida por um diplomata brasileiro. Ali
se deu a conversa entre os dois funcionários, primeiro na presença de várias
testemunhas, em seguida a sós, em uma saleta do apartamento do anfitrião.
A entrevista durou três horas, incluindo um breve período de banalidades,
cumprimentos e despedidas.
Segundo o enviado de Kennedy, foi o Che quem conduziu a reunião.
Goodwin limitou-se a escutar e tomar nota das palavras de seu interlocutor,
para transmiti-las ao presidente. Guevara falou de maneira descontraída, sem
o mais leve tom de polémica, propaganda ou insulto, por vezes até com certo
humor. O memorando do norte-americano destaca que o Che "não deixou
nenhuma dúvida de que se sentia completamente à vontade para falar em
nome de seu governo, e raras vezes separou suas observações pessoais da
posição oficial do governo cubano. Tive a impressão de que havia escolhido
cuidadosamente suas palavras, preparado muito bem seu discurso".22
O Che começou esclarecendo que os Estados Unidos deviam entender
que o processo cubano era irreversível e de natureza socialista, que não podia
ser derrotado nem por meio de rupturas ou divisões internas, nem por qual-
quer outra forma que não implicasse uma intervenção militar direta. Falou
do impacto da revolução na América Latina; advertiu que Cuba prosseguiria
sua aproximação com os países do Leste, baseada na "mútua simpatia natu-
ral e na coincidência de ideias quanto à estrutura adequada da ordem social".
Reconheceu em seguida as dificuldades da revolução: a contra-revolução e
a sabotagem; a pequena burguesia hostil ao processo; a Igreja Católica; a

(*) Goodwin ainda conserva a caixa destinada a Kennedy, em sua casa de Concord
Massachusetts. Deixou-a em exposição em seu escritório na Casa Branca e no Departa-
mento de Estado durante o período que trabalhou ali. (Richard Goodwin, entrevista com
o autor, Concord, Massachusetts, 5/5/95.)
escassez de peças de reposição, devido ao conflito com os Estados Unidos; a
carência de divisas. Admitiu em particular os desequilíbrios que Cuba já
enfrentava em suas contas externas, por ter acelerado demais o processo de
desenvolvimento, esgotando perigosamente as reservas em divisas. O país não
podia importar os bens de consumo básicos de que sua população necessitava.2'
Como era previsível, Guevara deixou claro que Cuba desejava uma
convivência pacífica com Washington, e para tanto estava disposta a tomar
uma série de medidas concretas. Entre elas, destacavam-se: pagar em mer-
cadorias os ativos confiscados de cidadãos norte-americanos (um tema ain-
da pendente 35 anos depois); não estabelecer alianças militares ou políticas
com o bloco socialista; celebrar eleições livres em Cuba depois de institu-
cionalizado o "partido único"; inclusive — assegurou o Che, entre risos —
comprometer-se a "não atacar Guantánamo". Até aí, nenhuma surpresa. A
novidade surgiu quando se tocou o tema do fomento da revolução no resto
da América Latina. Sabendo que falava perante diplomatas do Brasil e da
Argentina, o Che, sem nunca admitir que Cuba tivesse armado, treinado e
sustentado grupos guerrilheiros em outros países, deu a entender que com-
preendia perfeitamente que qualquer acordo com Washington implicaria a
suspensão dessas atividades. Se fosse o caso, Cuba negociaria com base nesse
pressuposto.
No dia seguinte, de volta a Washington, Goodwin encontrou-se com
Kennedy, a quem relatou o ocorrido e a pedido de quem redigiu o já citado
memorando, que circulou nos mais altos escalões do governo dos Estados
Unidos. Mas, segundo Goodwin, Kennedy nunca respondeu a ele explícita
e formalmente.24 O memorando recomendava uma política mais moderada
em relação a Cuba, menos "obsessiva", mas ainda baseada em ações secretas
e "de sabotagem de pontos-chave de instalações industriais, como as refi-
narias" e "estudando o problema de uma guerra económica contra Cuba".
Sugeria que se mantivessem as pressões económicas, as manobras militares,
a desinformação e a propaganda.25 Mas também propunha que não se inter-
rompesse o diálogo "subterrâneo" com Cuba, argumentando que se até o
Che — o comunista mais convicto da cúpula cubana — se dispunha a pen-
sar na possibilidade de um diálogo com o governo norte-americano, "talvez
haja outros dirigentes cubanos ainda mais dispostos a um entendimento
com os Estados Unidos". Isso permitiria descobrir, eventualmente, a
existência de "cisões na liderança de primeiro escalão".
A iniciativa cubana nunca prosperou. Surgiu em um momento ino-
portuno para Kennedy. O governo de Rómulo Betancourt na Venezuela
estava acuado entre a esquerda e os militares; uma reconciliação entre Cuba
e os Estados Unidos teria fortalecido a esquerda e provocado um golpe de
Estado. Além do mais, Castro tinha se fortalecido demais, e qualquer sinal
de distensão seria interpretado como uma vitória dele, "obrigando os Esta-
dos Unidos a se conformarem com a existência, na América Latina, de um
governo comunista, antiamericano, o que teria incentivado outros movi-
mentos em outros lugares".26
Enquanto os cubanos não abrirem seus próprios arquivos — supondo-
se que eles existam — e os últimos personagens com vida e conhecimento
de causa permanecem calados, não saberemos com exatidão quais foram
as intenções de Fidel Castro e de Che Guevara ao buscar o diálogo com
Washington. Guevara certamente menosprezou o significado da reunião ao
voltar a Cuba e relatar sua missão:
Fomos convidados por uns amigos brasileiros para uma pequena reunião ínti-
ma, e ali estava o senhor Goodwin. Tivemos uma entrevista, mais de cunho
pessoal, como dois convidados de uma terceira pessoa [...], sem representar-
mos nesse momento nossos respectivos governos. Nem eu estava autorizado a
manter nenhum tipo de conversação com um funcionário norte-americano,
nem ele com um cubano [...]. Enfim, foi uma troca de palavras breve, cortês,
fria, como corresponde a dois funcionários de países oficialmente inimigos,
não é verdade?, mas que não teve maior importância até ser divulgada por
algum jornalista ou funcionário. Isso foi tudo.27
Seria mesmo de estranhar que alguém como o Che — que poucos meses
antes da batalha de playa Girón assegurara ao embaixador soviético em
Havana que qualquer reconciliação de Cuba com os Estados Unidos preju-
dicaria a causa revolucionária na América Latina — de repente tivesse
mudado tão radicalmente de opinião. Também é difícil acreditar que Fidel
Castro pudesse supor, depois da baía dos Porcos, que Kennedy, por algum
estranho motivo, estivesse disposto a aceitar uma convivência pacífica com
Cuba, possibilidade que ele taxativamente descartara ao chegar à presidên-
cia. A explicação da CIA, e também de Douglas Dillon, para a mudança da
postura cubana — embora não para o encontro com Goodwin — foi que se
tratava de uma jogada de Castro visando evitar o isolamento regional de
Cuba. Mencionavam também a crescente crise económica na ilha.28 Sem
descartar certa inexperiência ou ingenuidade por parte dos dirigentes
cubanos, podemos especular que fosse outra a verdadeira razão do empenho
em falar com Goodwin e enviar uma mensagem à Casa Branca. Talvez fosse
uma tentativa de convencer os governos do Brasil e da Argentina — cuja
postura seria decisiva nas próximas deliberações da OEA condenando Cuba
— da boa vontade de Havana para com os Estados Unidos, ou quem sabe fos-
se fruto da insistência soviética para que Cuba se esforçasse ao máximo no
sentido de entender-se com os Estados Unidos antes de ingressar no bloco
socialista e pôr-se a salvo de qualquer ataque atrás do escudo atómico de
Moscou.
Krushev não viu com bons olhos a declaração de Fidel sobre o caráter
socialista da revolução, em abril. Os serviços de informação norte-ameri-
canos comunicaram que, durante sua visita a Moscou, em finais de 1960, o
Che havia solicitado mísseis a Krushev, mas este recusara o pedido termi-
nantemente.29 Moscou não demonstrou o menor entusiasmo ante a profis-
são de fé marxista-leninista de Castro, que em seu discurso de 26 de janeiro
de 1961 não passara de uma vaga insinuação, para ser repentina e brutal-
mente explicitada em lfi de dezembro do mesmo ano. Ao mesmo tempo,
aumentavam as dúvidas na capital russa quanto à conveniência da decisão
de sustentar a frágil economia cubana. E de se supor, portanto, que, antes de
lançar-se à aventura, Moscou pressionasse os cubanos para que esgotassem
todas as possibilidades de diálogo com Washington, sobretudo a poucos
meses da fracassada reunião de cúpula de Viena entre Kennedy e Krushev.
Nesse caso, Castro e o Che, em vez de se oporem à recomendação soviética,
seguiram-na ao pé da letra. Para comprovar sua boa vontade, o Che, o mais
antiamericano dos dirigentes da ilha, empenhou-se em estabelecer o diá-
logo com Washington, escolhendo para o encontro uma ocasião que, sem
deixar de ser discreta, contava com a presença de testemunhas de peso.
Decidiu-se, inclusive, que o Che faria colocações ponderadas a seu inter-
locutor, tendo em vista o fato de que, de um modo ou de outro, os próprios
norte-americanos informariam os soviéticos sobre o teor da conversa.
Quando, após tanto esforço, se comprovasse não haver mais nada a fazer,
Krushev ficaria sem argumentos para recusar as demandas de Cuba.
Há outras interpretações para a iniciativa. Entre elas, uma referente às
etapas seguintes da viagem do Che Guevara pela América Latina, a única
que realizaria na região antes de enfiar-se na ratoeira boliviana. De Monte-
vidéu, ele partiu, diz-se que secretamente, para sua querida Buenos Aires,
em viagem de um dia, para um encontro com o presidente Arturo Frondizi.
Antes da baía dos Porcos, circulou a versão de que Frondizi, junto com seu
colega brasileiro, Jânio Quadros, propusera ao mandatário norte-americano
mediar a negociação com Cuba. A iniciativa não rendeu frutos, mas abriu
um precedente. O próprio Frondizi, comprovando a moderação dos discur-
sos do Che, pensara que a ocasião era propícia para nova tentativa media-
dora. A entrevista foi realizada no dia 18 de agosto, na residência presiden-
cial de Olivos, e durou setenta minutos. Em seguida, o Che comeu um bom
bife argentino, em companhia da esposa e da filha de Frondizi, fez uma rá-
pida visita a sua tia Maria Luisa e em seguida voltou a Montevidéu, de onde
partiu imediatamente para o Brasil. O sigilo combinado se manteve, ao
menos naquele dia, mas 24 horas depois rebentou o escândalo, provocando
a imediata demissão do chanceler argentino. A rápida passagem de Che
Guevara pela cidade de sua juventude suscitou tamanha controvérsia que
muitos atribuíram a ela o golpe de Estado que um ano mais tarde derrubaria
Arturo Frondizi.
Em uma declaração de 1992, Frondizi afirmou que John Kennedy lhe
pedira para reunir-se com o Che, pois queria "normalizar a relação com Cuba
depois do fracasso da baía dos Porcos. Tanto Kennedy quanto (Jânio)
Quadros e eu acreditávamos que Guevara era um comunista amigo dos Esta-
dos Unidos, ao passo que Fidel Castro era o homem da URSS".!C Análise insólita
e duvidosa: nada indica que Kennedy pensasse uma coisa semelhante. Por
sua vez, Jânio Quadros, que dias depois condecorou o Che em Brasília com a
Grã-Ordem do Cruzeiro do Sul, também seria vítima da maldição do cubano
errante. Uma semana mais tarde, renunciaria à presidência do Brasil em um
gesto estranho, passional e jamais esclarecido. O recém-publicado relato de
seu porta-voz mostra tanto as complicações políticas do momento como o
comportamento do Che em solenidades desse género:
Jânio saudou rapidamente o ministro revolucionário de Cuba que, em um uni-
forme simples, cansado e sonolento — viajara toda a noite —, não parecia à
vontade na cerimonia. O presidente colocou-lhe o colar no pescoço e entre-
gou-lhe a caixa com o diploma e a medalha. Guevara agradeceu com poucas
palavras. Depois, produziu-se um silêncio constrangedor. Jânio convidou o
ministro a entrar em seu gabinete e, percebendo o embaraço do homenagea-
do, voltou-se para seu chefe de protocolo e disse-lhe: "Ministro, tire este colar
de Guevara" [...] No dia seguinte, começaram os rumores, que se confirma-
riam dias depois, de que vários militares estavam decididos a devolver suas
condecorações ao governo em protesto contra o tributo a Guevara."
Depois de uma ausência de mais de duas semanas, o Che por fim voltou
a Havana. Ali deparou-se com novos e mais graves desafios à revolução. O
mais importante se dava justamente naquele terreno em que Cuba queria ser
avaliada, conforme as palavras do próprio Che em Punta dei Este: o do
desempenho económico. O outro, no terreno político, implicava a enorme
façanha de institucionalizar o poder revolucionário por meio da criação de
um partido único e centralizado.
Depois da baía dos Porcos, Fidel Castro e os demais dirigentes revolu-
cionários iniciaram um árduo processo de construção partidária. Em julho
de 1961, Castro anunciou a formação das Organizações Revolucionárias
Integradas, ou ORIs, agrupando três correntes: o Movimento 26 de Julho, o
Diretório Estudantil Revolucionário — ou o que sobrara dele — e o Partido
Socialista Popular. Em seu discurso de 26 de julho, Fidel batizou o parti-
do que estava na iminência de nascer com o nome, exato, mas não muito
atraente, de Partido Único da Revolução Socialista. Apesar dos apelos de
Castro, o tempo corria, e o partido não vingava, ainda que o trabalho de
organização já tivesse sido iniciado. Ele estava nas mãos dos quadros
disponíveis, ou seja, os comunistas do PSP, já que os do 26 de Julho e do
Diretório que permaneciam em Cuba se dedicavam a atividades de admi-
nistração e defesa. E os comunistas, liderados por Aníbal Escalante, que
havia muito tempo era o segundo homem do PSP, propuseram-se a construir
um partido comunista à moda antiga. Foram tomando conta do poder e da
rede de organização, ditaram as regras do jogo e ocuparam os postos-chave
com gente de sua confiança. Castro começou a elogiá-los em público de
maneira desconcertante e, em dezembro de 1961, confessou, sem muita con-
vicção, sua definitiva conversão ao marxismo-leninismo. Quando Cuba foi
expulsa da OEA, em uma nova conferência em Punta dei Este, em janeiro de
1962, o caudilho lançou a Segunda Declaração de Havana, reiterando, com
mais veemência ainda, o caráter socialista da revolução.
Aumentaram as divergências dentro do movimento revolucionário
sobre a composição, natureza e finalidade do novo partido. Em 9 de março
designou-se a primeira junta diretora das ORIs: dez comunistas e treze
"fidelistas", vários provavelmente mais fiéis ao partido do que a Fidel. Du-
rante as semanas seguintes, correram vários boatos sobre a composição da
cúpula partidária, que se somaram a uma sequência de incidentes públicos,
a um sumiço de Fidel, de Raul e do Che durante várias semanas, refletindo
acirrada luta interna.*

(*) Um embaixador ocidental bem informado descreveu assim o desfecho do con-


flito num informe confidencial ao seu governo: "As evidências levam a crer que Castro
usou o período de suspensão das aparições públicas tanto para mobilizar o apoio de seus
seguidores como para demonstrar aos velhos comunistas que não podiam ficar no poder
sem ele. Por fim, como fórmula de transição, entregou aos antigos comunistas postos
importantes na esfera económica, sobretudo a Rafael Rodríguez, no 1NRA, enquanto os
A luta se decidiu em 27 de março, quando Castro fez uma violenta críti-
ca contra Aníbal Escalante, acusando-o de todos os vícios políticos ima-
gináveis, agrupados sob o pecado do "sectarismo". Ele foi destituído da
direção das ORIs e, em termos gerais, houve uma leve distensão da linha dura,
ortodoxa, numa palavra, stalinista, que imperava havia meses em Cuba.
O Che nunca viu com bons olhos a criação das ORIs sob a tutela do PSP
e de Escalante. Junto com Juan Almeida, Raul Castro e Osmany Cienfue-
gos, participou ativamente, embora com a máxima discrição, do grupo que
investigou a conduta de Escalante e provocou sua remoção da liderança do
novo partido." Em uma entrevista concedida quatro anos mais tarde a uma
revista egípcia, disse:
Escalante começou a ocupar todos os postos importantes. Valeu-se de ideias
sectárias, que não permitiriam a construção de um partido do povo [...] Alguns
dos quadros antigos chegaram a postos elevados e desfrutaram de vários pri-
vilégios — belas secretárias, cadillacs, ar-condicionado. Logo se acostumaram
e preferiram manter as portas fechadas para poder desfrutar do ar-condicio-
nado, deixando de fora o calor cubano. Mas acontece que, além do calor, lá
fora estavam os trabalhadores. "
Apesar da denúncia contra Escalante, pouca coisa mudou. O Che ain-
da não se afastara dos comunistas, mas já começava a vê-los com outros
olhos. Poucos meses mais depois, algo semelhante ocorreria com relação à
União Soviética, finda a crise de outubro e principalmente ao se confir-
marem as dificuldades na ajuda soviética a Cuba. Os dois temas estavam vin-
culados: para muitos observadores e participantes, não foi por acaso que
Fidel lançou sua ofensiva contra Escalante uma semana depois de decretar
o racionamento de uma longa lista de bens de primeira necessidade, medida
imposta pela escassez de importações, reduzidas devido ao desequilíbrio das
contas externas e ao déficit comercial com a URSS. A economia cubana
retrocedia, sob o comando de Ernesto Guevara.
O Che tinha pressa, na economia e em tudo: como Fidel Castro decla-
raria a Régis Debray, em janeiro de 1967, ele estava sempre um passo à

novos comunistas (os fidelistas-JGC) conquistaram ampla maioria na direção das ORIs.
Com esse apoio majoritário, Castro pôde então excluir o velho comunista Anibal Esca-
lante, convertido em bode expiatório da entrega do controle da revolução aos velhos
comunistas". (Ambassador George P. Kidd, Canadian Embassy, Havana, to Under-Secre-
tary of State for Externai Affairs, Ottawa, 18/5/62 (secreto), FO371/62309, Ref 8664, Fo-
reign Office, Londres.)
frente, fosse no ritmo da música, fosse no da história.54 As festivas e preten-
siosas previsões que expôs no Uruguai eram apenas a ponta do iceberg. Em
Cuba, ele impunha desafios disparatados a si mesmo e à depauperada econo-
mia da ilha. Tinha suas razões: o atraso, as carências, a pobreza e as exigên-
cias das massas inflamadas pela revolução aparentemente exigiam uma tran-
sição veloz, ainda que insustentável a longo prazo. Com "85% da economia
nas mãos do povo, a totalidade dos bancos, a indústria de base e 50% do cam-
po", podia-se começar a planejar."
Em meados de 1961, o ministro da Indústria anunciou o primeiro plano
quadrienal, com metas ambiciosas:
Adotar uma taxa [...] de crescimento de 15% ao ano; alcançar em 1965 a auto-
suficiência em géneros alimentícios e matérias-primas agrícolas, exceto nos itens
em que as condições materiais o impeçam; decuplicar a produção de frutas e
outras matérias-primas para a produção de conservas [...] construir 25 mil
habitações rurais e 25 a 30 mil habitações urbanas [...]; alcançar, no decorrer do
primeiro ano do plano, a plena ocupação da força de trabalho [...]; manter os
preços estáveis no varejo e no atacado; produzir 9,4 milhões de toneladas de açú-
car em 1965; aumentar o consumo global de alimentos a uma taxa anual de 12%.}6

Em uma palavra, tratava-se de dobrar o nível de vida até 1965.0 obje-


tivo era produzir em Cuba a maioria dos produtos até então importados,
aumentar pelo menos o consumo básico dos cubanos, estender a educação e
a saúde à totalidade da população, tudo sem deixar de lado a produção de
açúcar. Todos os objetivos eram louváveis, mas incompatíveis. Na condução
da economia, o Che pagou caro por sua inexperiência e falta de formação,
mas também por seu eterno defeito político, a defasagem entre a estratégia
e a tática, entre o curto e o longo prazo, entre a visão grandiosa e a rotina
burocrática. O descalabro da economia cubana em fins de 1961 e sobretudo
em 1962-3 se deverá tanto a fatores estruturais e insolúveis como a erros cir-
cunstanciais de gestão, em grande parte reconhecidos pelo próprio Che
durante o verão de 1963.
O primeiro tropeço veio da ideia da industrialização a toque de caixa, inspira-
da na experiência stalinista, explicável em parte pela euforia após a vitória na
batalha de playa Girón e a ajuda do bloco socialista, em parte pela urgência
política. Mesmo se os países do Leste tivessem entregado pontualmente as
fábricas onde se produziria o que antes era importado, criando uma nova classe
operária — metas essenciais para o Che — e forjando a independência
económica do país, subsistiriam dois problemas básicos. O primeiro, que
inviabilizou o esquema, era o das matérias-primas: Que carvão e que ferro se-
riam utilizados para produzir o aço ? Que óleos para fabricar o sabão ? Que fibras
para confeccionar os tecidos? Que couro para fazer os sapatos? E verdade que
uma parte das matérias-primas poderia ser obtida graças aos convénios com os
países socialistas, mas muitas delas teriam de ser importadas pagando com
divisas. E não havia reservas em divisas, o que constituía o segundo problema.
As reservas se esgotaram por dois motivos: um era decorrente dos próprios êxi-
tos da Revolução Cubana, já que a distribuição da riqueza e da renda, bem
como as campanhas de alfabetização e vacinação, tinham elevado de maneira
substancial, direta ou indiretamente, o consumo da população; o segundo
derivava, como quase tudo em Cuba, do açúcar.
Mas a revolução alcançara muitas conquistas no campo da educação. Se
antes de 1959, 40% das crianças de seis a catorze anos permaneciam fora da
escola, a porcentagem já havia baixado, em 1961, para 25%. A campanha de
alfabetização daquele ano reduziu o índice de analfabetismo de 23% para
3,9%, ainda que cifras desse tipo sempre suscitem dúvidas quanto a sua veraci-
dade e precisão. No total, participaram da campanha quase 270 mil profes-
sores, entre eles mais de 120 mil adultos." Por volta de 1965, a porcentagem
da população infantil que ficou fora da escola em Cuba ultrapassava em 50%
a média do restante da América Latina, e era superior à dos outros países da
região.18 Na área da saúde, construíram-se hospitais e clínicas, deflagraram-se
campanhas de vacinação e foi feito um enorme esforço para formar médicos
que substituíssem os que emigraram para Miami. Tudo isso custava muito di-
nheiro, gerava demandas e trazia dividendos económicos mínimos a curto
prazo. No entanto, os dividendos políticos eram infinitos, e foi graças a eles
que a revolução pôde resistir bem a uma situação económica tão grave.
Muitos observadores estrangeiros menosprezavam esses avanços. Só
embaixadores perspicazes como o da Grã-Bretanha eram capazes de en-
xergá-los e tirar as devidas conclusões.
Como nossas vidas se tornaram menos prazerosas, nós, diplomatas ocidentais,
tendemos a esquecer como a revolução favoreceu esse setor (os pobres, os
negros, os menores de 25 anos, os assalariados). Nossos contatos se restringem
à alta classe média contra-revolucionária, logicamente ressentida. Não vemos
o entusiasmo dos camponeses que vivem em suas novas colónias, da classe
operária que frequenta pela primeira vez os antigos clubes de luxo e as novas
praias públicas, com seus filhos usufruindo de parques de brinquedos incrivel-
mente bem equipados. Ainda mais importante é a reação natural dos jovens,
quase todos humildes, que respondem aos chamamentos para trabalharem por
um futuro melhor e por uma causa que acreditam ser justa. Não podemos
avaliar a força dessas emoções, de suas convicções e de sua lealdade."
O problema residia na esquálida resposta da oferta interna de bens e
serviços. A demanda incrementada devia ser saciada com importações, o
que requeria divisas, cada vez mais escassas. Além disso, esforços excep-
cionais, como a campanha de alfabetização, a criação das milícias e sua
manutenção em pé de guerra, independente de seus efeitos políticos e so-
ciais, retiravam mão-de-obra das atividades de produção interna de bens de
consumo básico. * Logo esses bens começaram a faltar em Cuba. Desde 14 de
abril de 1961, quase um ano antes da introdução do carne de racionamento,
o Che confiara ao embaixador soviético que seria inevitável, embora politi-
camente prejudicial, racionar o azeite e o sabão.40 Na verdade, a escassez de
alimentos já vinha desde fins de 1960.
Um segundo fator complicava ainda mais as coisas: o açúcar, como
sempre na história de Cuba. Entre a seca, o corte antecipado dos canaviais
em princípios de 1961, a decisão mais ou menos deliberada de reduzir a área
plantada e a escassez de mão-de-obra disponível devido à reforma agrária (os
guajiros, já com sua terra, e com toda a razão não queriam cortar cana), a pro-
dução começou a cair.** Entre 1961 e 1963 a área colhida diminuiu em
14%; a moagem, em 42%; o rendimento por hectare, 33%. Em 1961, devido
à inércia e ao corte prematuro, a safra alcançou a cifra recorde de 6,8 milhões
de toneladas; em 1962, caiu para 4,8 milhões e, em 1963, para 3,8 mi-
lhões. Um estudo elaborado por economistas ingleses e chilenos, que tive-
ram acesso a informações do Ministério da Indústria, descrevia assim a
catástrofe açucareira:
Os fatores imprevisíveis da quebra de 1962-3 foram, em primeiro lugar, a seca
e, em segundo lugar, uma política deliberada do governo visando restringir a
produção de açúcar em função do propalado objetivo da diversificação agrí-
cola. Essa decisão, talvez o erro pontual mais grave da política agrícola desde
a revolução, foi adotada em uma época de grande êxito: pouco tempo depois
da supersafra de 1961 e da vitória de playaGirón.41

(*) "No trabalho da indústria em geral, prosseguia Guevara, a quase permanente


mobilização de grande parte dos homens jovens no exército ou nas milícias populares
exercia uma influência negativa". (MID-1904-30-I-62, Sergei Kudriavtsev, "Notas de con-
versación dei 8 de diciembre de 1961 con el ministro das Industrias, Ernesto Guevara",
18/12/61 (secreto), Archivo dei Ministério, op. cit.)
(**) Na realidade, o Che procurou aplacar a fúria anticanavieira inicial de Fidel
Castro. Carlos Franqui recorda uma reunião de 1961 em que Guevara se opôs a que Fi-
del se pronunciasse em público contra a cana, "porque, com a influência que Fidel tinha
sobre a cana em Cuba, havia o risco de acabarem com a cana toda; Fidel Castro não
deixou de fazer seu discurso contra a cana, e o desastre foi total". (Carlos Franqui, entre-
vista com o autor, op. cit.)
O dilema decorria em boa parte de um fato indiscutível: a URSS não
queria, ou não podia, custear indefinidamente as extravagâncias cubanas.
Theodore Draper concluiu que os cubanos vinham se comportando desde
1960 como se os soviéticos lhes tivessem aberto "não uma linha de crédito
de 100 milhões de dólares, mas uma conta livre e a fundo perdido".42 Só que
a URSS reclamava agora o pagamento da dívida. A propensão dos cubanos
para o esbanjamento — e nisso o Che pecava pelos mesmos excessos e des
cuidos — transparece na carta do ministro da Indústria ao vice-premiê
Mikoian, em 30 de junho de 1961. Ela mais parece uma lista de compras,
exorbitante pelo custo e pela ambição que revela. Entre outros pedidos, a
carta solicitava "o aumento da capacidade da primeira unidade de ferro fun
dido, construída pela URSS, de 250 mil para 500 mil toneladas; o aumento da
capacidade da refinaria de petróleo de 1 milhão de toneladas por ano para 2
milhões; empresas da indústria química e de celulose no valor de 157 mi
lhões de rublos; uma usina termelétrica em Santiago de Cuba com potência
de 100 mil quilowatts; diversos técnicos e especialistas".41
Desse conjunto de fatores derivava uma consequência desastrosa para
a economia cubana: um crónico desequilíbrio das contas externas. A alta do
consumo interno, a queda nas exportações de açúcar e a escassez de recursos
internos se combinaram, produzindo um insustentável déficit do balanço de
pagamentos, que teria implicações de longo alcance para o futuro da re-
volução. Esse problema básico nunca foi solucionado, nem naquela época,
nem agora, mais de trinta anos depois. Para livrar-se da monocultura do açú-
car, Cuba precisava industrializar-se e, para isso, necessitava de divisas. E a
maneira mais fácil de consegui-las, ontem e sempre, era vendendo açúcar. O
país talvez pudesse tentar exportar outras matérias-primas ou produtos bási-
cos, mas o mercado mais acessível para essa expansão era o norte-americano,
que estava fechado.44
Como se não bastassem esses problemas estruturais, uma série de
fatores circunstanciais veio castigar ainda mais a maltratada economia da
ilha. Em 1961 e 1962, segundo as estimativas de agrónomos favoráveis ao
regime, metade da produção de frutas e verduras não foi colhida; a falta de
mão-de-obra, transporte e armazenamento faziam estragos no consumo e no
nível de vida dos cubanos. Fidel viu-se obrigado a decretar para março de
1961 o racionamento de uma grande variedade de géneros de primeira
necessidade: arroz, feijão, ovos, leite, peixe, frango, carne bovina, óleo, pas
ta de dentes e detergentes. Antes disso, o Che fizera sua primeira autocríti
ca na televisão, reconhecendo que elaborara "um plano absurdo, desligado
da realidade, com metas inatingíveis e prevendo recursos que não passavam
de um sonho".4'
De fato, a ajuda do bloco socialista não atendeu às expectativas que
despertara. Ainda que, em volume, os soviéticos e seus aliados tivessem
entregado o prometido, nem os prazos, nem a qualidade estavam à altura das
esperanças e necessidades cubanas. As fábricas, os bens de consumo e os
insumos industriais revelaram-se de uma qualidade e modernidade muito
inferiores ao previsto pelo Che. Desde 1961, o argentino começou a fazer
recriminações ao embaixador soviético, a princípio dirigidas aos países da
Europa oriental, embora possamos supor que estivessem endereçadas à URSS:
"Guevara assinalou que alguns países socialistas criam certas dificuldades
em sua economia. Os checos, por exemplo, estão praticando uma política
comercial muito dura para com Cuba, que às vezes se parece com a polí-
tica das relações entre países capitalistas, e não socialistas".46
Por último, uma série de decisões administrativas do Che — inspiradas
em suas concepções teóricas — também atrapalharam a gestão económica.
As principais foram a centralização das decisões relativas à indústria estatal
e o esforço por abolir as transações em dinheiro entre empresas paraestatais.
O aparato burocrático nas mãos do Che era descomunal: toda a indústria
açucareira, as companhias telefónica e elétrica, a mineração, a indústria
leve, mais de 150 mil pessoas e 287 empresas, no total, inclusive fábricas de
chocolate e bebidas alcoólicas, gráficas e construtoras. As concepções do
Che sobre a centralização e as relações entre empresas manifestaram-se des-
de que ele assumiu o Ministério, embora só se tenham tornado em pontos
críticos da polémica com os técnicos comunistas soviéticos em 1963-4,
quando foram completamente derrotadas.
De início, a centralização não era tão grande. Mas, já quando se criou
o Ministério, cada empresa era obrigada a entregar-lhe a totalidade de seus
ativos. Ele, por sua vez, devolvia-lhes as quantias necessárias tanto para as
despesas ordinárias como para os investimentos. Nenhuma empresa con-
servava seus recursos em dinheiro. Não havendo transações comerciais
entre empresas, o mercado ficava definitivamente abolido. Portanto, os
mirabolantes planos de expansão económica do Ministério careciam de
qualquer base real:
Fizeram-se complicados planos para explorar as jazidas minerais de Oriente,
para que Cuba se auto-abastecesse de aço, fabricasse maquinaria de todos os
tipos, inclusive colheitadeiras mecânicas de cana, para criar uma nova refi-
naria de petróleo, implantar novas redes de distribuição elétrica, expandir a
indústria química, produzir papel a partir do bagaço da cana, hormônios a par-
tir da cera da cana, borracha a partir do butano [...] Já que Cuba tinha reservas
tão grandes de níquel, por que não ocupava o posto de segundo maior produ-
tor mundial?47
A impressionante disciplina e organização do Che foram-lhe extrema-
mente úteis no Ministério, mas ao mesmo tempo acarretaram-lhe sérios pro-
blemas. No exercício de seu cargo, Guevara conseguiu impor a si próprio
uma ordem, uma pontualidade e um rigor excepcionais. Supôs que seu
exemplo seria imitado e que, graças a ele, os incontáveis problemas técnicos
do Ministério logo se resolveriam. Um de seus colaboradores recorda o estilo
do Che, a pontualidade com que chegava ao Ministério, sempre às oito,
sua exigência de que todos estivessem presentes nas reuniões. Às oito e dez
fechava-se a porta do Conselho e ninguém podia entrar, nem mesmo o vice-
ministro. Ao meio-dia em ponto, a reunião terminava. Mesmo que naquele
momento alguém estivesse dizendo "tenho a fórmula para derrubar o impe-
rialismo em dois dias", o Che dizia: "Senhores, vejo-os à tarde". Ele tinha
uma capacidade de síntese incomum; resumia em poucos minutos as con-
clusões de uma reunião de três horas. Era uma pessoa extremamente organi-
zada. "O Che fez o que ninguém tinha feito em Cuba."48 Ou, como disse um
colega que discordou dele em outros assuntos: "Ele trouxe para Cuba uma
competência administrativa e uma diligência que nunca se alcançou, nem
antes, nem depois".49

Essa disciplina coexistia com uma obsessão pela planificação económi-


ca, ignorando transtornos que um esforço semelhante causara na URSS e nos
países socialistas, que contavam com melhores recursos e condições para
levá-lo adiante. Segundo o mesmo colaborador, as políticas gerais do Mi-
nistério eram definidas nas reuniões bimestrais de controle, realizadas no
segundo domingo do mês em que caíam. Começavam às duas da tarde e às
vezes terminavam às duas ou três da madrugada de segunda-feira. As fábri-
cas estavam agrupadas em empresas, as empresas pertenciam a ramos de ati-
vidade. O responsável pelo ramo mecânico, por exemplo, que englobava
nove empresas, monitorava todos os índices de produção dessas nove em-
presas e das fábricas de cada uma delas. Subordinava-se a um Vice-Minis-
tério, o da Indústria Leve, que controlava e supervisionava quatro ramos. O
Ministério abarcava três setores: o Vice-Ministério da Indústria Leve, o da
Indústria Pesada e o da Construção Industrial. "No segundo domingo de
cada bimestre, chovesse, trovejasse ou relampejasse, o Che começava a dis-
cutir empresa por empresa, os desvios, ou seja, por que não se cumpriu tal
meta de produção, que setores não a cumpriram [...]"5°
O verdadeiro motivo da centralização e da interferência nas relações
entre as empresas difere da justificativa que o Che apresentaria mais tarde,
já em plena polémica com seus adversários. No início das expropriações de
1960, algumas empresas nacionalizadas dispunham de vultosos fundos
próprios enquanto outras, ao contrário, estavam falidas ou sobreviviam com
um magro fluxo de caixa. Por meio do Departamento da Indústria do INRA
e, principalmente, do Banco Nacional, o Che determinou que todas as
empresas teriam que depositar seus recursos em contas do banco central,
para que este os distribuísse de acordo com as prioridades da revolução. Não
era um método absurdo, sobretudo quando se considerava que a qualidade
dos quadros revolucionários tendia a ser melhor nas instâncias superiores —
isto é, o Banco Nacional —, do que nas empresas.
Por outro lado, embora Guevara tenha superestimado as virtudes
administrativas que o capitalismo local legou à Revolução Cubana, alguns
elementos podiam, de fato, reforçar a ideia da centralização: as reduzidas
dimensões da ilha, a existência de uma boa rede de transporte e comuni-
cações e uma quantidade significativa de quadros especializados na área con-
tábil. Uma vez escolhida a meta, era fácil rebuscar os fatores que a justificas-
sem e viabilizassem, até mais do que na própria URSS. Como nesse exemplo:
Somos um país pequeno, centralizado, com boas comunicações, um só idioma,
uma unidade ideológica cada vez mais acentuada, uma unidade de comando,
um absoluto respeito pelo dirigente máximo da Revolução; onde não há dis-
sensões que ameacem a unidade de comando e ninguém disputa a mais ínfima
parcela de poder [...] Todo o país está mobilizado por um objetivo comum.
Qualquer problema sério que obrigue nossos quadros a se deslocarem não
exige mais que um dia de viagem, inclusive porque temos aviões; além do mais
há telefones, há o telégrafo, e agora vamos fundir todas as empresas de comu-
nicações em um sistema telefónico por microondas."
Essa foi a origem, lógica e compreensível, do que mais tarde receberia
o nome de Sistema Orçamentário de Financiamento, cuja defesa opôs o Che
a Carlos Rafael Rodríguez e aos técnicos soviéticos. Mas, como veremos no
próximo capítulo, Guevara logo começaria a racionalizar as justificativas
tanto para a extrema centralização como para a ausência de transações
comerciais entre as empresas. Seus argumentos pertenciam mais ao âmbito
da teoria marxista que ao da economia, e revelavam um completo descaso
pelas especificidades de Cuba. A liquidação da classe média, o caos admi-
nistrativo que qualquer revolução acarreta, a escassez de recursos decorrente
do embargo, a falta de divisas e de experiência, todos esses eram fatores que,
no mínimo, dificultavam a implantação e o funcionamento de um sistema
como o imaginado pelo Che. O fino mecanismo de relógio com o qual ele
pretendia organizar a economia cubana — aliás, bem pequena e de fácil
manejo — não existia na ilha, e provavelmente em nenhum país do mundo,
capitalista ou socialista.
Já em fevereiro de 1963, em um artigo intitulado "Contra el buro-
cratismo", Guevara apresentou a primeira justificativa para a extrema cen-
tralização do sistema, baseada nas origens deste. O raciocínio era o seguinte:
Das próprias raízes da revolução teria surgido o que ele chamou de "guerri-
lheirismo administrativo", que permitia a cada um agir como bem enten-
desse, "ignorando o aparato central de direção".52 Daí ser imprescindível
"organizar fortes aparatos burocráticos", que lançassem "uma política de
centralização operacional que coibisse a exagerada iniciativa dos admi-
nistradores". Mais tarde, em 1964, o Che reconheceria que o sistema apre-
sentava sérios defeitos, como o exceso de burocracia, a falta de quadros, a
desinformação daqueles que tomavam as decisões e sérias falhas na dis-
tribuição." Mas na ocasião ele defendeu com unhas e dentes a centralização
e toda uma série de ideias que pioraram ainda mais uma situação econó-
mica já catastrófica.
A tarefa que a revolução havia confiado ao Che, e que ele assumira por
completo, era provavelmente irrealizável. No caso da União Soviética de
Stalin, a industrialização a marchas forçadas e passos largos só fora possível
a um custo humano inimaginável na época, e com um patético desenlace
económico que só viria a público anos mais tarde. Tudo isso dispondo dos
recursos do maior país do mundo. O Grande Salto da China maoísta tam-
bém teve efeitos económicos desastrosos e um preço humano intolerável em
uma nação ocidental. Com as cartas que recebera, o Che não podia ganhar
o jogo. Ele calculou que, graças à ajuda da URSS e a um voluntarismo a toda
prova seria possível vencer os inúmeros obstáculos no caminho até as metas
propostas. Uma ambição menos desmedida teria revertido em conquistas
mais duradouras, poupando à nação muitos tropeços dolorosos. Mas o Che
não se ajustava a essa visão convencional que, de resto, era incompatível
com o caminho político que ele e Castro haviam seguido, tanto no plano
interno como no externo. Dado o contexto internacional, os recursos de
Cuba e o rumo político da revolução, a maioria das teses do Che estavam
fadadas ao abandono, depois de um primerio período de vitórias. Já as novas
posturas que adotou em substituição daquelas nunca combinaram com seu
ideário e sensibilidade.
A maior prova do fracasso da política dos primeiros anos foi a feroz críti-
ca que o próprio Che fez a elas. De início, sua visão continuou sendo super-
ficial ou francamente simplista, embora sempre mais direta que a dos demais
dirigentes. Já na primeira reunião nacional de produção, em 27 de agosto de
1961, ele desafiou seu auditório:
Agora há pouco, vocês me receberam com um aplauso forte e caloroso. Não
sei se foi como consumidores ou simplesmente como cúmplices [...] Acho que
foi mais como cúmplices. Cometeram-se erros nas indústrias que resultaram
em falhas consideráveis no abastecimento da população [...] A todo momento
é preciso trocar diretores, substituir administradores, fazer que uns melhorem
sua capacitação cultural e técnica, outros sua postura política [...] Muitas vezes
o Ministério deu ordens sem consultar as massas, muitas vezes ignorou os
sindicatos, ignorou a grande massa operária [...] e às vezes as decisões da classe
operária [...] foram acatadas sem a menor discussão com a cúpula do Ministério
[...] Atualmente há escassez de pasta de dentes. É preciso saber por quê. Há
quatro meses, houve uma paralisação da produção. Mas ainda havia algum
estoque. Não foram adotadas as medidas urgentes que eram necessárias justa-
mente porque o estoque era grande. Mas logo o estoque começou a baixar, as
matérias-primas não chegavam[...] Até que chegou a matéria-prima, um sulfato
de cálcio fora das especificações para o fabrico de pasta de dentes [...] Os
companheiros técnicos dessas empresas fizeram uma pasta de dentes [...] tão
boa como a anterior, que limpa da mesma forma, mas endurece depois de
guardada por algum tempo.54
A conferência em questão produziu uma das raras divergências públicas
entre o Che e Fidel. Depois que Guevara proclamou a existência de uma "crise
da produção", Castro, apesar da avalanche de denúncias, queixas e críticas de
seus próprios funcionários, sentenciou sem rodeios: "Não existe crise da pro-
dução". Seis meses mais tarde viria o racionamento e, ao longo de todo o ano
de 1962, um número cada maior de questionamentos por parte de Guevara
quanto ao desempenho económico da revolução, sobretudo nas reuniões do
Ministério da Indústria. Ali o Che censurava abertamente o Ministério e o
rumo da economia, embora as críticas fossem ainda tímidas e superficiais.
Continuava aferrado à convicção de que os problemas podiam ser resolvidos
com entusiasmo, fervor revolucionário e vontade de ferro. Como recordou
Charles Bettelheim — o economista francês que sustentou, dentro de uma
perspectiva marxista uma dura polémica com o Che em 1964 sobre todos es-
ses problemas —, Guevara recorria sistematicamente à retórica para corrigir
erros e deficiências. Ia de fábrica em fábrica, agitando, discursando, mobi-
lizando e convencendo seus interlocutores." Quando esse método não surtia
os efeitos desejados, teimava até alcançar o objetivo, ou ter de passar a outro
elenco de dificuldades. O próprio Che explicava seu ponto de vista:
" "' Quanto à questão do entusiasmo, da falta de entusiasmo, da necessidade de rea-
' '' cender o entusiasmo revolucionário, existe algo que se chama brio. Nós
dei-
' xamos o brio decair totalmente. Ele adormeceu por completo, é preciso desper-
''■■>■ tá-lo de uma vez. O brio tem de ser a força que impulsiona a massa a
todo
; momento, e deve haver gente pensando constantemente na forma de avivá-lo.
Não é tão difícil buscar uma forma, outra forma, de trazer as pessoas para a luta.'6
Era o Che voltando à carga, com uma estranha mistura de realismo e
utopia, de frio reconhecimento dos reveses da revolução e constante chama-
mento a seguir o mesmo caminho, porém com mais afinco. Não renegou de
suas convicções nem de sua análise. Só em 1964 esboçaria uma explicação
mais completa do beco sem saída em que a experiência cubana parecia ter
entrado. Por ora, só se lamenta e exorta:
(Cuba é o) primeiro país socialista da América, a vanguarda da América, e não
tem malanga,* nem mandioca, nem nada. Aqui (em Havana) o racionamen-
to ainda é leve; mas quem vai a Santiago só tem quatro onças [pouco mais de
cem gramas] por semana. Falta de tudo, só há bananas, e a cota de manteiga é
metade da que vocês têm aqui, porque todas as cotas em Havana permitem o
dobro. Todas essas coisas são difíceis de explicar, e nós temos de explicá-las
através de uma política de sacrifício, em que a revolução, os líderes da re-
volução, marchem à frente do povo."
A partir de meados dei 963, Guevara começou a manifestar, por escrito
e em discursos e entrevistas, uma série de discrepâncias mais explícitas e
substanciais em relação aos despropósitos perpetrados. Assumiu com
nobreza as consequências de suas denúncias, ao afirmar que as alternativas
viáveis para o biénio de 1961 -2 eram necessárias, porém amargas. Entre con-
tinuar lutando pelo impossível e aceitar a coexistência suspeita com uma
ciscunstância inevitável, mas ingrata, preferiu a fuga para a frente para a
África e a Bolívia. Para a história. Qualquer outra saída parecia-lhe uma
baixeza. Se Guevara tivesse consumado a radical guinada económica que a
realidade impunha, teria podido permanecer em Cuba com todas as regalias
que seu cargo e seu prestígio lhe proporcionavam. Mas os heróis e mitos não
são feitos dessa matéria. O Che logo pôde conscientizar-se do dilema em que

(*) Fruta comestível cubana. (N. T.)


a revolução e ele se debatiam. Resumiu-o com ingenuidade — trágica para
um dirigente político — em nova conversa com o embaixador soviético em
meados de 1962, quando solicitou que se acelerasse a construção de uma
metalúrgica em Oriente, que ele, temerariamente, vinha anunciando desde
outubro. Já falara com Mikoian a esse respeito, na carta citada anterior-
mente: "Nosso governo já fez ao povo muitas promessas, e infelizmente não
pode cumpri-las. Eu não gostaria que nossa promessa de fazer da metalurgia
um dos alicerces da industrialização também se mostrasse vã. Claro que
teríamos de ser mais prudentes na hora de fazer promessas, e só comunicar
ao povo aquilo que podemos cumprir. Mas uma promessa que já foi feita deve
ser cumprida".58
Em um discurso pronunciado a portas fechadas, em um seminário de
planejamento realizado em Argel a 13 de julho de 1963, o Che apontou um
conjunto de erros teóricos—já em curso — que conduziram à grave situação
económica de Cuba. Primeiro situa-os no plano conceituai: "Basicamente,
em matéria de planejamento, fizemos duas coisas opostas e incompatíveis
[...] Por um lado, copiamos detalhadamente as técnicas de planejamento de
um país-irmão; pelo outro, continuamos a tomar muitas decisões de maneira
espontânea. Isso ocorreu sobretudo com as decisões de ordem política que se
impõem a cada dia no processo de governo, mas que influem diretamente na
economia".59
E dá um exemplo da falta de análise e de informação durante os
primeiros anos da revolução. Em relação ao problema do crescimento, for-
mulou-se primeiro a meta de 15 % ao ano, para depois estudar como alcançá-
la: "Para um país com uma economia baseada na monocultura, com todos os
problemas que já relatei, querer 15% era simplesmente ridículo".60
Em seguida, fez uma série de críticas mais específicas à gestão económica
inicial, concentradas em três pontos. Primeiro, Cuba procurou tornar-se auto-
suficiente em um grande número de géneros de consumo e intermediários, que
podiam ser comprados de países amigos a um custo baixo. Segundo, "comete-
mos o erro fundamental de desprezar a cana-de-açúcar, tentando uma diversifi-
cação acelerada que resultou no descuido da cana, e que, junto a uma forte seca
que nos castigou por dois anos, provocou uma grave queda na nossa produção
açucareira".61 E, por último, revela: "Quanto à distribuição de renda, num
primeiro momento demos demasiada ênfase ao pagamento de salários mais
equitativos, sem analisar o estado real de nossa economia [...] Em um país onde
ainda há desemprego, dá-se o fenómeno da escassez de mão-de-obra na agricul-
tura [...] e a cada ano temos de criar frentes de trabalhadores voluntários".62
O novo rumo seria o oposto das políticas seguidas até então. Era o único
possível, mas não o que o Che desejava. Ele intuiu, talvez antes de todos, que
a política económica da revolução era insustentável, e reconheceu-o ante a
população cubana, com grande lealdade e limpidez. Mas ainda não percebera
plenamente quais seriam as consequências do naufrágio; em 1962, não sus-
peitava quão amargas eram as únicas alternativas possíveis. Provavelmente,
não teria consciência disso até a assinatura do convénio de longo prazo para
venda de açúcar à URSS, em 21 de fevereiro de 1964- Compreendeu, então,
que o único caminho possível era um que ele jamais concordaria em seguir.
Já o desencanto com a União Soviética vinha de 1961, ainda que só se tor-
nasse público nos primeiros dias de 1965. Seu estopim foi aquilo que o mun-
do conheceria como crise de outubro, do Caribe ou dos mísseis, em 1962,
quando a humanidade esteve mais perto que nunca do abismo nuclear.* A
interferência do Che no confronto do outono daquele ano produziu-se em
três etapas: antes, quando foi decisiva; durante, quando praticamente não
existiu; e depois, quando tornou a ser contundente.**
Em diversas ocasiões ao longo de 1961, o Che invocou o escudo prote-
tor atómico da URSS. Sua tese, bastante explícita, postulava uma indiscutí-
vel realidade: enquanto os Estados Unidos não desistissem das tentativas de
derrubar pela força o regime revolucionário de Havana, este teria o direito e
a obrigação de defender-se como pudesse. Somado às milícias, ao exército
regular, à aviação e ao apoio popular, a instalação de mísseis soviéticos de
curto e médio alcance teria um poderoso efeito dissuasivo. Cuba passaria a
ser uma espécie de gatilho atómico soviético: um ataque à ilha seria respon-
dido pela URSS, a partir de Cuba, de maneira semelhante à dos mísseis norte -
americanos instalados na Alemanha e na Turquia. A convicção dos cubanos
até o verão de 1962 era de que Kennedy, a CIA e Miami queriam a todo
custo uma revanche da baía dos Porcos, e por isso estariam planejando uma
nova invasão. Esse era um motivo mais do que suficiente para que o escudo
nuclear soviético fosse estendido até Cuba.

(*) Em suas memórias, Marcus Wolf, o legendário chefe da contra-espionagem


alemã-oriental, atribui a Manuel Pineiro a seguinte frase lapidar sobre os sentimentos do
Che: "Ele se sentiu terrivelmente decepcionado com a decisão soviética de retirar os mís-
seis de Cuba". (Marcus Wolf, Man without a face, Times Brooks, 1977, p. 310.)
(**) Nos últimos anos realizaram-se inúmeros debates e conferências sobre esses
memoráveis "treze dias", como foram chamados por Robert Kennedy. Embora nem tudo
tenha sido esclarecido, sabe-se hoje muito do que se ignorava anos atrás. As páginas a
seguir se apoiam em grande parte nas novas fontes à disposição. A partir delas, procurou-
se reconstituir o envolvimento do Che no episódio, não rever a crise no seu conjunto.
Nas conversas que, nos meses que antecederam à crise, John F. Ken-
nedy manteve com diversos mandatários latino-americanos — desde o
venezuelano Rómulo Betancourt, em dezembro de 1961, até o mexicano
Adolfo López Mateos, em junho de 1962 —, o presidente assegurou que os
Estados Unidos "não preparavam naquele momento nenhuma ação unila-
teral contra o regime de Castro".61 Mas Havana pensava exatamente o con-
trário, ou ao menos queria que os soviéticos acreditassem nisso. Castro cita-
va uma entrevista concedida por Kennedy a um jornalista e operador
político de Krushev, Alexei Adzhubei, genro do primeiro-ministro da
URSS e diretor do Izvestia. Segundo Adzhubei, durante um almoço de três
horas na Casa Branca, em 31 de janeiro de 1962, Kennedy fez uma analogia
à invasão da Hungria para justificar sua política em relação a Cuba.
Adzhubei, em seu informe a Krushev, remetido também a Castro, concluiu
que o mandatário norte-americano optara por uma nova tentativa de inter-
venção armada.* Segundo as fontes soviéticas que se pronunciaram
recentemente a respeito, foi a partir da entrevista de Adzhubei que os
cubanos passaram a falar com veemência no assunto da defesa da ilha.
Assim, no final de abril ou início de maio de 1962, na capital russa, Krushev
tomou a decisão de instalar os mísseis, motivado pela convicção unânime de
todos os protagonistas soviéticos: os Estados Unidos tinham resolvido li-
quidar com o regime castrista.64
Segundo Alexander Alexeiev — na época recém-nomeado embai-
xador em Havana, em maio de 1962, depois que Kudriavtsev se desenten-
dera com Fidel —, ele foi convocado ao Kremlin para uma reunião no gabi-

(*) Os norte-americanos sempre questionaram a versão soviética do incidente, mas


ainda não liberaram o memorando da referida conversação presidencial. A história da
conversação entre Kennedy e Adzhubei começou com uma reportagem do jornalista
francês Jean Daniel, publicada dias depois da morte de Kennedy. Nela, Daniel cita Fidel
Castro afirmando que foi o informe de Adzhubei sobre a conversa na Casa Branca que lhe
deu a certeza de que os norte-americanos queriam a invasão. Em dezembro de 1963, Pierre
Salinger, secretário de imprensa de Kennedy, e McGeorge Bundy, chefe do Conselho de
Segurança Nacional, afirmaram — o primeiro em público, o segundo em memorando pri-
vado ao colunista Walter Lippman — que Kennedy nunca se referiu à invasão da Hungria
no sentido interpretado por Adzhubei, ou seja, como uma ameaça, mas sim como um
exemplo de como uma superpotência pode irritar-se quando vê surgir um grupo hostil
perto de suas fronteiras. Ambos, Salinger e Bundy, insistiram para que Kennedy fosse
categórico com Adzhubei, dizendo-lhe que os Estados Unidos não tinham a intenção de
invadir Cuba. (Ver "McGeorge Bundy, Memorandum for Walter Lippman", 16/12/63 e
"Transcript, White House News Conference with Pierre Salinger", 11/12/63, pp. 9-10.)
nete pegado ao de Nikita, da qual participaram o próprio Krushev, o vice-
primeiro-ministro Anastas Mikoian, Frol Kozlov (secretário do Comité
Central do PCUS), o ministro da Defesa, Malinovski, o chanceler Andrei
Gromiko e o marechal S. S. Biryruzov, comandante responsável pelos mís-
seis estratégicos da URSS. O encontro correu nestes termos:
Ao ajudar Cuba estaríamos dando um passo muito sério, advertiu Krushev.
Nós decidimos que, se Cuba concordar, instalaremos mísseis de médio alcance
na ilha. E perguntou: "Como Fidel receberia a notícia?". Mikoian respondeu
que Fidel não aceitaria, pois sua estratégia era sempre buscar o apoio da
opinião pública mundial e latino-americana. Com foguetes e bases da URSS em
seu território, Cuba estaria igualando-se aos Estados Unidos. Todos se
calaram, exceto Malinovski, que gritou: "Como uma república socialista não
vai aceitar nossa ajuda, se até a República espanhola a aceitou?!". Decidiu-se
enviar a Cuba uma delegação, composta por Rashidov (Sharif Rashidov,
chefe do PC do Usbequistão-JGC), Biryuzov e eu. Krushev advertiu-nos: "Não
queremos arrastar Cuba para uma aventura, mas os americanos aceitarão os
mísseis se os instalarmos antes das eleições de novembro". Ele queria salvar
Cuba, manter a paz e fortalecer o bloco socialista."
Nos primeiros dias de junho, eles chegaram a Havana. Raul Castro não
conhecia o motivo que os trazia, mas recepcionou-os no aeroporto. Biryu-
zov inclusive viajara clandestino, com a identidade fria de Petrov, um
engenheiro. Alexeiev confiou a Raul que o tal engenheiro Petrov era o
chefe do sistema de mísseis soviético e tinha urgência em falar com Fidel.
Este os recebeu imediatamente. Alexeiev tomava notas para fazer a
tradução, e graças a isso a conversa foi registrada para a história. Essas notas
dão conta de que os soviéticos iniciaram as discussões, dizendo que Krushev
achava que a melhor forma de ajudar Cuba era instalar mísseis na ilha. Fidel
respondeu que a tese era muito interessante, mas desnecessária para salvar a
Revolução Cubana. Já se o objetivo fosse fortalecer o bloco socialista, vale-
ria a pena pensar o assunto. De qualquer modo, não podia dar uma resposta
imediata.6<1 No dia seguinte houve nova reunião, onde participaram, do lado
cubano, Raul e Fidel Castro, o Che, o presidente Osvaldo Dorticós, Carlos
Rafael Rodríguez e Emilio Aragonês. Fidel deu a resposta cubana: afirmati-
va e, como dissera, não tanto para defender a Revolução Cubana, e sim o
bloco socialista. Ele reconheceria, trinta anos depois:
A ideia dos mísseis não nos agradava. Se fossem instalados apenas para nossa
defesa, não os teríamos aceitado. Não era tanto pelo perigo, mas pelo dano que
poderia causar à imagem da revolução [...] na América Latina. Os mísseis nos
transformariam em uma base militar soviética, o que teria um alto custo polí-
tico para nossa imagem. Se fosse só por nossa defesa, não teríamos aceitado
os mísseis.*
Fidel propôs que Raul viajasse imediatamente a Moscou, para con-
cretizar o acordo. Pouco depois, o ministro da Defesa de Cuba foi à capital
russa, onde o marechal Malinovski submeteu-lhe uma minuta do acordo,
que Raul examinou página por página. O tratado previa o envio a Cuba de
42 mil soldados soviéticos e 42 mísseis de 24 metros. Krushev pediu que não
se fizesse nenhum contato com Havana, por rádio ou por cabo, pois estava
convencido de que os norte-americanos poderiam interceptar as comuni-
cações cubanas e de que o fator surpresa era decisivo. Em agosto, Alexeiev
voltou a Cuba com a nova versão do acordo em sua valise. Entregou-a a Fidel
Castro, que a julgou demasiado técnica, pediu que fosse especificado como
Cuba solicitou a assistência soviética e se incluísse um preâmbulo mais
político. Como não se podia negociar à distância, devido à exigência feita
por Krushev de manter sigilo, alguém teria de ir a Moscou para fazer as
mudanças no texto do acordo. Fidel decidiu comissionar o Che e seu cola-
borador mais próximo, Emilio Aragonês, secretário-geral do incipiente Par-
tido Revolucionário unificado.
Nada nesse relato contradiz as revelações posteriores dos soviéticos,
mas difere em muitos pontos das impressões transmitidas pelos principais
protagonistas norte-americanos, mesmo trinta anos depois. Nas conferên-
cias de Cambridge e Hawk's Cay (1987), Moscou (1989) e por fim na de
Havana (janeiro de 1992), das quais participaram vários protagonistas da
crise, estes repassaram suas distintas apreciações. Personalidades como
Robert McNamara (então secretário de Defesa dos Estados Unidos), McGe-
orge Bundy (conselheiro de Segurança Nacional) e Theodore Sorensen (o
principal assessor político de Kennedy) declararam que simplesmente não
sabiam — e continuavam sem saber — quais teriam sido os motivos de
Krushev. Alguns supunham que tinham algo a ver com o equilíbrio estraté-
gico, com Berlim, com as bases dos Estados Unidos na Turquia; outros, que
eram fruto das lutas internas do Kremlin. Sorensen, por exemplo, especula
que, como Krushev não agiu às claras, e, ao contrário, fez questão de assinar
o acordo com Cuba de maneira furtiva, devia abrigar alguma razão incon-

(*) Fidel Castro, "Transcrição da intervenção na conferência sobre a crise do Cari-


be", Havana, 11/1/92, Foreign Broadcast Information Service, cit. em The National
Security Archive, Lawrence Chang and Peter Kornbluh, eds., The Cuban missile crisis,
Nova York, The New Press, 1992, p. 332.
fessável.67 Os atores norte-americanos também divergiram — entre si e com
os soviéticos e cubanos — na apreciação da verdadeira política da Casa
Branca frente a Cuba. Segundo Bundy, "no outono de 1962, em Washing-
ton imperava uma grande frustração em relação a Cuba, uma grande con-
fusão sobre o que fazer. Na minha opinião, o único objetivo das operações
secretas era disfarçar nossa inércia. Não tínhamos a intenção de invadir, mas
parece que em Moscou a impressão dominante era de que não nos limi-
taríamos a fazer o que fizéramos até então".68 McNamara, por sua vez, respon-
deu: "Deixe-me dizer que não havia nenhum plano para invadir Cuba e, se
por acaso tivesse surgido algum, eu teria me oposto frontalmente a ele". Para
em seguida relativizar sua afirmação: "Não havia nenhuma intenção [...] e as
operações secretas eram inócuas, embora os soviéticos as considerassem
uma verdadeira ameaça".69
Sergo Mikoian, o filho de Anastas, a quem acompanhou a Cuba em
novembro de 1962, foi enfático ao afirmar que a iniciativa partira de
Krushev, que de fato não via outra forma de impedir uma iminente invasão
norte-americana de Cuba. Quando, em 1992, Robert McNamara pergun-
tou a Andrei Gromiko por que a URSS deslocou para Cuba mísseis com ogi-
vas nucleares, o ex-chanceler soviético respondeu sem rodeios que o obje-
tivo era fortalecer a estabilidade defensiva da ilha e prevenir as ameaças
contra ela. "É só."70
Segundo o filho de Mikoian, em abril de 1962, Krushev teria sugerido
essa ideia — rebuscada e mal alinhavada — a seu pai. O vice-primeiro-mi-
nistro discordara, argumentando que os cubanos a rejeitariam e os norte-
americanos fatalmente tomariam conhecimento dela e armariam um escân-
dalo de proporções internacionais. Estranhou a aceitação de Fidel, bem
como as garantias oferecidas por Biryuzov, de que os mísseis podiam ser
instalados de forma dissimulada.71 Sergo Mikoian não descarta a possibili-
dade de que os militares soviéticos tivessem outros motivos para o envio dos
mísseis, mas, como seus compatriotas, acredita que a razão principal tenha
sido a defesa de Cuba, "embora Malinovski e outros falassem em equilíbrio
estratégico". O problema foi que Krushev nunca sequer cogitou a possibili-
dade de uma reação negativa norte-americana. "Ao contrário, achou que as
relações entre as duas superpotências melhorariam."72
Talvez Krushev também buscasse soluções fáceis para melhorar o equi-
líbrio nuclear com os Estados Unidos. Os militares soviéticos podem ter
querido pôr à prova os sistemas norte-americanos de defesa e informação.
Mas se Krushev usou Castro, este fez o mesmo com o premiê da URSS. Con-
vém recordar que, se a iniciativa dos mísseis partiu de Moscou, em várias
ocasiões anteriores Fidel Castro e Che Guevara tinham pensado na alter-
nativa dos mísseis. Carlos Franqui chegara a sondar Krushev a esse respeito,
em Moscou. * Oleg Daroussenkov, na época professor de russo do Che (e que
mais tarde seria o encarregado das relações do Partido Comunista da URSS
com Cuba) conta que teve uma surpresa logo no primeiro encontro com seu
aluno, ocorrido em j ulho de 1961, no qual também estava presente o conse-
lheiro económico da embaixada soviética, Nikolai Kudin: "A certa altura o
Che disparou: 'Então, Kudin? Você acha que os americanos vão nos atacar
ou não?'. Os americanos estavam logo além do horizonte, e o Che parecia
acreditar que Cuba precisava de mísseis para não ser invadida por eles".7'
Portanto, a ideia da conspiração não brotava do nada; era algo que ron-
dava as mentes dos líderes cubanos havia muito tempo. Fidel Castro enfati-
zou, em 1992, que ele evitara mencionar os mísseis em seus discursos, insi-
nuando que Krushev e "alguns camaradas" (cubanos; talvez se referisse ao
Che) não fizeram o mesmo.74 Já vimos, porém, que o próprio Castro tocou
pelo menos uma vez no assunto dos mísseis em 1960 (ver capítulo anterior).
Em todo caso, quando o Che e Emílio Aragonês chegaram a Moscou para
reler o texto do acordo, foram informados de que Krushev continuava em
férias na Criméia. Quem os atendeu foi Leonid Brejnev, já então uma figura
importante na hierarquia soviética, que lhes disse: "Não, não, procurem
Nikita, eu não quero saber dessa história. Falem com Nikita".75
Foram imediatamente para Yalta, onde se reuniram com o premiê
soviético. Insistiram com Krushev sobre o ponto mais delicado da iniciati-
va, o sigilo. Expuseram mais ou menos os mesmos argumentos que Mikoian
na mesma época e Sorensen trinta anos mais tarde: não era nem desejável,
nem possível manter a operação em segredo. As discussões com Nikita
Krushev se realizaram num cais à beira do mar Negro. Krushev, Malinovski
e um intérprete militar, o Che e Aragonês se sentaram juntos, abrigando-se
do frio daquele início de outono. A preocupação principal dos cubanos era
convencer seus aliados de que o segredo da operação duraria pouco. Seus
serviços de informação já davam conta de comentários ouvidos de emi-
grantes cubanos nos Estados Unidos, ou interceptados em cartas familiares,
sobre a instalação de mísseis na ilha. Algumas pessoas teriam visto passar um

(*) Um biógrafo do Che afirma, sem indicar a fonte, que este declarara, em Moscou,
em 1960: "Este país está disposto a arriscar tudo em uma guerra atómica, de um poder
destrutivo inimaginável, para defender um princípio e para proteger Cuba". (Philippe
Gavi, Che Guevara, Paris, Editions Universitaires, 1970, p. 96.)
caminhão carregado de enormes mísseis. Krushev se fazia de desentendido,
limitando-se a repetir: "Temos que nos apressar".76
Para o Che, era preferível firmar abertamente um acordo militar entre
os dois países.77 Krushev replicou que isso era impossível, pois a correlação
de forças desfavorecia a URSS. Prometeu que, se os norte-americanos desco-
brissem algo, deslocaria a frota do Báltico para a América do Norte a fim de
reequilibrar a balança.78 Fidel Castro confirmaria esse relato em conversas
posteriores, afirmando inclusive que ele mesmo instruíra o Che e Aragonês
no sentido de tentar que o acordo militar — e o próprio envio de mísseis, se
necessário — fosse levado a público. Krushev recusou-se a fazer isso, e como
Castro resolvera "deixar que Nikita tomasse a decisão final",79 assim foi feito. O
premiê soviético encerrou a reunião com uma de suas famosas bravatas:
"Se os ianques descobrirem os mísseis, eu mando a frota do Báltico".80
Aragonês e o Che franziram a testa e se perguntaram se era realmente
viável o envio da frota báltica para fora de suas águas pela primeira vez des-
de 1904, mas acabaram conformando-se com a decisão soviética.81 Krushev
aceitou todas as alterações propostas pelos cubanos, "sem tirar nem pôr uma
vírgula".82 Quando o Che retornou a Havana, em meados de setembro, após
uma ausência de uma semana, trazia um gosto amargo na boca. Algo o inco-
modava: se o projeto tinha de ser mantido em sigilo, seria sustentável? Eis a
versão de Aragonês:
O problema não estava no envio dos mísseis. Eles diziam que os mísseis ser-
viam para proteger a independência de Cuba de um ataque norte-americano.
Para isso, bastava uma declaração solene do Estado soviético de que um ataque
a Cuba seria um ataque à União Soviética. O papelzinho teria sido impor-
tante; mas é claro que mísseis são muito mais importantes do que um papel-
zinho. Nós, em Cuba, queríamos que fosse um pacto público porque a
aprovação daquele louco do Krushev foi feita na presença de apenas seis mem-
bros do Secretariado do partido de Cuba: Fidel Castro, Raul Castro, o Che
Guevara, Blas Roca, Carlos Rafael Rodríguez e Emílio Aragonês. Ninguém
mais sabia de nada daquilo.*

(*) Aragonês, entrevista, op. cit. Castro depois afirmaria: "A URSS poderia ter
declarado que um ataque a Cuba equivaleria a um ataque à URSS. Poderíamos ter forma-
lizado um acordo militar. Poderíamos ter alcançado a meta da defesa de Cuba sem a pre-
sença dos mísseis. Estou absolutamente convencido disso". (Fidel Castro, transcrição da
intervenção, op. cit., p. 336.) E o mesmo ponto de vista defendido por três consultores
contratados pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos para escrever a história da
corrida armamentista: "Se os soviéticos quisessem proteger Cuba, ao ligarem seus interes-
O Che ainda não desconfiava da URSS. Não imaginava que Krushev
pudesse retirar os mísseis caso houvesse um enfrentamento com Washing-
ton. Tampouco se convencera por completo da terrível inferioridade
nuclear da URSS frente aos EUA: ainda acreditava na existência de uma pari-
dade entre as duas superpotências. Segundo Aragonês, chegou a zombar das
dúvidas de seu companheiro de viagem. Ao retornar de Moscou, os dois
encontraram alguns cubanos na Tchecoslováquia, e Aragonês se queixou do
acordo. O Che retrucou: "Mas como você é, hem.?!". Guevara acreditara no
compromisso soviético.*
As teses de Krushev, vistas à distância, mostraram ser menos absurdas
do que pareciam. As profecias do Che só se cumpriram em parte. Sabemos
hoje — porque assim insinuaram os participantes soviéticos da reunião de
Moscou em janeiro de 1989 e porque assim declarou categoricamente Fidel
Castro na conferência de Havana em janeiro de 1992 — que vinte dos 42
mísseis soviéticos instalados em Cuba estavam armados com ogivas
nucleares e seis lança-mísseis táticos, carregados com nove mísseis com ogi-
vas nucleares, estavam prontos para ser usados na eventualidade de uma
invasão norte-americana.8' Foram introduzidos em Cuba sem que Wash-
ington percebesse. Arthur Schlesinger e Robert McNamara, ambos pre-
sentes na conferência de Havana em 1992, quase caíram da cadeira ao saber
disso.84 O número de soldados soviéticos que efetivamente chegou a Cuba
também foi muito superior ao previsto pelos norte-americanos. Os 42 mil

ses de defesa aos dos cubanos, teria bastado um tratado de defesa mútua e uma presença
militar voltada especificamente para a defesa contra um ataque aéreo ou uma invasão
anfíbia, sem necessidade de converter Cuba em um alvo estratégico altamente vulnerável
e inevitável. Embora se possa argumentar que uma presença defensiva soviética teria sido
por si só uma provocação, além de exigir um enorme esforço logístico, não teria elevado
tanto a tensão quanto um dispositivo nuclear ofensivo". (Ernest R. May, John
Steinbruner, Thomas W. Wolfe, "History of the strategic arms competition", Office of the
Secretary of Defense, Historical Office, março de 1981 (ultra-secreto), p. 482, citado em
The National Security Archive, "The Soviet estimate: US analysis of the Soviet Union
1947-1991", Washington, 1995.)
(*) Aragonês, entrevista, op. cit. Va!e destacar um elemento que o leitor atento já
deverá ter notado: as versões proporcionadas por Emilio Aragonês e Alexander Alexeiev
são quase idênticas, inclusive nos detalhes, sequências e coincidências. Não é preciso dizer
que, a esta altura, não existe qualquer comunicação entre eles. Aragonês vive em Havana,
como um aposentado quase proscrito. Alexeiev, já velho e com saúde frágil, passa boa
parte de seu tempo no hospital da Nomenklatura, nos arredores de Moscou. Se suas lem-
branças coincidem de maneira notável é porque os acontecimentos ficaram marcados para
sempre em suas mentes e porque são verdadeiras.
soldados, disfarçados com uniformes de inverno e até equipamento de esqui,
foram calculados pelos Estados Unidos em 4500, no início de outubro; 10
mil, no auge da crise e, no final, entre 12 e 16 mil. Estimativas posteriores
elevaram o número para 22 mil. Mas Castro confirmou a cifra de 42 mil
apresentada por Alexeiev e Mikoian.85 Em outras palavras, os soviéticos de
fato conseguiram infiltrar mísseis, ogivas nucleares, tropas e equipamentos
antiaéreos sofisticados em Cuba antes de o Serviço de Informação norte-
americano perceber. Tanto isso é verdade que um memorando "Top secret
and sensitive" * dirigido a Kennedy e datado de 3 de setembro (menos de
um mês antes da crise), de autoria de Walt Rostow, conselheiro do Depar-
tamento de Estado, informava ao presidente que, de acordo com os infor-
mantes da CIA, "o fornecimento de material militar soviético a Cuba efe-
tuado nos últimos dias não constitui uma ameaça substancial à segurança
dos Estados Unidos".86 A questão, portanto, não foi a suposta falta de sigilo
da transferência das armas a Cuba, e sim o que fazer com elas uma vez insta-
ladas na ilha. Quando o conflito se agravou, nem Krushev, nem o coman-
dante soviético dos mísseis em Cuba se atreveram a dar a ordem de disparar.
Os militares soviéticos no terreno tinham autonomia para disparar mísseis
munidos de ogivas nucleares. O avião-espião norte-americano U-2, der-
rubado nos céus cubanos em 27 de outubro, foi atacado por decisão da
guarnição soviética em Cuba, não de Moscou. A crise se acirrou quando
Kennedy soube da presença de mísseis da URSS em Cuba e de outros que já
estavam a caminho, em alto-mar. O presidente dos EUA impôs à ilha um blo-
queio marítimo e exigiu a retirada dos mísseis já instalados. Krushev
primeiro vociferou, em seguida pestanejou (na frase de Dean Rusk) e em 28
de outubro cedeu ao ultimato de Washington. Em troca da retirada dos mís-
seis e de uma inspeção por parte das Nações Unidas — que Castro nunca
admitiu —, a URSS obteve a promessa de que os Estados Unidos não invadi-
riam Cuba — promessa nunca ratificada em documento — e a retirada dos
mísseis norte-americanos na Turquia — aliás, obsoletos — em uma permuta
jamais reconhecida por Washington.
Castro sentiu-se terrivelmente traído, ofendido e desprezado pela
URSS, tanto pela rendição em si como por ter sabido da decisão pelo rádio.
Ao tomar conhecimento da resolução soviética enfureceu-se, chamou
Krushev de "filho da puta, cagão e bunda-mole".87 Conseguiu recuperar a
dignidade, mas, obviamente, não pôde impedir a retirada dos mísseis. Pouco

(*) Em inglês no original: Altamente secreta e sensível. (N. T.)


depois, proclamaria em público, na Universidade de Havana, que o proble-
ma de Krushev era "falta de colhão".88 Rejeitou no mesmo dia a promessa
norte-americana de não invadir a ilha e apresentou sua lista de exigências:
levantamento do bloqueio, fim das atividades subversivas contra seu gover-
no realizadas a partir dos Estados Unidos e de Porto Rico, suspensão dos
sobrevôos, devolução da base de Guantánamo.
O slogan "Nikita, mariquita, Io que no se da, no se quita" [Niquita, vea-
dinho, ninguém tira o que não deu], gritado em coro em Havana, mostra bem
o estado de espírito que imperava em Cuba, tanto entre o povo como no seio
da direção revolucionária. As atribulações de Krushev eram evidentes:
expôs-se à crítica impiedosa dos chineses — "E a maior traição desde a da
social-democracia alemã no início da Primeira Guerra Mundial"89 — e à de
seus inimigos dentro da própria URSS. Embora saibamos hoje que sua der-
rubada em outubro de 1964 não foi motivada pela derrota no Caribe, alguma
influência deve ter exercido sobre essa decisão. A prova da importância que
Krushev atribuía à relação com Cuba e à incessante crítica chinesa aparece
em uma carta do premiê soviético a Fidel Castro, datada de 31 de janeiro de
1963 e divulgada em janeiro de 1992. Ao longo de 31 páginas, com repetidos
e mal disfarçados ataques contra os chineses e uma ou outra consideração
pouco lisonjeira em relação a Cuba, ele tenta convencer Castro a visitar a
URSS na primavera. Convida-o a pescarias, caçadas e passeios pelo campo;
tudo para cicatrizar as feridas de outubro. Reconhece que
a crise deixou uma marca em nossas relações, que hoje já não são as mesmas de
antes. Isso nos preocupa. Durante a crise do Caribe, nossos pontos de vista
nem sempre coincidiram [...] Por isso, hoje, qualquer passo impensado ou mes-
mo um leve atrito em nossas relações poderia gerar vários problemas. Nessas
condições, é necessário serenidade e autocontrole. Já lhe disse, camarada
Fidel, que um certo grau de ressentimento impera hoje em nossas relações, e
isso prejudica tanto a Cuba como a nós. Sem rodeios, prejudica nosso partido
e nossa pátria, assim como não beneficia o senhor...90
Castro aceitou o convite. Durante a estadia na URSS, negociou diver-
sos acordos económicos e militares, superou as tensões e fúrias de outubro e
novembro. Não tinha alternativa: Krushev simplesmente não podia con-
tinuar apoiando Cuba quando esta o insultara por fraquejar diante de
Kennedy e dos Estados Unidos. Já em novembro de 1962, Krushev enviou
Mikoian para Havana, visando curar as feridas e melhorar o abalado prestí-
gio da URSS perante a opinião pública mundial e os rivais chineses. Durante
ttês semanas o "cubano do PCUS", como o chamavam em Moscou, tentou
convencer os cubanos a aceitarem o acordo com Kennedy e sobretudo a ces-
sarem as críticas públicas a Krushev. Conseguiu-o em parte.

Durante a crise de outubro propriamente dita, o Che praticamente não


se envolveu nas decisões tomadas em Havana. Tal como acontecera às vés-
peras do conflito da baía dos Porcos, foi enviado a Pinar dei Rio, como coman-
dante de toda a região ocidental da ilha, mantendo as tropas a postos para
repelir uma possível invasão norte-americana ou, caso fossem derrotadas,
preparar a guerrilha que se seguiria. Rafael dei Pino, o piloto-herói de playa
Girón, foi convocado por Fidel Castro, como assessor em matéria de aviação,
desde o segundo dia dos voos norte-americanos. Segundo Del Pino, que ao
longo da crise fingiu ser o secretário pessoal de Fidel, dormindo em um quarto
pegado ao quartel-general, o Che não teve nenhum encontro com Castro até
o término da crise em 28 de outubro.91 Talvez tenham conversado por telefone,
mas, como os cubanos não dispunham de scramblers para proteger suas comu-
nicações, não poderiam ter tratado de questões substantivas.92 As pessoas-
chave do círculo mais próximo a Fidel, segundo recorda Del Pino, foram o
comunista Flavio Bravo e o chefe do Departamento de Informação do exérci-
to.91 O Che não viveu ao lado de Castro as peripécias e a tragédia da crise do
Caribe em sua etapa de outubro. Em compensação, teve destacada parti-
cipação no desenlace da crise. Segundo Ricardo Rojo, estava junto a Fidel
quando este soube da decisão soviética de retirar os mísseis e o viu dar pontapés
na parede, de raiva."4 Resignou-se ao curso dos acontecimentos, mas, à dife-
rença de Fidel Castro, sentia verdadeira aversão pela política de Estado que se
impunha no tempo da Guerra Fria.* Não engoliu seu desgosto com a mesma
discrição e tato de Fidel. Confessou-o ao jornal do Partido Comunista da Grã-
Bretanha, embora a expressão de sua ira não tenha sido publicada na íntegra:
Se nos atacacarem, lutaremos até o fim. Se os mísseis tivessem ficado em Cuba,
usaríamos todos, apontando-os contra o coração dos Estados Unidos, inclu-

(*) Sua carta a Anna Louise Strong, em Pequim, a 19 de novembro, é uma ótima
amostra do terrível conflito que estava vivendo: "A situação aqui em Cuba é de alerta. O
povo espera o ataque em pé de guerra [...] Se morrermos na batalha (depois de vender
muito caro nossas vidas), quem viver lerá em cada palmo de nossa ilha alguma mensagem
semelhante à das Termópilas. Mas nem por isso estamos ensaiando a pose para o momento
final. Amamos a vida, e a defenderemos". (Ernesto Guevara a Anna Louise Strong,
19/11/62, cit. em Ernesto Che Guevara, Cartas inéditas, Montevidéu, Editorial Sandino,
1968, p. 14.)
sive Nova York, para nos defendermos contra a agressão. Mas como não os
temos, lutaremos com o que temos [...] Muita gente na Europa anda dizendo
que se obteve uma grande vitória. Mas nós achamos que, embora a guerra te-
nha sido evitada, isso não significa que a paz esteja assegurada. E perguntamos:
Será que com tudo isso não fizemos senão prolongar a agonia em troca de uma
vitória menor? Até agora, apenas se evitou o enfrentamento, e só. *
Sua incapacidade de tolerar a hipocrisia era indisfarçável. Desde os
primeiros dias depois da crise, sentiu-se profundamente irritado com todo o
jogo de cena, como confessou a Oleg Daroussenkov, seu melhor amigo
soviético em Cuba. Um dia, finda a crise, foram praticar tiro e conversar
despreocupadamente. O Che "queixou-se de que não é impossível tratar
com esses figurões — referia-se a Krushev. Um dia dizem uma coisa, no dia
seguinte, já é outra. Krushev me garantiu que se algo acontecesse mandaria
a frota do Báltico a Cuba. E cadê a frota? O Che estava furioso".95
Ele deve ter sentido o recuo soviético como uma traição; até certo pon-
to lamentava que a crise não tivesse terminado num gesto de auto-sacrifício:
É o exemplo tremendo de um povo disposto ao auto-sacrifício nuclear, para
que suas cinzas sirvam de alicerce para uma nova sociedade. Um povo que,
ante o acordo de retirada dos mísseis, não suspira de alívio nem dá graças pela
trégua, e sim salta à cena para fazer ecoar sua voz, mostrar sua posição com-
bativa, própria e única, e, mais adiante, sua decisão de luta. Mesmo que seja
só, contra todos os perigos e contra a mesmíssima ameaça atómica do imperia-
lismo ianque.96
O Che esteve presente em todas as conversações com Mikoian, exce-
to uma. Mas em suas intervenções, limitou-se a enfatizar os efeitos perni-
ciosos que a retirada dos mísseis soviéticos teria sobre a revolução na Améri-
ca Latina. Além disso, fez algumas brincadeiras que, apesar de um tanto
mórbidas, descontaíram o ambiente. Alexeiev lembra uma delas, que tomou
por vítima o intérprete soviético Tikhmenev. Em um dos momentos de
maior tensão, o tradutor entendeu que Fidel teria comparado Mikoian com
U Thant. O vice-premiê se enfureceu, primeiro com Castro e em seguida

(*) Ernesto Che Guevara, entrevista ao Daily Worker, nov. 1962, reprod. em "Fo-
reign Broadcast Information Service Propaganda Report, Changing Pattern of Fidel
Castro's Public Statements", 7 de dezembro de 1962, pp. 23-4. O informe diz que as três
primeiras frases citadas não foram incluídas na versão publicada, mas que o correspon-
dente do Daily Worker transmitiu-as a Londres (ibidem, p. 25). Carlos Franqui confirma o
corte e diz que Fidel teria telefonado ao Che, recriminando-o por sempre dizer o que pen-
sava. (Carlos Franqui, entrevista, op. cit.)
com seu intérprete, ao perceber que o suposto insulto provinha do segundo.
Interrompendo a sessão para um descanso que serenasse os ânimos, o Che se
aproximou de Tikhmenev, pôs sua pistola automática Makharov sobre a
mesa e sugeriu discretamente que ele [...] se suicidasse.97
O último diálogo entre o Che e Mikoian, divulgado em 1995 por
pesquisadores russos e norte-americanos, é de extremo interesse, pois mostra
o ânimo de Guevara e o abismo que já o separava do governo soviético. Con-
vém citá-lo na íntegra, a título de conclusão desta etapa dourada de Che Gue-
vara em Cuba, e de preâmbulo para as definições e desencantos que viriam:
Guevara: Gostaria de dizer-lhe com toda a sinceridade, camarada Mikoian,
que em consequência dos recentes acontecimentos criou-se uma situação
muito complicada na América Latina. Boa parte dos comunistas que repre-
sentam os partidos latino-americanos e outros grupos não sabem bem o que
fazer. Todos estão consternados ante a atitude da União Soviética. Vários par-
tidos racharam. Estão surgindo novos grupos, novas facções. Mas nós estamos
absolutamente convencidos da possibilidade da tomada do poder em vários
países da América Latina, e a prática nos ensina que, em alguns deles, não só
é possível tomá-lo, mas também conservá-lo. Infelizmente, muitos grupos lati-
no-americanos acreditam que o comportamento da União Soviética nos últi-
mos acontecimentos caiu em dois erros muito sérios. Em primeiro lugar a per-
muta (ou seja, a proposta de trocar os mísseis soviéticos em Cuba pelos dos
Estados Unidos na Turquia-JGC); e, em segundo, a concessão incondicional.
Parece-me que isso nos leva a concluir que podemos esperar um refluxo do
movimento revolucionário na América Latina, que nos últimos tempos se for-
talecera consideravelmente. Tudo isto não passa de opinião pessoal, mas abso-
lutamente sincera.
Mikoian: Claro, é preferível falar com sinceridade. É melhor dormir que
escutar palavras mentirosas.
Guevara: Eu também sou dessa opinião [...] Os Estados Unidos, ao con-
seguirem a retirada dos mísseis soviéticos de Cuba, em certo sentido obtive-
ram o direito de proibir outros países de estabelecerem bases militares. É o que
pensam não só muitos revolucionários, mas também os representantes do
FRAP no Chile e de vários movimentos democráticos. Em minha opinião, essa
é a essência dos recentes acontecimentos. Mesmo com todo o respeito que
temos pela URSS, julgamos que suas decisões foram equivocadas [...] Creio que
a política soviética teve duas falhas. Não compreendeu a importância do fator
psicológico para Cuba. Fidel Castro expressou isso de maneira original: "Os
EUA quiseram destruir-nos fisicamente, mas a URSS, com a carta de Krushev a
Kennedy (em 27 de novembro, aceitando a retirada dos mísseis-JGC), des-
truiu-nos juridicamente.
Mikoian: Mas nós pensamos que vocês ficariam satisfeitos. Fizemos o pos-.
sível para evitar que Cuba fosse destruída. Entendemos a disposição de vocês
de ter uma bela morte, mas achamos que a bela morte não compensa.
Guevara: Em certo sentido, o senhor tem razão. Ao não nos consultar, vocês
ofenderam nossos sentimentos. Mas o maior perigo reside na segunda falha do
comportamento soviético. Vocês reconheceram o direito de os Estados
Unidos violarem o direito internacional. Isso é extremamente prejudi-
cial para a política da URSS. E é algo que nos preocupa. Pode acarretar dificul-
dades para a manutenção da unidade dos países socialistas. Parece-nos que já
existem fissuras na unidade do bloco socialista.
Mikoian: Isso também nos preocupa. Estamos tratando de fortalecer nossa
unidade. E estaremos sempre com vocês, camaradas, apesar das dificuldades.
Guevara: Até o último dia?
Mikoian: Sim, deixemos a morte para nossos inimigos. Nós devemos viver
e deixar viver [...] O camarada Guevara avaliou os acontecimentos passados
em um tom pessimista. Respeito sua opinião, mas não concordo com ela.
Procurarei convencê-lo em nossa próxima reunião, mas duvido que o consiga
[...] Estou satisfeito com minhas reuniões com vocês [...] Basicamente che-
gamos a um entendimento sobre o protocolo do acordo. Mas devo dizer que eu
pensava entender os cubanos, mas depois de escutar o camarada Che, chego à
conclusão que não, que ainda não os entendo.
Alexeiev: Mas o Che é argentino.
Mikoian (ao Che): Devemos nos reunir e conversar [...] Nós apostamos
muito em Cuba, no sentido material, moral, e também no sentido militar.
Pense um pouco nisto: Estaríamos prestando toda essa ajuda por vivermos
numa situação de fartura? O senhor acredita que temos muita coisa de sobra?
Não temos nem sequer para nós. O que queremos é preservar a base do socia-
lismo na América Latina. Vocês nasceram como heróis antes que a situação
latino-americana amadurecesse, mas as nações socialistas ainda não têm ple-
nas condições de ajudá-los. Nós lhes damos navios, armas, técnicos, frutas e
verduras. A China é um país grande, mas por enquanto continua pobre.
Chegará o dia em que venceremos nossos inimigos. Mas não queremos uma
bela morte. O socialismo deve viver. E desculpe a retórica.*

(*) Memorando da conversa de Anastas Mikoian com Osvaldo Dorticós, Ernesto


Guevara e Carlos Rafael Rodríguez, 5/11/62 (secreto), cit. em "Cold War International
History Project, Cold War Crises", Boletim ne 5, primavera de 1995, Woodrow Wilson
International Center for Scholars, Washington DC, p. 105. A versão citada provém dos
arquivos do Ministério das Relações Exteriores da Rússia. Sofreu várias traduções: por
Alexeiev, do espanhol para o russo, ao anotar a conversação de 1962; do russo para o
inglês, em 1995; e do inglês para o espanhol, pelo autor.
Já então podia-se ler no rosto do Che a imagem do calvário e da bela
morte. Talvez Mikoian, um culto russo-armênio, recordasse a cena de Guer-
ra e paz em que Napoleão, depois de sua derrota em Berezina e contemplan-
do o corpo inerte (mas na realidade ainda com vida) do príncipe Andrei,
exclama para ninguém em particular: "Quelle helle mort!".
8
COM FIDEL, NEM CASAMENTO,
NEM DIVÓRCIO

Para o Che, aqueles anos em Cuba não foram feitos só de mísseis e cotas
de açúcar. Nessa época ele viu crescer sua família, sua fama e seu desejo de
perpétuo movimento. Em maio de 1962 nasceu Camilo, seu primeiro filho,
que recebeu o nome do companheiro da sierra Maestra; em 1963 nasceria
Célia, a terceira menina. Aleida, que no início o acompanhara na maioria
das viagens pelo interior da ilha, dedicava-se cada vez mais ao lar. A con-
fortável mas discreta casa que ocupavam no número 772 da rua 47, entre
Conill e Tulipán, no bairro de Nuevo Vedado, encheu-se de crianças, um
feroz pastor alemão — segundo os vizinhos — e uma esporádica e fugaz pre-
sença de Guevara. Somando-se o tempo dedicado às idas ao exterior e às via-
gens pelas províncias, restavam pouquíssimos dias que ele pudesse passar em
Havana. Como relata o neto mais velho do Che, a partir das recordações de
sua mãe, ele "nunca parava em casa".1 Não formou a família burguesa que
tanto temera em Buenos Aires, mas seus raros momentos de vida doméstica
foram bem semelhantes aos que teria levado em qualquer outro lugar. Tam-
bém cultivou seu gosto pela literatura, dedicando muitas de suas horas livres
a escrever cartas, diários ou os artigos e ensaios que continuou a publicar em
ritmo desenfreado.
■ Conservou seu ascetismo e a estrita observância das regras de ética re-
volucionária que impôs a si mesmo. Evitou ao máximo qualquer abuso de
poder, qualquer privilégio que pudesse afetar seus princípios e sua auto-
imagem. Aleida, cubana e dona de casa, enfrentando o suplício cotidiano
das filas, das privações e do "jeitinho" da ilha, uma vez ou outra usou o
automóvel oficial, a escolta e as influências para conseguir ao menos
condições mínimas de sobrevivência. Nessas ocasiões o Che sempre a
repreendeu, dizendo-lhe que devia usar o transporte público para ir ao mer-
cado ou a qualquer outro lugar: "Não, Aleida, você sabe que o carro é do go-
verno, não é meu, portanto você não pode usá-lo. Ande de ônibus, como todo
mundo". Ricardo Rojo, que morara alguns meses com ele no início de 1963,
recorda como o Che se empenhava em receber do governo apenas o indis-
pensável para viver, o que confere com o relato de Aleida e a mãe do argenti-
no. A casa em que moravam, uma mansão confiscada de um rico emigrado,
dentro não tinha quase nada, apesar dos incontáveis presentes que o Che rece-
bia em suas viagens pelo mundo. Guevara simplesmente remetia os presentes
para os centros de formação da juventude, fossem peças de decoração, de arte-
sanato ou eletrodomésticos. Nem chegava a tirá-los da embalagem.2
As horas que ele não dedicava a trabalhos estritamente administra-
tivos e diplomáticos eram ocupadas com sua obsessão teórica, política e pes-
soal: o destino da revolução, na América Latina e, cada vez mais, na África.
Se a principal preocupação do Che na crise do Caribe foram as consequên-
cias nefastas da rendição soviética para a luta no continente, foi porque ele
estava cada vez mais preocupado com um único propósito: reproduzir o
modelo cubano em outros lugares, com os meios à disposição e a qualquer
custo. As premissas teóricas de sua obsessão remontam a um ensaio datado
de 1961: "La Revolución Cubana ^excepción o vanguardia?". Nesse artigo,
Guevara descreve rapidamente os traços da Revolução Cubana que, a seu
ver, constituem exceções no contexto latino-americano: a figura de Fidel
Castro, sua "força telúrica", e o modo como "o imperialismo foi tomado de
surpresa". Em seguida, cita as características que, em sua opinião, são
comuns e/ou constantes na América Latina: a falta de arrojo da burguesia; a
presença de latifúndios e de um campesinato pobre — "o fenómeno que
assoma em todos os países da América Latina, sem exceção, e que tem sido
a causa de todas as injustiças cometidas"; e a fome do povo. Por último, o Che
sintetiza as contribuições da vitória cubana: "a possibilidade do triunfo e o
destino do triunfo". Arremata com uma conclusão lapidar: "A possibilidade
de vitória das massas populares da América Latina está claramente expres-
sa no caminho da luta guerrilheira, baseada no exército camponês, na
aliança dos operários com os camponeses, na derrota do exército em uma
luta frontal, na tomada da cidade a partir do campo [...]'V
Guevara retoma essas teses em outro ensaio, que teria maior reper-
cussão, publicado em Cuba Socialista em setembro de 1963: "La guerra de
guerrillas: Un método". Reitera a vigência dos axiomas anteriores, insiste na
viabilidade e na necessidade da luta armada na América Latina. Diferente-
mente dos textos de 1960e 1961, apóia-se numa disposição muito maior do
regime cubano para "exportar a revolução". Aliás, desde os primeiros anos
sobraram ocasiões em que o Che e outros dirigentes cubanos incorreram em
práticas peculiares: envio de armas, de fundos, treinamento de guerrilheiros,
fornecimento de documentação, apoio logístico... Entretanto, tudo parecia
ser fruto mais de uma vocação do que de uma política de Estado.
A partir da expulsão de Cuba da OEA em 1962 e do rompimento de
relações diplomáticas por parte da maioria dos países da América, deixou de
haver qualquer motivo para que os cubanos abrissem mão de seus ardores re-
volucionários — sediciosos ou subversivos, quando vistos sob a ótica dos go-
vernos.* Além disso, em 1963 a posição do Che como personalidade do Esta-
do cubano estava em uma etapa mais consolidada. De forma que seus textos
foram percebidos por muitos governos latino-americanos não como a opinião
de um mero intelectual ou guerrilheiro, por mais destacado e emblemático que
fosse, mas como uma definição da política do Estado cubano. No entanto, a
grande diferença entre 1960- l e i 963'4 reside no papel pessoal do Che: ele pas-
sou a se comprometer diretamente nas aventuras revolucionárias cubanas.**
Naturalmente, seu primeiro amor guerrilheiro foi a terra natal, a Ar-
gentina. Os fundamentos teóricos esboçados naqueles primeiros anos foram

(*) Os obstáculos para a criação de um foco revolucionário que Guevara indicara no


manual original desapareceram nesse ensaio. Não consta em lugar nenhum, por exemplo,
nenhuma menção ao empecilho que um regime constitucional democrático poderia repre-
sentar para a guerrilha. Entre outros, Matt D. Childs, em um ensaio intitulado "A historical
critique of the emergence and evolution of Ernesto Guevara's foco theory" (Journal ofLatin
American Studies, Cambridge University Press, n9 27, 1995, pp. 593-624), enfatiza a dife-
rença de enfoques entre a teoria inicial do Che e sua revisão de 1963. Childs critica tanto o
autor como Régis Debray por não chamarem a atenção para essa diferença. Enretanto, con-
vém observar que a diferença conceituai entre os dois enfoques do Che não influiu no com-
portamento dos grupos armados e do aparato cubano, que se lançaram à luta armada na
América Latina desde o começo desde 1959, como mostramos — sem demonstrar muita
preocupação com a vigência ou não de uma ordem constitucional.
(**) Outro sinal claro dessa diferença foi que os soviéticos passaram a contestar o Che.
Em 11 de novembro de 1963, foi publicado um artigo assinado por Demetri Leonov, na ver-
são em espanhol da Revista da URSS, intitulado "La coexistência pacífica fortalece el frente
de Ia lucha contra el Imperialismo". Segundo a embaixada inglesa em Havana, "o artigo pode
ser lido como uma réplica ao artigo de Guevara sobre a guerrilha, publicado em setembro por
Cuba Socialista, em clara oposição a suas teses". (Havana Telegram to Foreign Office,
Counter-Revolutionary Actvities, 10/1/64 (secreto), Foreign Office, FO371/174003, Public
Records, op. cit.)
pronta e insistentemente aplicados por seus compatriotas, muitos deles
reunidos nos festejos da independência platina em Havana, a 25 de maio de
1962. Não foi possível fazer um churrasco argentino completo, mas sacri-
ficaram uma novilha meio morta de fome que, junto com o mate, bastou para
celebrar a ocasião.
Estava presente toda a comunidade argentina de Havana, incluindo
John William Cooke, representante de Perón, e Tâmara Bunke, a jovem
tradutora-professora teuto-argentina que um ano antes se incorporara à
Revolução Cubana, os duzentos técnicos enviados pelo Partido Comunista
Argentino (PCA) em solidariedade a Cuba, artistas, cientistas e escritores
argentinos radicados em Havana.* O Che pronunciou um discurso que
mostra, ao mesmo tempo, sua força e sua fraqueza, suas obsessões e seus fra-
cassos. O Instituto de Amizade Cuba-Argentina lhe pedira que falasse, con-
vite que ele aceitou sem muito entusiasmo, já que sabia o vespeiro que o es-
perava. Como recorda um militante argentino presente à reunião, o Partido
Comunista — cujos técnicos chegaram a Havana em um avião especial, não
tinha boas relações com Cuba. Isso porque na ilha defendia-se a violência
revolucionária, da qual o partido discordava. Muitos dos argentinos
começaram a receber instruções para a formação de milícias. A direção con-
cluiu de imediato que Cuba pretendia preparar grupos armados dentro do
próprio Partido Comunista Argentino, minando sua base. Isso provocou
uma grande tensão, que quase levou à ruptura, sobretudo quando o dele-
gado do PCA foi retirado de Cuba. "Eu vou falar no ato de 25 de maio, desde
que não me imponham condições", disse o Che.4
Assim, Guevara rapidamente penetrou em águas turbulentas e viu-se
em em situação delicada. Por um lado, estava absolutamente convencido de
que a luta armada, e somente ela, poderia fazer que a revolução triunfasse na
Argentina. Também não duvidava que só seria possível vencer o exército e
as oligarquias de seu país de origem se houvesse a unidade de todas as forças
políticas que quisessem se incorporar ao combate. Mas, por outro lado, uma
dessas forças, o Partido Comunista, dirigido pelo legendário e funesto appa-

( * ) Eram quase quatrocentos, segundo um deles. (Ver Carolina Aguilar, cit. em Tânia,
Ia guerrillera inolvidable. Havana, Instituto Cubano dei Libro, 1974, p. 108.) Um informe
ultra-secreto da embaixada da URSS em Cuba tachava o artigo de "ultra-revolucionário,
beirando o aventureirismo". Segundo a embaixada, o Che "não conhece as teses do marxis-
mo-leninismo". (Informe ng 47784 da embaixada, 28/1/64 (secreto). Arquivo estatal da Rús-
sia, Centro de Conservação da Documentação Contemporânea, fundo n2 5, lista ns 49, ns
655, Moscou.)
ratchik argentino-soviético Victor Codovilla, rejeitava suas teses "foquis-
tas", enquanto outros disputavam uma liderança que em muitos casos não
mereciam. Ou dispunham de grandes talentos, mas pouco representativos
— era o caso de Cooke, apesar de seu vínculo pessoal com Perón —,5 ou for-
mavam uma espécie de escória política da esquerda socialista ou castrista,
completamente desvinculada da Argentina.
Cooke, já afastado do peronismo, mas não do exilado Perón, pronun-
ciou também um discurso incendiário, apoiando as teses do Che. Recordou
que todos os grandes heróis da libertação latino-americana tinham sido
"guerrilheiros".6 E o Che não usou de meias-palavras, convocando tradi-
cionais inimigos a unir-se para pegar em armas, que muitos não possuíam
nem desejavam possuir: "Pensamos que somos parte de um exército que luta
em cada parte do mundo. Lutemos para celebrar outro 25 de maio, não mais
nesta terra generosa, mas na nossa terra, e sob novos símbolos, sob o sím-
bolo da vitória, sob o símbolo da construção do socialismo, sob o símbolo
do futuro".7
As palavras, os gestos e sobretudo as intenções do comandante Gue-
vara só podiam causar preocupação a grande parte da plateia, sobretudo
aquelas pessoas ligadas ao Partido Comunista. Seus apelos à união com o
peronismo e com todos os revolucionários, à guerrilha e à violência revolu-
cionária desagradaram muito os comunistas. "No dia seguinte foi aquela
confusão." E começa uma intensa discussão entre os delegados.8
Discussão áspera, sem dúvida: os comunistas se enfureceram e até cen-
suraram as palavras do Che em suas publicações. Guevara logo se viu em uma
situação de absoluto desamparo, prisioneiro de suas aspirações revolu-
cionárias e guerrilheiras e da completa ausência de bases para realizá-las. Sua
única saída seria aquela que Cuba e ele próprio haviam encontrado em diver-
sas ocasiões ao longo daqueles anos: provocar cisões dentro dos partidos
comunistas latino-americanos, treinando militantes em Cuba, sem o conhe-
cimento ou a permissão de seus dirigentes, e conspirando para que esses
ativistas tomassem a direção de seus partidos. Uma carta escrita por "amigos
argentinos" (comunistas) a Aleira de Ia Pena, integrante do Birô Político do
Partido Comunista Argentino, exilada em Moscou, ilustra as tensões exis-
tentes:
Minhas relações com nosso famoso compatriota Ernesto Guevara vão
de mal a pior, e tudo por causa de um fato que teve e tem a ver com nosso queri-
do partido. Eu flagrei seus amigos Cooke e o grupo que estava recebendo
treinamento. Seu patrocinador era Guevara; a atividade era financiada
através dele. Entre os membros desse "comando" havia um grupo de trotskistas
que dizia: "Quando aplicarmos tudo isso que estamos aprendendo, não vamos
fazer nenhuma distinção entre 'gorilas' (militares antiperonistas) e 'comu-
nistas stalinistas'".'
A conquista dos partidos "por dentro" nunca chegaria a acontecer, mas
despertou muita mágoa e ressentimento nas direções atingidas. O Che
começou a compreender que, se quisesse montar uma guerrilha na Argenti-
na ou em qualquer outro lugar, seria forçado a fazê-lo sozinho, ou seja, com
recrutas independentes, desligados das organizações existentes.
Um caso típico foi o da própria Tâmara Bunke, que o Che costumava
encontrar nas festas e celebrações das frentes de voluntariado, bem como
nas constantes recepções de delegações estrangeiras. Alguns dos argentinos
presentes no churrasco de 25 de maio voltaram a se reunir dias depois,
comentando os incidentes e fazendo previsões. Vários, mas não Tâmara,
manifestaram suas divergências com o Che. Imbuída do espírito de sacrifí-
cio herdado de seus pais comunistas e da impulsividade imprudente que a
levaria à morte na Bolívia cinco anos mais tarde, Tâmara ergueu-se e gritou:
"Vou embora, não vou perder meu tempo aqui", para em seguida sair baten-
do aporta.10
O Che teria de fazer sua revolução latino-americana com as Tâmaras e
sem os Codovillas. Do ponto de vista pessoal, saía ganhando; do ponto de
vista de uma política das massas, a perda era evidente. Isso ficaria mais
patente no caso da Argentina, onde nem o Partido Socialista, nem os comu-
nistas, nem Perón estavam dispostos a se lançar à delirante luta armada.
Quando Cooke voltou a seu país, dois anos depois, o Che viu-se ainda mais
isolado em suas aspirações com relação à Argentina. Mas nem por isso
perdeu as esperanças. Já nos dias seguintes àquele 25 de maio, ele confiou
suas verdadeiras intenções a alguns argentinos residentes em Havana, que o
visitaram no Ministério. Ao entrar em seu gabinete, eles o acharam frente
ao mapa da Argentina aberto sobre a escrivaninha. Então passaram várias
horas como bons argentinos, tomando mate e contando casos. Um, em par-
ticular, impressionou os interlocutores de Guevara: "A revolução, disse ele,
pode ser feita, no momento certo, em qualquer lugar do mundo". Em qual-
quer lugar do mundo? Mesmo na Argentina ou em La Paz? O Che respon-
deu: "Até em Córdoba pode-se fazer uma guerrilha"."
Em vários países latino-americanos, persistia o dilema dos primeiros
anos, agora agravado pela teimosia do Che, pela crescente resistência da
URSS e dos partidos comunistas locais. As primeiras tentativas feitas na
Venezuela, Nicarágua e Guatemala tinham fracassado. A repressão por
parte dos governos — inclusive os de caráter democrático — se agravara e
cresciam também os riscos para as grandes organizações de massas inspiradas
ou dirigidas pelos comunistas. Em tais condições, diminuía dia após dia a
propensão — nunca muito pronunciada — desses últimos pela luta armada.
Os comunistas de todo o continente imploravam a Moscou que intercedesse
junto aos cubanos pedindo-lhes mais moderação. Os soviéticos, tendo já
problemas suficientes com seus parceiros tropicais, preferiram, nesse
momento, a discrição ao confronto público. O resultado disso foi que os can-
didatos naturais à luta armada na América Latina — os quadros comunistas
— não se dispuseram a colocá-la em prática, o que aumentou a irritação do
Che Guevara.
Frente a tanta resistência e à eterna objeção de que as condições obje-
tivas não eram favoráveis, o Che reformulou suas teses. Se antes insistia que
a implantação de um foco guerrilheiro exigia uma série de condições prévias,
passou a defender que o próprio movimento seria capaz de gerar essas
condições. O que veio primeiro ? A teoria modificada do Che, segundo a qual
o foco criaria as condições para sua vitória, tornando irrelevante a prévia
existência das mesmas? Ou, ao contrário, a total ausência de tais condições,
somada ao empenho do argentino por fomentar a revolução imediatamente,
teria exigido um embasamento teórico, que ele encontrou na tese da "auto-
propagação do foco"? Foi sem dúvida a impossibilidade de encontrar os re-
volucionários reais que levou o Che a criar uma teoria que os tornava dis-
pensáveis. Acabaria morrendo só, envolto no silêncio dos camponeses
bolivianos e dos quadros comunistas ausentes. Seu foco em Nancahuazú
criou quase tudo, exceto condições de vitória.
Nesse ambiente político tempestuoso e cheio de contradições, produ-
ziu-se um acontecimento político crucial na história da Revolução Cubana:
a interminável viagem de Fidel Castro à União Soviética na primavera de
1963. Fidel percorreu o maior país do mundo durante mais de quarenta dias
e quarenta noites, selando com a direção soviética pactos com grandes
implicações para o futuro da economia e a política da ilha. O Che não acom-
panhou Fidel, apesar do convite explícito do embaixador soviético em
Havana12 e de a viagem ter servido para negociar acordos comerciais e indus-
triais de grande envergadura ligados estritamente a sua pasta ministerial. E
mais: Guevara só foi comunicado do conteúdo dos acordos firmados entre
Castro e seus anfitriões soviéticos quando isso já era um fato consumado."
Tanto melhor: o principal convénio conseguido por Fidel reservava a Cuba
o inevitável e triste papel de produtora de açúcar e outras matérias-primas
agrícolas, dentro da divisão socialista do trabalho, abdicando, agora explici-
tamente, do esforço de industrialização que, de fato, já fora abandonado
meses atrás. O Che não perdoou tão facilmente como Fidel a traição da URSS
na crise dos mísseis, nem se dobrou tão docilmente como o caudilho à
dependência soviética.*
Durante a visita de Fidel, as recriminações e insultos de outubro foram por
fim superados. O dirigente cubano foi homenageado, aclamado, adulado com
inquestionável espontaneidade pelas massas da Rússia, do Usbequistão, da
Ucrânia e da Georgia, e também talvez com menos sinceridade pelos dirigentes
soviéticos. Ele, por seu lado, não poupou elogios e declarações de amor pela
pátria-mãe do socialismo, em especial após seu regresso a Havana em 3 de ju-
nho de 1963. Se entre outubro e novembro de 1962 ainda era possível enxer-
gar certos paralelos entre o discurso chinês e os sentimentos cubanos em
relação a Kruschev, depois da viagem tais coincidências foram definitivamente
eliminadas da retórica oficial castrista. Vez por outra — por exemplo, nas
comemorações do 26 de julho daquele ano —, Fidel ainda esgrimia argumentos
e adotava posturas que alguns consideravam pró-chineses e ligeiramente anti-
soviéticos. ** Mas, embora Cuba mantivesse sua neutralidade no conflito sino-
soviético, na prática o alinhamento com a URSS era cada vez maior. Em con-
trapartida, os soviéticos referendavam, da boca para fora, o princípio da luta
armada na América Latina, mas embalavam seu apoio em tamanha quantidade
de reservas e condicionantes que qualquer partido comunista latino-ameri-
cano podia perfeitamente recusar a via militar sem violar as disposições
moscovitas.

(*) Em novembro, comentando a queda de Kruschev com seu amigo e professor de


economia Anastasio Cruz Mancilla, o Che diria: "Nunca vou perdoar Kruschev pela maneira
como resolveu a crise do Caribe". (Nota da conversação de 6 de novembro de 1964 entre o
agregado da embaixada da URSS em Cuba E. Pronski e o professor da Universidade de Havana
Anastasio Cruz Mancilla, 13/11/64 (secreto), Arquivo Estatal da Rússia, op. cit., fólio ns 5,
lista ns 49, documento n9 759.)
(**) O FBI, que por estranhos motivos também se interessava por Cuba, mas cujo dis-
cernimento ideológico deixava muito a desejar, comenta em um relatório secreto: "Desde o
26 de julho de 1963, Castro mostrou descontentamento e frieza para com a URSS, ao mesmo
tempo que mostra certa tendência a apoiar os comunistas chineses em sua disputa contra os
soviéticos. Diplomatas cubanos assinalaram que os dirigentes do país estão completamente
decepcionados com o tratamento que receberam da URSS e que o governo cubano está mais
perto dos chineses do que nunca". (Federal Bureau of Investigation, "Current Intelligence
Analysis" (secreto), 27/11/63, p. 2, NSF, Country File, Cuba Country, vol. A, * 64 memo,
Gordon Chase File, LBJ Library.)
As dúvidas do Che quanto ao proveito e à decência de uma reconcilia-
ção tão precipitada com a URSS foram reforçadas por outro fator: o incessante
flerte de Fidel com Washington, que sempre dava lugar a interpretações
contraditórias, talvez seu verdadeiro objetivo. Na primavera de 1963, uma
repórter da televisão norte-americana, Lisa Howard, obteve uma entrevista
com Castro em que ele sinalizou seu interesse por tentar o entendimento
com Kennedy. A resposta de Washington foi rápida e, como era de se espe-
rar, negativa. A jornalista redobrou seus esforços de mediação, que em
setembro do mesmo ano resultaram em conversações preliminares entre o
representante permanente de Cuba na ONU, Carlos Lechuga, e o jornalista-
diplomata norte-americano William Atwood. Tudo isso acontecia sob os
auspícios de Lisa Howard, que era amiga de René Vallejo, o médico parti-
cular de Fidel Castro. Vallejo ajudara a jornalista a encontrar-se com o
comandante-em-chefe em maio, chegando a oferecer o envio de um avião
aos Estados Unidos para transportar um enviado de Kennedy até Havana.
Quando Washington recusou a oferta, Vallejo propôs — com Lisa e Atwood
escutando o telefonema — que ele próprio viajaria aos Estados Unidos,
clandestinamente, para estabelecer o diálogo. Com a morte de Kennedy em
22 de novembro, todo aquele esforço em busca do diálogo foi suspenso, sem
que ninguém saiba se teria prosperado e se Castro estava realmente dispos-
to a fazer as concessões que Washington exigia para a normalização das
relações entre os dois países.
Em várias conversações entre cubanos e norte-americanos, estes apre-
sentavam o seguinte argumento:
Castro estava descontente com a dependência com relação à URSS. Via que o
embargo causava um terrível prejuízo a Cuba e desejava um contato com Wash-
ington para normalizar suas relações com os Estados Unidos, embora isso não
agradasse seus colaboradores mais inflexíveis; entre outros, Che Guevara... Exis-
tia um crescente distanciamento entre Castro e o setor da cúpula encabeçada
pelo Che quanto ao futuro da ilha... Guevara e outros comunistas se opunham a
qualquer entendimento e consideravam que Fidel era pouco confiável.*

(*) A fonte dessas citações são vários documentos sobre o intercâmbio cubano-
estadunidense entre setembro e novembro de 1963. O primeiro é o memorando de William
Atwood a McGeorge Bundy, assessor presidencial de Segurança Nacional, datado de 18 de
setembro (sem classificação), recomendando que se aceite o contato com os cubanos. O
segundo é um memorando de Atwood a Gordon Chase, de 8 de novembro (secreto), infor-
mando sobre os contatos de Atwood com Lisa Howard, Carlos Lechuga e René Vallejo em
Havana. (Memorandum from William Atwood to McGeorge Bundy (secreto), 18/9/63, LBJ
Library. Memorandum from William Attwood to Gordon Chase, 8/11/63, United States
Mission to the United Nations, LB] Library.)
A análise não é de todo válida, nem se pode afirmar que já nessa fase
houvesse um distanciamento efetivo entre Fidel e o Che. É possível até que
os dois, por diferentes motivos, tenham concordado sobre a necessidade da
retomada do apoio a grupos revolucionários na América Latina: o Che, por
princípio e por desencanto com a URSS; Fidel, por não ter conseguido o alívio
económico que desejava, nem de Moscou, nem dos Estados Unidos. O acir-
ramento da crise interna talvez tenha contribuído para o renovado ativismo
castrista nas selvas e pântanos do subcontinente. Mas uma coisa era dar
respaldo a revolucionários latino-americanos, e outra muito diferente,
enfrentar-se com a União Soviética. Aos olhos de Guevara, as duas estavam
no mesmo nível, e ele simplesmente não tolerava a ambiguidade implícita
nos malabarismos políticos de Castro. Enquanto Fidel se divertia com eles,
o Che os odiava.
No início de 1964, Guevara concedeu uma entrevista pela televisão a
Lisa Howard, na qual repetiu os argumentos de Castro, com a mesma ênfase.
Altos funcionários da Casa Branca parabenizaram Lisa pelo programa com
o Che, chegando a reconhecer a firmeza e a habilidade do argentino em suas
respostas.14 Quem rever os rushes da entrevista trinta anos mais tarde, com
cortes e tudo, não poderá deixar de impressionar-se com a simpatia, segu-
rança e força interior do Che; até para acender o cigarro da jornalista ele se
move pelo set com uma elegância e sedução incomuns. Mesmo acima de seu
peso, abatido e até um pouco apático, o Che continuava sendo um homem
de excepcional beleza. O olhar de mártir de seu leito de morte já está ali; uma
vaga e fugaz tristeza nos olhos, anunciando a tragédia futura e sua aceitação.
Ele ainda não tinha travado as batalhas que estavam por vir, mas em algum
lugar de seu inconsciente sabia que sua guerra em Cuba estava perdida.
Dias depois do regresso de Castro da URSS, Guevara embarcou de novo
para a Argélia, que comemoraria, no início de julho de 1963, o primeiro
aniversário da independência. Ficou três semanas no país, percorrendo-o de
ponta a ponta. A caminho de Argel, refletiu sobre o conjunto dos aconte-
cimentos e mudanças dos últimos meses: a reconciliação com Moscou, o
flerte de Castro com Washington, a catastrófica situação económica da ilha,
suas desavenças com o resto da equipe de governo, sua paulatina margina-
lização do comando em matéria de política económica.
No seminário sobre planejamento realizado na capital argelina, o Che
reconheceu o colapso da economia cubana, o fracasso da tentativa de diver-
sificação comercial e industrialização. Não disse nada muito diferente do
que pensavam Fidel, os russos e os comunistas cubanos. Suas dúvidas não
revelavam nada acerca do rumo que a Revolução Cubana começava a
tomar, tanto na economia como na política externa.
Argel foi o ponto de partida de três iniciativas pessoais do Che, uma de
caráter económico e duas de alcance internacional. No plano interna-
cional, o Che começava a preparar o terreno de sua nova fuga para a frente,
que se consumaria dois anos mais tarde.
A primeira das iniciativas internacionais de Guevara se deu na
Argentina, fracassando menos de um ano depois; já a segunda, na África,
perduraria. A jovem República Argelina enfrentava uma grave crise em suas
fronteiras ocidentais. O rei Hassan, do Marrocos, em parte por conta
própria, em parte manipulado pelos serviços de informação franceses e
norte-americanos, declarara guerra à Argélia, disputando os territórios do
Saara Oriental. Ahmed Ben Bella e a FLN, no governo de Argel, careciam de
meios para se defender, mas não de simpatizantes espalhados pelo mundo.
Contavam, entre outras, com a solidariedade cubana, nascida tempos atrás
devido à simultaneidade da luta luta revolucionária dos dois países, ao com-
parecimento de uma importante delegação cubana à proclamação da inde-
pendência, em julho de 1962, à visita de Ben Bella a Havana nas vésperas da
crise de outubro. Durante essa viagem, Fidel Castro e o Che ofereceram ao
mandatário árabe ajuda técnica, médica e militar à recém-nascida repúbli-
ca do Magreb. A primeira missão médica cubana, composta por 55 pessoas,
chegou a Argel em 24 de maio de 1963, cinco semanas antes do Che. Quan-
do as tropas do Marrocos ocuparam vários postos de fronteira argelinos, em
setembro de 1963, provocando a 8 de outubro o início da chamada Guerra
do Deserto, os cubanos logo ofereceram ajuda ao país amigo; nada mais na-
tural. A superioridade marroquina em armas e treinamento ameaçava
encaminhar o conflito a uma fragorosa derrota da Argélia. Segundo o
embaixador cubano em Argel, Ben Bella rapidamente solicitou, por inter-
médio dele, a ajuda de Cuba. Castro respondeu afirmativamente, com o
espírito de internacionalismo e aventura que caracterizara os cubanos des-
de sua chegada ao poder. Já na versão de Ben Bella, há uma ligeira diferença.
Segundo ele, a ideia da ajuda partiu de Cuba:
Quando fui a Havana, em setembro de 1962, Castro insistiu muito que Cuba
tinha uma dívida para com a Argélia, contraída antes da independência, e ti-
nha de pagá-la. Quando o Che veio a Argel, insistiu também em pagá-la, mas
em espécie, com açúcar. E o navio que traria o açúcar para saldar a dívida esta-
va a ponto de zarpar de Cuba em outubro. Quando Hassan nos atacou, eu não
pedi nada, mas o chanceler Abdel Azziz Bouteflika esteve com o embaixador
Serguera e conversou com ele. E os cubanos embarcaram no navio de açúcar
um batalhão de oitocentos homens, com setenta tanques. Eu soube disso
quando Serguera veio me ver, dias depois, e mostrou uma folha de papel, arran-
cada de um caderno escolar, avisando que o navio de açúcar trazia também
oitocentos homens e setenta tanques. Eles nunca participaram dos combates,
pois Hassan acabava de propor uma negociação. Nós tínhamos mandado 300
mil civis para ocupar a fronteira, e os norte-americanos pressionaram Hassan
para que desistisse da invasão.15
Segundo a versão cubana, reconstruída pelo historiador ítalo-ameri-
cano Piero Gellijeses, Castro, a pedido de Ben Bella, enviou primeiro um
grupo de oficiais cubanos encabeçado por Flavio Bravo, o homem da crise
dos mísseis.16 Os oficiais receberam em Orã o Grupo Especial de Instrução e
outros contingentes, somando 686 homens, acompanhados por 22 blinda-
dos, todos comandados por Efigenio Amejeiras. Embora os cubanos preferis-
sem manter a operação em segredo, a imprensa mundial publicou a notícia
poucos dias após o desembarque. Logo depois, Ben Bella iniciou as negocia-
ções com Hassan, e a 19 de outubro os dois se reuniram em Bamako, capital
do Mali, para firmar um cessar-fogo. Os cubanos ficaram seis meses em solo
argelino, dedicando-se ao treinamento de um bom número de soldados, e ao
retornarem deixaram o material que tinham levado.
Para o primeiro embaixador de Cuba na Argélia e auxiliar do Che na
aventura africana, Jorge Serguera, a ajuda cubana foi crucial para que Ben
Bella pudesse interromper a ofensiva marroquina: "Como não ia haver
negociação, se Hassan tinha três tanques e nós estávamos trazendo sessen-
ta? Nossa ajuda foi decisiva. A Argélia não poderia negociar acossada pelos
norte-americanos, pelos ingleses, por todo o mundo".17
Daí a crescente proximidade e cumplicidade cubano-argelina, fosse no
treinamento militar e fornecimento de armas a iniciativas guerrilheiras na
América Latina, fosse atuando conjuntamente em diversas aventuras
africanas. Tratou-se da primeira expedição cubana na África e, como sem-
pre, teve o dedo do Che. A relação política Havana-Argel e o vínculo pes-
soal entre o Che e Ben Bella se transformaram em pilares da política africana
de Cuba e ponto de partida das peripécias de Guevara no continente negro
durante os dois anos seguintes.
A relação Cuba-Argélia chegou a tal grau de afinidade que o carrega-
mento de armas descoberto na Venezuela, no final de 1963 — cuja denún-
cia serviu de pretexto para que a OEA aplicasse sanções contra Cuba —,
muito provavelmente viesse da Argélia. Em entrevista ao jornal trotskista
francês Rouge, em outubro de 1987, Ben Bella revelou que, naquele ano, o
Che lhe pedira, em nome de Fidel Castro e do governo cubano, que a Argélia
se encarregasse de encaminhar para a América do Sul armas e quadros
treinados em Cuba, já que a ilha se encontrava sob extrema vigilância. A
resposta, segundo o ex-presidente argelino, foi "um sim espontâneo".18 Em
28 de novembro de 1963, o governo de venezuelano revelou que descobrira
um depósito de três toneladas de armas em um apartamento à beira-mar de
Falcón, contendo: dezoito bazucas, quatro morteiros, oito canhões sem
recuo, 26 metralhadoras e cem fuzis de assalto, com as insígnias cubanas nas
culatras. De acordo com os indícios disponíveis — vagos, mas sugestivos —,
a reunificada guerrilha venezuelana convencera os cubanos, entre eles o
Che, que acompanhava de perto os acontecimentos da Venezuela, a enviar-
lhes uma considerável quantidade de armas, o que bastaria para derrubar o
regime de Caracas. A melhor solução seria o transporte de uma parte do
armamento ligeiro até a Argélia, já desnecessário depois do cessar-fogo assi-
nado em Bamako por Hassan e Ben Bella.
Embora crescente, o interesse do Che em intervir na política africana
ainda ocupava um lugar secundário, se comparado ao outro objetivo inter-
nacional que ele se propusera: a implantação de um foco guerrilheiro na
Argentina. Existia, porém, uma ligação entre as duas iniciativas: Jorge
Masetti, o jornalista argentino que entrevistara o Che na sierra Maestra, em
1958. A 10 de janeiro de 1962, o cargueiro cubano Bahia de Nipe chegava a
Casablanca para descarregar uma considerável quantidade de armamentos
destinados à FLN, recolher feridos argelinos e transportá-los a Cuba.19 Foi
Masetti quem recebeu o navio, em nome do serviço de informação da Re-
volução Cubana.
O j ornalista permanecera em Cuba depois do triunfo da revolução. Ali,
com o apoio do Che e a colaboração, entre outros, de Gabriel Garcia
Márquez, fundou a Prensa Latina, agência cubana de notícias e outras coisas
mais. Em 1961, Masetti deixou a Prensa Latina, em parte por não se enten-
der com os cubanos da agência, em parte porque tampouco se dava com os
comunistas argentinos que ali trabalhavam. Em fins do mesmo ano, nego-
ciou com o governo provisório da República da Argélia o primeiro embar-
que de armas cubanas para a guerrilha argelina, no Bahia de Nipe. Ficou
vários meses na Argélia, até a independência, para depois voltar e per-
manecer mais um tempo em Cuba. Em novembro de 1962, despediu-se de
seu filho recém-nascido e partiu de novo para o Magreb, onde receberia
treinamento militar.
Fracassada a manobra de Guevara e John William Cooke, para trazer
Perón a Havana e convertê-lo em padrinho da luta armada platense, o Che
resignou-se a atuar na Argentina com os meios de que dispunha: Masetti, um
grupo de compatriotas heróicos e confusos e seus mais próximos colabo-
radores cubanos. Quando o Che chegou à Argélia, no começo de julho de
1963, antes de resolver o drama dos médicos cubanos em Sétif — que se
queixavam de não terem recebido o prometido pagamento — e depois de
assistir ao seminário de planejamento, encontrou-se com Masetti, que já
recebera sua incumbência: chefiar a guerrilha argentina.
Treinado em Cuba e na Argélia e com alguma experiência de combate
nesse país,20 Masetti recrutou alguns dissidentes comunistas e universitários
argentinos, todos eles à margem das organizações políticas da esquerda tradi-
cional. Logo se viu obrigado a incorporar vários cubanos ao grupo. Três deles
participaram diretamente e os outros dois, apenas dos preparativos. Hermes
Pena, um dos guarda-costas do Che, morreu na selva da província de Salta,
no noroeste argentino. Alberto Castellanos, oficial de transporte, em cuja
casa o Che se casara com Aleida em 1959, foi capturado e passou quatro anos
numa prisão argentina. José Maria Martínez Tamayo, o Papi — o primeiro a
ocupar-se da expedição argentina, seu assessor de alto nível mais próximo,
que acompanharia o Che ao Congo e prepararia o terreno para a luta na
Bolívia, onde morreria alguns meses antes de seu comandante —, chegou a
La Paz em julho de 1963 e providenciou os preparativos para a chegada dos
demais. E Abelardo Colomé Ibarra, o Furri, atualmente general do exército
e ministro do Interior de Cuba, que fora enviado por Raul Castro — de
quem era o mais próximo colaborador — para "coordenar toda a opera-
ção",21 primeiro em Buenos Aires, com um dos argentinos, o pintor Ciro
Bustos. De Buenos Aires, Furri foi para Tarija, na Bolívia, e em seguida para
a incursão guerrilheira no Norte da Argentina. Ali todos se encontraram:
Masetti, Martínez Tamayo, o próprio Furri, encarregado das armas, Hermes
Pena e Alberto Castellanos, responsável pela organização e segurança de seu
chefe, que também decidira incorporar-se à expedição.
Possivelmente, Masetti fez uma primeira viagem clandestina à
Argentina em 1962, acompanhado de Hermes Pena.* Seja como for, no

(*) O filho de Masetti, Jorge, referiu-se ao ano de 1962 como o momento do retorno
de seu pai à Argentina. Sua última aparição pública em Cuba foi no julgamento, televisio-
nado, dos prisioneiros da baía dos Porcos. (Ver Jorge Masetti, Le roi des corsaires, Paris, Stock,
1992.) O próprio Jorge Masetti filho o confirmou, em conversa telefónica com o autor, em 5
de setembro de 1996.
verão de 1963 os candidatos a guerrilheiros chegam à Bolívia, disfarçados de
membros de uma delegação comercial argelina. Entre setembro e dezembro
do mesmo ano, entram e saem da Argentina, onde encontram vários can-
didatos para o foco de Salta.* Justamente em setembro, Alberto Castellanos
juntou-se a eles e já, em princípios de 1964, ingressaram todos em território
argentino, onde Masetti e Pena perderiam a vida. Nunca puderam recrutar
mais que um pequeno grupo de jovens inexperientes, abnegados mas total-
mente despreparados para a luta guerrilheira. Sua saga repercutiu na opinião
pública argentina apenas o suficiente para alertar as forças armadas. Não
despertou a menor simpatia.
Dispomos de três elementos para afirmar que o Che decidira, talvez já
desde sua passagem pela Argentina, abandonar Cuba e ir lutar em sua terra
natal. Em primeiro lugar, praticamente todos os dirigentes daquela guerrilha
pertenciam ao círculo mais íntimo de colaboradores do Che: dois membros de
sua segurança pessoal, seu grande amigo jornalista e seu mais próximo cola-
borador cubano. Castellanos afirma que o chefe da escolta — Harry Villegas,
o Pombo — não foi chamado porque era negro, e o Che disse a todos: "Aonde
vamos não existem negros".22 Por sua vez, José Argudín, o quarto integrante
do grupo de guarda-costas, foi posto de lado por Guevara, segundo Castel-
lanos, por ter seduzido a mulher de Pena na ausência deste.Zi Nas duas expe-
dições seguintes, o Che se faria acompanhar por todos os membros de sua
escolta e muitos integrantes da velha-guarda da sierra Maestra e da "invasão":
Pombo, Papi, Tuma (Carlos Coello). Pelo caráter do nosso personagem, é
impossível supor que tivesse decidido o envio de seus colaboradores mais pró-
ximos em uma missão tão perigosa se não planejasse incorporar-se a ela.
Em segundo lugar, quando o Che mandou chamar Castellanos na escola
de oficiais de Guantánamo e disse que decidira confiar-lhe uma tarefa que
poderia durar vinte anos, avisou: "Eu vou em seguida. Você me espera lá, for-
ma o grupo, e ficam esperando até eu chegar".24 Em janeiro de 1964, Papi e
Castellanos se encontraram, já em Tucumán, para contatar alguns possíveis
recrutas argentinos (trotskistas, segundo Castellanos). Levavam, entre
outras coisas, 20 mil dólares para entregar a um certo doutor Canelo, de
Tucumán. Castellanos recorda: "Então Papi me contou que, por enquanto, o
Che não viria, que mandara um recado para Masetti, que ainda não vinha
porque estava complicado, que viria algum tempo depois. Não dizia o porquê.

(*) Ricardo Rojo lembra como em várias ocasiões reuniram-se ele, Masetti e o Che, em
Havana, entre o início de fevereiro e meados de abril de 1963. A imprecisão das datas no livro
de Rojo aconselha certa reserva a respeito.
Pelo menos a mim não disse. Não, naquele momento não podia vir, disse que
devíamos esperar, continuar explorando e não recrutar camponeses até ini-
ciarmos os combates".25
Trinta anos depois, em Havana, Castellanos afirmaria que nunca teve
a menor dúvida de que seu chefe pensava reunir-se ao grupo guerrilheiro em
Salta. Quanto à presença de Colomé, um dos homens mais próximos de Raul
Castro, e à lógica da missão, não havia nenhuma margem para confusão.
Furri mantivera-se sempre ligado a Raul, desde a sierra Maestra e o Segundo
Front. Raul se comprometeu com a operação e todos concordaram em apoiá-
la porque "aquilo era coisa do Che. Cuba o apoiou em tudo porque ele pre-
tendia mesmo ir embora em 63".Z6 Por último, há a pista do nome de guerra
que Masetti escolheu em Salta: Comandante Segundo, ou Segundo Sombra,
interpretado como um aceno ao Che: fosse porque o "primeiro" comandante
seria o próprio Guevara ou porque, enquanto don Segundo Sombra era um
personagem da literatura argentina dos anos 20, Martin Fierro era uma figu-
ra-chave da literatura gauchesca do século XIX, e o Che costumava adotar
esse codinome. Qualquer que fosse a explicação, o duplo sentido era
demasiado óbvio para que não se deduzisse que Guevara tinha o firme
propósito de engajar-se na guerrilha argentina em fins de 1963 ou princípios
do ano seguinte. Suas instruções a Castellanos — "Não recrutem campone-
ses por enquanto, dediquem-se apenas a explorar a região" — podem ser
entendidas como um reforço a essa tese: os combates não deviam ser inicia-
dos até que ele chegasse à área de operações.
Talvez o motivo de sua decisão de incorporar-se à expedição de Salta
tenha sido a prolongada estadia de Castro na URSS em 1963, ou a passagem
do próprio Che pela Argélia. Em ambas as hipóteses, seu estado de ânimo era
claríssimo. No retorno de Argel para Havana, em julho, o Che fez escala em
Paris, onde permaneceu por alguns dias e refletiu sobre o destino que o
aguardava em Cuba, em vista da reconciliação de Fidel com a URSS e das
crescentes polémicas económicas em que se metera. Na Cidade Luz, fez uma
palestra na Maison de 1'Amérique Latine, em pleno Saint Germain. Ali
encontrou Carlos Franqui, que vivia desde o início de 1963 em um semi-
exílio, entre a Argélia e a Europa. As relações entre os dois não eram boas.
Em várias ocasiões divergiram, mas acabavam de celebrar uma virtual re-
conciliação na Argélia, onde Franqui entrevistara Ben Bella e inaugurara
uma exposição de arte cubana. Conforme relata Franqui em suas memórias,
os dois concordaram em muitos pontos: "Nós dois éramos amigos de Ben
Bella. O Che estava procurando outros caminhos. Considerava a situação
cubana muito difícil, apesar da aparente trégua do sectarismo e da crise do
Caribe. Foi um dos nossos melhores encontros".27
O Che pôs o braço no ombro de Franqui e os dois foram caminhando
pelo bulevar. Guevara tentou convencê-lo a regressar a Cuba, sem negar os
problemas da ilha, nem seus atritos com Castro. E ali, sob os castanheiros em
flor do verão parisiense, Che Guevara pronunciou a frase que, se nossa com-
prensão do personagem se aproxima da realidade, logo o condenaria a afas-
tar-se de seu amigo, seu companheiro de armas e seu chefe: "Com Fidel, nem
casamento, nem divórcio".28 Permanecer em Cuba significaria para o Che
adotar uma postura que ele jamais poderia sustentar. Seria uma atitude de
total cinismo e hipocrisia, para a qual teria de aceitar a coexistência de sen-
timentos e posições incompatíveis entre si e intoleráveis para ele. A fuga
para a frente da guerrilha argentina deve ter acontecido em consequência
das dificuldades internas da Revolução Cubana, ainda não superadas em fins
de 1963. A situação seria a mesma até o ano seguinte, quando começou a se
esboçar uma nova saída, o início de uma nova etapa vital. A mudança era
mais iminente do que o Che suspeitava.
A guerrilha de Jorge Masetti logo acabaria em desgraça e tragédia. Aba-
lada por conflitos internos, ferozmente isolada das cidades e confrontada com •
o retorno da Argentina à democracia com a eleição presidencial de Arturo Illía,
em outubro de 1963, a guerrilha tornou-se presa fácil das forças armadas. A
competência e o poderio do Estado argentino aniquilaram o contingente e os
sonhos do jornalista da sierra Maestra. A coluna foi destruída depois de
enfraquecer-se devido a suas próprias divisões e excessos, a infiltrações, à
perseguição militar e à agressividade do entorno. Castellanos foi capturado em
4 de março de 1964- Em seu julgamento foi defendido por Gustavo Roca, um
amigo do Che residente em Córdoba, que solicitou ao conterrâneo ajuda para
seus companheiros. N inguém soube da relação entre Castellanos e Guevara até a
morte deste na Bolívia, quando foi publicada a foto do casamento do Che com
Aleida, na qual o cubano aparecia como anfitrião. A floresta de Salta devora
Masetti. Castellanos dá a seguinte explicação — quase que idêntica àquela
que se oferece em El tesoro de Ia Siena Madre — para o fato de o cadáver nunca
ter sido encontrado, embora o Che tenha enviado vários emissários encarrega-
dos de buscá-lo. Ele trazia mais de 20 mil dólares consigo, além de boa quanti-
dade de dinheiro argentino e dois relógios Rolex. Provavelmente, foi encontrado
por soldados do exército. Se ainda não tivesse morrido de fome, eles trataram de
matá-lo para ficar com o dinheiro, repartindo-o entre si e dando Masetti por
desaparecido. Se o cadáver aparecesse, o dinheiro teria de aparecer também.29
Em quase todos os sentidos, a operação argentina foi um ensaio para a
boliviana, três anos mais tarde. Em Cochabamba, os cubanos conheceram a
comisão de comunistas bolivianos sob as ordens de Mário Monje, secretário-
geral do partido, incumbida de prestar apoio a certas ações armadas na
região: os irmãos Peredo, Rodolfo Saldaria e Luis Tellería. Seriam os mesmos
que, com Papi Martínez Tamayo, se encarregariam do trabalho preparatório
para a guerrilha do Che no país andino. Ê possível que Tâmara Bunke, ou
Tânia, que chegou à Bolívia em outubro de 1964, tivesse mais a missão de
determinar o destino de Masetti e eventualmente ajudar a resgatar os sobre-
viventes, do que organizar de imediato uma nova guerrilha na Bolívia.* Ciro
Bustos, detido com Régis Debray na Bolívia em abril de 1967, ao abandonar
o acampamento do Che, e que era responsável de manter o contato entre a
expedição boliviana e a argentina, já figurava entre os participantes da ope-
ração de Salta. Saiu de Havana e chegou a Buenos Aires com Furri, e inclu-
sive visitou Castellanos na prisão em várias ocasiões.30
Talvez o Che não pensasse em participar desde o início da guerrilha de
Salta, mas sua intenção de fazê-lo mais tarde era evidente. Se já conhecemos
o protagonista destas páginas, sabemos que a morte de Masetti e de Pena e a
prisão de Castellanos devem ter causado um tremendo impacto em sua cons-
ciência. Reabria-se uma ferida: era a segunda vez que grandes amigos seus
morriam em combates dos quais ele também poderia ter participado. Em
dezembro de 1961, o Che se despedira em Havana de Júlio Roberto Cáceres,
El Patojo, seu amigo querido, seu companheiro de viagem desde a fronteira
guatemalteca, seu colega fotógrafo nas ruas da Cidade do México, cujo retra-
to penduraria depois no gabinete do Ministério da Indústria. Cáceres tombou
lutando na Guatemala, poucas semanas depois de integrar-se à guerrilha. Por
que morriam pondo em prática suas ideias e métodos? Não seria o caso de par-
tilhar sua sorte, ou então mostrar na prática que o desenlace podia ser outro?
Não é preciso muita perspicácia para perceber que as relações de Che
Guevara com os partidos comunistas da América Latina e a União Soviética
começaram a ficar tensas em 1963. E como isso ocorria justamente no momento
em que Cuba mais se aproximava de Moscou — se alinhava, diriam alguns —
, as tensões inevitavelmente se exacerbaram. Desde abril daquele ano, o

(*) Quem sugere a tese é Ulises Estrada, o companheiro de Tânia na época, que tam-
bém confirma a intenção do Che de ir à Argentina. "Havia dois oficiais cubanos na coluna
de Masetti e ele (o Che) planejava essa guerrilha para depois, ou seja, criar a guerrilha-mãe e
depois ele próprio incorporar-se aos guerrilheiros. E Tânia estava incluída nesse plano." (Uli-
ses Estrada, entrevista com o autor, Havana, 9/2/95.)
ravam um "ardoroso pró-China". O Che interrompeu as palavras de
Daroussenkov com amargura:
Alguns companheiros soviéticos tendem a entender meus pontos de vista —
sobre temas como a guerra de guerrilhas como principal meio para a libertação
dos povos latino-americanos, ou o problema da autogestão financeira contra
o financiamento orçamentário — como posições chinesas e tiram daí a con-
clusão de que Guevara é pró-China. Por acaso não posso ter minha própria
opinião sobre essas questões, independente do que pensem os chineses?*
A questão chinesa tornava-se cada vez mais recorrente e irritante para o
Che. Ele se sentia agredido pelos soviéticos. Em fins de 1963, recriminou
amargamente Alexeiev por ter deixado de visitá-lo e considerá-lo pró-chinês.
Este replicou que não era verdade, mas mentiu ao Che quando o argentino per-
guntou se ele lera seu ensaio sobre a guerrilha na América. O embaixador
soviético preferia evitar o debate, assim como, de fato, preferia encontrar-se cada
vez menos com o Che." Este aceitava muito a contragosto a posição cubana de
neutralidade diante do conflito. "Não pode ser publicado (um artigo de Paul
Sweezy sobre a Iugoslávia) devido à nossa linha de neutralidade absoluta, de não
iterferir, por pouco que seja, na polémica sino-soviética."'6 O Che já se sentia
vítima da perseguição aos simpatizantes da China em Cuba e em toda parte, e de
certa forma havia sido escolhido como um dos alvos da investida anti-China. * *

(*) MID-463-26.XII.63 Oleg Daroussenkov, "Nota da conversação de 20 de dezembro


de 1963 com o ministro da Indústria", Ernesto Guevara, 26/12/63 (secreto), Ministério das
Relações, op. cit. A partir de meados de 1963, quando Cuba foi formalmente incluída no blo-
co socialista, cópias dos telegramas da embaixada da URSS em Havana iam para o Departa-
mento do Comité Central do Partido Comunista da URSS encarregado das relações com os
países socialistas. O chefe do departamento, a quem se encaminhavam as cópias, era Yuri
Andropov. A primeira acusação direta de que o Che era pró-China apareceu nos telegramas
soviéticos em fevereiro de 1963. Provinha de um alto dirigente do Partido Socialista
Operário da Hungria, Ishtvan Tempe, que passara várias semanas em Havana: "Alguns diri-
gentes cubanos (Che Guevara, Vilma Espin) estão sob forte influência dos chineses". ("Nota
da conversação de 28 de fevereiro de 1963 com Istvan Tempe, 4/3/63", Arquivo Estatal da
Rússia, op. cit., fólio nfi 5, lista 49, documento na 653.)
(* *) Sergo Mikoian recordou, anos mais tarde, a seguinte cena do Che em Genebra, durante
a Conferência da UNCTAD de que falaremos adiante: "O Che indicou com um gesto de cabeça um
chinês sentado um pouco à parte e sorriu, dizendo que ainda havia quem o considerasse pró-Chi-
na, enquanto uns coitados como aquele ficavam ali para registrar todos os seus movimentos e
encontros. E, de fato, o impenetrável e preocupado chinês continuava ali três horas depois, quan-
do, depois de muito passear e conversar naquela sala, saímos, deixando Guevara diante de uma
escrivaninha abarrotada de papéis". (Sergo Mikoian, Encuentros con Che Guevara, em América
Latina, Academia de Ciências da URSS, Instituto da América Latina, ns 1,1974, p. 193.)
ideólogo do PCUS, Mikhail Suslov, declarou que os partidos comunistas da
América Latina "cometeriam um sério equívoco se depositassem todas suas
esperanças na luta armada" e que "a revolução não pode ser acelerada ou fabri-
cada sob medida, nem pode ser incentivada do exterior"." No momento, não se
tratava de um rompimento explícito. Mas à medida que cresciam as divergên-
cias quanto à economia e à política internacional, opondo o Che aos soviéticos,
aos comunistas cubanos e latino-americanos, as discordâncias veladas e recri-
minações discretas se transformariam em confrontos cada vez mais declarados e
violentos. Convém examinar algumas das principais discrepâncias de Guevara
com a URSS antes de passar à análise, abstrata porém indispensável, das grandes
questões económicas que opuseram o Che aos "ortodoxos".
Antes da partida de Fidel Castro para Moscou, o Che reuniu-se com o
embaixador soviético, Alexander Alexeiev, para rever alguns aspectos técnicos
da viagem. Comentou que as cartas de Krushev aos dirigentes cubanos sobre
temas comerciais eram um exemplo de sensibilidade e sabedoria, mas que a
missiva de Nikita a Castro, citada no capítulo anterior, era "constrangedora".
Quando Alexeiev perguntou-lhe se não queria acompanhar Fidel à URSS, o
Che respondeu, em tom meio sério, meio brincalhão, que isso poderia ser útil,
mas em Moscou ele era considerado um "patinho feio" e um "brigão"." •
Alexeiev replicou: "Que eu saiba, é todo o contrário, pois em nosso país o se-
nhor é apreciado justamente por sua honestidade e sinceridade, pela firmeza
com que defende suas ideias, mesmo quando são equivocadas, pela coragem de
reconhecer seus erros. E, para nós, o gosto pela briga não é um defeito"."
Outro conflito teve lugar em meados de abril de 1963. Conforme
relatórios confidenciais do Serviço de Informação militar dos Estados
Unidos, por esses dias, contingentes importantes das milícias cubanas
começaram a ser desarmados. No mesmo sentido, as instalações militares de
San António e los Banos, nos arredores da capital, San Julián e Pinar dei Rio
passaram ao controle soviético. O comandante cubano da base aérea foi
detido por recusar-se a entregá-la aos oficiais soviéticos, só sendo libertado
devido à intervenção pessoal do Che.'4
Em fins de 1963, quando o conflito sino-soviético se acirrou e a URSS
aumentou as pressões para que Cuba rompesse claramente com Pequim, o
Che começou a queixar-se com seus amigos russos do comportamento dos
"burocratas" soviéticos, que cada dia o atormentavam mais. Conversando
com seu professor de russo e amigo Daroussenkov, este propôs que a embai-
xada da URSS em Havana organizasse um torneio de xadrez e o convidasse,
pois assim poderia aparar as arestas com alguns funcionários que o conside-
ravam um "ardoroso pró-China". O Che interrompeu as palavras de
Daroussenkov com amargura:
Alguns companheiros soviéticos tendem a entender meus pontos de vista —
sobre temas como a guerra de guerrilhas como principal meio para a libertação
dos povos latino-americanos, ou o problema da autogestão financeira contra
o financiamento orçamentário — como posições chinesas e tiram daí a con-
clusão de que Guevara é pró-China. Por acaso não posso ter minha própria
opinião sobre essas questões, independente do que pensem os chineses?*
A questão chinesa tornava-se cada vez mais recorrente e irritante para o
Che. Ele se sentia agredido pelos soviéticos. Em fins de 1963, recriminou
amargamente Alexeiev por ter deixado de visitá-lo e considerá-lo pró-chinês.
Este replicou que não era verdade, mas mentiu ao Che quando o argentino per-
guntou se ele lera seu ensaio sobre a guerrilha na América. O embaixador
soviético preferia evitar o debate, assim como, de fato, preferia encontrar-se cada
vez menos com o Che.15 Este aceitava muito a contragosto a posição cubana de
neutralidade diante do conflito. "Não pode ser publicado (um artigo de Paul
Sweezy sobre a Iugoslávia) devido à nossa linha de neutralidade absoluta, de não
iterferir, por pouco que seja, na polemica sino-soviética."i6 O Che já se sentia
vítima da perseguição aos simpatizantes da China em Cuba e em toda parte, e de
certa forma havia sido escolhido como um dos alvos da investida anti-China. * *

(*) MID-463-26.XII.63 Oleg Daroussenkov, "Nota da conversação de 20 de dezembro


de 1963 com o ministro da Indústria", Ernesto Guevara, 26/12/63 (secreto), Ministério das
Relações, op. cit. A partir de meados de 1963, quando Cuba foi formalmente incluída no blo-
co socialista, cópias dos telegramas da embaixada da URSS em Havana iam para o Departa-
mento do Comité Central do Partido Comunista da URSS encarregado das relações com os
países socialistas. O chefe do departamento, a quem se encaminhavam as cópias, era Yuri
Andropov. A primeira acusação direta de que o Che era pró-China apareceu nos telegramas
soviéticos em fevereiro de 1963. Provinha de um alto dirigente do Partido Socialista
Operário da Hungria, Ishtvan Tempe, que passara várias semanas em Havana: "Alguns diri-
gentes cubanos (Che Guevara, Vilma Espin) estão sob forte influência dos chineses". ("Nota
da conversação de 28 de fevereiro de 1963 com Istvan Tempe, 4/3/63", Arquivo Estatal da
Rússia, op. cit., fólio n9 5, lista 49, documento n2 653.)
(**) Sergo Mikoian recordou, anos mais tarde, a seguinte cena do Che em Genebra, durante
a Conferência da UNCTAD de que falaremos adiante: "O Che indicou com um gesto de cabeça um
chinês sentado um pouco à parte e sorriu, dizendo que ainda havia quem o considerasse pró-Chi-
na, enquanto uns coitados como aquele ficavam ali para registrar todos os seus movimentos e
encontros. E, de fato, o impenetrável e preocupado chinês continuava ali três horas depois, quan-
do, depois de muito passear e conversar naquela sala, saímos, deixando Guevara diante de uma
escrivaninha abarrotada de papéis". (Sergo Mikoian, Encuentros con Che Guevara, em América
Latina, Academia de Ciências da URSS, Instituto da América Latina, n2 1,1974, p. 193.)
Em uma conversa com Daroussenkov, ele fora forçado a realizar diversos ma-
labarismos para explicar o que o encarregado do PCUS em Havana chamou
de "campanha de propaganda anti-soviética da embaixada chinesa local".
O enviado russo protestou porque "se difundia propaganda anti-soviética
com a solicitação explícita de que ela chegasse aos cubanos que trabalhavam
em algumas organizações cubanas"." O Che defendeu os chineses, argu-
mentando que se tratava de uma provocação de alguma outra embaixada do
bloco socialista, que podia ser a albanesa, já que ele discutira o assunto pes-
soalmente com o embaixador chinês e este negara qualquer iniciativa desse
tipo. Os folhetos chegaram até a ser examinados pelos laboratórios do
serviço cubano de segurança, que concluíram que eles não procediam da
China. Os textos tinham chegado a Cuba no malote diplomático de uma
embaixada, sendo depois divulgados por alguns trotskistas cubanos e um
trotskista argentino, funcionário do Ministério da Indústria, que estava sob
observação.38 O Che tornava-se "chinês" malgré lui* ainda que não ocul-
tasse seu respeito por Mao (disse a Mancilla que era uma pessoa sábia) e sua
gratidão pela ajuda da República Popular a Cuba: "A direção chinesa tem
uma posição em relação a Cuba que é difícil criticar. Dispensa-nos uma aju-
da considerável, que não podemos desprezar. Pedimos, por exemplo, armas
aos tchecos, e eles negaram. Os chineses concordaram em questão de dias e
sequer cobraram, dizendo que não se vendem armas a amigos".19
O cerco geopolítico, ideológico, burocrático e afetivo começou a fechar-
se em torno do Che. Se em 1963 ele viajou pouco pelo mundo, em 1964 pas-
sou meses inteiros fora de Cuba. Começava outra vez a fuga para a frente.
O pomo da discórdia entre a China, a URSS e o Che não era exclusiva-
mente ideológico, nem se referia apenas ao apoio a movimentos revolu-
cionários em outros países. O verdadeiro motivo residia na política
económica. Em janeiro de 1964, Fidel Castro retornou a Moscou para nego-
ciar com a URSS a especialização de Cuba como fornecedora de açúcar. O
Che concordava com o princípio teórico da especialização e partilhava da
crítica ao abandono do cultivo de cana-de-açúcar nos anos anteriores, mas
divergia quanto às implicações da decisão.
Ele não podia contentar-se com os resultados da segunda viagem de
Fidel. Uma análise norte-americana dessa viagem enfatiza que a URSS exerceu
forte pressão sobre Castro para que este contivesse "seu impulso natural para
promover revoluções violentas". E o esforço surtiu efeito. De fato, a URSS evi-

(*) Apesar de si próprio. Em francês, no original. (N. T.)


tou toda e qualquer ingerência cubana na crise panamenha que eclodiu
naquela época.* Conseguiu fazer com que Cuba aceitasse a ideia de pôr ordem
em sua economia interna e, sem condenar a China, adotasse uma atitude me-
nos neutra no conflito entre Moscou e Pequim.40 De início, Castro cedeu
menos do que os dirigentes russos queriam, mas, nos, meses seguintes, a
pressão moscovita aumentou e as concessões cubanas também. Segundo um
relatório apresentado pelo governo do Brasil ao dos Estados Unidos, por inter-
médio de seu secretário de Estado, Dean Kusk, o embaixador soviético em
Brasília manifestou ao presidente brasileiro Castelo Branco que:
Fidel Castro cortou seus laços com Pequim, o governo de Cuba suspendeu seus
contatos com a China e mostra uma disposição pacífica para com outros paí-
ses, em particular o Brasil e os Estados Unidos. As armas encontradas na
Venezuela em novembro do ano passado, que motivaram a expulsão de Cuba
da OEA, podem ter sido enviadas pelos chineses. Muitos panfletos revolu-
cionários e outros instrumentos de propaganda guerrilheira atribuídos a Cuba
na realidade provinham de agentes chineses.41
Alguns meses depois, em novembro de 1964, seria realizada em
Havana uma reunião de partidos comunistas da América Latina para a qual
não se convidou nem a China, nem nenhum grupo pró-Pequim. O comuni-
cado final da reunião mostrava clara inclinação para as posições soviéticas,
a tal ponto que os chineses receberam com frieza uma delegação enviada
pelo conclave para mediar o conflito entre a URSS e Mao.42 A angústia do
Che era fruto do mesmo dilema dos milhões de jovens que exibiram sua foto
e seu emblema nas intermináveis e colossais manifestações do fim dos anos
60. Como eles, ele queria os fins, mas não os meios; aceitava as metas, mas
não os passos para alcançá-las. Em seu discurso na Argélia, o Che assumia
com toda a clareza que a diversificação antiaçucareira fora um erro, mas
rejeitava as consequências lógicas do retorno à monocultura. Fazia-o porque
as mudanças económicas em curso na URSS provocavam nele uma série de
reações negativas. Somadas a suas divergências com a URSS a respeito de
comércio internacional e da revolução latino-americana, vêm acirrar ainda
mais a desavença e o ressentimento em relação a Moscou.

(*) Os próprios norte-americanos reconheceram que "não existe nenhuma evidência


que vincule Castro aos motins no Panamá. Nada prova que o líder cubano tenha se reunido
com os castristas panamenhos ou fornecido apoio material aos distúrbios". (Department of
State, Bureau of Intelligence and Research, INR to Secretary, Castroist and communist
involvement in the Panamanian disorder, 31/1/64 (secreto). NSF, Country File, Cuba,
Cables, vol. 1, LBJ Library.)
As críticas do Che ao socialismo real já eram explícitas, embora não
públicas, e pareciam-se cada vez mais com as reservas e questionamentos
apresentados pelos chineses. Eram críticas "à esquerda", atribuindo os fra-
cassos da URSS à guinada direitista de Krushev. A semelhança dos chineses,
o Che criticou a URSS pelo atraso na ajuda e pelo não-cumprimento das
promessas em relação à indústria. No ano de 1963, o argentino sofreu uma
dupla desilusão com a URSS. Primeiro, ele comprovou que as fábricas, a tec-
nologia, a maquinaria e o material de transporte que os navios soviéticos efe-
tivamente desembarcavam no porto de Havana eram de uma qualidade
lamentável e de um atraso estarrecedor; segundo, descobriu que muita coisa
não chegava, ou por não ter sido enviada, ou simplesmente por não existir.
O comandante compreendeu que a URSS era, a um só tempo, menos capaz de
ajudar do que ele pensava e mais mesquinha em conceder a parca ajuda ao
alcance de suas possibilidades.*
O Che Guevara começou a distanciar-se da União Soviética, assumin-
do posições radicais, que hoje seriam chamadas fundamentalistas e eram
idênticas às denúncias chinesas do revisionismo russo. Em uma reunião do
Ministério realizada em 12 de outubro de 1963, expressou suas divergências
com a maior clareza até então, embora elas não viessem a público. Ele já
adquirira plena consciência das mudanças em curso na União Soviética e
das enormes agruras económicas daquele país. Não vinculava a superação de
tais dificuldades a uma liberalização, muito menos a uma reforma à Gorba-
chev, mas, pelo contrário, a uma maior centralização económica e à abolição
da chamada lei do valor de todas as transações, exceto o comércio externo
com os países capitalistas. Seu diagnóstico era inquestionável:
Os problemas agrícolas que a União Soviética enfrenta hoje tiveram uma
origem. Algo vai mal... Tenho a forte impressão de que isso tem a ver com a
organização dos kolkhozes e sovkhozes, com a descentralização, os incentivos
materiais, a autogestão financeira, além naturalmente de alguns problemas

(*) Em um memorando de inteligência de 1965, a CIA considerava que os principais


motivos do fracasso do esforço industrializador de Cuba eram: 1) a escassez de equipamento,
material e mão-de-obra qualificada; 2) a falta de experiência em construção pesada; 3) a fal-
ta de disciplina no planejamentoe programação da economia. (Central Intelligence Agency,
Intelligence Memorandum, Cuba: delay and misdirection of the industrial production pro-
gram, 1950-1965, novembro de 1965 (secreto), p. 1. NSF, Country File, Cuba, W.G.Bowdler
File, vol. I, # 8 report, LBJ Library.)
como as terras particulares para os kolkhozianos. Em uma palavra, a pouca
atenção dada ao desenvolvimento e incentivos morais, sobretudo no campo,
preocupados que estavam com uma infinidade de problemas... Assim, a União
Soviética enfrenta hoje uma catástrofe agrícola do mesmo tipo da nossa, o que
indica que algo vai mal... Cada dia há mais indícios de que o sistema que serve
de base aos países socialistas deve mudar.4'
O Che tomava partido claramente dentro de uma das mais acirradas
polémicas internas da URSS. De um lado da disputa estavam os partidários da
liberalização krushevista, das reformas económicas descentralizadoras, de
um planejamento mais flexível, em uma palavra, de uma perestroika avant
Ia lettre, geralmente identificada com os economistas Memtchinov,
Trapeznikov e, sobretudo, Yevsey G. Liberman. Do outro lado, os adversá-
rios dessas reformas. O problema de Cuba, corretamente apontado pelo
Che, era que a influência soviética naquele momento não visava a radica-
lização e aprofundamento do socialismo, mas — o que ele considerava um
retrocesso — um passo rumo ao que os chineses chamariam depreciativa-
mente de "comunismo goulash", numa referência à origem húngara de
muitas daquelas concepções.
O ministro da Indústria vinculava a prioridade dada para a agricultura
e o açúcar a um menosprezo e abandono do esforço de industrialização. Rela-
cionava o estreitamento de laços com a URSS ao empenho descentralizador
daquele país, à chamada autogestão financeira e ao incentivo material, em
oposição ao sistema orçamentário que ele, Che, defendia. Vinculava esse
sistema à ideia de incentivos morais, à centralização de decisões e investi-
mentos. Guevara punha no mesmo saco o conjunto das posições rivais, ain-
da que seus adversários não tivessem clara consciência da inter-relação
entre elas.
Por sua vez, os opositores do Che, dirigentes de empresas estatais e altos
funcionários que os representavam, bem poderiam ser discípulos de Liber-
man sem sabê-lo, como recorda um dos assessores franceses daquela época.
Mas os partidários da autonomia empresarial e da autogestão financeira
defendiam essas posições devido à pressão da própria realidade administra-
tiva, não por influência dos soviéticos ou de Liberman.44
O Che englobava tudo em uma discussão teórica sobre o papel da
chamada lei do valor no socialismo. O termo, extraído da economia clássi-
ca e do Capital, de Marx, transformou-se, nessa polémica, em um eufemismo
do que hoje se denomina "mercado". Segundo Guevara, a lei do valor ou do
mercado vigorava na URSS de maneira negativa. Ele identificava a vigência
da lei do valor com suas betes noires:* a descentralização, o incentivo mate-
rial e a autogestão financeira. Estava convencido de que:
O Sistema Orçamentado é parte de uma concepção geral do desenvolvimento
do socialismo e, portanto, deve ser estudado em seu conjunto. O orçamento
[...] [implica um] sistema de direção da economia [...] e todas as suas relações, as
relações entre o incentivo moral e o incentivo material na construção do
socialismo. Todas essas coisas estão ligadas. A autogestão financeira exige o
incentivo material como alavanca fundamental, exige a descentralização e
toda uma organização de planos que contemple essas relações [...] No Sistema
Otçamentário tem de haver outro tipo de plano, outro tipo de concepção do
desenvolvimento, outro tipo de concepção do incentivo material [...]45
Como perceberam os técnicos russos e franceses que assessoravam o
Che naqueles fatídicos anos de 1963 e 1964, suas preocupações não eram
estritamente económicas. Victor Bogorod e Charles Bettelheim, dois eco-
nomistas franceses de inspiração marxista que assessoravam os cubanos no
início dos anos 60, concordam que ele não dominava a economia nem tinha
muito interesse pelo assunto. A parte de que mais gostava em seu trabalho
era o contato com os operários, com o pessoal das empresas.46 No fundo, o
Che se propunha a abolir as relações mercantis, baseadas no valor, entre os
homens e mulheres de Cuba e entre as empresas do setor estatal. A expli-
cação para suas posições supostamente técnicas sobre o sistema orçamen-
tário, o incentivo moral, a centralização da indústria estatal encontra-se no
último ensaio de sua vida, e talvez o mais lembrado: El socialismo y el hombre
en Cuba. As suas teses sobre o "homem novo", porém, só viriam a público em
196 5. A polémica de 1963 -4 tem por base a economia, terreno em que o Che
estava em desvantagem, fosse pela deficiência de seus conhecimentos téc-
nicos, fosse pelo contexto internacional da época. Ele seria completamente
derrotado nos três temas destacados por Alban Lataste, um antigo colabo-
rador chileno que acompanhou o Che em sua primeira viagem a Moscou,
mas depois discordou de suas posições:" 1) A aplicação do princípio do inte-
resse material individual e coletivo na gestão económica; 2) o aperfeiçoa-
mento do sistema de salários reais e nominais, de modo a alcançar uma ver-
dadeira equivalência entre o esforço realizado e sua remuneração; 3) a
melhoria do sistema de preços, como elemento redistributivo da renda
nacional e como fator de cálculo económico".47
A derrota do Che deveu-se justamente a sua insistência em abordar as

(*) Expressão em francês no original: seus piores inimigos. (N. T.)


questões polémicas por meio de toscas generalizações, transformando cada
pequena discordância na expressão de uma divergência profunda, geral e ili-
mitada. Ele tendia a converter a discussão de pontos de simples técnica admi-
nistrativa em um elevado debate de princípios filosóficos ou doutrinários.4*1
Depois, quando deixou de ser o responsável pela economia da ilha,
algumas de suas teses foram retomadas pela direção, devido em parte a uma
nova disputa de Castro com a URSS e em parte a uma relativa melhora da
economia em 1965. Até a própria postura internacionalista do Che seria res-
gatada em Cuba, não mais como fundamento para teses económicas, e sim
como postulado moral e ético. A revolução tentaria ressuscitar esse postula-
do mais uma vez em 1969, no ocaso de sua independência frente à URSS. Mas
como assinala um dos principais adversários intelectuais do Che naquele
tempo, Carlos Rafael Rodríguez, as teses económicas e contábeis então apli-
cadas "não tinham nada a ver com o Che".49 Fidel Castro comentou em
1987: "Algumas ideias do Che em certo momento foram mal interpretadas
e inclusive mal aplicadas. De fato, nunca se tentou colocá-las em prática, e
em determinado momento foram se impondo ideias diametralmente
opostas ao pensamento económico do Che".*
No discurso de Argel, o Che explicitou seu arrependimento por ter
abandonado o açúcar e pelas políticas que desequilibraram o balanço de paga-
mentos. Relacionou o fracasso económico com os defeitos do planejamento
socialista em Cuba e com os excessos de ambição e idealismo de que já falamos.
Mas é preciso enfatizar que, embora reconhecendo ter subestimado a importân-
cia da cana-de-açúcar, ele não se resignava com um futuro monocultor e espe-
cializado para Cuba. Afirmava com toda clareza que o futuro deveria ser outro:
A estrutura monocultora de nossa economia ainda não foi superada depois de
quatro anos de revolução. Mas já existem as condições para que, com o tem-
po, possa tornar-se uma economia solidamente assentada sobre a base de
matérias-primas cubanas, com uma diversificação produtiva e um nível téc-
nico que lhe garantam um lugar nos mercados mundiais. Estamos desenvol-
vendo nossas próprias linhas de produção e pensamos que [...] no ano de 1970
teremos assentado as bases que hão de permitir um desenvolvimento inde-
pendente de nossa economia, baseado em uma técnica própria, em matérias-
primas próprias, quase totalmente processadas com equipamento próprio.50

(*) "Uma das maiores heresias que se cometeu neste país foi supor que o que estávamos
fazendo entre 1967 e 1970, o descontrole económico da época, podia realizar-se [...] invocando
o Che." (Fidel Castro Ruz, "En el acto central por el XX aniversario de Ia caída en combate dei
Comandante Ernesto Che Guevara"; Cuba Socialista, Havana, nov.-dez. 1987, p. 93.)
O tempo provaria que os acordos firmados por Castro durante a viagem
de 1963 à URSS e ratificados no início de 1964 equivaliam a condenar a
economia cubana ao papel de monoprodutora de açúcar e importadora de
bens de consumo, combustíveis e maquinaria ligeira. De fato, a margem de
manobra era exígua:* a monocultura açucareira acabaria impondo-se como
a melhor alternativa, ou pelo menos a única disponível. Mas não era a que o
Che teria escolhido, pois jamais poderia vangloriar-se dela no exterior,
sobretudo na América Latina. Quem percebeu suas razões foi o embaixador
canadense, George Kidd, com sua habitual lucidez:
Agora parece que os dirigentes cubanos querem transformar a ilha em uma
Nova Zelândia tropical, em vez de uma Suíça do Caribe [...] Sem dúvida é sen-
sato que Cuba se mostre sensível às necessidades de seu principal cliente (a
URSS) [...] Mas é difícil acreditar que um programa económico dessa natureza
possa ser atrativo para os nacionalistas de esquerda da América Latina, que
exigem uma industrialização rápida, em boa medida semelhante àquela que
Cuba empreendeu nos primeiros anos.51
A concordância entre o Che e os outros acerca da insuficiência da pro-
dução açucareira não se traduzia em um acordo quanto ao rumo a seguir.
Surgiu então a primeira grande discordância que opôs Guevara a Castro e os
demais. Como outras vezes, o argentino tinha uma ponta de razão. Como
reconheceriam anos mais tarde alguns de seus críticos mais ferrenhos e bons
conhecedores da economia agrícola cubana, era razoável voltar a priorizar a
agricultura, mas talvez isso não exigisse o abandono de tantos projetos
industriais. O Che provavelmente não errara ao defender tanto a industria-
lização. Parecia lógico restaurar a primazia do açúcar [...] Mas, como per-
guntou o agrónomo francês René Dumont, seria necessário, nessa primeira
etapa, superar a meta realista de 8,5 milhões de toneladas? Outra coisa é
saber se colocações menos radicais e mais equilibradas seriam compatíveis
com o caráter e o enfoque do Che.52
A discordância com relação à industrialização e ao açúcar ficou patente
em uma discussão entre o Che e Daroussenkov sobre a nova ênfase agrícola
e a entrega de uma usina siderúrgica prometida pela URSS. Cuba já travara
um agressivo debate sobre a construção da siderúrgica. Em um telegrama
confidencial da embaixada inglesa ao Foreign Office, de dezembro de 1963,

(*) Os países socialistas chegaram mesmo a afirmar que cumpririam com seus compro-
missos de ajuda para 1964, mas nada podiam prometer para o futuro. Foi o que informou o
Financial Times de Londres, em artigo publicado em 29 de julho de 1964-
um funcionário britânico enviou ao conselheiro Eccles — provavelmente o
responsável pelo M-15 em Havana — uma síntese da avaliação do Serviço
de Informação inglês:
Devido à necessidade de desenvolver a agricultura, a industrialização terá de
esperar até depois de 1965. Che Guevara queixou-se de que muitas das
unidades industriais entregues não servem [...] O sr. Castro declarou que a
tarefa da indústria é ajudar a agricultura, produzindo máquinas agrícolas e fer-
tilizantes. Afirmou que a construção de uma enorme usina de aço pela União
Soviética, antes considerada um dos mais importantes projetos cubanos e
largamente propagandeado na ilha, poderia ser adiada ou abandonada."
O Che não contradizia abertamente Fidel, mas suas dúvidas e ques-
tionamentos transparecem claramente no informe sobre uma conversação,
enviado a Moscou por Daroussenkov:
Perguntei como então deviam ser entendidas as palavras de Fidel Castro [...] de
que a agricultura seria a base do desenvolvimento da economia cubana nas
próximas décadas, de que, do ponto de vista económico, talvez fosse mais
proveitoso investir dinheiro não na construção de uma usina siderúrgica, mas
em obras de irrigação, na indústria química e no fabrico de maquinaria agríco-
la. Guevara respondeu que a questão da necessidade de construção da usina
siderúrgica ainda não fora decidida. Disse que havia muitos argumentos a favor
[...] Nas condições atuais do mundo, qualquer país que não possua seu próprio
aço sempre terá dificuldades para desenvolver sua economia [...] A União
Soviética procura atender nossa demanda, mas às vezes é incapaz de fazê-lo sim-
plesmente porque ela própria enfrenta dificuldades na produção de alguns itens
que nos faltam. Tomemos como exemplo as folhas-de-flandres. Temos grandes
perspectivas de desenvolvimento da produção de frutas em conserva, mas isso
exige grande quantidade de uma folha-de flandres especial para esse uso, que a
União Soviética não pode fornecer. Cuba precisa muito desenvolver sua indús-
tria de construção naval. Vivemos em uma ilha. Nosso comércio se realiza por
mar, e nós praticamente não temos frota ptópria, nem sequer pesqueira. Mas
para construir embarcações modernas é preciso aço, e onde vamos consegui-lo ?
Claro que não será importando-o através do oceano [...] Alguns dizem que,
como Cuba não tem seu próprio coque, o custo do metal seria muito elevado e,
portanto, não convém ao país desenvolver sua própria siderurgia. Mas eles
esquecem que é possível empregar uma tecnologia progressiva e uma organiza-
ção avançada da produção. Então, a importação de coque já não seria pro-
blemática. A siderurgia japonesa, por exemplo, trabalha não só com coque
importado, mas também com minério importado, e compete vantajosamente
com outros países. Em suma, a questão de construir ou não a usina siderúrgica
ainda não está resolvida, e insistiremos firmemente que seja construída.14
O problema não era simplesmente de estratégia de desenvolvimento.
A agricultura cubana, dirigida a partir do INRA por Carlos Rafael Rodríguez
desde 1961, adotava princípios com os quais o Che discordava completa-
mente. O incentivo material, a autogestão financeira das empresas, as altas
diferenças salariais vinculadas à produtividade e os programas de investi-
mento altamente descentralizados prevaleciam em toda a agricultura
cubana, exceto, até 1964, a indústria açucareira. Quem trabalhava mais,
ganhava mais.* Cada empresa conservava seus recursos e só entregava ao
INRA ou aos bancos o excedente. Em resumo, tolerava-se e até estimulava-
se a vigência da "lei do valor" no socialismo. Mesmo depois da segunda refor-
ma agrária, promulgada em outubro de 1963, 30% das terras continuam
sendo privadas. Dar prioridade à agricultura revelava uma clara preferência
por esses traços diferenciais. Dar-lhe absoluta preponderância, como foi o
caso, implicava, aos olhos do Che, imprimir ao conjunto da economia
cubana uma marca nociva para o socialismo que desejava construir em sua
pátria adotiva. Ele até aceitava que o sistema centralizado, vigente na indús-
tria, pudesse conviver com o incentivo material, imperante em toda a
economia, mas considerava o incentivo moral incompatível com a chama-
da autogestão financeira da agricultura: "Com autogestão financeira, o in-
centivo moral não dá nem dois passos. Tropeça nas próprias pernas e cai de
boca. E impossível".55
Em poucas palavras, a plena aplicação da "lei do valor" consolidaria o
estado de coisas, a situação relativa entre a agricultura e a indústria, entre as
diferentes regiões, entre a cidade e o campo. Como o Che chegou a dizer,
talvez em um momento de descuido ou informalidade: "para mim agora é
evidente que, onde quer que se empregue a lei do valor, exatamente aí
estaremos introduzindo o capitalismo de contrabando".56 Um dos estudos
mais recentes sobre o que se chamou "o grande d" sintetiza-o assim:

(*) Uma conversa entre o Che e Alexeiev ilustra a crescente polémica sobre esse ponto:
"Guevara comunicou-me que, naquele momento, introduziam-se em todos os ramos da
indústria normas de trabalho, em cuja elaboração os técnicos soviéticos eram de grande aju-
da. Disse que discordava da remuneração progressiva e que ele só aplicaria incentivos morais.
Disse a Guevara que ele estava profundamente enganado se pensava que era possível aumen-
tar a produtividade sem oferecer incentivos materiais. Ele respondeu que naquele momento
o objetivo principal não era elevar a produtividade, mas introduzir novas tecnologias e desen-
volver a consciência revolucionária". (Alexander Alexeiev, "Nota de conversación dei 25
de diciembre de 1963 con el Ministro de Industrias Ernesto Guevara", 29/1/64 (secreto),
Arquivo Estatal da Rússia, op. cit., fólio n2 5, lista n2 49, documento ne 760.)
Ernesto Guevara e outros acreditavam que Cuba não podia permitir que a lei
do valor determinasse os investimentos sem negar a possibilidade de superar o
subdesenvolvimento. A indústria não gozava da vantagem comparativa da
agricultura, não era tão "rentável". O planejamento a partir da autogestão
financeira reforçaria o desenvolvimento desigual e a especialização. Já o sis-
tema orçamentário de planejamento centralizado em seu conjunto permitia
que se corrigissem as desigualdades do passado e se promovesse um desen-
volvimento mais equilibrado. O fato de Cuba ser um país pequeno, com
riquezas limitadas e uma economia voltada para o exterior, obrigava o Estado
a canalizar os recursos mais abundantes, a vontade, a energia e a paixão do
povo cubano. A autogestão financeira fomentava o incentivo material por
razões de eficiência e racionalidade. Mas o incentivo material privatizava a
consciência, e a ineficiência não se restringia aos recursos económicos. O estí-
mulo moral desenvolveria a consciência enquanto alavanca económica e pro-
moveria a criação de novos seres humanos."
Em 3 de outubro de 1964, o Che perdeu o controle da indústria açu-
careira — que passou a formar um ministério à parte. Embora a nova pasta
fosse dirigida por Orlando Borrego, um dos mais próximos colaboradores de
Guevara, ele encarou a medida como um sinal.* No mesmo momento,
Osvaldo Dorticós substitui Regino Boti no Ministério da Economia e
assume o comando da Juceplan (Junta Central de Planejamento). Era um
segundo golpe para o Che, não porque tivesse más relações com Dorticós,
mas porque criava um pólo alternativo, igualmente poderoso, para a con-
dução da economia. Guevara escreveu naquele ano um novo capítulo da
polemica, ao publicar três ensaios sobre os grandes temas que o afastavam
dos soviéticos, dos comunistas e dos técnicos: a centralização, o sistema
orçamentário e os incentivos materiais. Charles Bettelheim comentaria
trinta anos depois que o diagnóstico do Che sempre apresentava um viés
burocrático. Via a economia cubana das alturas dos grandes empreendi-
mentos do Ministério da Indústria, de onde seria possível estabelecer formas
de controle adequadas. Mas não era possível centralizar o controle sobre a
infinidade de pequenas empresas nacionalizadas em 1963. Não havia capaci-
dade administrativa, nem quadros, nem recursos. As ilusões centralizadoras de
Guevara padeciam de gigantismo. Ele não enxergava os desafios que as
mudanças na economia e na sociedade de Cuba opunham ao seu esquema.58

(*) A princípio, o Che não deu maior importância à divisão do Ministério: "Haverá
dois ministérios novos [...] Um, naturalmente, o do Açúcar, com Borrego, que nada mais é
que uma subdivisão [...]". (Guevara, Actas dei Ministério, op. cie, p. 508.)
Sobretudo nesses meses, o Che expôs a pedra angular de seu pensa-
mento sobre esse conjunto de temas, formulada nos termos do jargão mar-
xista da época, porém transparente em sua sinceridade e em suas impli-
cações: "A consciência dos homens de vanguarda pode discernir os
caminhos a serem seguidos para conduzir a revolução socialista ao triunfo
[...] mesmo que [...] não existam objetivamente contradições entre o desen-
volvimento das forças produtivas e as relações de produção que tornariam a
revolução indispensável ou possível".59
Nessa resposta a Bettelheim, o Che conclui que Cuba pode não estar
"pronta" para um planejamento tão preciso e amplo como ele desejaria, para
os incentivos morais como ele os concebe, para a extrema centralização da
indústria que defende, mas isso não importa. O essencial é que surja e se con-
solide uma consciência avançada o bastante, no grupo dirigente cubano e
nos setores mais progressistas do povo, para que se possam "queimar etapas",
como ele sugere. Essa atitude envolve todas as polémicas: sobre o açúcar e a
indústria, a centralização e o orçamento, os incentivos morais e materiais.
Não se trata de teses económicas no sentido estrito, mas de postulados políti-
cos que partem de uma premissa: a consciência (em geral vista pelo Che
como vontade) é condição necessária e suficiente para avançar. O aspecto
administrativo vem depois e é secundário.
Até certo ponto Guevara tinha razão. Caso existisse essa consciência,
não seria impossível planejar como um relógio uma economia tão simples
como a cubana, centralizar tudo em algumas mãos, definir preços, salários e
investimentos segundo critérios morais. E sem dúvida essa consciência pare-
cia aflorar em determinados momentos da Revolução Cubana: a baía dos
Porcos, a crise do Caribe, a alfabetização etc. O grande drama do Che residia
no caráter inevitavelmente efémero da consciência mais alta e profunda.
Além disso, ele parecia incapaz de aceitar que sua própria aptidão para man-
ter o pulso firme e ânimo vivo não era partilhada pelos outros.
Da industrialização passou-se à centralização, ao Sistema Orçamentário
e à direção unificada dos investimentos, dos salários, do sistema bancário; de
tudo isso, ao incentivo moral versus estímulo material, que na verdade cons-
tituíam o ponto de partida. O grau de divergência variava; Carlos Rafael
Rodríguez afirmou mais de vinte anos depois que ele e o Che tiveram apenas
"pequenas diferenças na concepção dos incentivos".60 E, de fato, analisando-
se à distância as divergências do Che com o resto da direção económica
cubana, pode-se concluir que quase todas eram mais de grau ou matiz que de
fundo. O que não impedia que as discussões por vezes se tornassem violentas:
m técnico soviético recorda uma reunião do INRA da qual o Che se retirou
tão brusca e furiosamente que sua própria escolta não teve como acompanhá-
lo Um homem de pavio curto como ele dificilmente conseguia discutir
temas de relevância histórica com moderação e serenidade.6'
O governo cubano montou uma operação que visava amenizar as
divergências com Guevara, insistindo em que não passavam de diferenças
de grau. No que diz respeito aos incentivos, Rodríguez alega que o Che nun-
ca propôs a eliminação dos incentivos materiais, o que é verdade. Tampouco
se pode dizer que os outros exigissem a eliminação pura e simples dos incen-
tivos morais. Mas a contradição era real, fosse de grau ou de substância: para
o Che, a ênfase devia recair sobre o incentivo moral; para os demais, sobre o
material.* O ciclo se encerrou com a segunda viagem de Fidel Castro a
Moscou. O alinhamento com a URSS em matéria económica tornou-se quase
total e, na prática, vantajoso para Cuba, pois o combalido tesouro da ilha
acumulou reservas, beneficiando-se de uma alta do preço mundial do açúcar
e da tranquilidade de um mercado garantido a longo prazo.

No início de seu último ano em Cuba, Che Guevara encontrava-se já


muito à margem da condução económica da ilha. Nem por isso se afastou do
governo cubano em outras matérias ou descuidou de suas tarefas e interesses
particulares. Desde o início de 1963 voltara a dedicar-se ao trabalho voluntário.
Na safra daquele ano, bateu todos os recordes quanto ao corte e a horas con-
secutivas de trabalho. Seu exemplo tinha um duplo sentido: por um lado, for-
talecia o espírito revolucionário dos líderes cubanos e mostrava que os próprios
dirigentes continuavam sendo capazes de assumir os mesmos compromissos e
sacrifícios que exigiam do povo; por outro, resolvia um problema. Com efeito,
a partir de 1963, devido ao aumento da safra, e de 1964, com a decisão de voltar
à monocultura canavieira, a mão-de-obra escasseava. O campo ainda não se
esvaziara, mas a população rural tinha diminuído e a mecanização — prometi-
da pelos soviéticos e desejada de todo coração pelo Che — não vinha. Mas
Guevara fora amadurecendo sua avaliação sobre o trabalho voluntário. Àquela
altura já admitia que um esforço mal planejado torna-se insustentável: "Do-

(*) Eis uma amostra particularmente clara dessa questão: "Acontece que se está colo-
cando a discussão sobre o 'incentivo moral' no centro de tudo; e o incentivo moral em si não
e o centro [...] O incentivo moral é a forma [...] predominante que o estímulo deve adquirir
nesta etapa da construção do socialismo [...] mas está longe de ser a única forma [...] O incen-
tivo material deve existir". (Guevara, Actas dei Ministério, op. cit., p. 345.)
mingo passado foi meu dia de ir perder meu tempo no trabalho voluntário,
e realmente aconteceu algo que nunca me acontece em um trabalho volun-
tário, a não ser na cana: ficar olhando o relógio a cada quinze minutos para
ver quando acaba a jornada e poder ir embora, porque aquilo não fazia o
menor sentido [...]".62
O trabalho voluntário era uma solução parcial para o problema da fal-
ta de braços. A lei do serviço militar obrigatório, de dezembro de 1963 — os
primeiros recrutas seriam convocados em março de 1964 —, a lei de normas
de trabalho e a de classificação salarial, ambas promulgadas no primeiro
semestre de 1964, eram outras soluções para o mesmo problema. A consoli-
dação das forças armadas e a definição de cotas para as milícias também
serviam a um propósito análogo e fortaleciam a hegemonia da direção em
seu conjunto, mas limitavam a influência do Che, já bem reduzida. Nem os
exilados de Miami, nem a máfia dos Estados Unidos lhe atribuíam a força de
antes: agora só estavam dispostos a pagar 20 mil dólares por sua cabeça,
enquanto a de Fidel Castro valia 100 mil.61
O Che continuava escrevendo seus ensaios e concedendo entrevistas a
diversos órgãos da imprensa internacional, como um dos porta-vozes mais
eficazes da Revolução Cubana, talvez o mais confiável, ao lado de Castro.
Observava como a revolução marcava passo na América Latina, apesar dos '
esforços na Venezuela, na Guatemala e no Peru. Sentia-se só e paralisado.
Escreveu à diretora de uma escola primária: "Às vezes nós, revolucionários,
ficamos sós. Até nossos filhos nos olham como a um estranho".64 Cada dia
tinha menos a fazer em Cuba. Crescia seu desejo de movimento, de viver
situações definidas, sem ambiguidades. Foi um ano de transição, que não
poderia prolongar-se. Ele o sabia: em fins de março, dias antes de partir para
uma nova viagem pela Europa e a África, teve uma conversa de várias horas
com Tâmara Bunke. Depois que ela concluíra seu treinamento como agente
dos Serviços de Informação de Cuba, o Che a convocara para dar-lhe as
seguintes ordens: "Fixar-se na Bolívia, onde devia estabelecer relações no
âmbito das forças armadas e da burguesia governante, viajar pelo interior do
país [...] e esperar por um contato que lhe indicaria o momento da ação defi-
nitiva".65 O contato seria ele mesmo, dois anos depois.
Além das derrotas em matéria de política económica e da aproximação
entre Cuba e a URSS, outros fatores pesaram na partida do Che. Em 19 de
março de 1964 nasceu, em Havana, Ornar Pérez, filho de Ernesto (sem usar
seu sobrenome) com Lilia Rosa López, o único concebido fora do casamento
e reconhecido pelo Che, embora existam indícios de que houve outros.
Lilia Rosa, uma bela havanesa de seus trinta anos, conhecera o Che em La
Cabana, em 1959. Ainda em 1996, assistia à comemoração anual da toma-
da do quartel, no dia 2 de janeiro. Ornar Pérez (deve seu nome a Ornar
Khayyan, o autor dos Rubayat; o Che presenteou Lilia Rosa com uma edição
dos poemas), poeta e tradutor dissidente, recolhido por algum tempo em
campos de trabalho por negar-se a prestar o serviço militar e opor-se ao
regime, não nega suas origens.* Conserva os olhos e sobretudo o sorriso de
seu pai: quando se alegra, o rosto se ilumina, tal como acontecia com o Che.
Ornar não fala de sua filiação. Tem os cabelos negros, longos e lisos, as
sobrancelhas bem marcadas, os olhos tristes e misteriosos de seu pai e a mar-
ca indelével da ascendência nos gestos, no olhar e na discrição.
Em um belo dia no fim dos anos 80, Lilia Rosa apareceu na casa do
então companheiro de Hilda Guevara Gadea, a filha mais velha do Che,
com um pacote de livros do comandante Guevara. As dedicatórias estavam
cheias de palavras e frases que não deixavam lugar a dúvidas quanto ao tipo
de vínculo que tinha havido entre os dois. Lilia revelou sua relação com o
Che e apresentou Ornar a Hilda. Este quase de imediato tornou-se um
grande amigo da primogénita de Guevara. Hildita, como todos a chamavam
em Cuba, já sofria de câncer, alcoolismo e depressão, em parte devido ao
desprezo que sempre sofrera por parte da viúva do Che e de seus meio-
irmãos. Até sua morte, em agosto de 1995, Ornar e Hildita partilhariam uma
parte especialmente bela da herança paterna: a rebeldia e o inconformismo.
Hilda Gadea nunca teve a menor dúvida de que Ornar era seu irmão. Assim
o tratava e assim pediu aos filhos que o tratassem.**
Ignoramos se o Che soube do nascimento de Ornar em 1964, mas de
qualquer forma a situação não deve ter sido fácil para ele. Sempre se opusera,
por princípio, às frequentes aventuras de seus companheiros de liderança
revolucionária e resistira com relativo êxito às incontáveis tentações do

(*) Lilia Rosa gentilmente revelou ao autor a origem do nome de seu filho, assim como
as circunstâncias em que conheceu o Che, em uma carta datada de 2 de novembro de 1996.
(**) A história de Ornar é conhecida em Cuba, circulando ao lado de outras versões
sobre filhos naturais do Che. Um deles em particular, Mirko, chegou a ser investigado pelas
autoridades cubanas, para logo ser deixado em paz. O caso de Ornar é diferente por uma razão
muito simples: foi aceito e reconhecido, primeiro pelo pai, mais tarde por Hilda. O neto me-
xicano do Che, Canek Sánchez Guevara, assegurou ao autor que sua mãe apresentou-lhe
Ornar como um tio, e foi como ele sempre o considerou. A soma de versões tão largamente
difundidas, da semelhança física e do testemunho da filha do Che parece-nos suficiente para
dar esse fato por verdadeiro. (Canek Sánchez Guevara, entrevista com o autor, Havana,
26/1/96 e Cidade do México, 15/8/96.)
trópico e do poder. Mas algo ocorreu em meados de 1963, se não antes, que
deve ter aumentado sua já crescente intranquilidade na ilha. Daí sua atitude
mais moderada e flexível em torno dos temas delicados do Ministério da
Indústria, como ilustra o caso do companheiro Mesa, diretor da Empresa de
Brinquedos. Casado e com filhos, Mesa apaixonou-se de sua secretária e foi
visto com ela em circunstâncias bem pouco protocolares. O caso chegou ao
conhecimento do Che em 11 de julho de 1964, quatro meses depois do
nascimento de Ornar. Sua resposta merece ser reproduzida:
Até hoje ninguém disse que nas relações humanas um homem tem de viver
com uma mulher o tempo todo [...] Como eu disse, não sei por que tanta dis-
cussão, pois acho que é uma coisa lógica, que pode acontecer com qualquer
um. Seria até o caso de examinar se a sanção [...] não é excessiva [...] Evi-
dentemente, se o fato acontece, é porque a mulher o deseja, do contrário seria
um delito grave. Mas sem o consentimento da mulher isso não ocorre [...] Nós
temos procurado não ser extremistas com relação a esses assuntos. Além do
mais, há uma ponta de beatice socialista nessas manifestações. A verdade ver-
dadeira é que, se alguém pudesse penetrar na consciência de todo mundo, aí
eu queria ver quem atiraria a primeira pedra nesses assuntos [...] Nós sempre
fomos partidários de não levar a coisa aos extremos, principalmente de não
fazer disso uma questão capital e não deixar que caia na boca do mundo, o que
poderia inclusive destruir lares que não precisariam ser destruídos, pois são
coisas bastante naturais, bastante normais, que acontecem.66
A inquietação, como sempre, levava o Che a viajar mais e mais. Em 17
de março, ele partiu para Genebra, encabeçando a representação cubana à
Primeira Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvi-
mento (UNCTAD), cujo secretário-geral era seu compatriota e conhecido
Raul Prebisch. Permaneceu um mês fora de Cuba, a maior parte do tempo
na Suíça, com breves escalas em Praga e Paris, mais dois ou três dias em Argel
para conversar com seu amigo Ben Bella. Seu discurso em Genebra foi trans-
cendente e profundo. Expôs, nas entrelinhas, vários dos temas que domi-
nariam seus pensamentos e pronunciamentos no ano seguinte.
Quando o Che subiu à tribuna, o plenário do Palácio das Nações o rece-
beu com um sonoro aplauso. Ele já era um personagem legendário.67
Começou com uma queixa: ali faltavam algumas delegações, como a da Chi-
na, do Vietnã do Norte e da Coreia do Norte; enquanto pelo menos uma das
presentes nem sequer devia ter sido convidada: a da África do Sul. Em segui-
da, delimitou seu campo de batalha político e ideológico: "Entendemos
claramente — e o dizemos com toda a franqueza — que a única solução cor-
reta para os problemas da humanidade, no momento atual, é a supressão
absoluta da exploração dos países dependentes por parte dos países capita-
listas desenvolvidos, com todas as consequências que isso implica".68
O discurso foi breve, retórico, inteligentemente irónico ("os imperia-
listas alegarão que a culpa do subdesenvolvimento é dos subdesenvolvi-
dos"), mas carente de propostas ou maiores voos. Foi apenas respeitoso para
com os países socialistas. Repetidamente pôs sua ênfase nas nações pobres,
nos povos "que lutam por sua libertação", nos "pobres do mundo", mas não
na União Soviética. Mencionou-a poucas vezes e anunciou, sutilmente, o
problema que começava a obcecá-lo e contribuiria para suas desavenças
com o regime cubano.
Referiu-se primeiro à chamada distorção dos termos do intercâmbio, que
tende a rebaixar os preços das matérias-primas exportadas pelos países subde-
senvolvidos e a encarecer os bens e serviços que eles importam dos países
industrializados, forçando os pobres a exportar cada vez mais para importar o
mesmo. Disse que "muitos países subdesenvolvidos chegaram a uma con-
clusão com bases aparentemente lógicas": nas relações comerciais com os paí-
ses socialistas, "estes se beneficiam do estado de coisas existente".69 Afirmou
que se devia reconhecer essa realidade "honesta e corajosamente". Mas em
seguida acrescentou que os países socialistas não eram os culpados por essa
injustiça. E que a situação mudava quando se estabeleciam acordos de longo
prazo, como o que Cuba havia negociado com a União Soviética. Mesmo
assim, as palavras que empregou para descrever o pacto açucareiro com a URSS
("relações de novo tipo") revelam que, embora mantenha a convicção de que
comerciar com o bloco socialista é melhor do que fazê-lo com o capitalista, já
perdera muitas de suas ilusões. Sentiu-se ferido com a frieza e o isolamento que
sofreu por parte das delegações socialistas. Já não era visto como um membro
da família, se é que alguma vez o fora: "Guevara teve uma má impressão dos
contatos com os companheiros soviéticos e de outros países socialistas em
Genebra. Queixou-se de que mostraram desconfiança. A delegação cubana
estava isolada. As da Europa oriental se reuniam, discutiam e só depois con-
sultavam Cuba, para cumprirem o protocolo. Aquilo o magoou muito".*

(*) Oleg Daroussenkov, "Nota de Ia conversación de 29 de abril de 1964 con Ernesto


Guevara", 18/5/1964 (secreto). Arquivo Estatal da Rússia, op. cit., fólio nfi 5, lista nfi 49, do-
cumento 760. O académico norte-americano Robert J. Alexander, que conheceu o Che na
Guatemala e voltou a vê-lo em Cuba, recorda que o então representante de Cuba no Comité
Internacional do Açúcar lhe contou que jantara com o Che em Genebra e que este passou o
tempo todo "desancando a URSS". (Robert J. Alexander, ao autor, 5/12/95.)
A estadia na cidade de Rousseau encerra alguns enigmas. Poucos
(talvez nenhum) dos chefes das delegações enviadas à UNCTAD permanece-
ram em Genebra durante todo o mês que a conferência durou. A relação do
Che com os demais latino-americanos era tensa. Segundo um integrante da
comitiva mexicana, nem sequer o convidavam para as reuniões do grupo
regional.70 Ele se hospedou em um pequeno e modesto hotel perto do lago,
cercado de forte esquema de segurança. Só relaxava visitando alguns dele-
gados mexicanos, onde se bebia tequila, cantavam-se tangos e boleros e o
Che mostrava sua faceta argentina. Ele também manifestava suas saudades
do México. Pedia informações de lá, perguntava sobre pessoas e aconteci-
mentos, recordava seus dias no país com um afeto que talvez só tenha surgi-
do depois da partida para Cuba. Um dia, um dos delegados mexicanos
encontrou-o caminhando sozinho pelas margens do lago de Genebra,
detendo-se um bom tempo junto a uma das pedras da orla, contemplando o
Salève a distância. Pensava, talvez, nas duras escolhas que teria de fazer ao
voltar a Cuba.
A viagem relâmpago à Argélia — formalmente para assistir ao Primeiro
Congresso da Frente de Libertação Nacional — serviria também para exami-
nar junto a Ben Bella os acontecimentos na África. As lutas de libertação no
continente já então mereciam do Che uma atenção constante: em seu discur-
so em Genebra, ele citou várias vezes o exemplo de Patrice Lumumba. A
retomada dos combates no Congo e a debilidade do governo de Moise Tshom-
bé começavam a interessá-lo ao máximo. Reuniu-se em Argel com alguns dos
dirigentes congoleses no exílio. Seu sexto sentido advertiu-o de que o movi-
mento rebelde de 1961, esmagado após o assassinato de Lumumba, mas ainda
latente, estava às vésperas de uma nova eclosão.* Seu envolvimento não era
puramente académico. Desde janeiro ele conseguira que Pablo Ribalta, seu
velho colaborador da sierra Maestra, de origem afro-cubana, fosse nomeado
embaixador na Tanzânia. A recém-formada república compreendia a ilha de
Zanzibar, onde Cuba mantinha relações com o Partido Nacionalista desde
setembro de 1961, treinando seus combatentes e militantes.71

( *) Nesse particular, a opinião do Che coincide com uma estimativa nacional de


inteligência da CIA, datada de 5 de agosto de 1964, portanto redigida naquela mesma pri-
mavera, que começa dizendo: "Nos últimos meses, a divisão regional e a violência adquiri-
ram proporções preocupantes e geraram a ameaça de um colapso da autoridade governa-
mental". (Director of Central Intelligence, "Special National Intelligence Estimate: Short
Term Prospects for the Tshombe Government in the Congo", 5/8/64 (secreto), The Declas-
sified Documents Catalog, Carrollton Press, vol. XVI, #5, sept.-oct., 1990, n2 de série 2439.)
Na viagem de regresso, o Che fez uma escala em Paris e almoçou com
Charles Bettelheim, em um restaurante do boulevard Saint-Michel, em
pleno Quartier Latin. Confessou então que se equivocara em seu julgamento
sobre a União Soviética, ao confiar em suas promessas.72 De Paris volta a
Havana, à polémica económica e às tarefas administrativas à frente do Mi-
nistério. Cumpria-as com diligência, mas suas intervenções em diversas
reuniões mostravam uma sombra de aborrecimento, de cansaço. Seu inte-
resse pelos temas económicos arrefeceu, seu poder deliberativo também.
Nessa época, a equipe de assessores soviéticos no Banco Nacional recebeu
novo reforço. De acordo com um telegrama da embaixada do Reino Unido:
"Alguns observadores encaram o fato (o referido reforço) como uma prova
de que os russos estão assumindo maior responsabilidade no comando da
economia cubana, e de que os governos cubano e soviético decidiram, de
comum acordo, elevar o grau de controle soviético".*
Em novembro, o Che já estava pronto para viajar de novo, agora como
representante cubano nos festejos do aniversário da Revolução Russa. A visita
prometia ser de particular importância, pois Krushev acabava de ser destituído
e, embora desde a crise do Caribe não restasse muito do velho carinho entre os
cubanos e Nikita, os novos dirigentes moscovitas eram uns ilustres desco-
nhecidos em Havana. A própria maneira como Kruschev fora destituído e a
forma como sua queda foi anunciada deixaram uma impressão desagradá-
vel no Che.7' Tudo indica que a estadia em Moscou foi um êxito protocolar, mas
vazia de substância. Várias testemunhas recordam Guevara no vôo de regresso
de Murmansk para Havana, eufórico, ligeiramente embriagado, contando
casos de sua vida íntima, o que não era de seu feitio. Foi nessa viagem que se deu
a conversa com Daroussenkov em que ele confessou ter aceitado casar-se com
Hilda Gadea em um momento de excitação etílica. Também foi nesse vôo que
fez um impagável comentário para Salvador Cayetano, dirigente do Partido
Comunista de El Salvador, estando sentado entre os secretários-gerais do par-
tido mexicano, Amoldo Martínez Verdugo, e da Bolívia, Mário Monje: "Aqui
estou eu, Carpio, sentado entre um monge e um verdugo".74

(*) Havana Telegram n2 48 to Foreign Office, Cuba: Political Situation, 23/11/64


(secreto), FO371/174006, Foreign Office, Public Record Office, Londres. O Che já tinha
relações tensas com os funcionários do banco, em particular com os assessores estrangeiros:
"Vocês sabem que nós sempre tivemos relações bastante tensas com o banco, praticamente
desde que eu saí de lá. Ele sempre foi, através dos assessores tchecos e também dos soviéticos,
o arauto da autogestão financeira". (Ernesto Che Guevara, Atas do Ministério, 11/7/64, op.
cit.,p. 530.)
De volta da URSS, o Che convocou uma das últimas reuniões privadas
com seus colaboradores do Ministério da Indústria. Expôs com crua fran-
queza suas impressões sobre os países socialistas e disse por que se opunha às
chamadas reformas económicas em curso na Europa Oriental e na URSS.
Convém reproduzir várias passagens, pois além de inéditas elas refletem com
grande fidelidade os dilemas que atormentavam o argentino às vésperas de
sua nova odisseia:
Tive uma reunião em Moscou com todos os estudantes (cubanos) que queriam
conversar. Convidei-os à embaixada. Reuniram-se uns cinquenta. Eu fui dis-
posto a travar uma tremenda batalha contra o sistema de autogestão. Pois
bem, nunca tive um auditório mais atento, mais preocupado e que tenha com-
preendido mais depressa as minhas razões. Vocês sabem por quê ? Porque tudo
estava acontecendo ali, porque muitas das coisas que eu digo de forma teóri-
ca, porque não as conheço diretamente, eles conhecem. E as conhecem
porque estão lá, quando vão ao médico, quando vão ao restaurante, quando
vão comprar alguma coisa nas lojas, e acontece que coisas incríveis ocorrem
hoje na União Soviética... Um artigo de Paul Sweezy diz que a Iugoslávia é um
país que caminha para o capitalismo. Por quê? Porque na Iugoslávia vigora a
lei do valor, e cada dia vigora mais. Krushev disse (que era interessante o que
acontecia) na Iugoslávia, que até mandou gente estudar o caso [...] Pois isso
que ele viu na Igugoslávia, e lhe pareceu tão interessante, está muito mais,
desenvolvido nos Estados Unidos, porque o nome disso é capitalismo [...] Na
Iugoslávia vigora a lei do valor; na Iugoslávia as fábricas não-rentáveis são
fechadas; na Iugoslávia há enviados da Suíça e da Holanda que procuram mão-
de-obra ociosa e levam para seus países, para trabalhar nas condições que se
oferecem à mão-de-obra estrangeira em um país imperialista [...] A Polónia vai
pelo caminho iugoslavo, claro: reverte a coletivização, retorna à propriedade
privada da terra, estabelece uma série de sistemas especiais de câmbio, tem
contato com os Estados Unidos [...] A Tchecoslováquia e a Alemanha tam-
bém começam a estudar o sistema iugoslavo para aplicá-lo. Então já temos
uma série de países, todos mudando de rumo. Diante do quê? Diante de uma
realidade que não se pode desconhecer: que, embora não se diga, a economia
dos países capitalistas do Ocidente está avançando mais rápido que a do bloco
da democracia popular. Por quê ? Em vez de ir-se ao fundo nesse porquê, para
resolver o problema, deu-se uma resposta superficial. E então se trata de
reforçar o mercado, implantar a lei do valor, reforçar o incentivo material."
Já naquele momento o Che concebera uma ideia clara e definitiva
sobre os países socialistas, em seu aspecto interno. Eles perdiam a com-
petição com o Ocidente não por apego aos axiomas do marxísmo-leninis-
mo, mas por traição e abandono dos mesmos. Ao comprovar sua derrota na
competição com o capitalismo, adotavam mudanças de rumo indispen-
sáveis, mas na direção oposta àquela que o Che indicava como correta. Se
acrescentarmos a tudo isso a exacerbação do conflito sino-soviético, vere-
mos como o Che se aproximava perigosamente do fim de seu caminho, da
beira do abismo. Os comunistas que encontrou no avião ao voltar de
Moscou vinham de Pequim. Junto com Carlos Rafael Rodríguez, parti-
cipavam de uma missão latino-americana que buscava mediar a disputa
entre os dois grandes do socialismo, uma iniciativa nascida, entre outras, de
uma proposta do mexicano Martínez Verdugo, formulada na reunião dos
partidos comunistas da América Latina realizada havia pouco em Havana.
Os cubanos influíram na decisão de ir à China, organizaram a viagem e
talvez tenham induzido a iniciativa de Verdugo; manobraram para que Car-
los Rafael Rodríguez fosse o porta-voz da delegação. Mao, segundo o mexi-
cano, recebeu-os com afeto, mas logo disse: "Vocês vêm enviados pelos
revisionistas. Não concordamos com vocês, mas sejam bem-vindos".76 A
gestão mediadora não prosperou. O Che voltaria a tentá-la meses mais
tarde, mas também fracassaria.
A ideia de interceder no conflito recebeu novo alento porque, entre
outras coisas, o Che, Cuba e as potências socialistas estavam a ponto de serem
arrastados no sorvedouro africano. Desde o verão de 1964, Pierre Mulele, o
ministro da Educação de Lumumba, seu virtual herdeiro político e espiritual,
reacendera a rebelião congolesa na região centro-ocidental de Kwilu. O
Comité Nacional de Libertação fizera o mesmo no Leste e no Norte do país,
perto de Stanleyville. Todos se levantaram em armas contra o regime de
Tshombé, imposto três anos antes pelas Nações Unidas, os belgas e a CIA. Se
o governo congolês cambaleava, Washington e Bruxelas dispunham-se a
respaldar seus aliados. Quando os rebeldes tomaram Stanleyville, em agosto,
a Bélgica e os Estados Unidos dispararam seus alarmes. Poucos meses depois,
enviariam batalhões de pára-quedistas para retomar a cidade, esmagar a
insurreição, recuperar o controle da parte leste do país e, segundo eles,
impedir um banho de sangue. Já se produzira um massacre quando os rebeldes
entraram em Stanleyville, tomaram como reféns o cônsul norte-americano,
dezenas de missionários estadunidenses e trezentos cidadãos belgas, enquanto
fuzilavam 20 mil congoleses da classe média ilustrada.77
A nova insurreição congolesa teve um duplo efeito na mente do Che e
dos cubanos. Por um lado, persuadiu-os de que, por fim, a luta anticolonia-
lista de Lumumba ressuscitara; por outro, reforçando o primeiro impacto, a
intervenção das potências coloniais e de Washington parecia confirmar o
caráter antiimperialista da rebeldia africana renovada. O Che, portanto, ti-
nha suas razões para comprometer-se a fundo com a causa congolesa: entra-
va em campanha para combater o imperialismo e para apoiar uma luta justa.
A campanha começou j ustamente em Nova York; prosseguiu na África
em fins de 1964 e durante todo o ano seguinte. Em 9 de dezembro, apenas
três semanas depois de regressar da URSS, o Che fez de novo as malas: ia às
Nações Unidas. Sua nomeação como chefe da delegação cubana à 19a
assembleia não causou maior impacto em Havana. Ao lado de sua missão na
UNCTAD, meses atrás, foi vista por alguns observadores como sinal de perda
de poder: "A nomeação do Che Guevara para encabeçar a delegação cubana
às Nações Unidas parece não ter maior importância. Guevara também re-
presentou Cuba na UNCTAD, em Genebra, e seus conselhos políticos pare-
cem ter cada vez menos peso".78
Ao trilhar o caminho que o levaria à glória, o Che se aproximava tam-
bém do seu ocaso em Cuba. Os escassos oito dias que permaneceu nos Esta-
dos Unidos — sua primeira visita ao país desde a passagem por Miami,
quinze anos antes — permitiram-lhe poucos momentos de descanso. As
atividades seriam as mais variadas, em alguns casos até excêntricas. Sua ve-
lha amiga Laura Bernquist, da revista Look, quis que ele se reunisse com in-
telectuais e jornalistas nova-iorquinos. Laura Berquist era amiga de infância
de Bob Rockefeller, viúva de Winthrop, ex-governador do Arkansas, e pos-
suía uma esplêndida residência bem em frente ao prédio da Nações Unidas.
Não havia lugar mais apropriado para atender aos imperativos de segurança
complicados pelas manifestações anticastristas. Para lá acorreram os
esquerdistas de Nova York, desejosos de conversar com o Che. A tradutora
foi Magda Moyano, irmã de Dolores, vizinha de Guevara em Córdoba e pri-
ma de Chichina Ferreyra. Ela e o visitante conversaram sobre a juventude e
o passado já distante. O Che participou também de um programa dominical
de televisão, Face the nation. Ele se saiu tão bem que alguns governos latino-
americanos protestaram junto à Casa Branca pelo espaço que a rede CBS lhe
abrira.* Também se reuniu e conversou em segredo com o senador demo-
crata e liberal Eugene McCarthy e teve inúmeros encontros com delegados

(*) "Várias delegações latino-americanas protestaram contra o que consideram uma


publicidade desnecessariamente favorável a Fidel Castro: a entrevista de Che Guevara na
CBS... Também manifestaram seu desagrado com o fato de a imprensa dos Estados Unidos não
ter dado maior destaque às réplicas latino-americanas ao discurso de Guevara na ONU." ("Che
Guevara CBS Interview", 14/12/64 (secreto), Department of State, Incoming Telegram, NSF,
Country File, Cuba, Activitiesof Leading Personalities, telegrama#62 ,LBJ Library.)
'rabes e africanos nos corredores e no Salão dos Delegados do Palácio de
Vidro. Ali preparou a viagem que, a partir de 18 de dezembro, o levaria a
nove países em três meses e à decisão de abandonar Cuba para sempre.
O discurso do Che foi incendiário, pelo tom, pelo conteúdo e pela per-
sonalidade do orador. Reiterou a tradicional posição de Cuba frente aos
Estados Unidos, inclusive os chamados cinco pontos de outubro de 1962, e
perante a América Latina, incluindo, como sempre, a denúncia à OEA e aos
"fantoches" latino-americanos. A novidade foi a ênfase africana.* Seria
lembrado também porque, tal como o pronunciamento de Genebra, porém
mais explicitamente, manteve distância em relação à URSS e aos países
socialistas. Guevara continuava a revelar seu afastamento de modo indire-
to, mas seu discurso já vinha despojado dos eufemismos utilizados em Gene-
bra: "Também é preciso esclarecer que não só nas relações que envolvem
Estados soberanos os conceitos sobre a coexistência pacífica devem ser bem
definidos. Como marxistas, temos sustentado que a coexistência pacífica en-
tre as nações não inclui a coexistência entre exploradores e explorados, entre
opressores e oprimidos".79
Porém, as passagens mais vibrantes foram as dedicadas ao Congo e à
invasão aérea de Stanleyville:
Tal vez sej am filhos de patriotas belgas mortos em defesa da liberdade de seu país
os que assassinaram a sangue-frio milhares de congoleses, em nome da raça
branca, assim como antes sofreram sob a bota germânica porque sua taxa de
sangue ariano não era suficientemente elevada [...] Nossos olhos livres se abrem
hoj e para novos horizontes e são capazes de ver o que ontem nossa condição de
escravos coloniais ocultava: que a "civilização ocidental" esconde por trás de
sua vistosa fachada um quadro de hienas e chacais. Porque só merecem esse
nome aqueles que foram cumprir tarefas tão "humanitárias" no Congo. Animal
carniceiro que engorda devorando povos indefesos; assim faz o imperialismo
com o homem, é isso que distingue o "branco" imperial [...] Todos os homens
livres do mundo devem estar dispostos a vingar o crime do Congo.80
As conversações com os norte-americanos — aquelas cujas trans-
crições deixaram os arquivos secretos — mostraram um intenso vigor na
defesa da revolução permanente e a recusa em diferenciar-se, por pouco que

(*) A insistência guevarista sobre o Congo surpreendeu; basta dizer que os trabalhos
preparatórios do Departamento de Estado antecipando o discurso do Che nem sequer men-
cionavam a possibilidade de uma abordagem do tema congolês. Ver WG Bowdler a Cleveland,
Guevara Plenary Speech, 10/12/64, Nova York. NSF, Country File, Activities of Leading Per-
sonalities, Cuba, LBJ Library.
fosse, de Fidel Castro. Na televisão, o Che se absteve de tomar partido entre
a URSS e a China, preferindo insistir no dever da unidade. Deixou entrever
algumas reservas em relação à URSS, mas com tal discrição que obrigou os
observadores a um exercício de interpretação.* Distinguiu-se com maior
clareza o aspecto comentado por Tad Szulc, que participou do programa Face
the nation e a seguir conversou longamente com Guevara: "O Che se distan-
ciara da política económica e se dedicava aos contatos com o Terceiro Mun-
do [...] Parecia gostar muito dessa missão".81
Houve um episódio particularmente curioso na conversa com Mc-
Carthy, o senador liberal do Minnesota que se tornaria, três anos mais tarde,
o principal crítico norte-americano à Guerra do Vietnã, forçando Lyndon
Johnson a desistir da pretensão de reeleger-se em 1968. A reunião foi, mais
uma vez, obra da incansável Lisa Howard. Ela procurou convencer seus con-
tatos na administração Johnson a aproveitarem a presença do Che nas
Nações Unidas para um encontro. Sem dúvida, sugeriu o mesmo a Guevara.
Washington desde o início viu o ardil da repórter com ceticismo:
O assunto Che Guevara chegou até o subsecretário George Bali. A ideia por
enquanto é usar um inglês das Nações Unidas para fazer o contato (Bali e todos os
demais concordam que devemos manter distância de Lisa Howard). O ^ inglês
diria ao Che amanhã: "Um colega norte-americano transmitiu-me o comentário
que uma fonte da imprensa teria feito com ele, afirmando que você teria algo a
dizer a um funcionário do governo dos Estados Unidos. Meu colega americano não
tem muia certeza quanto à qualidade de sua fonte. O senhor a confirma?". Bali e
toda a equipe do Departamento de Estado acreditam que não devemos tomar a
iniciativa. Se a montagem da operação exigir que demonstremos interesse, não vale
a pena [...] Duvido que o Che tenha algo a nos dizer que já não saibamos, ainda que
possa haver interesse em ouvi-lo.82
Como a reunião com os funcionários de Washington não se con-
cretizava, o Che atendeu às súplicas de sua amiga Lisa e conversou por duas
horas com McCarthy, no apartamento da jornalista. Segundo o informe de
McCarthy a George Bali no dia seguinte, o comandante revolucionário
mostrou-se muito confiante. Afirmou que a Aliança para o Progresso fra-
cassaria e que a América Central e a Venezuela estavam à beira de uma

(*) O primeiro funcionário com quem o Che se reuniu em Nova York, Enrique Berns-
tein, do Chile, informou depois à embaixada dos Estados Unidos em Santiago que o Che
expusera "por completo a linha de Pequim". (WTDentzer/AmEmbassy Santiago a ARA/DOS
Washington (secreto), 21/12/64. NSF, Country File, Activities of Leading Personalities,
Cuba, telegrama#57, LBJ Library.)
revolta. Dedicou algum tempo a examinar os principais temas da agenda
bilateral — voos americanos sobre a ilha, venda de medicamentos, a base
de Guantánamo, a CIA em Cuba. Porém, o que mais causa impacto nos
memorandos de conversação recentemente liberados — na realidade só em
2994 foi revelada a identidade do interlocutor do Che8' — é a clareza, a
irreverência ou o franco descaramento com que o Che se vangloria do
apoio cubano à revolução latino-americana. Segundo as notas de
McCarthy: "Guevara em nenhum momento tentou ocultar as atividades
subversivas de Cuba. Admitiu explicitamente que eles treinavam revolu-
cionários e continuariam a fazê-lo. Sentia que essa era uma missão
necessária do governo cubano, já que a revolução oferecia a única espe-
rança de progresso para a América Latina".84
Justo no momento em que Fidel Castro acenava com a suspensão de
seu apoio à revolução continental em troca de uma coexistência pacífica
com Washington,* no instante em que a nova cúpula soviética parecia
optar pela distensão com os Estados Unidos, o Che, no contato cubano-
estadunidense de mais alto nível em vários anos, proclamava o compro-
misso internacionalista de Havana. O episódio lembra o comportamento
do jovem médico argentino no escritório de migração da Cidade do Méxi-
co, uma década — ou uma vida inteira atrás, proclamando aos quatro ven-
tos que era comunista.
Seu antiamericanismo alcançara graus extremos. Em um discurso em
Santiago de Cuba, no início de dezembro — antes de partir para Nova
York —, ele expôs sem rodeios seus verdadeiros sentimentos: "Devemos
aprender uma lição, aprender a lição sobre a absoluta necessidade da repul-
sa ao imperialismo, porque diante desse tipo de hiena não há remédio exce-
to a repulsa, não há outra saída afora o extermínio... Devemos acatar essa
lição de ódio".ss
Durante todo o ano de 1964, especialmente nos meses e semanas finais,
o Che passava uma sensação de inquietude e ansiedade, sinais de uma "tro-
ca de pele". Muitos de seus amigos ou meros conhecidos pressentiram que
sua vida estava às vésperas de uma transformação radical. Não há registro de
nenhuma previsão apontando para um desenlace trágico, mas são muitos os
pressentimentos políticos e pessoais, desprovidos de dramaticidade ou

(*) Em uma longa entrevista concedida a Richard Eder, do New York Times, publicada
em 6 de julho do mesmo ano, Castro "propôs um acordo para interromper a ajuda às guerri-
lhas na América Latina", caso Washington suspendesse sua ajuda aos exilados de Miami.
(The New York Times, 6/7/64, primeira página.)
avançar. A situação do Che tornou-se tão absurda como as duas frases que
possivelmente a resumiam: "com Castro, nem casamento, nem divórcio" e
"nem com Fidel, nem contra ele". Nada pior para Ernesto Che Guevara que
esse emaranhado de ambivalências, contradições e meios-tons crepuscu-
lares. Chegara a hora de partir.
angústia. Citemos dois. Um proveio de um conselheiro do governo de sua
majestade britânica radicado em Havana, que desde 1964 informava a Lon-
dres sua premonição profissional: "Eu não me surpreenderia se até o próprio
Guevara recebesse em breve um emprego mais apropriado — ou um cargo
meramente decorativo que o liberasse para exercer suas importantes funções
na relação com os demais latino-americanos".* A segunda foi de um ita-
liano, o jornalista do L'Espresso, Gianni Corbi, que passou várias semanas
em Cuba no verão de 1964 e muitas horas conversando com Guevara. "Não
me surpreenderia ver o Che Guevara e seus caixeiros-viajantes da revolução
permanente na América Latina sacudirem a poeira cubano-castrista e diri-
girem-se para as montanhas. Quando voltarmos a ouvir falar deles, estarão
encabeçando bandos guerrilheiros nas inóspitas alturas andinas."87
Encerrava-se um ciclo para o Che em Cuba. Sua fase cubana estava
acabando, embora ainda fosse viver vários meses na ilha em 1966, escondi-
do, doente e deprimido. Ele voltou à África em 16 de março de 1965 para
cinco semanas depois entregar-se à aventura congolesa. Na verdade, desde
que partira para Nova York em dezembro de 1964, deixara para trás sua vida
em Cuba. As grandes decisões ainda não se tinham consumado. Faltavam as
peripécias africanas e argelinas das páginas que se seguem. Mas os dados
estavam lançados, sobretudo no estreito terreno em que convergiram duas
grandes epopeias de nossa época: a de Castro e a do Che Guevara.
Durante aquele longo ano de 1964, Guevara perdeu seus amigos e
suas batalhas, travou incontáveis combates e polémicas sobre mil e um
temas conflituosos e cruciais para a Revolução Cubana. Comprovaram-
se suas inconfundíveis características. Castro guardava grande estima
por ele, apoiava seus extravagantes projetos argentinos, argelinos,
venezuelanos e agora africanos. Nunca lhe negou o lugar que conquis-
tara, nem lhe recriminou os deslizes ou rompantes. O Che não tinha,
portanto, do que se queixar. Mas ele também comprovava que Fidel, o
fiel da balança por excelência, não tomava partido. Apenas deixava-o
livre para travar seus combates e sofrer seus reveses. Reconhecia seus
esporádicos e isolados triunfos, mas nunca ficava a seu lado; às vezes
porque se posicionava no campo contrário, em nome das necessidades da
revolução; em outras oportunidades, porque simplesmente não partilha-
va das teses de Guevara.
Lance após lance, luta após luta, o Che foi entendendo que estava só,
não contra Fidel, mas tampouco com ele. E como o caudilho estava em tudo,
não contar com ele era carecer do essencial, do apoio indispensável para
9
O CORAÇÃO NAS TREVAS DE
CHE GUEVARA
«

Como disse Ahmed Ben Bella, "chegamos tarde ao Congo".1 Ernesto


Guevara dedicou o antepenúltimo ano de sua vida a apoiar uma luta que já
terminara, em um país esfacelado, no coração de um continente assolado
por rivalidades milenares e trágicas intervenções estrangeiras. Entre tantas
outras, a que colocou frente a frente os revolucionários cubanos comanda-
dos pelo Che e os pilotos cubanos a serviço da CIA, a milhares de quilóme-
tros da terra natal. Sim, houve uma rebelião no Congo; em seu conjunto, foi
a insurreição armada mais importante da África negra desde a luta pela inde-
pendência.* Mas quando o Che empreendeu a viagem preparatória de sua
expedição ao Congo, o principal foco da nova revolta já havia sido vencido,
esmagado por pára-quedistas belgas, mercenários rodesianos e sul-africanos,
apoiados por aviões norte-americanos. "Operação Dragão Vermelho" foi o
nome dado a esse bem-sucedido ataque da ex-potência colonial e da nova
potência imperial visando retomar a cidade de Stanleyville (atual Kisan-
gani, no Zaire).**
A crise eclodira em julho de 1964- Era o fim da frágil paz e da integri-
dade territorial alcançadas a ferro e fogo em 1962 pelas Nações Unidas,

(*) É preciso ressaltar a sequência dos fatos: a etapa da independência, da morte de


Lumumba e dos "gendarmes catangueses" já se encerrara havia quase cinco anos.
(**) Os nomes do ex-Congo Belga mudaram por completo nos anos 70.0 próprio país,
antes conhecido como Congo-Léopoldville, passou a chamar-se Zaire. A capital,
Léopoldville, ganhou o nome de Kinshasa. A capital das províncias orientais, antes chama-
da Stanleyville, foi batizada como Kisangani. Elizabethville passou a ser Lumumbashi e
Albertville, Kalemie. Empregamos a nomenclatura antiga por ser a vigente nos anos 60.
Washington e Bruxelas. Depois de afastado o risco de secessão do território
minerador do Alto Katanga, a Organização de Unidade Africana (OUA) já
não tinha interesse em que os capacetes azuis fossem mantidos no Congo. A
missão da ONU, desgastada em uma operação cara e desacreditada, retirou-se
em meados de 1964, deixando um vazio por onde se infiltraram rapidamente
as mesmas forças políticas e sociais já confrontadas do início da década.
Imediatamente, reavivaram-se as chamas da rebelião lumumbista no
Leste. Em le de janeiro de 1964, eclode uma rebelião dirigida por Pierre
Mulele, exilado por algum tempo em Pequim e agora contando com o apoio
do regime maoísta. Foi "a primeira grande revolta camponesa em um país
africano independente"2 ou, segundo um biógrafo e admirador, "a primeira
grande revolução popular contra o neocolonialismo na África pós-inde-
pendente".'
O primeiro-ministro congolês logo renunciou, e o presidente Kasavubu
nomeou para substituí-lo o desprestigiado ex-dirigente das guerras de inde-
pendência Moise Tshombé, provavelmente respaldado pela Société
Générale de Bruxelas, órgão que exercia a tutela sobre a semicolônia con-
golesa. Tshombe era desprezado pelos mandatários da OUA, em especial por
sua facção mais radical — o chamado Grupo dos Seis, composto por Nasser,
do Egito; Ben Bella, da Argélia; Nkrumah, do Gana; Sekou Touré, da Guiné;
Nyerere, da Tanzânia e Modibo Keita, do Mali —,* que ainda o responsabi-
lizava pela morte de Lumumba. A rebelião se expandiu para o Leste, dirigida
por antigos partidários de Lumumba e por um revolucionário de credenciais
duvidosas, Gaston Soumialot. Todos eles se organizaram, em outubro de
1963, no Comité de Libertação Nacional (CLN), que receberia apoio da URSS,
dos cubanos e da própria OUA. Desde princípios de 1964, o CLN estabelecera
bases no vizinho Burundi, na margem oeste do lago Tanganica. Em 18 de ju-
nho de 1964, os rebeldes tomaram Albertville, um importante centro mi-
nerador; em agosto, Stanleyville4 — a capital provincial que trazia o nome do
jornalista do New York Herald, de fama livingstoniana. A estratégia do CLN
de instalar-se no Burundi foi fundamental: depois da derrota do final do ano,
apenas essa base rebelde permaneceria intacta. Ali desembarcou o Che, em
abril do ano seguinte: era o verdadeiro fim do mundo.
Existiam, portanto, duas rebeliões, duas direções e duas guerrilhas no
Congo: a do CLN, no Leste e Norte, e a de Pierre Mulele, no Oeste. A

(*) Segundo Ben Bella, esses dirigentes formavam um grupo à parte em todas as
reuniões da OUA; consultavam-se à parte, conspiravam. (Ben Bella, op. cit.)
primeira contava com maior apoio africano e soviético; a segunda estava
mais organizada, possuía maior densidade e coesão ideológica e talvez raízes
mais profundas na sociedade congolesa. Mulele era um líder nato, o herdeiro
de Lumumba, se é que houve algum. Mas sua campanha nunca transcendeu
os limites de sua base tribal — os bapendes e os bambundas — e regional —
Kwilu e o Noroeste do país. O CLN, em contrapartida, chegou a cobrir um
território mais vasto, mas seus dirigentes ganharam desde o início uma mere-
cida fama de corruptos, covardes e desunidos. O radicalismo de ambos os
movimentos era muito relativo. A direção do CLN mantinha relações tanto
com o chanceler belga, Paul-Henri Spaak, como com o chefe da CIA no Con-
go, Lawrence Devlin.5 Mesmo assim, era uma ameaça preocupante para os
interesses económicos belgas — simbolizados pela arquetípica Union
Miniére du Haut Katanga, dona secular da imensa riqueza mineral congole-
sa —, para os fins geopolíticos dos Estados Unidos — que, em plena cam-
panha para as eleições presidenciais, não podiam permitir um avanço
soviético na África — e para os sul-africanos e catangueses — que temiam
uma revanche dos massacres perpetrados no início da década.
A CIA rapidamente decidiu liquidar a rebelião, ajudada, entre outros,
por pilotos cubanos anticastristas, pela África do Sul — que enviou cente-
nas de mercenários liderados pelo legendário Mike Hoare, o louco — e pela
Bélgica, que mobilizou até 450 soldados, inicialmente como assessores e
depois como combatentes. Em novembro de 1964, a campanha já encur-
ralara os rebeldes em Stanleyville. Só faltava o golpe de misericórdia: a
"Operação Dragão Vermelho", com 545 pára-quedistas lançados pela avia-
ção norte-americana sobre a capital oriental do país.
As consequências foram as previstas: um banho de sangue, incluindo o
assassinato de milhares de congoleses por mercenários sul-africanos e o assas-
sinato a sangue-frio de cerca de cinquenta reféns ocidentais. A condenação
internacional foi ensurdecedora, mas o êxito militar indiscutível. Os rebeldes,
chamados simbas, sobreviveriam na região durante anos, mas em fins de
novembro já estavam em plena debandada e "em março de 1965, com a que-
da do povoado de Watsa, na fronteira leste do Congo, a rebelião estava derro-
tada [...] Depois da 'Operação Dragão Vermelho', o movimento deixou de
constituir uma ameaça séria".6 A tomada de Stanleyville e as atrocidades que
se seguiram foram o objeto das eloquentes e apaixonadas denúncias do Che
nas Nações Unidas. Muitos interpretaram a derrota de Stanleyville como uma
etapa da luta; na verdade, a reconquista dos brancos assinalaria o fim, até 1996,
da rebelião de massas, generalizada e viável no Congo oriental.
Em Kwilu, a revolta durou, formalmente, até 1968, quando Pierre
Mulele entregou-se ao governo de Mohutu Tsetse Seko, nos termos de uma
paz negociada, e foi prontamente esquartejado. Seus restos foram tragados
pelo rio Congo e seus crocodilos. Na verdade, o mulelismo estava condena-
do desde a cisão interna, de origem tribal, surgida em março de 1965: "Uma
grave derrota atingiu o prestígio de Mulele e a fé no futuro do movimento.
A unidade do mulelismo rompeu-se. Muitos jovens abandonaram a guerri-
lha. Foi a única decisão tribalista de Mulele, mas teve repercussões desas-
trosas para ele".7
Por tudo isso, Ben Bella lamentou o atraso da intervenção progressista.
Por essa e muitas outras razões, a expedição do Che já nasceu derrotada. Sem
saber, Guevara propunha-se a apoiar uma luta perdida, definitivamente sub-
jugada por seus inimigos. Quando ele embarcou no Aeroporto Kennedy, em
Nova York, rumo a Argel, em 18 de dezembro de 1964, a nova insurreição
no Leste congolês já terminara. Em toda a sua epopeia africana, ele remaria
contra a maré, e foi essa sua grande falha. Ao mesmo tempo, baseava-se
numa série de eventos reais: as primeiras grandes mobilizações populares,
armadas e insurrecionais contra o regime pós-colonial, em um país no cen-
tro do continente, tão importante para todos que, de Washington a Pequim,
todos se interessavam por ele e conspiravam para dominá-lo. Um país tão
ingovernável e trágico que, trinta anos depois, se converteria na síntese do
naufrágio da descolonização, devastado pela AIDS, a corrupção, a violência,
a pobreza extrema, carente de qualquer razão aparente de ser. A região orien-
tal dos chamados grandes lagos assistiria a algumas das mais cruéis tragédias
modernas de fome, genocídio e migração em massa. Muitos dos atores de
1965 continuam presentes em 1997, em novo papel dramático.
Aparentemente, a viagem do Che pela África foi programada em Nova
York ou pelo embaixador cubano em Argel, Jorge Papito Serguera.* Os
soviéticos não foram consultados.** O comandante Guevara permaneceu

(*)Um telegrama da embaixada dos Estados Unidos em Haia advertia, citando fontes
holandesas em Havana, que nenhuma das missões locais dos países visitados pelo Che fora
avisada de sua iminente chegada. (Department of State, Airgram AmEmbassy The Hague to
DOS, African Traveis of Che Guevara, 16/2/65 (secreto). NSF, Country File, box 17, vol. 4,
#71. Airgram, LBJ Library.)
(**) Em uma conversa com Oleg Daroussenkov em Havana, a 8 de dezembro, véspera
de sua partida para Nova York, o Che não mencionou sua intenção de seguir para a África.
(Ver Oleg Darushenkov, "Nota da conversa de 8 de dezembro de 1964 com Ernesto Gue-
vara", 10/12/64 (secreto), Arquivo Estatal da Rússia, op. cit., folio ne 5, lista ns 49, do-
cumento 758.)
uma semana inteira em Argel, onde organizou o resto da viagem, que ines-
peradamente se prolongou por quase três meses. Examinou com Ben Bella a
situação da África; reuniu-se, em um primeiro encontro, com alguns diri-
gentes congoleses e líderes dos movimentos de libertação nacional das coló-
nias portuguesas, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Imediatamente
compreendeu que, no caso do Congo, haveria sérios problemas para retomar
a luta com alguma chance de vitória. O primeiro residia na unificação das
direções, centralização do comando e coordenação das operações militares.
Nos meses que se seguiram, o Che voltou repetidamente ao tema, sempre em
vão, em inúmeras escalas nos oito países africanos que visitou.
O segundo problema era igualmente complexo. Consistia em garantir
e compatibilizar a ajuda soviética e chinesa às facções em luta: Mulele, aju-
dado pelos chineses, e o Comité de Libertação Nacional, pelos soviéticos. O
conflito sino-soviético não só se intrometia nos debates africanos, como às
vezes atrapalhava a ajuda, que não chegava com a rapidez e facilidade dese-
jáveis. Derivava daí a terceira tarefa do Che: comprometer ao máximo os
demais dirigentes africanos — como Ben Bella e Nasser — para que com-
pletassem a ajuda chinesa e russa aos rebeldes do Congo.
Em 26 de dezembro, o Che partiu para Bamaco, capital do Mali, certa-
mente por sugestão de Ben Bella, que considerava o chefe do Estado ma-
linês, Modibo Keita, o mais antigo e respeitado membro do Grupo dos Seis.8
A visita não teve a importância esperada: o comunicado conjunto não foi
assinado por um membro do birô político ou um ministro de maior
importância. O presidente Keita costumava tirar férias durante o Natal, e
não se promoveu nenhum ato público de massas nas ruas de Bamaco. A
cobertura de imprensa foi escassa. Foi, sem dúvida, uma visita programada
em cima da hora.
Em Mali, o Che frisou o erro cubano de ter se aproximado e alinhado
demais à URSS e à China. Foi o que afirmou ao ministro malinês que o rece-
beu.1* Em le de janeiro, seguiu viagem para a República Popular do Congo
(Brazzaville), onde anunciou que vinte jovens receberiam treinamento mi-
litar em Cuba. Nesse momento criou-se um dos mais fortes laços de Cuba na
África: meses mais tarde, chegaria a Brazzaville um contingente de tropas
cubanas comandado por Jorge Risquet, para integrar o corpo da guarda do
presidente Jean-François Massemba Debat. Parte dos soldados que acom-
panharam o Che no Congo em abril de 1965 se incorporaria depois a esse
destacamento, que ficaria em Brazzaville até muito tempo depois de Gue-
vara ter deixado as terras africanas. Também permanecerá por muitos anos
a marca do encontro do Che com Agostinho Neto, chefe e fundador do
Movimento Popular pela Libertação de Angola: até as tropas cubanas
deixarem a ex-colônia portuguesa, em 1992.
Entre 7 e 14 de janeiro, o Che permaneceu na Guiné. Mantinha ali
uma velha relação com Sekou Touré, talvez o líder africano mais simpático
à Revolução Cubana. A recepção foi mais efusiva que no Mali, exceto quan-
do o cubano se incorporou à comitiva presidencial para uma entrevista com
o mandatário senegalês Leopold Senghor, no posto fronteiriço de Labe. O
poeta da negritude e seus colaboradores se "indignaram" com a presença de
Guevara em conversações entre africanos. O Che reiterou a necessidade de
apoio aos movimentos de libertação da África. Voltou a enfatizar a
importância da unidade no "combate ao imperialismo". Era preciso cons-
truir a unidade congolesa e dos demais movimentos, garantir a proximidade
com os países socialistas — em especial os dois maiores. Essa última ideia,
entretanto, era uma faca de dois gumes. Em um telegrama secreto, a CIA
atribuía ao Che as seguintes intenções na África:
Alertar seus amigos africanos para que não se aproximem demais dos comu-
nistas soviéticos ou chineses [...] De acordo com Guevara, embora Cuba con-
tinuasse socialista, os funcionários cubanos estavam muito descontentes com
o grau de ingerência em seus assuntos internos por parte da URSS e da China.
Guevara disse que já era tarde demais para que Cuba fizesse algo a respeito, mas
não para os africanos. Acrescentou que os cubanos estavam especialmente
preocupados com seus amigos argelinos e que partilhara essa preocupação
diretamente com Ben Bella.*
Em Gana, além de longas conversações com Kwame Nkrumah, o caris-
mático e corrupto líder tradicional da luta pela independência, o Che co-
nheceu Laurent Kabila, o dirigente congolês da região vizinha ao lago Tan-

(*) Central Intelligence Agency, Intelligence Information Cable, "Statements of


Ernesto Che Guevara on the Primary Purpose of his Mission to África" (secreto). O telegra-
ma cita informações datadas de até fins de dezembro de 1964 e traz a data de 15 de janeiro de
1965. (NSF, Country File, Cuba, vol. 4, LBJ Library.) Sua veracidade foi confirmada: um mês
e meio mais tarde o Che tornou pública, justamente em Argel, sua ira contra a União Soviéti-
ca. A mesma advertência de Guevara para que se evitassem relações muitos estreitas com a
URSS e a China reapareceria em um relatório da seção de Inteligência e Pesquisa do Departa-
mento de Estado, assinado por seu diretor, Thomas Hughes, e dirigido ao secretário de Esta-
do. Conhecendo-se Hughes e Adriãn Basora, que elaborava os informes sobre Cuba nessa
época, é difícil conceber que dessem crédito a qualquer informação de fonte duvidosa. (Ver
ÍNR/Thomas Hughes ibidem, 19/4/65. NSF, Country File, Cuba, Activities of Leading Per-
sonalities, #18 memo, LBJ Library.)
ganica, onde três meses mais tarde estabeleceria finalmente sua base guer-
rilheira.* Passados trinta anos, Kabila, o principal interlocutor do Che no
Congo, encabeçaria a rebelião tutsi no Leste do Zaire e participaria da crise
humanitária de fins de 1996. Continuava em busca da libertação do Congo,
para a qual pedira ajuda ao Che em 1965.

Em fins de janeiro, Guevara voltou a Argel para trocar impressões com


Ben Bella e decidir o passo seguinte. A partir desse momento, começa a
inclinar-se por uma participação direta no combate congolês; em uma entre-
vista ao órgão oficial da FLN, Argel Ce Soir, reconhece que a crise no Congo
é um problema africano, mas acrescenta que Cuba está moralmente com-
prometida com a luta naquele país. A essa altura, o Che já havia definido
algumas ideias centrais sobre a África, o Congo e seu próprio destino. Ben
Bella recorda ter ouvido dele que "a África era o continente do mundo onde
o terreno era mais favorável a grandes mudanças. A África era onde se anun-
ciava um crescimento da luta antiimperialista".10 Para o Che, como explica
Jorge Serguera, a África era uma espécie de terra de ninguém, onde as
grandes potências ainda não tinham feito uma nova partilha de esferas de
influência e portanto era mais possível uma luta vitoriosa." E o Congo-
Léopoldville era o país — ou, melhor dizendo, o território — onde as pers-
pectivas pareciam mais promissoras. Graças à intensa guerrilha do Leste e à
unificação das forças sob a égide do Comité Nacional de Libertação, havia
possibilidades reais de triunfo. E mais, com os Estados Unidos atolados no
Vietnã, as possibilidades de uma nova intervenção direta e maciça de
Washington tornavam-se mais remotas. Por fim, embora o Congo carecesse
de uma saída para o mar, excetuando Cabinda, entre o Congo-Brazzaville e
Angola, fazia fronteira com muitos países: o Congo-Brazzaville, a Repúbli-
ca Centro-Africana, o Sudão, Uganda, Zâmbia, Tanzânia, Ruanda-Burun-
di (na época formando um só país). Era uma Bolívia africana, e não faltaram
paralelos entre os dois países e as duas aventuras de Guevara.
Para Serguera, outro elemento crucial na decisão de internar-se pela
África foi a situação geográfica e estratégica do continente. Segundo o
embaixador cubano na Argélia — acusado de ter "embarcado" o Che na
África, ao pintar-lhe um panorama excessivamente otimista12 —, Guevara

(*) Ao menos assim recorda Oscar Fernández Mell, que conheceu Kabila em Dar
Assalaam e passou quatro meses com o Che no Congo. (Entrevista com o autor, Havana,
24/8/96.)
apostou que a União Soviética toleraria um apoio cubano à luta e à re-
volução na África, o que não acontecia em relação à América Latina. O êxito
africano, por sua vez, poderia tornar Moscou mais receptiva a um apoio
cubano à revolução latino-americana." Segundo Serguera, à medida que o
Che avançava em sua aventura africana, foi se comovendo com a miséria, o
atraso, a opressão colonial e racial que desde o século XIX massacravam o
continente africano. Também comprovou na prática a divisão das forças
progressistas, a mediocridade das lideranças guerrilheiras e a possibilidade
de influir realmente no desenrolar dos acontecimentos, mesmo com forças
e recursos limitados. Mas ele subestimou dois fatores vitais: a possibilidade
de os norte-americanos fazerem o mesmo, influenciando sensivelmente
com um pequeno investimento; e o fato de os conflitos internos das direções
políticas refletirem, indireta mas fielmente, rivalidades tribais ou étnicas.
Tudo se complica quando se chega à ideia de "povo": em boa parte da África,
onde se deram as sucessivas intervenções cubanas — Brazzaville, Angola,
Etiópia (Eritréia e Ogaden) —, o "povo" não existe. Era falsa a ideia de que o
enfrentamento com a metrópole, ou com "o imperialismo", depois da des-
colonização bastaria para unificar comunidades secularmente confrontadas,
sem nenhum laço além de uma fronteira imposta pelo poder colonial.
Durante esses meses, o Che fez duas escalas no Cairo: uma, muito
breve, em 11 de fevereiro, ao regressar da China; outra, de doze dias, em
março, às vésperas de seu retorno a Cuba. Das conversações que teve com
Nasser conservam-se as anotações de Mohamed Heikal, publicadas um ano
depois da morte do presidente.* Logo no início do primeiro encontro, Nas-
ser enxerga no argentino "uma profunda angústia" e uma sombria tristeza
interior. O Che a princípio não quis partilhar suas preocupações; apenas
contou que ia à Tanzânia para estudar a situação dos movimentos de liber-
tação no Congo, mas Nasser sentiu que ele não manifestava grande entusias-
mo. De volta da Tanzânia, acompanhado por Pablo Ribalta, o embaixador
de Cuba em Dar Assalaam, o Che confidenciou que percorrera os acampa-
mentos guerrilheiros na zona tanzaniana do vértice Congo-Tanzânia-Burun-
di. Resolvera partir para o Congo e liderar ele próprio a ação das tropas
cubanas junto aos combatentes congoleses. "Quero ir ao Congo porque é hoje
o lugar mais revolucionário do mundo. Com a ajuda dos africanos, através do

(*) Mohamed Heikal, The Cairo ducuments, DouMeday & Company, Inc. Garden City,
Nova York, 1973. Convém ler o texto de Heikal com precaução, não porque ele invente, mas
porque a maneira como foi escrito pode induzir a uma imagem distorcida. Em todo caso, o
sentido geral coincide com outros testemunhos sobre o estado de ânimo do Che na época.
Comité na Tanzânia, e com os batalhões de cubanos, acho que podemos gol-
pear os imperialistas no coração de seus interesses em Katanga."
Nasser manifestou seu assombro e procurou fazê-lo desistir da ideia.
Insistiu em que um dirigente branco e estrangeiro comandando negros na
África poderia parecer uma paródia de Tarzan. O Che procurou convencer
o presidente da República Árabe Unida a prestar ajuda ao Congo. Nasser
aceitou colaborar, mas sem enviar tropas, argumentando que seria um erro:
"Se você vai ao Congo com dois batalhões cubanos e eu envio junto um
batalhão egípcio, isso vai ser chamado de ingerência estrangeira e trará mais
prejuízos do que benefícios". Ao fim de longas e repetidas conversações,
Nasser concluiu que o Che não estava muito convencido de sua decisão:
"Pensei em ir ao Congo, mas vendo o que acontece ali inclino-me a concor-
dar com seu ponto de vista de que seria prejudicial. Também pensei em ir ao
Vietnã [...]". No último encontro, o Che esclareceu que, de qualquer
maneira, não ficaria em Cuba. A obsessão do Che pela morte impressionou
o presidente egípcio. Segundo Heikal, ele expôs uma tese que era quase um
aforismo: "O momento decisivo na vida de cada homem é a hora em que
decide enfrentar a morte. Se a enfrentar, será um herói, com a vitória ou sem
ela. Pode ser um bom ou um mau político, mas se não enfrentar a morte, nun-
ca passará de um político".
Parte desse testemunho bate com o de Ben Bella, que também recorda
o Che comunicando-lhe sua intenção de incorporar-se à luta no Congo. O
argelino também lembra que se empenhou em convencer Guevara a desis-
tir de seu delírio ou, pelo menos, não assumir uma posição de profeta nem
ares de messias junto à população africana, já que a questão racial possuía
facetas muito delicadas: "A situação na África negra não era semelhante à
que imperava em nossos países. Nasser e eu advertimos o Che do que podia
acontecer".14
Guevara teve várias reuniões no Cairo com alguns dirigentes congole-
ses, exilados desde a derrota de novembro. Conversou várias vezes com Gas-
ton Soumialot, na ilha de Zamalek, onde ele vivia; voltou a encontrar Lau-
rent Kabila, um dos vice-presidentes do Comité de Libertação Nacional; o
outro era Pierre Mulele, que não saía do Congo. A ausência de Mulele e o
aniquilamento da frente de Stanleyville se contrapunham à necessidade
imperiosa de justificar o recebimento de dinheiro e de ajuda para a luta no seu
conjunto. A solução foi reforçar ao máximo a frente de Kabila, onde faltavam
combatentes, armas e moral revolucionário, tendo como única vantagem a
retaguarda da Tanzânia. Quando o Che visitou os acampamentos, em mea-
dos de fevereiro, comprovou as complicações inerentes àquela luta e as fero-
zes rivalidades entre grupos distintos. Mas não assimilou inteiramente o fato
de que a margem ocidental do lago Tanganica mal merecia o nome de frente
de combate. Por isso, insistiu na ideia de enviar tropas cubanas para treinar e
reforçar os congoleses, mas não para combater com eles, nem muito menos
para substituí-los, como aconteceria. O Che esperou meses a fio no Congo,
aguardando que Laurent Kabila conduzisse os combates. Mesmo ao deixar o
país, ainda estava confuso quanto ao que acontecia em sua própria frente de
combate, embora já compreendesse o que ocorrera nas demais regiões: "Há
duas áreas onde se pode dizer que existe alguma revolução organizada: esta em
que estamos e uma parte da província onde está Mulele, que é a grande incóg-
nita. No resto do país, há apenas bandos isolados que sobrevivem na selva.
Perderam tudo sem combater, como sem combater perderam Stanleyville".15
A luta na região onde o Che se internou dependia, na realidade, quase
exclusivamente da presença dos cubanos. Por sua vez, a rebelião de Mulele vivia
uma prolongada agonia. A revolução congolesa terminara antes de começar.
Três testemunhas cubanas confirmaram a disposição do Che de lançar-se
à aventura congolesa antes de voltar a Havana. O primeiro é Pablo Ribalta, que
Guevara enviara à Tanzânia como embaixador, em fevereiro de 1964- Ribalta
não vacila em afirmar que desde sua participação nas Nações Unidas o Che esta-
va disposto a engaj ar-se a fundo na luta de algum país.'6 Conforme o testemunho
de Papito Serguera, "quando ele deixou Argel, já havia uma conspiração em
marcha; ele já estava decidido a ir ao Congo".17 E Benigno — o coronel Dariel
Alarcón Ramírez, um dos três sobreviventes da guerrilha da Bolívia, que assu-
miu um papel decisivo na vida do Che desde aquele momento até o dia de sua
captura, tornando-se em uma testemunha valiosíssima dos dois anos seguintes
—narra, em seu livro, que na época ele já estava comissionado na África. Benig-
no encontrou o Che na Argélia em dezembro de 1964, por ocasião de um aci-
dente com um dos homens de sua escolta. Quatro meses depois, incorporou-se
à expedição ao Congo. Para Benigno, foi na Argélia que o Che decidiu ir para o
Congo: "Eu acho que ele tomou a decisão na Argélia, porque foi naqueles
momentos que o Che começou a ser acusado de trotskista e maoísta. Da Argélia
ele me mandou para o Congo: 'Vá com Ribalta e espere por mim lá' ".*
E evidente, portanto, que o Che resolveu comprometer-se pessoal-
mente com a luta no Congo durante sua longa peregrinação africana, em-

(*) Dariel Alarcón Ramírez, Benigno, entrevista com o autor, Paris, 3/11/95. Benigno
foi nomeado chefe da escolta pessoal do Che quando este era presidente do Banco Nacional
de Cuba. (Revista Habanera, Havana, jan. 1995, p. 16.)
bora já revelasse uma clara vontade de ficar longe de Cuba. Faltavam ape-
nas três coisas para consumar sua decisão. Uma foi sua estadia em Pequim,
em final de janeiro. Outra, sua intervenção no seminário de planejamento
realizado em Argel a 24 de fevereiro de 1965, célebre por marcar seu rompi-
mento com a URSS. Finalmente, foi decisiva sua passagem pela Tanzânia e os
acampamentos dos supostos guerrilheiros congoleses.
A viagem à China se deu num contexto de tensões crescentes entre
Havana e Pequim. Desde o ano anterior, saltava à vista o crescente ali-
nhamento de Fidel Castro com as posturas russas no conflito sino-soviético.
A neutralidade anterior transformou-se primeiro em esforço mediador— a
visita da delegação de partidos comunistas encabeçada por Carlos Rafael
Rodríguez, que recebeu o repúdio de Mao — e a seguir numa virtual identi-
ficação cubana com Moscou. A escolha cubana era cada vez mais patente.
A mudança ocorrida entre 1964 e 1966 foi assim resumida pelo mais desta-
cado estudioso da política externa cubana:
Apenas sete dias após o Che Guevara ter denunciado em Argel o pacto
soviético com o capitalismo, Raul Castro viaja a Moscou, para assistir a uma
reunião mundial de partidos comunistas. A reunião foi boicotada pela China,
consumando sua exclusão do movimento comunista internacional. Cuba,
que não respondera a outros convites para reuniões pró-soviéticas interpar-
tidárias, em março e junho de 1964 finalmente o aceitou, alinhando-se à URSS
contra os chineses. Em 13 de fevereiro (dois dias antes do retorno do Che a
Cuba — JGC), Fidel Castro advertiu os cubanos de que "a divisão perante o
inimigo nunca foi uma estratégia correta, uma estratégia revolucionária".
Seguiu-se uma rápida deterioração das relações sino-cubanas, concomitante
a uma provisória melhoria das relações soviético-cubanas. Em meados de
1965, a China estava invadindo Cuba com sua propaganda, dirigida sobretu-
do aos militares cubanos [...] Anunciou que compraria menos açúcar que o
previsto e entregaria menos arroz que o combinado. Negou-se a conceder mais
créditos a Cuba [...] Em 2 de janeiro de 1966, na inauguração da chamada Tri-
continentat, Castro denunciou o governo chinês.*

(*) J orge Domínguez, To make a worid safe for revolution: Cubas foreign policy, Harvard
University Press, Cambridge, 1989, pp. 68-9. Essa também era a opinião do Departamento
de Estado em Washington: "No inverno de 1964-5 Cuba passou definitivamente para o lado
da URSS na disputa sino-soviética [...] A URSS conseguiu atrair Castro para suas posições em
quatro temas-chaves: relações com os chineses, relações com os Estados Unidos, revolução
na América Latina e problemas económicos cubanos". (Ver "Thomas Hughes to The Se-
cretary", INR Research Memorandum 21, The Cuban Revolution: Phase Two (secreto),
10/8/65,pp. 9-10.NSF, Country File,Cuba, W. G. Bowdlerfile, vol. I,#46 memo, LBJ Library.)
A reunião dos partidos comunistas de novembro, em Havana, teve
considerável importância tanto para os soviéticos como para os cubanos.
Por um lado, Cuba obteve uma conquista nada desprezível: um apoio mais
consistente dos partidos comunistas da América Latina à revolução e ao
regime de Havana.18 Se recordamos os contundentes comentários do Che
sobre a falta de compromisso desses partidos com a epopeia cubana,
podemos avaliar a importância da decisão comunista. Em contrapartida, os
soviéticos e os dirigentes dos partidos latino-americanos arrancaram de
Cuba duas concessões de primeira grandeza. Para começar, a partir daquele
momento, a coordenação e a aliança dos grupos de inspiração cubana no
continente se realizaria através dos partidos locais, com o objetivo de
preparar amplas frentes políticas e vastas campanhas continentais. Em
segundo lugar, a conferência aprovou (no comunicado da reunião) uma vi-
gorosa condenação das "polémicas públicas e atividades facciosas", ou seja,
dos chineses e seus adeptos na América Latina.19 Fidel Castro pode ter con-
siderado que o verdadeiro sentido da conferência era evitar as divisões e
chamar à unidade sem tomar partido. Mao e os comunistas de Pequim,
porém, a encararam de modo muito diferente, como parte da ofensiva "revi-
sionista" soviética.
Alguns latino-americanos e possivelmente os próprios cubanos com-
preenderam que uma definição tão explícita poderia acarretar problemas
com os chineses e tiveram a ousadia de viajar a Pequim, procurando reduzir o
impacto da reunião. Mas, talvez devido à participação de velhos comunistas
como Rodríguez e os chilenos, a missão enviada à China em novembro
aumentou ainda mais a irritação chinesa e levou a mediação ao fracasso. Pior
ainda, ocorreram verdadeiras altercações entre Rodríguez e Mao Tse-Tung,
quando este, falando sobre a América Latina, tocou de passagem o tema da
Revolução Cubana. Mário Monje, secretário-geral do Partido Comunista da
Bolívia, ainda recorda os comentários depreciativos do Grande Timoneiro e
a reação do cubano: "Mao disse que o ocorrido em Cuba era uma manifes-
tação nacionalista pequeno-burguesa; Carlos Rafael levantou-se e declarou
que não podia permitir que se falasse assim da Revolução Cubana, nem que
se pusesse em dúvida o papel do comandante Fidel Castro".20
Isso não impediu que o Che e os cubanos, cada qual com seus motivos,
empreendessem um segundo esforço mediador para defender os interesses
cubanos e, na pior das hipóteses, os do próprio Che. Ele tinha várias razões
diretas e imediatas para tentar isso. Queria verificar se a responsabilidade
pelo confronto de novembro, entre Mao e a delegação encabeçada por seu
principal adversário em Cuba, Carlos Rafael Rodríguez, cabia mesmo aos
chineses e não ao sobrevivente do PSP, como acreditara originalmente.21
Castro confidenciou a Monje em Havana que "nós escolhemos o Che
porque sabemos do conflito que houve entre a delegação latino-americana
e Pequim. Enviamos o mais próximo dos nossos para investigar o ocorrido,
e ele confirmou a versão que vocês apresentaram na época. Ninguém men-
tiu. O Che comprovou o enfrentamento que houve, e ponto final: a culpa
era mesmo dos chineses".22
Guevara sabia que seria muito difícil livrar-se do estigma de pró'
chinês. Um conflito declarado e virulento entre Pequim e Havana — como
ocorreu nos meses seguintes — acarretaria para ele uma série de problemas
muito graves, talvez insolúveis, que ele queria evitar a todo custo. A
ambiguidade decorrente de ser o único cubano pró-chinês — ou, pelo
menos, não-antichinês —, num contexto de pleno conflito político-ideo-
lógico, podia resultar intolerável.* Portanto, era melhor evitar a con-
frontação a ser tragado por ela.
Por último, o Che compreendia claramente que qualquer iniciativa
cubana na África, ou pelo menos no Congo e na Tanzânia, precisaria neces-
sariamente da aprovação da China. Pequim acumulara uma experiência
valiosíssima na região. A assistência técnica que prestara à construção da
ferrovia da Tanzânia ao Atlântico, por exemplo, fora muito bem recebida.
Nyerere nutria um afeto sincero pelos dirigentes chineses — Chu En-Lai
visitaria Dar Assalaam em outubro de 1965 — e Pierre Mulele, por sua vez,
era o líder congolês mais importante e mais pró-chinês. Sem o consenti-
mento chinês, uma incursão africana não parecia possível nem para Cuba,
nem para o Che.
Assim, em fins de janeiro de 1965, iniciou-se em Havana uma nova
missão mediadora, encabeçada pelo secretário de organização do novo par-
tido cubano, Emilio Aragonês, amigo e colaborador do Che, e Osmany
Cienfuegos, homem da absoluta confiança de Fidel, excluindo ostensiva-
mente qualquer membro do velho PSP. Depois de aguardar por mais de um

(*) Não é preciso dizer que os chineses e os latino-americanos pró-chineses não lhe
facilitavam as coisas. Um relatório do Serviço de Informação militar dos Estados Unidos assi-
nalava, em março de 1965, como um grupo pró-chinês do Peru — o Movimento de Unidade
Reformista — difundiu entre seus militantes o ensaio do Che, La guerra de guerrillas: un méto-
do, com o seguinte título adicional: Una interpretación de Ia Segunda Declaraáón de Ia Habana.
(Dept. of Defense Intelligence Report, ns 2230027265, Cuban-Supported Politícal Subver-
sive Activity (secreto), Miami, 25/3/65, copy LBJ Library.)
mês o retorno do Che a Argel, onde ele deveria estar, segundo os organi-
zadores da viagem — a equipe de Manuel Pifleiro, o Barbaroja, do Ministério
do Interior de Havana —, Aragonês preferiu aguardá-lo em Paris.* Depois
de alguns dias, o Che uniu-se a ele e, após uma breve estadia na capital
francesa, descansando e fazendo contatos, eles embarcaram para Pequim via
Paquistão, pois uma escala em Moscou poderia ofender os chineses.
Segundo as versões oficiais, a viagem dos cubanos terminou em
catástrofe. Mao recusou-se a receber a delegação. As discussões, conduzidas
do lado chinês por Liu Shao-Shi, presidente da República, e Deng Xiao Ping,
secretário-geral do partido, não levaram a nada. Com isso, descartou-se por
completo a possibilidade de uma reconciliação com a URSS ou de um abran-
damento das polémicas. Chu En-Lai concordou apenas com o envio à
Tanzânia de um navio carregado de armas, destinadas aos combatentes con-
goleses que seriam treinados pelos assessores cubanos. Talvez os cubanos não
tenham percebido — nem tinham como perceber — que o país mais popu-
loso da Terra estava às vésperas de uma das convulsões que o sacodem com
extraordinária frequência: a Grande Revolução Cultural proletária, que
Mao desencadearia poucos meses depois, num comício na Cidade Proibida.
Nesse contexto, era impensável qualquer entendimento com os russos ou
mesmo com Cuba.**
A versão de Emilio Aragonês sugere que as conversações foram um tan-
to mais complexas. Os chineses logo apresentaram sua opinião básica: "O
Partido Comunista Cubano se colocara equivocadamente do lado dos
soviéticos. Segundo eles, nós não éramos maus, éramos bons comunistas,
mas fomos confundidos. Nós não aceitávamos isso, sustentávamos que
ninguém nos confundira, que eles é que se deixaram confundir".21
Apesar do cuidado com que o Che preparou sua intervenção e da

(*) Emílio Aragonês, entrevista, op. cit. O comentário de Aragonês de que Pineiro
realmente não sabia onde estava o Che ou quando chegaria a Argel, confirma que Guevara
planejou sua turnê pela África quase que só com Serguera, informando apenas o indispen-
sável ao governo de Havana sobre seus deslocamentos e passos seguintes.
(**) Segundo a conversação de um agregado da embaixada da URSS em Havana, Prons-
ki, com Anastasio Mancilla, o professor de economia do Che, este "manifestou uma profun-
da satisfação com a explosão da primeira bomba atómica dos chineses, em outubro de 1964.
Aquilo era bom, opinou Guevara, pois tendo a bomba a República Popular da China podia
falar com outros países na qualidade de grande potência. Guevara inclusive pronunciou-se
contra a posição da URSS de não transferir à China o segredo do átomo. Isso obrigara o povo
chinês a fazer grandes sacrifícios". E. Pronski, Nota da conversação de 6 de novembro de
1964, Archivo Estatal de Rusia, op. cit., folio 5, lista 49, documento 759.
grande habilidade de sua fala, tudo foi em vão. Diante daquela excelente
argumentação com tão sólidos fundamentos, os chineses, segundo Ara-
gonês, não tiveram outro remédio senão se calar e concordar. Os cubanos
deixaram a reunião exultantes, convencidos de ter transformado por com-
pleto a falsa impressão chinesa de que estariam alinhados com a URSS. Tive-
ram uma grande surpresa no dia seguinte, quando Deng Xiao Ping repetiu a
mesma ladainha de sempre, como se nada tivesse ocorrido na véspera. Os
cubanos ficaram atónitos, como recorda Aragonês. Ainda não compreen-
diam o estilo oriental de negociar, que consiste em reiterar a mesma colo-
cação, diga o que disser o interlocutor. O fato de ter ganhado alguns debates
não impediu que o Che perdesse a discussão. Por exemplo, quando Liu Shao-
Shi recriminou o governo cubano por ter convidado Gilberto Vieyra, o líder
comunista colombiano que comparara Mao a Hitler, a visitar Havana, o
Che replicou, com sua refinada ironia portenha: "Se vocês reabilitaram Pu-
Yi, o último imperador, por que não poderíamos reabilitar um pobre comu-
nista colombiano?". A farpa não teve resposta, nem consequências.24
Apesar das divergências de fundo, os anfitriões brindaram seus convi-
dados com a tradicional e esplêndida hospitalidade local. Sempre os aten-
deram bem e, no final, chegaram a insinuar que, se solicitassem uma audiên-
cia com Mao, a resposta seria afirmativa. No fim da última reunião, os
chineses perguntaram se o Che e seus acompanhantes tinham algum outro
interesse além de visitar um trecho da Grande Muralha. Na prática, estavam
oferecendo uma entrevista com Mao, na qual seriam absolvidos. Mas para
os visitantes isso implicaria em reconhecer que o Partido Comunista
Cubano, o partido revolucionário, fora "confundido" pelos revisionistas.
Como recorda Aragonês, "o Che, Osmany e eu decidimos não pedir mais
nada, para não lhes dar esse gosto".25 Talvez tenham cometido um erro.
De Pequim o Che foi a Dar Assalaam, onde chegou em 13 de fevereiro.
Foi recebido no aeroporto por um ministro de menor importância e a
imprensa noticiou sua visita nas páginas internas. Talvez Julius Nyerere já
suspeitasse do que aconteceria. Logo ao chegar, o Che comprovou a primeira
consequência de seu fracasso na China: o jantar oficial oferecido pelo
chanceler tanzaniano contou com a presença de todos os embaixadores
africanos e do representante soviético, mas ninguém da embaixada chinesa
compareceu.26 Fosse como fosse, o argentino começou imediatamente a dis-
cutir com os dirigentes congoleses as modalidades de uma possível ajuda
cubana. Declarou a Laurent Kabila que, na sua opinião, o problema do Con-
go dizia respeito ao mundo inteiro, não apenas à África. Em consequência,
"ofereci em nome do governo uns trinta instrutores e as armas de que
pudéssemos dispor. Ele aceitou com grande satisfação. Recomendou urgên-
cia no envio de ambos os itens, solicitação repetida por Soumialot em outra
conversa. Este último observou que seria conveniente se os instrutores fos-
sem negros".27
Para formar uma ideia própria da verdadeira disposição de luta dos/ree-
domfighters* africanos, o Che realizou diversos encontros com eles. Uma das
reuniões transformou-se em uma sessão tumultuada, com mais de cinquenta
participantes de uma dezena de países. O Che respondeu com cautela e
firmeza a suas inflamadas solicitações de ajuda:
Analisei os pedidos que quase todos tinham feito de ajuda financeira e treina-
mento de homens. Expliquei-lhes o custo de treinar um homem em Cuba, o
investimento de dinheiro e de tempo e a pouca garantia de que se tornasse um
combatente útil ao movimento [...] Propus, portanto, que o treinamento não
se realizasse em nossa longínqua Cuba, mas no próprio Congo, onde se lutava
não contra um fantoche qualquer como Tshombé, mas contra o imperialismo
norte-americano [...] Falei-lhes da importância fundamental da [...] luta de
libertação do Congo. A reação foi bastante fria, embora a maioria não tenha
feito quaisquer comentários. Houve inclusive os que tomaram a palavra para
criticar-me violentamente por aquele conselho. Acrescentaram que seus
povos, maltratados e humilhados pelo imperialismo, reclamariam caso se pro-
duzissem vítimas não da opressão em seu próprio país, mas de uma guerra para
libertar outro Estado. Tratei de mostrar-lhes que ali não se tratava de uma luta
confinada em fronteiras, mas de uma guerra contra o opressor comum,
onipresente [...] mas ninguém entendeu assim. Ficamos com a impressão de
que há muito que caminhar na África antes de alcançar uma verdadeira con-
dução revolucionária. Mas tivemos a alegria de encontrar gente disposta a
continuar lutando até o fim. A partir daquele encontro, impunha-se a tarefa
de selecionar um grupo de cubanos negros e enviá-los, voluntariamente, é
claro, para que reforçassem a luta no Congo.28
Existiam precedentes: desde 1961, Cuba treinava revolucionários de
Zanzibar. Em um campo do exército popular da Argélia, nas montanhas de
Kabila, dez técnicos cubanos treinavam argelinos e africanos de vários
outros países, inclusive a Tanzânia.29 As inúmeras discussões do Che com os
dirigentes congoleses na Argélia, e com outros líderes africanos no Mali,
Brazzaville e Conakry também estabeleceram um precedente. Aos poucos,
configuraram-se as condições e o conteúdo da assistência cubana: o envio de

(*) Em inglês no original: combatentes da liberdade. (N. T.)


trinta assessores — que não teriam papel algum nos combates —, armas e
uma equipe de comunicações. Cuba também se prontificou a colaborar para
a coordenação e unificação dos diferentes grupos congoleses e, caso
necessário, a buscar o apoio de governos africanos como a Argélia e o Con'
go-Brazzaville.* Em nenhum momento colocou-se a possibilidade de o
próprio Che dirigir a operação. Ao contrário, tentar-se-ia evitar a partici-
pação de qualquer figura destacada para não atrair a atenção nem provocar
represálias das potências ocidentais. A partir desse momento, os futuros con-
selheiros cubanos começaram seu treinamento na ilha. Rafael dei Pino recor-
da que, já em janeiro de 1965, foi instruído a enviar um grupo de oficiais
negros da unidade aérea de Pinar dei Rio a uma unidade especial.'0 Ainda não
se sabia bem quem iria, nem para quê, nem exatamente para onde; mas a ope-
ração já estava em marcha, faltavam apenas algumas decisões pontuais.
O Che regressou a Argel para participar, no início de março, da Con-
ferência Afro-Asiática de Solidariedade. Decidiu voltar à terra de Ben Bel-
la também para rever com ele sua experiência em Pequim e decidir o que fa-
zer. E provável que, em Pequim, Guevara ainda não tivesse tomado a decisão
de partir para o Congo. Em seu diário, ao explicar por que não informara
Laurent Kabila de sua intenção de comandar ele próprio as operações
cubanas, afirma que ainda não havia decidido se iria mesmo ao Congo." Mal
chegara à metade de sua odisseia, e vários fatos decisivos ainda estavam por
acontecer. Um deles foi o discurso de rompimento com a URSS, em Argel, a
25 de fevereiro.
Um fator que provavelmente influiu no conteúdo e no tom do pro-
nunciamento de Argel foi a assinatura em Moscou, em 17 de fevereiro, de
um acordo de longo prazo entre Cuba e a URSS, sobre comércio e meios de
pagamento. O texto previa o incremento do comércio bilateral e um con-
siderável aumento do fornecimento de açúcar por parte de Cuba. As nego-
ciações se prolongaram por três meses, sugerindo a existência de tensões e
contrariedades de ambos os lados. Os cubanos se queixaram em particular
dos elevados preços de venda das máquinas e equipamentos soviéticos.

(*) O Serviço norte-americano de Informação militar sugeriu outra versão do acordo.


Segundo ela o Che "propôs a entrega ao governo de Cuba dos cubanos (exilados) aprisiona-
dos no Congo. Cosime Toribio, um piloto cubano exilado, era prisioneiro dos rebeldes con-
goleses. Castro instruiu Guevara para que providenciasse a entrega de Toribio a Cuba como
condição para o envio de quatrocentos a quinhentos homens para combater junto aos
rebeldes do Congo". (Department ofDefenselntelligenceReport.n» 2210002365, Proposed
ooc Aid to Congo Rebels, 23/3/65 (secreto), Miami.)
Inclusive circularam rumores de que Castro afastara o negociador cubano, o
economista Raul Maldonado. Mas Fidel não tinha saída, apesar das queixas
do Che e da arrogância de Moscou.
O discurso do Che em Argel começa com a reafirmação da já tradi-
cional tese guevarista:
Desde que os capitais monopolistas controlam o mundo, mantêm na pobreza
a maioria da humanidade, repartindo os lucros entre o grupo de países mais
fortes. O nível de vida desses países alimenta-se da misétia dos nossos. Por-
tanto, para elevar o nível de vida dos povos subdesenvolvidos é preciso lutar
contra o imperialismo. E toda vez que um país se desliga da árvore imperialista,
está não só ganhando uma batalha parcial contra o inimigo fundamental, mas
também contribuindo para sua real debilitação [...].'2
Até aí, nada de novo ou muito importante. Porém, em seguida o Che
lança uma autêntica catilinária contra os países socialistas:
O desenvolvimento dos países que iniciam agora o caminho da libertação
deve custar aos países socialistas [...] Não se deve mais falar de um comércio de
benefício mútuo baseado nos preços que a lei do valor [...] impõe aos países
atrasados. Como pode haver "benefício mútuo" vendendo aos preços do mer-
cado mundial as matérias-primas que custam suor e sofrimento sem limites aos
países atrasados e comprar aos preços do mercado mundial as máquinas pro-
duzidas em grandes fábricas automatizadas [...]? Se estabelecermos esse tipo de
relação entre os dois grupos de nações, devemos convir que os países socialis-
tas são, em certa medida, cúmplices da exploração imperial [...] do caráter
imoral do câmbio. Os países socialistas têm o dever moral de liquidar sua
cumplicidade tácita com os países exploradores do Ocidente."
O Che formula em seguida uma série de propostas, mais ou menos pre-
cisas e utópicas, que em seu conjunto equivalem a um chamamento à soli-
dariedade dos países socialistas para que financiem o desenvolvimento do
Terceiro Mundo e a uma série de denúncias não tão veladas ao comporta-
mento do bloco socialista. A seguir, ele volta ao tema das relações com os
países capitalistas, para advertir sobre a ilusão dos investimentos conjuntos
ou da concorrência entre países vizinhos do mundo em desenvolvimento.
Conclui com uma apaixonada e eloquente exortação a "institucionalizar
nossas relações", ou seja, criar algum tipo de união entre os países do Terceiro
Mundo e os do bloco socialista, não sem antes tocar o tema que mais o preo-
cupa no momento: as armas destinadas às lutas de libertação. Ele investe
novamente contra os países socialistas, embora reconheça que, nesse ponto
em particular, seu comportamento para com Cuba foi sempre exemplar:
Se é absurdo que um diretor de empresa de um país socialista em guerra vacile
em enviar os tanques que produz para um front sem ter garantias de pagamen-
to, não é menos absurdo calcular-se a possibilidade de pagamento de um povo
que luta pela libertação [...] As armas não podem ser mercadoria em nossos
mundos. Elas devem ser entregues sem custo algum, nas quantidades
necessárias e possíveis, aos povos que as pedem para disparar contra o inimigo
comum. É esse o espírito que levou a URSS e a República Popular da China a
brindar-nos com sua ajuda militar [...] Mas nós não somos os únicos.'4
Para Ahmed Ben Bella, o Che sabia perfeitamente o que fazia.* Tinha
plena consciência do impacto que causaria em diversos círculos e dos proble-
mas que isso causaria a Fidel Castro e à Revolução Cubana. Não podia
desconhecer as implicações de sua intervenção e as repercussões que ela teria.
Os soviéticos já o tinham na mira. Sua real ou suposta simpatia pelos chine-
ses, sua viagem a Pequim, suas andanças pela África e sua tenaz oposição às
recomendações russas para a economia cubana tinham despertado grande
animosidade em Moscou. Também devia estar ciente da aproximação entre
Cuba e a URSS desde o início de sua peregrinação pelo mundo, em princípios
de novembro. Compreendia perfeitamente que suas críticas à União Soviéti-
ca cairiam em Havana como um balde de água fria e causariam um sério con-
fronto com Fidel Castro. O que ele provavelmente não calculava era a inten-
sidade da reação. Mas podemos concluir que, tal como no México em 1956 e
em Nova York, os rompantes do Che encobriam um inconsciente à flor da
pele. A provocação era sua forma predileta de expressar-se em momentos de
maior tensão. Diante do risco de cair na incerteza, sua saída era a definição
exacerbada, extrema, desnecessária. Pode-se até ler o discurso de Argel como
um ato provocador, friamente premeditado, mas é inegável que foi concebido
no limite entre a reflexão e a angústia.
Durante os dois dias frios e escuros de uma escala involuntária em
Shannon, Irlanda, em 13 e 14 de março, a caminho de Cuba, o Che pôde
refletir sobre seu futuro. Rafael dei Pino pilotava o Britannia da Companhia
Cubana de Aviação enviado para trazê-lo. O Che jamais viajava só, mas
dessa vez ninguém o acompanhou. Osmany Cienfuegos vinha no mesmo
vôo, mas os dois sequer conversaram, porque este justo voltava da reunião
preliminar para uma nova conferência dos partidos comunistas em Moscou.
O avião demorou a chegar à Irlanda e ali sofreu uma avaria. Por fim, Gue-

(*) "Discutimos o discurso a noite inteira. Ele tinha plena consciência do que iria di-
zer; era um homem extremamente simpático, mas muito dogmático e teimoso em suas
posições ideológicas." (Ben Bella, entrevista, op. cit.)
vara procurou Del Pino para conversar, e quando este lhe perguntou — "E a
África?" —, respondeu: "É foda fazer algo na África; as pessoas são tão difí-
ceis, é tudo tão diferente [...]". Começou a explicar que os africanos ainda
não possuíam um espírito nacionalista, porque cada tribo tinha seu chefe,
seu pedacinho de terra e sua nação, embora vivessem no mesmo país. E
arrematou: "É muito difícil, mas há a possibilidade de fazê-los sentir a re-
volução, porque os cubanos têm essa facilidade [...]".*
A situação económica de Cuba melhorara em relação ao ano anterior.
Mesmo o Departamento de Estado, em Washington, identificou vários
sinais de aumento da safra e de um desempenho económico menos sofrível. '5
Aos poucos superavam-se as circunstâncias que tinham impedido o Che de
partir para a Argentina um ano antes. Embora tendo perdido batalhas ideo-
lógicas e de política económica, ele também tinha pelo menos a satisfação
de ver que seus adversários tampouco haviam vencido. Carlos Rafael
Rodríguez acabava de ser removido da direção do INRA. Além de Fidel Cas-
tro, presidente do Instituto, fora designado para sua direção um jovem
fidelista, Raul Curbelo.
O Che podia ir embora se quisesse. Tinha fortes motivos pessoais e
políticos para fazê-lo. Sua marginalização da direção económica era patente:
já não participava das negociações com os soviéticos, nem da determinação
dos rumos da política económica, e todas as suas teses estavam praticamente
derrotadas. Em março circulou o rumor de que seria nomeado ministro de
Relações Exteriores, devido ao adoecimento de Raul Roa, o ministro em
exercício.** Essa versão não parece muito verossímil: depois da acusação
lançada pelo Che contra a URSS na Argélia, dificilmente ele poderia assumir
as relações internacionais de um país socialista. É mais plausível a interpre-
tação de Saverio Tuttino, correspondente de L' Unha em Cuba. Além de ser

(*) Rafael dei Pino, entrevista, op. cit. Cienfuegos acompanhara Raul Castro a
Moscou; a distância que, segundo Del Pino, prevaleceu entre ele e o Che durante o vôo seria
talvez um prelúdio do que ocorreria ao chegarem em Havana.
(* *) O rumor chegou a ter eco em dois telegramas secretos, das embaixadas inglesas em
Havana e em Washington, ambos para o Foreign Office. O segundo telegrama assinala que a
informação provém do Departamento de Estado; no primeiro, os ingleses em Havana
atribuem pouca credibilidade ao boato. (Ver Lord Harlech to Foreign Office, n2 581,10/3/65
(secreto), FO/371/AK1015, Public Records, op. cit., e Mr. Watson to Foreign Office, n9 186,
13/3/65 (secreto), For/317/AK 1015, ibidem. Também existe um telegrama norte-americano
a respeito: Central Intelligence Agency, Intelligence Information Cable, "Alleged Current
Activity of Che Guevara" (secreto), 2/6/65. NSF, Country File, Cuba, Activities of Leading
Personalities, #14, LBJ Library.)
o mais astuto dos jornalistas internacionais radicados na ilha, Tuttino tinha
acesso a ótimas fontes no interior da nomenclatura cubana — entre outras,
desfrutava da simpatia de Manuel Pineiro, chefe do Serviço de Informação
— e tinha a bagagem política e intelectual necessária para entender as vicis-
situdes da conjuntura cubana. Em um longo telegrama, a embaixada britâni-
ca remeteu a Londres a interpretação de Tuttino: Castro teria decidido afas-
tar o Che da direção da economia, remoção já consumada na prática, devido
à sua ausência e à transferência de seus principais colaboradores. Mas, por
amizade, respeito e necessidade, oferecera ao Che um alto cargo no âmbito
político da revolução, mostrando com toda clareza que conservava sua con-
fiança e o correspondente status hierárquico. O Che, segundo Tuttino,
aceitara renunciar ao Ministério da Indústria, mas rejeitara qualquer outro
posto, acrescentando que, embora suas ideias tivessem sido vencidas, con-
siderava um erro descartá-las. Sendo assim, resultaria erróneo, desonesto e
fútil "trabalhar por algo em que não acreditava".'6
Por outro lado, depois da derrota do foco guerrilheiro na Argentina e
das evidentes debilidades dos movimentos na Colômbia, Venezuela e
Guatemala, o Che parecia resignado com a remota possibilidade de um
triunfo revolucionário na América Latina que não provocasse uma imedia-
ta intervenção dos Estados Unidos. Um informe inglês afirma que, em
Argel, "até o indomável Che Guevara parecia pessimista quanto à possibi-
lidade de surgirem mais 'Cubas' na América Latina; 'Os Estados Unidos
interviriam para evitá-lo', disse".* Entretanto, havia muitos motivos para se
pensar que a veemente oposição de Moscou a novas aventuras cubanas na
América Latina não se aplicava à África: os próprios soviéticos forneciam
armas aos rebeldes congoleses, mesmo que fosse apenas para não ficar atrás
dos chineses. Além do mais, a aposta norte-americana no Congo e países
vizinhos, embora não fosse desprezível, não se comparava à que prevalecia
no hemisfério americano. Se já não havia o que fazer em Cuba, e na América
Latina o panorama não inspirava grandes perspectivas, a melhor alterna-

(*) British Embassy in Havana, Research Memorandum, "Che Guevara's African


Venture", sem data (secreto), FO/371/AK1022, Foreign Office, Public Records, op. cit. Este
relatório é idêntico, exceto em alguns comentários adicionais como os aqui citados, ao do
Departamento de Estado, com o mesmo título, datado de 13 de abril de 1965 e com código
RAR-13 (cópia da LBJ Library). Isso apenas confirma que os serviços de informação ingleses e
norte-americanos trabalhavam em estreita colaboração, em Cuba como em muitos outros
países. (Ver Thomas Hughes to The Secretary, "Che Guevara's African Venture", INR/DOS
(secreto), 19/4/65. NSF, Country File, Cuba, Activities of Leading Personalities,# 18 memo,
LBJ Library.)
tiva era a África. Não havia mistérios quanto à disposição doGhe. Sua
determinação não admitia titubeios. Faltava apenas consultar Fid<el, obter
o apoio necessário e pôr mãos à obra.
Mas nem só de razões políticas vivia nosso personagem, por mais re-
volucionário que fosse. Ao menos duas outras razões o incitavam àn ova fuga
para a frente. A primeira já foi mencionada: seu casamento falido, sua vida
doméstica em pedaços. Ele confessou a Nasser: "Já rompi dois casamentos"."
Voltou a estar ausente em um parto de Aleida, quando nasceu seu filho
Ernesto, em 24 de fevereiro de 1965. O desejo febril de movimento apode-
rou-se de novo do comandante Guevara, e o estado precário e conturbado
de suas relações afetivas, como tantas outras vezes, ao invés de prendê-lo,
empurrava-o a novos distanciamentos. Também devia sofrer a pressão de
outra perda, já advertida pelo Che, mas só confirmada em Paris, enx meados
de janeiro do mesmo ano. Ali ele se encontrou com Gustavo Roca, seu ami-
go cordobês que assumira a defesa dos sobreviventes da guerrilha de Jorge
Masetti nos tribunais argentinos. Roca comunicou-lhe os detalhes do mas-
sacre de Salta: a notícia deve ter doído fundo na alma do Che, tanto pela
morte de seus amigos como pelo inevitável sentimento de culpa que o episó-
dio suscitava nele. Já não era possível continuar mandando os outros para a
guerra, com fuzil ou sem fuzil.
Por último, havia a relação com Fidel Castro. Nem casamento, nem
divórcio, jurara o Che, mas era cada vez mais difícil compatibilizar essa
palavra de ordem com sua permanência em Cuba. Ele não podia capitular
frente às teses que Castro de um modo ou de outro acatava e punha em práti-
ca na ilha; tampouco queria — nem podia — romper com ele. Nunca cogi-
tou a possibilidade de fazer o papel de um Trotski, ou melhor, de um anti-
Trotski, ou seja, um dirigente marginalizado que se defende quando ainda
dispõe das armas para fazê-lo. Na Irlanda, enquanto esperava o conserto do
avião em que viajava, o Che pôde repassar sua vida em Cuba. Resolveu
esperar chegar a Havana para tomar uma decisão. Mas, no fundo, a sorte
estava lançada.
Em 15 de março, três meses depois da partida, ele chegou a Havana. Foi
recebido no aeroporto por Fidel, Raul, o presidente Dorticós e sua esposa,
Aleida. Algo ia mal. Em vez de convocar uma coletiva de imprensa ou gravar
programa de televisão para expor os resultados da viagem, Guevara desa-
pareceu por vários dias e fechou-se quarenta horas com Fidel, Raul e outros
para discutir os temas pendentes. Até hoje não há nenhum testemunho
direto daquela conversa tensa, nem de Fidel, nem de Raul, nem de seus ami-
gos mais próximos. Se existem escritos do Che a respeito, sua viúva não os
tornou públicos. No entanto, testemunhos indiretos permitem que se tenha
pelo menos uma ideia do conteúdo do diálogo. Seja como for, o encontro se
realizou quando o fundamental já estava resolvido. A conversa com Fidel
pode ter sido um catalizador, um estopim, mas não a causa definitiva para
que o Che deixasse Cuba. Menos de um mês mais tarde, enquanto o Con-
gresso dos Estados Unidos aprovava a resolução do golfo de Tonquim, que
marca formalmente o início da guerra do Vietnã, ele partirá da ilha.
Benigno, o sobrevivente da Bolívia, o artilheiro do Congo e ajudante de
Camilo Cienfuegos na sierra Maestra, descreve da seguinte forma uma dis-
cussão entre Raul e o Che, enquanto Fidel se recusa a tomar partido. A fonte
é segura.* Sua versão corresponde ao que já foi dito aqui sobre a atitude de
Fidel nas polémicas com o Che. E dadas as semelhanças com uma discussão
entre Carlos Franqui e Raul Castro ocorrida um ano mais tarde, na qual o
irmão mais novo de Fidel acusa o Che (de um ano antes) de ser pró-chinês.
Pode-se portanto confiar na absoluta veracidade do relato de Benigno. * * Por
tratar-se de um testemunho inédito, fizemos sua transcrição na íntegra, sem
correções de estilo nem cortes:
O Che foi acusado de trotskista e de pró-chinês. Quando ele voltou da Argélia,
sei que houve uma conversa muito tensa entre ele e Fidel, e ele saiu muito
chateado de lá, o que o levou a ficar em Tope de Collantes durante mais ou
menos uma semana, com umas crises de asma terríveis. Sei disso pelo compa-
nheiro Argudín, um dos guarda-costas dele. Argudín está em suas funções de

(*) Em 9 de outubro de 1996 o jornal boliviano La Razón publicou uma avaliação do


Che sobre seus homens na campanha da Bolívia. O documento foi encontrado com o Che em
outubro de 1967, mas nunca tinha sido divulgado. Nele aparece a seguinte apreciação sobre
Benigno: "11 -3-67, três meses: Muito bom, um rapaz simples, sem fingimentos, forte, modesto
e extremamente trabalhador, sempre mantendo um espírito elevado. 11-6-67, seis meses:
Muito bom, teve pequenas falhas na tarefa de distribuir a comida. Em tudo mais, é de primeira.
11/9/67, nove meses: Muito bom; tem se aperfeiçoado, superou totalmente as estreitezas ante-
riores". Comparadas com as impiedosas avaliações de outros elementos, essa dá um teste-
munho de confiança e admiração que só se encontra em outras duas avaliações, se tanto.
(**) Carlos Franqui, Re trato de família con Fidel, Seix Barrai, Barcelona, 1981, pp. 464-
70, em particular a p. 466. Entrevistado, Franqui deu ao autor uma versão mais detalhada e
pertinente do mesmo diálogo entre Raul, o Che e ele próprio, no palácio de Ia Revolución,
em 1B de janeiro de 1964: "Raul logo disparou: 'Por que você e o Che são pró-chineses?'.
Quando ouvi isso, fiquei totalmente surpreso por dizer isso do Che. Raul Castro tirou isso da
revista Revolución, editada por um advogado francês, Vergés, que sem permissão do Che pu-
blicou um artigo dele e uma foto da minha exposição. Claro que Raul sabia que o Che sim-
patizava com a China". (CarlosFranqui, entrevista, op. cit.)
guarda-costas. Conversa comigo porque ele e eu somos companheiros da escol-
ta, e eu estava ausente. Ele me diz: "Porra, estou preocupado". "Que foi?" "Ouvi
um bate-boca muito feio entre o Fidel e o Che." Daí eu digo: "E sobre o que era ?".
Ele diz: "Estavam discutindo sobre a política chinesa e sobre outro líder soviéti-
co" — porque ele era semi-analfabeto. Então eu comecei a mencionar alguns
líderes. Ele disse: "Não, é um que já está morto. Ê aquele que chamam Trotski. E
aí chamaram o Che de trotskista. Foi o Raul. Foi ele quem chamou o Che de tro-
tskista, e que estava claro por suas ideias que ele era um trotskista". Argudín me
contou que o Che ficou uma fera, que quase partiu para cima do Raul, e falou
para ele: "Você é um imbecil, um imbecil". Diz que ele repetiu a palavra "imbe-
cil" três vezes e aí ele vira para o Fidel, segundo Argudín, e o Fidel não diz nada.
Ou seja, cala, consente. E quando vê aquilo, ele sai, muito contrariado, quase
derruba a porta e vai embora. E daí a poucos dias vem a decisão, prematura, de ir
para o Congo. Ficou uma semana em Topes de Collante, no sanatório que fica
no centro do país, no Escambray. Teve umas crises de asma terríveis, parece que
do desgosto. Argudín e eu fazíamos esse tipo de coisa. Quando ele não estava tra-
balhando, era eu que trabalhava. E se eu tinha que acompanhar numa reunião
importante, alguma coisa assim, depois contava para o Argudín o que eles ti-
nham falado. E quando ele estava de serviço, me contava... Foi assim que ele me
contou, uns sete dias depois, dois dias antes de eu embarcar para Dar Assalaam. *
Carlos Franqui contou em um livro sua versão da acalorada discussão e
suas causas. A fonte foi Célia Sanchez, a assessora, companheira e confi-
dente de Fidel Castro, que faleceu em 1980:
O certo é que Guevara, ao chegar a Cuba, é recebido no aeroporto por Fidel
Castro, Raul e o presidente Dorticós e energicamente censurado, acusado de
indisciplina e irresponsabilidade, de comprometer as relações de Cuba com a
URSS, com Fidel furioso por sua irresponsabilidade em Argel, como disse a
muitos, entre eles o cronista. Guevara reconheceu que eles tinham razão, que
ele não tinha o direito de dizer o que disse em nome de Cuba, que assumia sua
responsabilidade, mas que aquele era o seu modo de pensar, e não podia mudá-
lo. Que não esperassem nem uma autocrítica pública, nem um pedido direto
de desculpas aos soviéticos. E, com aquele seu humor argentino, disse que o
melhor era ele punir a si próprio indo cortar cana.'8

(*) Dariel Alarcón Rodríguez, o Benigno, entrevista com o autor, Paris, 7/3/96. Um
documento forjado, o chamado Informe R-Habana, atribuído ao Serviço de Informação
alemão-oriental, dá conta de uma séria perturbação psicossomática do Che imediatamente
depois do episódio, na qual teria sofrido de delírios e alucinações. Sem dúvida nada disso
aconteceu, mas a crise de asma mencionada por Benigno pode explicar o rumor. E o descanso
no sanatório de Tope de Collantes pode ter sido confundido com uma internação prolonga-
da. (Ver Frederik Hetmann, Yotengosiete vidas, Salamanca, Loguez Ediciones, 1977,p. 128.)
Raul Castro também estava chegando de Moscou. No dia em que o
Che pronunciou sua catilinária em Argel, o irmão de Fidel, junto com
Osmany Cienfuegos, realizava importantes reuniões com a nova direção
soviética na capital russa. Em particular, assistiram a uma reunião prelimi-
nar da conferência dos partidos comunistas do mundo (sem a China), pro-
gramada para março. Obviamente, Raul ouviu de viva voz as reclamações
dos dirigentes soviéticos contra a atuação do Che, já não apenas com relação
à forma como conduzia economia e a insolência na Argélia, mas contra as
repetidas atitudes de simpatia pela China e o apoio a Pequim. Raul Castro,
o homem que sempre defendeu o vínculo cubano com o bloco socialista, que
obteve as armas e os mísseis para defender a ilha, quem mais insistiu para
forçar um alinhamento com a URSS e contra a China, foi também quem
escutou o rosário de queixas dos soviéticos contra o Che. Assim que acabou
a reunião em Havana, Raul viajou de novo para a Polónia, a Hungria, a Bul-
gária e, por duas vezes, a Moscou, para tranquilizar os dirigentes socialistas e
assistir à conferência de partidos comunistas.* Raul, por convicção, e Fidel,
por pragmatismo, compreenderam que era simplesmente insustentável pro-
longar a indefinição quanto ao conflito sino-soviético. Não interessa saber
se, além disso, os ressentimentos pessoais acumulados por Raul contra o Che
explodiram nesses dias. O Che perdera a batalha. Ninguém, nem mesmo
Fidel Castro, poderia salvá-lo.
E provável que, nesse momento, tenha-se deliberado a formação de um
contingente de uns cem homens, comandado pelo Che, para treinar e apoiar
os freedom fighters congoleses, se necessário combatendo ao lado deles, mas
nunca no seu lugar. Talvez alguns combatentes tenham sido escolhidos
antes da apressada decisão; outros, como os subordinados de Rafael dei Pino
na força aérea, foram convocados alguns dias depois do retorno do Che a
Cuba. Del Pino recebeu ordens para selecionar os combatentes "mais
negros" da base de Holguín, sobretudo os que contassem com experiência de
artilharia anti-aérea, já que muitos pilotos cubanos anticastristas lutavam
no Congo contra os rebeldes. Selecionou quinze, entre eles o tenente Barce-
lay, que com o nome de Changa ou Lavuton salvou a vida do Che oito meses
mais tarde, nas margens barrentas do lago Tanganica.'9

(*) Segundo a Cl A, Moscou pressionou Fidel Castro para que enviasse seu irmão à con-
ferência dos partidos; o caudilho cubano concordou. (Ver Central Intelligence Agency,
Directorate of Intelligence, "Castro and Communism: The Cuban Revolution in Perspec-
tive", Intelligence Memorandum, 9/5/66 (secreto), p. 18. NSF, Country File, Cuba, Bowdler
file, vol. 2, box 19, #71 report, LBJ Library.)
Uma série de fatores levou Cuba a enviar uma força expedicionária ao
coração da África. Se alguma sombra de dúvida persistia na mente do Che,
o comportamento de Fidel a dissipou — e não porque tivessem discutido,
nem porque Castro condenasse seu discurso anti-soviético na Argélia, sua
simpatia pela China ou o virtual abandono das tarefas administrativas por
três meses. Por mais acostumado que o Che estivesse com a omissão de Fidel
nas sucessivas polémicas da revolução, a falta de apoio naquela ocasião,
ignorando as acusações de Raul, não lhe deixou alternativa. Chegara a hora
de partir. Felizmente, o caminho já estava livre: existia uma luta da qual
podia participar com dignidade e eficácia. Havia inclusive, como sugere
Serguera, a possibilidade de obter vitórias na África40 capazes de convencer
os soviéticos e seus amigos comunistas da conveniência das incursões
cubanas na América Latina. Se o espaço para uma nova investida latino-
americana permanecia fechado no momento, a chave para abri-lo podia
estar j ustamente no Congo. Além disso, a penetração cubana no continente
negro não se limitaria ao Che e ao Congo-Léopoldville. Poucos meses
depois, um contingente foi enviado ao Congo-Brazzaville. Em meados de
1966, mais de seiscentos praças e oficiais cubanos estavam em terras
africanas. Naquele verão, sufocaram um golpe de Estado contra o presidente
Alphonse Maseemba-Debat.
Os grupos rebeldes congoleses, sem serem ideais, tinham o grande
mérito de existir. Simbolizavam a primeira luta pós-colonial da África inde-
pendente, solicitavam a assistência de Cuba, e a impressão inicial entre eles
e o Che não fora negativa. Para Guevara, o esquema substituía adequada e
provisoriamente o desejado desde 1963: voltar para sua Argentina natal,
mesmo que as condições fossem mais do que desfavoráveis. Para Emilio
Aragonês, que logo se uniria ao Che no Congo, em relação a esse plano
havia duas obsessões em tensão: a do próprio Che, de voltar a seu país de
nascimento para ali fazer a revolução, e a de Fidel Castro, de salvá-lo do que
considerava sua morte certa nas mãos do exército platense:
Eu sabia que ir para a Argentina era seu sonho, e era esse seu objetivo final.
Tenho a impressão de que Fidel estimulou e facilitou a ida do Che à África para
livrá-lo da viagem à Argentina. Fidel sabia que o exército argentino não era o
mesmo que os soldados de Tshombé. Achou que a expedição à África era uma
boa solução, que lá o risco de os ianques se intrometerem era menor. Imagino
que tenha sido o Fidel quem lhe vendeu a ideia de ir para a África, e acho que
o Che também voltou encantado com o continente. Depois de falar com todos
os dirigentes africanos, ele saiu de lá muito entusiasmado. Acho que o Fidel
botou lenha na fogueira porque pensou que o risco lá seria menor. Em vez de ir
à Argentina, ele ficaria na África, onde as coisas seriam diferentes, porque não
haveria uma reação tão brutal, que nenhum país ia se dar ao trabalho, que nem
iam dar importância a uma luta no meio da selva. Tudo isso é uma impressão
pessoal, não cheguei a falar desse assunto com Fidel. Mas, para mim, o que
Fidel queria era ganhar tempo. Fidel não podia quebrar o pacto feito com o
Che no México, mas tentava por todos os meios impedir que matassem seu
companheiro.41
O conhecido pacto do México citado por Aragonês permite a separação
Che-Fidel, mas não é sua causa. Em várias ocasiões, Castro relatou que, quan-
do o Che se integrou à expedição do Granma em 1956, ambos concordaram
que, quando Guevara quisesse seguir seu caminho, nenhuma razão de Estado
ou obrigação política o impediria. Graças a esse acordo, o Che poderia deixar
Cuba sem remorso, embora, de fato, ainda se debatesse durante um ano e
meio na decisão de despedir-se de um país e um governo tão carentes de
quadros confiáveis e qualificados. Se algo o fez vacilar em partir, foi a ideia de
abandonar um barco equipado com um capitão magnífico, mas com poucos
e medíocres oficiais. Em março, encerrou-se a discussão entre os dois amigos
com estas palavras amargas e categóricas do Che, recebidas com resignação
por Fidel:" 'Bom, a única alternativa que me resta é ir embora para bem longe
daqui. E se vocês puderem me ajudar nisso, por favor, quero que o digam de
uma vez. Se não, que me avisem, para que eu possa pedir ajuda a outros.' Fidel
disse: 'Não, não, quanto a isso não tem problema' ".42
O Che fez as malas e preparou a despedida, desta vez para uma longa
ausência. Em 22 de março, realizou a última reunião no Ministério da Indús-
tria. Deu duas palestras, uma de ordem geral, a outra no Conselho de Direção.
Em ambas relatou suas experiências no continente negro e destacou as
afinidades entre as culturas cubana e africana, sublinhando as raízes africanas
da moderna Cuba. Evidentemente, não disse que estava de partida para o
Congo. Desde o início, combinou com Castro que se justificaria sua ausência
dizendo que fora cortar cana no Oriente. A explicação era verossímil, pois
todos sabiam que o Che era um entusiasta do trabalho voluntário. Tratava-se
antes de mais nada de ganhar tempo.* A operação de acobertamento foi tão
meticulosamente montada que chegou a remexer até os fantasmas do Che.

(*) Até o italiano Saverio Tuttino não descartou que o Che tivesse de fato passado uma
ou duas semanas nos canaviais, impondo-se uma espécie de autoflagelação por ter desobede-
cido às instruções ao expressar sua própria opinião na Argélia. Carlos Franqui partilha dessa
crença: "Eu acredito que era verdade, conhecendo sua maneira de ser". (Carlos Franqui,
entrevista, op. cit.)
Um assessor que trabalhava com ele no décimo andar do Ministério lembra
que uma noite de domingo, em fins de março, quando estavam empacotan-
do seus documentos, o Che chegou com seu motorista e subiu ao gabinete. O
carro ficou com o rádio ligado, tocando tangos. No porta-malas aberto para
receber os papéis, via-se um facão e luvas para cortar cana, indicando que o
Che partiria para Oriente. Quando Guevara chegou ao seu gabinete, ouvia-
se a voz de Carlos Gardel cantando o tango da saudade, "Adiós muchachos
companeros de mi vida". O Che disse "aumente o volume", mas o motorista
tentou desligar o rádio. O Che, em uma de suas clássicas explosões, gritou:
"Eu disse para aumentar o volume, porra!".4'
Entretanto, a farsa não duraria para sempre. Logo seria necessário
informar o paradeiro do Che. Mas a essa altura, Guevara e seus expedi-
cionários já estariam sãos e salvos nas colinas africanas. Antes de partir, nos-
so personagem enviou livros, presentes e elípticas cartas de despedida a
vários amigos. Ao mesmo tempo, escolhia os principais colaboradores que
viajariam com ele: Victor Dreke, um combatente negro do Diretório; Papi
(José Maria Martínez Tamayo); Pombo (Harry Villegas), que, agora sim,
podia ir justamente por ser negro, e mais alguns. Dos aproximadamente 130
cubanos que desembarcariam às margens do lago Tanganica, quase todos
eram negros e muitos tinham se alistado voluntariamente na expedição.
Mas um grande número de "voluntários" desconhecia por completo seu des-
tino geográfico e político. Ê bem verdade que os imperativos da segurança
estreitavam a margem de manobra, mas a ignorância dos "internacionalis-
tas" quanto ao objetivo da missão teria consequências funestas. Ao fim de
um ano, abatido pela derrota e enfraquecido pela disenteria, o Che escreveu:
Pouquíssimos dos nossos principais militares ou dos quadros intermediários
com boa preparação eram negros. Quando nos pediram que enviássemos de
preferência cubanos negros, escolhemos entre os melhores elementos do
exército, que contassem com alguma experiência de combate, e o resultado é
que nosso grupo tem... excelente espírito de combate e conhecimentos especí-
ficos de tática no terreno, mas pouco preparo académico... O certo é que nos-
sos companheiros tinham uma base cultural muito precária e pouco preparo
político.44
Se considerarmos, ainda, o desabafo feito por Aragonês meses mais
tarde, no Congo ("Porra, Che, ninguém sabe que merda viemos fazer aqui"),
entende-se perfeitamente o descontentamento, a raiva e a indisciplina que
logo tomaram conta de grande parte da tropa cubana. Mas, como sempre,
Guevara tinha pressa: todo o processo de seleção, treinamento e transporte
durou menos de dois meses. Na madrugada de 2 de abril de 1965, com a
cabeça rapada e uma prótese na boca, o Che, Dreke e Papi embarcaram no
aeroporto José Marti, em Havana, rumo a Dar Assalaam. O próprio Castro
revelaria, vinte anos depois: "Eu mesmo disse ao Che que era preciso espe-
rar, ganhar tempo; ele queria preparar os quadros, desenvolver a experiên-
cia [...]".45 Soa razoável, portanto, a versão que Carlos Franqui atribui a Célia
Sánchez, segundo a qual o Che partiu de Cuba sem despedir-se de Castro.46
Em meados de abril, tarde da noite, Franqui recebeu um chamado de
Fidel. Conduzido por seguranças do comandante até urna casa da rua 11,
encontrou um Fidel irreconhecível, indo e vindo pelo terraço como um leão
enjaulado. Apenas duas vezes Franqui o vira assim: no posto migratório de
Miguel Schultz, no México, e na sierra Maestra, em junho de 1958, quando
a contra-ofensiva de Batista chegou a meio quilómetro de seu quartel-ge-
neral. Castro ordenou que trouxessem Giangiacomo Feltrinelli e um jorna-
lista italiano, ambos a ponto de voltar a seu país, para dizer-lhes que era fal-
so o boato sobre a morte de Guevara na República Dominicana, que o Che
estava bem e seguira para o Vietnã. Franqui o dissuadiu, argumentando que
isso despertaria mais suspeitas ainda. Mas o ex-diretor do Revolución com-
preendeu duas coisas: que o Che não estava no Vietnã, e que Fidel sentia um
enorme mal-estar por não ter se despedido do amigo. Guevara decidira ir
embora, com ou sem o abraço de Fidel. "Depois Célia me disse que Fidel esta-
va muito triste por não ter visto o Che antes de sua partida. Que estava com
tanto trabalho, que não tinha conseguido despedir-se dele, e que o Che
havia deixado uma carta."47
Com a mesma precipitação e improvisação — e a mesma audácia —,
foram sendo enviadas à Tanzânia novas levas de combatentes e de armas. As
famílias dos combatentes e os governos envolvidos só eram avisados em
cima da hora, sobre fatos consumados. Em 19 de abril o primeiro contin-
gente, liderado pelo Che, chegou à capital da Tanzânia. Quatro dias depois,
segundo Victor Dreke, internaram-se pela savana a caminho de Kigoma, um
povoado às margens do grande lago Tanganica, ponto de partida para a tra-
vessia rumo ao Congo.48
A preocupação do Che por cercar toda a operação do mais estrito sigilo
contrastava com a necessidade política de Fidel Castro de manter seus
principais parceiros internacionais informados. O percurso seguido pela
maioria dos combatentes foi o tradicional: Havana—Moscou—Argélia—
Cairo—Dar Assalaam.49 Mas, para evitar vazamento de informações ou
excesso de curiosidade, mesmo por parte de países amigos, o percurso do Che
foi muito mais longo e tortuoso, prolongando-se por dezessete dias. Mesmo
em seu diário, Guevara diz que não pode revelar seu itinerário até a Tanzâ-
nia. Uma fonte do Serviço de Informação cubano, que na época trabalhava
na embaixada de Cuba em Praga, informa que o Che, Dreke e Papi chegaram
à capital tcheca diretamente da ilha e ali permaneceram por alguns dias, sem
que os soviéticos se inteirassem de sua presença. Para consegui-lo, talvez o
trajeto até lá tenha sido menos direto, via Bruxelas, Paris e Madri. Um
enorme esforço em vão, pois enquanto isso Fidel Castro ia revelando ao
embaixador soviético em Havana um dos segredos mais bem guardados do
mundo.*
Alexander Alexeiev visitou o Che no Ministério da Indústria nos últi-
mos dias de março. Perguntou se ele iria com Fidel acompanhar a colheita
de cana em Camagúey, para onde o corpo diplomático fora convidado. O
Che respondeu que não, que ele iria "cortar de verdade, em Oriente". Seu
amigo então lhe deu um conselho tardio: "Não faz sentido brigar, Che". "Eu
sei, mas vou assim mesmo", respondeu o comandante. Preocupado pela ten-
são que sentiu entre os dois, o embaixador encontrou-se com Castro em
Camagúey, em 18 ou 19 de abril. Fidel tomou-o pelo braço, afastou-o dos
demais e sussurrou-lhe ao ouvido:
O Che não foi cortar cana em Oriente; foi para a África. Ele acha que a África
é uma terra de ninguém, onde nem a Europa, nem a URSS, nem os Estados
Unidos têm hegemonia; que é um lugar propício para Cuba. Você sabe que o
Che é um revolucionário nato e é como tal que ele pode ser útil ao mundo. Não
transmita essa informação a Moscou por meio de mensagem cifrada, mas faço
questão que você saiba disso e o comunique pessoalmente a seus superiores
assim que puder.50
Segundo Alexeiev, a URSS jamais protestou nem discutiu com Castro o
problema da presença do Che ou dos cubanos no Congo, ao menos não por
meio de sua representação diplomática. A opinião do embaixador e de seus
superiores em Moscou era de que, se a decisão da ida do Che ao Congo par-
tira de Fidel, não havia problema. Oleg Daroussenkov e Nikolai Leonov,
assim como outros funcionários soviéticos encarregados na época das
relações com a ilha, afirmam o mesmo. A URSS sabia o que estava aconte-

(*) Essa é a opinião de um estranho personagem, o ex-agente dos Serviços de Infor-


mação da ditadura franquista na Espanha, cujo relato mistura fantasias delirantes com
pequenos grãos de verdade e perspicácia. (Ver Luis M. González-Mata, Cisne, Ias muertes dei
Che Guevara, Barcelona, Argos Vergara, 1980, p. 19.)
cendo, mas não fez nenhuma objeção nem se intrometeu nos enredos
cubanos na África. Sem dúvida, o fato de Fidel Castro mantê-los informa-
dos sobre a operação foi útil, sobretudo depois de Raul Castro ter feito a sua
parte no desagravo a Moscou, assistindo à conferência de partidos comu-
nistas. Já o Che não informou seus planos a ninguém, nem à própria mãe,
dando lugar a uma série de trágicas confusões.
Ao regressar a Havana em março, o argentino se encontrara com Gus-
tavo Roca, que estava a ponto de voltar a Buenos Aires. Pediu-lhe que fosse
o portador de uma carta para sua mãe, às portas da morte devido a um câncer
que a atacava desde os anos 40. A carta, datada em 16 de março, chegou a
Célia em meados de abril. Por sua resposta, enviada a Cuba através de Ricar-
do Rojo e publicada por este em 1968, sabemos que o Che confessou à mãe
sua intenção de renunciar à direção revolucionária, retirar-se para cortar
cana durante um mês e depois dirigir uma fábrica durante cinco anos. Dizia
a Célia que não fosse a Cuba por enquanto e contava-lhe sobre a família, o
nascimento do filho Ernesto, tudo em um tom formal que ela recrimina
amargamente. A resposta de Célia nunca chegou ao Che, e sem dúvida foi
melhor assim, pois não seria fácil responder a suas perguntas sobre a ideia de
fazer "o trabalho de Castellanos e Villegas" (membros de sua escolta) e a pos-
sibilidade de ir à Argélia, ou a Gana, caso não o quisessem em Cuba.
Em meados de maio, o estado de saúde de Célia piorou ainda mais. Ela
pediu a Rojo que ligasse para Havana e falasse com seu primogénito. Alei-
da atendeu e disse que o Che estava bem e em Cuba, mas que era impossí-
vel comunicar-se com ele. Alguns dias depois, Aleida voltou a falar com
Célia, confirmando que Ernesto não podia ser localizado. Nem é preciso
dizer que a comoção na família foi tremenda. Dois dias depois, Célia fale-
ceu. Só muito depois seus filhos saberiam onde se encontrava naqueles dias
o irmão mais velho e por que ele não pôde falar ao telefone com a mãe ago-
nizante. Roberto Guevara, o segundo filho de Célia, só se inteirou da pas-
sagem de Ernesto pelo Congo em fins de 1967, quando viajou a Cuba para
uma entrevista com Fidel depois da execução de seu irmão na Bolívia.51 A
revolução impôs sua lei ao Che até na morte de sua mãe. Os diplomatas
soviéticos conheciam seu paradeiro com mais precisão que a consternada
família em Buenos Aires. •

Desde seu sumiço, em 22 de março, até 5 de outubro de 1965, quando


Fidel Castro leu em público a carta de despedida do Che, proliferaram os
boatos sobre o esconderijo do argentino e o estado de suas relações com Cas-
tro.* Os serviços de informação cubanos contribuíram para a confusão com
uma série de manobras de desinformação: que o Che fora lutar contra os
marines na República Dominicana; que fora visto por um padre no estado
brasileiro do Acre; que estava internado em um sanatório de Cuba; que fora
fuzilado por Castro. A espionagem norte-americana também fez correr algu-
mas versões com o propósito de fazer aflorar a verdade, mas sem sucesso,
exceto, como veremos, no próprio Congo. O profissionalismo dos cubanos
nessa matéria e a obsessão do Che pelo sigilo e pela clandestinidade evi-
taram qualquer vazamento até junho, e mesmo então a CIA demorou a acre-
ditar nos informes de seus enviados.
Em compensação, o crescente distanciamento entre Castro e o Che
tornou-se cada vez mais público e evidente. As embaixadas e os serviços de
informação o captaram com clareza e examinaram com minúcia, embora
tardiamente. O melhor resumo aparece em um memorando da CIA, elabo-
rado em 18 de outubro de 1965, poucos dias depois de Fidel ter revelado a
decisão do Che de ir buscar a revolução em outras paragens." Além de rese-
nhar as divergências anteriores entre o Che, os russos e os comunistas, a
análise norte-americana examinava detalhadamente as discordâncias entre
Fidel Castro e Guevara durante o ano. A ruptura teria começado em 21 de
janeiro, quando o comandante-em-chefe anunciou que na colheita desse
ano os melhores cortadores receberiam diversos prémios, como motocicle-
tas, viagens ao exterior e férias em hotéis cubanos de primeira classe: era o
fim dos incentivos morais. Antes até, em dezembro do ano anterior, o go-
verno já anunciara um programa-piloto de salários definidos por contrato,
participação na produção e distribuição de prémios para os trabalhadores em
geral. Posteriormente, em um discurso de 26 de julho, em Santa Clara, ten-
do ao fundo um imenso retrato do Che, Castro investiu contra os incentivos
morais e a centralização administrativa:
Nem métodos idealistas, que concebam a humanidade inteira guiada disci-
plinadamente pela consciência do dever, porque a realidade da vida não nos

(*) O desaparecimento de Guevara também suscitou dúvidas e críticas de amigos não


cubanos, como mostra a seguinte pergunta, formulada pela revista de esquerda norte-ameri-
cana Monchly Review, editada por Paul Sweezy e Leo Huberman: "Fidel Castro tem cons-
ciência do que está realmente em jogo no caso Guevara ? Percebe que cada dia de demora no
esclarecimento do mistério aumenta a angústia e as dúvidas de revolucionários honestos e a
alegria de seus inimigos?". (Cit. em Léo Sauvage, Lê Cas Guevara, Paris, Éditions La Table
Ronde, 1971, p. 49.)
permite acreditar nisso..., nem aqueles caminhos que buscam acima de tudo
despertar o egoísmo dos homens... Seria absurdo tentarmos fazer com que cada
indivíduo da grande massa de homens que ganha seu pão cortando cana fosse
dar o máximo de si, simplesmente dizendo que ele tem o dever de fazê-lo, inde-
pendente de ganhar mais ou menos."
Em 28 de setembro, Fidel voltou à carga, afirmando em um discurso que
era "partidário da administração e desenvolvimento locais".54 Convém
acrescentar, como último grande marco do distanciamento de Castro, a
composição do Comité Central do recém-fundado Partido Comunista de
Cuba, cujo anúncio, em ls de outubro, ensejou a leitura pública da carta do
Che a Fidel. Era compreensível que o Che não figurasse entre seus membros.
Afinal, em sua carta de despedida, ele havia renunciado à cidadania cubana.
A desculpa, entretanto, não valia para seus colaboradores no Ministério da
Indústria, todos ausentes da cúpula do novo partido. Mais ainda, os únicos
ministros excluídos do gabinete foram Luis Álvarez Rom, o ministro das
Finanças, aliado do Che na disputa com o Banco Nacional, Orlando Bor-
rego, ministro do Açúcar, e Arturo Guzmán, substituto do Che na pasta da
Indústria. Salvador Villaseca, o professor de matemática amigo do Che e ex-
diretor do Banco Nacional, tampouco foi convocado. A equipe económica
do Che fora aniquilada politicamente.
Guevara não ficou de braços cruzados. Respondeu imediatamente,
primeiro em uma entrevista — que ainda hoje não foi incluída em nenhu-
ma edição cubana de suas obras completas — concedida à revista egípcia Ai
Talia e publicada em abril de 1965. E, logo em seguida, naquela que
provavelmente é sua obra maior, Eí socialismo y el hombre en Cuba, um tex-
to enviado a Carlos Quijano (diretor da revista uruguaia Marcha) e publi-
cado originalmente em abril de 1965. Na entrevista ao semanário egípcio,
Guevara ataca duas teses, uma diretamente ligada a Cuba, outra ao confli-
to sino-soviético. A propósito dos incentivos, declara sem rodeios que os
iugoslavos, por exemplo, "deram preferência ao incentivo material" e que
isso deve ser "liquidado"; rejeita também a participação operária na
definição dos salários e a existência de sistemas de prémios e participação
na produção. Diz: "Uma indústria 'automatizada' que distribui seu alto
rendimento exclusivamente entre seus trabalhadores privilegiados nega
recursos ao conjunto da comunidade. Os esforços dos operários dessas
empresas de alta produtividade equivalem aos esforços feitos pelos cam-
poneses em seus lotes. Tais condições criam um grupo privilegiado e for-
talecem os elementos de natureza capitalista"."
Era uma resposta direta'às medidas recém-estabelecidas em Cuba.
Quanto à postura internacional da Iugoslávia, o Crie revelou seus senti-
mentos contraditórios e sua exasperação com o estado do movimento comu-
nista internacional: "Nossas diferenças em relação à experiência iugoslava
concentram-se em dois pontos: em nossa reação ao stalinismo e em nossa
oposição a que a União Soviética nos imponha seus ideais de economia e li-
derança".56 Mesmo que o sentido original das frases possa ter sofrido alguma
distorção nas sucessivas traduções — do espanhol ao árabe, do árabe ao
inglês e do inglês de volta ao espanhol —, as restrições do Che à atitude dos
iugoslavos com relação ao stalinismo têm uma ótica claramente chinesa. Ele
não partilha do virulento anti-stalinismo de Tito; pelo contrário, sua
posição é mais próxima à dos chineses, que vêem no anti-stalinismo de Tito
e de Krushev a marca do revisionismo.
Em El socialismo y el hombre en Cuba, Guevara volta ao assunto do
incentivo moral, ao mesmo tempo que contesta algumas das críticas dirigi-
das a ele:
E muito forte a tentação de seguir a trilha já aberta e batida do interesse mate-
rial, como alavanca propulsora de um desenvolvimento acelerado. Corre-se o
risco de as árvores impedirem a visão da mata. Se nos deixarmos iludir pela
miragem de realizar o socialismo com ajuda das armas cegas que o capitalismo
nos deixou (a mercadoria como célula da economia, a rentabilidade, o inte-
resse material individual como motor etc), poderemos acabar em um beco
sem saída. Para construir o comunismo não basta a base material, é preciso, ao
mesmo tempo, forjar o homem novo. Daí ser tão importante escolher corre-
tamente o instrumento de mobilização das massas. Esse instrumento deve ser
fundamentalmente de ordem moral, sem que por isso se tenha que descartar
uma correta utilização do incentivo material, sobretudo de natureza social.
Como já disse antes, é fácil elevar os incentivos morais nos momentos de
extremo perigo; mas para manter sua vigência é necessário desenvolver uma
consciência na qual os valores ganhem maior importância.'7
Guevara volta a citar os erros cometidos pelos dirigentes cubanos no
passado e reexamina as especificidades cubanas, não necessariamente vin-
culadas a tais erros. A ligação entre a liderança caudilhesca de Fidel Castro
— que o Che exalta — e o "revisionismo" — que condena — simplesmente
não tem lugar em seu ideário ou mecanismo mental. Talvez resida aí uma das
chaves de sua dificuldade em formular uma crítica a um só tempo eficaz e
construtiva do processi/i revolucionário em seu conjunto. Se cotejarmos as
passagens sobre Fidel c- sobre os equívocos cubanos, compreenderemos o
desamparo do Che ao arremeter contra os desvios da ilha, ao mesmo tempo
que glorifica uma de suas causas mais profundas:
Nas grandes concentrações públicas, observa-se algo que parece um diálogo
de dois diapasões, cujas vibrações provocam outras nos interlocutores. Fidel e
a massa começam a vibrar em um diálogo de intensidade crescente, até
alcançarem o clímax em um final abrupto, coroado por nosso grito de luta e de
história. O difícil de entender, para quem não viveu a experiência da re-
volução, é essa estreita unidade dialética entre o indivíduo e a massa [...] Em
nosso país não ocorreu o erro do mecanicismo realista, mas outro, de sinal
inverso. E este ocorreu por não se compreender a necessidade da criação do
homem novo [...] A reação contra o homem do século Xix levou-nos a rein-
cidir no decadentismo do século xx. Não é um erro demasiado grave, mas
devemos superá-lo, sob pena de abrir uma larga brecha para o revisionismo.*
Por último, o Che inclui uma breve mas significativa reflexão sobre sua
própria aventura como revolucionário, a relação entre sua própria imagem
e sua noção do que seja o homem novo. O homem novo é, em certo sentido,
o comunista cubano, o veterano da sierra Maestra e do trabalho voluntário,
da baía dos Porcos e da crise do Caribe, das missões internacionais e da so-
lidariedade. E, em uma palavra, Ernesto Che Guevara. Ele nunca careceu de
capacidade de auto-análise e de uma ideia própria sobre seu destino. Mais
ainda, a fantasia de que teria um destino diferente ocorreu-lhe e obcecou-o
desde a juventude, sob o céu estrelado de Chuquicamata e da Amazónia
peruana. Por isso identifica o homem novo com o dirigente revolucionário,
dando seu próprio exemplo; por isso identifica-se com aquele homem novo
que nunca veio à luz nem na Cuba de ontem, nem na de hoje:
Em nossa ambição de revolucionários, tratamos de caminhar tão depressa
quanto possível, abrindo caminhos... com nosso exemplo [...] Os dirigentes da
revolução têm filhos que aprendem a falar sem mencionar o pai e mulheres que
devem ser parte do sacrifício de sua vida, visando levar a revolução a seu des-
tino. O círculo das amizades corresponde estritamente ao dos companheiros
de revolução. Não há vida fora dela. Nessas condições, é preciso uma grande
dose de humanidade, uma grande dose de sentido de justiça e de verdade [...]
E preciso lutar todos os dias para que esse amor à humanidade viva se trans-
forme [...] em atos que sirvam de exemplo. w
Entretanto, o Che logo se afastaria de suas polémicas marxistas e deter-
minações quase-testamentárias, das intrigas e dos desacertos económicos de
Havana. Já estava outra vez em campanha, atraído pelo mistério africano e
pela excitação do combate. Após alguns incidentes menores e com crés-
cente impaciência, chegou nos últimos dias de abril ao acampamento dos
freedom fighters em Kibamba, onde uma guarda rendeu homenagem aos
assessores recém-chegados. Ali, na margem ocidental do lago Tanganica,
estavam os cubanos Dreke, ou Moja (número 1, em swahili), Martínez
Tamayo, ou M'Biíi (número 2), e o Che, ou Tatu (número 3), que se apre-
senta como médico e tradutor. Permaneceriam sete meses na região, à espera
de uma guerra que demoraria a chegar.
Logo de início, surgiu um dilema: informar ou não a verdadeira identi-
dade de Tatu aos congoleses e às autoridades da Tanzânia. Kabila, o princi-
pal líder da área, preferia que o Che não divulgasse a notícia de sua presença
no Congo. O embaixador cubano em Dar Assalaam não informaria o presi-
dente Julius Nyerere até a partida do argentino, em novembro. Como recor-
da agora, estava submetido a pressões contraditórias. Por um lado, o Che
entrara na Tanzânia com o consentimento das autoridades locais e insistia
que o embaixador informasse o quanto antes sobre sua presença. Por outro,
Havana ordenava-lhe reiteradamente que não revelasse a identidade de
Tatu ao governo anfitrião. Ribalta recorda agora que quase enlouqueceu em
meio a esse fogo cruzado.60
O motivo da indecisão era evidente, e forte. A simples chegada de mais
de cem assessores cubanos já poderia internacionalizar o conflito, mas a
notícia de que Che Guevara os dirigia atrairia tal quantidade de mercenários
sul-africanos e represálias belgas e norte-americanas que neutralizaria rapi-
damente qualquer vantagem resultante da solidariedade cubana. Além do
mais, Kabila permanecia no Cairo, onde uma conferência de apoio à rebe-
lião congolesa formara o Conselho Supremo da Revolução, presidido por
Gaston Soumialot. A ausência deliberada de todos esses dirigentes oferecia
ao Che um excelente pretexto para a decisão de internar-se pelo Congo sem
avisar ninguém: "Para ser franco, eu temia que minha oferta provocasse
reações negativas e que algum dos congoleses, ou o próprio governo amigo
(tanzaniano), pedisse que não me lançasse à empreitada".61
Não demorou muito para que o Che percebesse que boa parte de sua
estadia no Congo se resumiria em esperar: a chegada de Kabila, a recupe-
ração de um acampamento, a autorização para instalar-se em outra colina, o
desembarque de provisões ou de emissários de Havana. Ele se dedicava ao
ofício de médico e ao treinamento da tropa congolesa. Mas, sobretudo, a
esperar. Como lamenta em seu diário, "tínhamos de fazer alguma coisa para
evitar o ócio absoluto... Nosso moral ainda se mantinha elevado, mas já
começavam as murmurações entre os companheiros, que viam os dias pas-
sarem inutilmente"." No início de maio, já haviam chegado todos os
cubanos. Chegara também um lugar-tenente de Kabila, com a orientação de
seu chefe de que se mantivesse em segredo a identidade do Che. Enquanto
isso, Guevara ia conhecendo os mistérios da dawa, a crença dos soldados
congoleses em uma poção com que os mugangas ou xamãs untavam seus cor-
pos. Para eles a dawa possuía uma força mágica, capaz de proteger das balas
inimigas os que acreditassem nela. Guevara compreendeu que, embora a
crença pudesse estimular o valor no combate, também poderia se voltar con-
tra os cubanos, caso muitos nativos perecessem na luta, pois eles tenderiam
a pôr a culpa na falta de fé dos estrangeiros.
O revolucionário errante sofreu quase imediatamente as consequên-
cias políticas e pessoais de sua situação. Contraiu uma terrível febre tropical
que causou um "extraordinário abatimento, tirando-me o ânimo até para
comer". Sua saúde, sempre precária, sofria ainda mais com as adversidades
naturais da região. Para piorar, o chefe interino da luta decidiu dar a ordem
absurda de atacar Albertville, uma importante cidade mineira situada
duzentos quilómetros ao sul do acampamento de Kibamba. Não havia a
menor condição para uma investida dessa ordem, mas tampouco existia um
comando que pudesse impedi-la. Nem Kabila, nem seu lugar-tenente
estavam em condições de comandar, um por estar ausente, o outro por care-
cer de capacidade para tanto. O Che muito menos: ele não era o chefe. Era
natural que sofresse constantes crises de asma e emagrecesse espantosa-
mente durante a jornada africana. Estava no próprio reino da incerteza,
como bem descreveu Oscar Fernández Mell, seu companheiro de armas em
Santa Clara, enviado por Fidel para ajudá-lo: "Ele não estava ali como chefe
nem como nada. Era obrigado a fazer uma das coisas que mais detestava:
mandar nos outros, sem que ele próprio pudesse agir".*
Em fins de março, Osmany Cienfuegos chegou, de visita, trazendo a
notícia de que Célia estava à beira da morte em Buenos Aires. A notícia
deprimiu Guevara ainda mais. Seu estado de ânimo transparece no resumo
mensal registrado no diário:
O maior defeito dos congoleses é que não sabem atirar... A disciplina aqui é
péssima, mas tem-se a impressão de que melhora no front [...] Hoje podemos
dizer que a aparente disciplina nas frentes de combate era falsa... A principal

(*) Oscar Fernández Mell, op. cit. Segundo algumas versões, o general Fernández Mell,
na época vice-ministro da Saúde, foi enviado ao Congo como castigo, devido a um escânda-
Io envolvendo sua esposa, Oladys Fuentes, uma atriz de novelas. (Ver Dariel Alarcón
Ramírez, Benigno, entrevista, op. cit.)
característica do exército Popular de Libertação era ser parasita: nao traba-
lhava, não treinava, não combatia, exigia da população mantimentos e tra-
balho, às vezes extremamente duro. É claro que um exército desse tipo só podia
se justificar caso lutasse ao menos de vez em quando, como fazia o inimigo...
Mas nem sequer isso ele fazia... a revolução congolesa estava irremediavel-
mente condenada ao fracasso, devido a suas próprias debilidades internas.'1'
A catástrofe não acontecia apenas em Kibamba, mas em toda a região.
O resultado das missões exploratórias que o Che enviara a diversos povoa-
dos — Baraka, Lulimba, Katenga — foi desanimador: bebedeiras, esbanja-
mento, excessos e preguiça, nenhuma disposição de combate ou resistência.
Ao mesmo tempo, havia armas de sobra: continuavam chegando da URSS e
da China, via Tanzânia. Em junho, Chu En-Lai visitou Nyerere em Dar
Assalaam. Consolidou-se o apoio chinês à luta no Congo e surgiu um novo
pretexto para que Kabila permanecesse longe da zona de combate. Por esses
dias, seu lugar-tenente morre afogado, deixando o desamparado exército
sem comando. O tempo passava, sem nenhuma atividade: dois meses
depois, "ainda não tínhamos feito nada". O único objetivo militar que podia
ser atacado ainda era Albertville, um alvo muito superior à força dos re-
volucionários congoleses e seus conselheiros cubanos. Na verdade, o Che
entrara numa ratoeira: quando os mercenários sul-africanos de Mike Hoare
terminassem suas operações na fronteira com o Sudão e Uganda e se dirigis-
sem com sua pequena força aérea para o sul, não haveria como resistir.
Em parte para fazer alguma coisa, em parte para evitar que isso aconte-
cesse, o Che e Kabila combinaram por carta um ataque ao povoado de Front de
Force, ou Bendera, situado a uns quarenta quilómetros da base cubana, no
caminho para uma hidrelétrica próxima a Albertville. Na realidade, o Che
teria preferido uma ação limitada ao povoado de Katenga, menor e mais
acessível. Kabila insistiu em Bendera, apesar do risco de alertar as forças de
Tshombé para a presença cubana. O Che já ansiava por envolver-se direta-
mente nas operações, mas desistiu, por não contar com uma autorização expres-
sa de Kabila. Dreke comandou os quase quarenta soldados cubanos e 160 sol-
dados ruandeses que participaram da tentativa de assalto a Front de Force.
O ataque, realizado nos últimos dias de junho, redundou em um desas-
tre militar e, pior ainda, revelou a presença cubana. Quatro soldados natu-
rais da ilha morreram nos combates, e seus cadáveres ficaram em poder dos
mercenários. Os cubanos desrespeitaram a ordem terminante do Che de
despojar-se de todos os pertences e documentos pessoais antes de entrar em
combate. Os sul-africanos, ao examinar os cadáveres, logo descobriram a
nacionalidade dos atacantes.* Imediatamente informaram os assessores
norte-americanos no Congo. Foi assim que Lawrence Devlin, chefe local da
CIA, soube que os rebeldes da região de Albertville recebiam apoio
cubano. ** A notícia espalhou-se rapidamente. Duas semanas depois, foi pu-
blicada pela imprensa de Dar Assalaam, e assim caía o sumário disfarce da
missão. Em sua síntese do mês de junho, o Che escreveu: "E o balanço mais
pobre até o momento". Kabila continuava sem dar sinais de vida, mas opu-
nha-se toda vez que o Che sugeria que se informasse sua presença pelo menos
ao governo da Tanzânia.
Não é preciso dizer que a derrota de Front de Force abateu o moral dos
expedicionários cubanos. Eles constataram com amargura e ressentimento
que os congoleses se negavam a combater, jogavam fora os fuzis e fugiam ou
disparavam para o ar. Vários membros da tropa manifestaram formalmente
o desejo de voltar para Cuba. O caso que mais abalou o Che foi o de Sitaini,
ou El Chino, um de seus ajudantes desde os combates da sierra Maestra, que
alegou não ter sido informado sobre a duração da guerra (de três a cinco anos,
segundo o Che). Como se tratava de um membro de sua escolta pessoal,
Guevara não podia conceder-lhe a baixa; mas forçá-lo a permanecer foi
extremamente prejudicial. Pela primeira vez, Guevara sofreu os efeitos de
sua intransigência na própria carne e em condições de guerra. Os outros sim-
plesmente não conseguiam manter-se à altura de suas exigências, por care-
cerem da vontade, da mística e da visão para enfrentar adversidades tão
grandes como as do Congo dos anos 60.
Em 11 de julho, Guevara finalmente reuniu-se com Kabila. A per-
manência do africano durou poucos dias, pois ele em seguida regressou a Dar
Assalaam, a pretexto de encontrar-se com Soumialot, então de passagem
pela capital tanzaniana. A nova partida de Kabila acabou de vez com a tropa
congolesa. Com toda a razão, seus soldados não concebiam que seus chefes,
além de não tomarem parte dos combates, sequer permanecessem na área

(*)Mike Hoare relata em suas memórias que encontraram o passaporte e o minucioso


diário de um cubano morto em combate. O passaporte registrava o itinerário percorrido até
a África; o diário se queixava de que "os congoleses eram preguiçosos demais, até para trans-
portar o canhão de 76 milímetros e seus obuses". (Ver Richard Gott, "The Year Che Went
Missing", "The Guardian Weekend", 30/11/96, p. 30.)
(**) Somente em 6 de julho a embaixada dos Estados Unidos em Léopoldville infor-
mará Washington sobre a descoberta de cadáveres de soldados cubanos, e apenas em 21 de
setembro fornecerá uma estimativa final do número de cubanos destacados no Congo: 160.
brron por quase quarenta (Ver Godley/AmEmbassy/Léopoldville do Soe State (secreto), 21
de setembro, NSF, Country File, Congo, vol. XI, #7 cable, LU] Library.)
para comandá-los. Também aumentou a insatisfação entre os cubanos. Dois
médicos e vários membros do Partido Comunista pediram para retirar-se da
luta. O Che reagiu com violência — menor que no caso anterior, segundo
ele próprio. Sabia que, se não fizesse alguma coisa, toda a expedição se veria
ameaçada. Decidiu partir para o front, mas esbarrou na imediata resistência
dos chefes congoleses. A razão, segundo o Che, era óbvia: eles se desmo-
ralizariam aos olhos de seus homens quando estes percebessem que o líder
cubano se aventurava no front, enquanto seus próprios comandantes não se
atreviam a fazê-lo.
Em fins de julho, a situação melhora um pouco: uma emboscada com a
participação de 25 cubanos e 25 ruandeses é bem-sucedida, mas alguns
cubanos ainda insistem em voltar para casa. O Che descreve sua própria
situação com ironia e tristeza: "continuo como um bolsista".64 Por isso, em
16 de agosto, j á sem esperar a permissão de Kabila, lançou-se à frente de com-
bate, chegando na mesma noite à zona de Front de Force, exausto e sentin-
do-se "como um delinquente". Ali pôde verificar a grande quantidade de
armas disponíveis e a completa dispersão das forças rebeldes pela estrada
para Albertville. Já se sentia mais perto dos acontecimentos: logo preparou
uma emboscada e se envolveu diretamente nos primeiros tiroteios. A adre-
nalina começava a fluir. Seu resumo de agosto é o mais otimista até então:
Para mim, a bolsa acabou, o que significa um passo à frente. No balanço geral,
este mês pode ser considerado muito positivo. Além da ação de Front de Force,
pode-se notar uma melhora nos homens. Meus próximos passos serão visitar
Lambo, em Lunimba, e fazer uma visita a Kabambare, para convencê-los da
necessidade de tomar Lumimba e seguir adiante. Mas para tudo isso é preciso
que esta emboscada e as próximas ações tenham bom resultado.65
As desventuras do Che no Congo não passavam despercebidas em
Havana, embora as informações fossem fragmentadas e coloridas pelo ingé-
nuo otimismo das fontes. Após a derrota do primeiro ataque a Front de Force,
o Che enviou uma carta a Fidel através de António Machado Ventura, médi-
co e alto funcionário que estivera no Congo mais ou menos de visita. Quan-
do a carta chegou a Havana, Castro convocou Emilio Aragonês e o general
Aldo Margolles para uma reunião na rua 11 com Osmany Cienfuegos e
Manuel Pifíeiro. Segundo Aragonês, até o momento do encontro, Pifieiro
não tinha interferido na aventura do Che na África. Tanto que, meses antes,
fora procurá-lo em seu gabinete na Secretaria de Organização do partido,
acompanhado de um jornalista mexicano da revista Siempre, perguntando
pelo Che, sem saber que ele estava no Congo fazia mais de um mês.
Quando Aragonês chegou, Fidel disse-lhe: "Leia isto". Era a carta do
Che, que descrevia com todas as letras a terrível confusão em que se
metera. Narrava o desastre de Front de Force, em cujos combates os
africanos tinham fugido e o Che perdera vários oficiais. Contava, ainda,
que alguns soldados africanos em debandada tinham assaltado um cami-
nhão de bebidas. Segundo Aragonês, Fidel não se enganava: percebia que
a carta não vinha de alguém arrependido ou desesperado, e sim de um
comandante lúcido e profissional. Mas outros acharam que não passava do
lamento de um pessimista. Pineiro, por exemplo, depois de ler o texto,
exclamou: "Isto aqui é coisa de cagão". Depois de refletir, Fidel decidiu
mandar Aragonês e Oscar Fernández Mell para a África. Não os enviou
para resgatar o Che, e sim para ajudá-lo. Só em caso de desespero deviam
trazê-lo de volta para Cuba.66
O médico Fernández Mell guarda uma lembrança um pouco diferente
do episódio. Quando Manuel Pineiro foi procurá-lo na praia onde passava
suas férias, ele encarou aquilo como uma chance de combater ao lado de seu
amigo e ex-chefe. Mas ninguém sequer insinuou que a situação no Congo
fosse tão alarmante:
Quando falei com Pineiro, e ele me disse o contrário: que tudo ia às mil ma-
ravilhas, que a campanha era um completo sucesso, que o combate de Bendera
tinha sido uma vitória total e estava tudo bem. Foi o que me disseram, e foi com
essa impressão que eu embarquei para a África, porque Aragonês também não
me disse nada, nem comentou nada sobre a carta do Che. Eu nem sabia da
existência dessa carta.67
Entre os últimos dias de agosto e 21 de novembro, quando os cubanos
finalmente deixaram o Congo, Aragonês e Fernández Mell estiveram todo
o tempo junto do Che. De acordo com suas lembranças, o argentino não os
recebeu com muita alegria, pois achou que o reforço causaria mais proble-
mas ainda na missão congolesa.* Os dois se surpreenderam ao ver que "o
Che era mantido praticamente preso na base; não deixavam que desse um
passo, por mais que pedisse permissão".6" Aos poucos, o Che foi perdendo as
estribeiras. Eram cada vez mais frequentes suas explosões de ira contra os
congoleses e sobretudo contra os cubanos que "fogem da raia", ao mesmo
tempo que exigia cotas cada vez maiores de sacrifício e esforço, tanto de si

(*) "Ao saber quem eram os companheiros que vinham de Cuba, tive medo de que
trouxessem alguma mensagem obrigando-me a voltar." (Ernesto Che Guevara, Pasajes, op.
cit.,pp. 66-7.)
próprio como dos demais. Quando decidia punir algum subordinado, recor-
ria ao mais severo de todos os castigos: deixar o culpado sem comida por um,
dois, três dias. Dizia que era a pena mais eficaz em uma guerrilha.
Os recém-chegados colaboradores se espantaram quando, por exem-
plo, Fernández Mell, como chefe do estado-maior da expedição, pediu ao
Che que solicitasse a Kigoma botas para a tropa cubana e recebeu esta répli-
ca lapidar: "Os negros andam descalços, os cubanos têm de andar igual".
Quando observou que deviam solicitar vitaminas e sais minerais para me-
lhorar a dieta dos cubanos, a resposta foi: "Desde quando os povos subde-
senvolvidos tomam vitaminas?". O médico cubano protestou ante a obsti-
nação do Che, e em troca recebeu uma saraivada de críticas e comentários
sarcásticos. Entretanto, pôde notar que a tropa já tinha um conceito nega-
tivo de seu líder e estava disposta a correr riscos consideráveis para salvar-se
da catástrofe. Certa noite, à luz das fogueiras, um dos combatentes cubanos
entregou a Aragonês um bilhete que dizia: "Companheiro, você é membro
do secretariado do partido, assim como o Che. O Che está obcecado. Você
tem de tirá-lo daqui".69 O grau de insubordinação era intolerável para uma
guerrilha, mas o Che se mantinha isolado e fechado.
Os reforços cubanos também confirmaram que a já precária situação
militar se deteriorava rapidamente, com o governo congolês e os sul-
africanos revidando a limitada ofensiva cubana de agosto. Com efeito,
como relatava o chefe do estado-maior belga da OPS-SUD — a missão militar
belga em Albertville —, uma investigação mais minuciosa junto aos pri-
sioneiros confirmara, em setembro, que os rebeldes tinham se fortalecido e
que "a certeza da presença de numerosos cubanos em solo congolês agrava-
va a ameaça rebelde às cidades de Albertville e Kongolo".* A partir dessas
conclusões, os belgas decidiram retomar a iniciativa dos combates e passar
à ofensiva o quanto antes. Encabeçados pelo 59 Batalhão de Comandos sul-
africano, dirigido por Mike Hoare, com um total de 350 homens, em dois
meses cercaram os rebeldes em sua base de Kibamba. Tiveram mais traba-

(*) Major Bem Hardenne, "Les Opération Anti-Guerilla dans PEst du Congo en 1965-
1966", informe apresentado em fevereiro de 1969, mimeo., pp. 19-20. Tal como os belgas, a
CIA e o Departamento de Estado julgavam relevante a presença dos cubanos: "Embora o
número de cubanos tenha sido exagerado, não surpreende que sua presença preocupe a PPS-
SUD (os belgas). Mesmo um pequeno número de 'assessores', em papéis de comando nos com-
bates, pode dar aos rebeldes a espinha dorsal de que precisam para resistir ao exército con-
golês e se converter em um verdadeiro problema". (Godley/AmEmbassy/Léopoldville to
SecState (secreto), 21/9/65, NSF, Country File, Congo, vol. XI, # 7, LRJ Library.)
lho que no resto do Congo. Os guerrilheiros e os soldados ruandeses
começavam a defender-se com maior afinco. Por outro lado, como ressaltou
o já citado comandante belga, a tropa oficialista padecia dos mesmos vícios
de combate dos rebeldes: assim que começavam os tiroteios, jogavam as
armas fora, nunca faziam pontaria, fugiam com frequência e acreditavam
no mito da invencibilidade dos rebeldes. Apesar de tudo isso, os dois bata-
lhões — o dos mercenários sul-africanos e o do exército congolês a serviço
dos belgas — avançavam sempre mais rumo ao lago. Não capturaram seus
adversários, mas obrigaram-nos a retirar-se do Congo para a Tanzânia.
Como temia Guevara, a confirmação da presença de cubanos preocupou
as autoridades congolesas e a CIA. Disse o major Hardenne: "Os sul-africanos
informaram que as unidades rebeldes mostram disciplina, agressividade e se
deslocam no terreno como tropas bem treinadas. Não localizaram nenhum
cubano, mas estão certos de sua presença, pois várias mensagens em espanhol
foram interceptadas pelos rádios do 5S Batalhão de Comandos".70
Na batalha de Baraka, no final de outubro — na qual tombaram centenas
de rebeldes —, os sul-africanos avistaram vários cubanos brancos no comando
dos insurgentes, mas não conseguiram aprisionar nenhum. Os agentes locais da
CIA, por sua vez, estavam convencidos de que Tatu era Che Guevara, embora
nunca tenham conseguido convencer sua direção nos Estados Unidos. O
primeiro a suspeitar foi Lawrence Devlin, o chefe local da agência, que anos
mais tarde seria apontado como o mandante do assassinato de Patrice Lumum-
ba no início de 1961. Ele mostrou fotos do Che a doze prisioneiros rebeldes que
afirmavam ter conversado com Tatu em Kibamba e mais tarde em Bendera. Em
algumas, Guevara usava bigode, em outras, barba e em outras, ainda, tinha o
rosto limpo. Onze dos doze prisioneiros afirmaram que o homem das fotos era
Tatu, o que deu à suspeita um alto grau de certeza.71 Pouco depois, analisando os
diários dos cubanos mortos em combate, Devlin considerou absolutamente
certa a presença de Guevara no Congo, mas nunca lhe deram ouvidos na sede
da CIA em Langley, Virgínia.72 Como especula Fernández Mell, talvez não
importasse aos norte-americanos se o Che estava ou não no Congo. * Ou então,

(*) Em um informe secreto sobre a situação no Congo, datado de 26 de agosto, a CIA


resumia: "Embora os rebeldes ainda controlem a faixa de Fizi, no lago Tanganica, estão quie-
tos no resto do país [...] Milhares de rebeldes se entrincheiraram na faixa de Fizi. Estão bem
armados, possivelmente acompanhados por alguns assessores cubanos e chineses. Parecem
melhor treinados e mais dispostos à luta que seus colegas a noroeste". (Central Intelligence
Agency, Intelligence Memorandum, "Situation in the Congo" (secreto) 26/8/65, NSF,
Country File, Congo, vol. XI, # 106 memo, LBJ Library.)
como sugere o médico militar, a não-divulgação da sua presença no Congo
impediu que "o Che pudesse atuar como o verdadeiro chefe guerrilheiro que
era, sem tanto medo daquele bosta do Kabila e do governo da Tanzânia. Talvez
essa falta de informação tenha influenciado para que o Che não tenha mostra-
do na África o desempenho do grande guerrilheiro e grande político que eu
conheci".7'
Gustavo Villoldo, um dos ex-combatentes cubanos da baía dos Porcos
enviados ao Congo pela CIA como reforço às tropas de Tshombé, evoca com
carinho a oportunidade de combater contra o Che na África, mas lamenta
amargamente que o grupo de assessores cubanos tenha voltado a Cuba com
vida. Os cubanos anticastristas — todos brancos, segundo Lawrence Devlin
— queriam aniquilar os cubanos castristas — todos negros, exceto o Che,
Papi, Benigno, Fernández Mell e Aragonês — que, no final, só estavam
procurando a saída da ratoeira. Com exceção de algumas metralhadas aéreas
na estrada para Albertville, os dois grupos de cubanos nunca se enfrentaram
diretamente. O encontro poderia ter ocorrido na noite de 21 de novembro,
mas não aconteceu. Não é impossível que o Che e os cubanos que o acom-
panharam no delírio africano devessem suas vidas ao ceticismo dos analis-
tas da CIA nos Estados Unidos. Como veremos, a fuga pelo lago nos últimos
dias de novembro ainda encerra vários enigmas por resolver.
O Che passou os meses de setembro e outubro percorrendo a região.
Visitou Fizi, Baraka, Lilamba e outros povoados. Em todos eles, os chefes
locais e as tropas lhe pediram dinheiro e soldados cubanos. Ao perambular
pelas trilhas que levavam de um povoado a outro, por várias ocasiões o Che
sofreu ataques tanto da aviação mercenária como da anticastrista, sem nunca
correr verdadeiro perigo. Debatia-se na dúvida entre dispersar sua pequena
tropa — na verdade, como ele mesmo disse, nunca contou com mais de
quarenta homens em condições de combate, devido às doenças e à insubor-
dinação —, para que reestruturasse os grupos rebeldes, ou concentrá-la em
uma única força, eficaz e poderosa. Mas, em fins de setembro, tudo veio
abaixo. O próprio Che se recriminaria por sua cegueira: "Nossa situação era
cada vez mais difícil, e o projeto de um exército, com todos seus homens, suas
armas e munições, desmanchava em nossas mãos. E eu, ainda tomado por
não sei que cego otimismo, não era capaz de enxergar isso f...]".74 Uma expli-
cação para essa fé infundada era que ninguém se atrevia a dizer-lhe a ver-
dade: "Ninguém nunca o encarou".75 Mesmo os cubanos de alta patente
temiam que o comandante interpretasse qualquer dúvida, qualquer ques-
tionamento como uma demonstração de covardia. Por outro lado, o Che
sempre raciocinou em termos de analogias com a sierra Maestra: esperava
que algum dia a população congolesa reagisse, mas isso nunca aconteceu.*
No início de outubro, José António Machado Ventura, o ministro
cubano da Saúde, voltou ao Congo. Trazia notícias da apoteótica visita de
Gaston Soumialot a Havana e uma mensagem de Fidel Castro na qual,
segundo o Che, o caudilho cubano aconselhava-o a "não me desesperar;
dizia que lembrasse a primeira fase da luta e recordasse que esses inconve-
nientes sempre aconteciam, assinalando que os homens eram bons".76 Isso
reforçava no Che a suspeita e a revolta de ser tachado de pessimista em
Cuba, quando, na realidade, ele chegava a ocultar as adversidades que
enfrentava. Em 5 de outubro, enviou a Fidel Castro uma longa carta cujos
parágrafos principais convém reproduzir na íntegra:
Recebi sua carta, que provocou em mim sentimentos contraditórios, já que em
nome do internacionalismo proletário cometemos erros que podem custar
muito caro. Também me preocupa que, seja por minha falta de seriedade ao
escrever ou porque você não me tenha compreendido plenamente, possa pen-
sar que padeço da terrível doença do pessimismo sem causa. Quando seu pre-
sente de grego (Aragonês) chegou, disse-me que uma de minhas cartas tinha
passado a impressão de um gladiador condenado. O ministro (Machado Ven-
tura) agora vem confirmar sua opinião, ao entregar-me sua mensagem
otimista. Você poderá conversar longamente com o portador, e ele lhe trans-
mitirá suas impressões em primeira mão [...] Direi apenas que aqui, segundo
meus colaboradores, perdi minha fama de ser objetivo, e que estou mantendo
um otimismo sem bases reais. Posso assegurar que, se não fosse por mim, este
belo sonho já estaria completamente destruído em meio à catástrofe geral. Em
minhas cartas anteriores, pedia-lhes que não mandassem muita gente, mas
quadros, dizia-lhes que aqui praticamente não faltam armas, exceto algumas
especiais. Ao contrário, sobram homens armados, mas faltam soldados. Aler-
tava muito especialmente sobre a necessidade de só dar dinheiro aos poucos e
depois de muita insistência. Nenhuma dessas coisas foi levada em conta.
Arquitetaram-se planos fantásticos que nos expuseram ao risco de descrédito
internacional e podem colocar-me em situação muito difícil [...] Esqueçam o
envio de homens para dirigirem unidades fantasmas. Preparem até cem
quadros qualificados, mas não apenas negros [...] Tratem com muito tato a
questão das lanchas (não esqueçam que a Tanzânia é um país independente e

(*) Emílio Aragonês, op. cit. Aragonês até hoje se pergunta como o Che pôde ter sido
tão cego: "Eu não sei se ele falava por acreditar ou porque não queria ir embora. Não queria
que aquilo se desmantelasse, sei lá. Mas é muito difícil que um homem tão inteligente como
ele acreditasse naquilo".
é preciso jogar limpo com ela). Mandem depressa os mecânicos e um homem
que saiba navegar, para cruzar o lago com relativa segurança [...] Não reinci-
dam no erro de soltar dinheiro [...] Confiem um pouco em meu critério e não
julguem pelas aparências. Apertem os encarregados de fornecer informações
confiáveis para que deixem de apresentar imagens utópicas, que nada têm a
ver com a realidade. Procurei aqui ser claro e objetivo, sintético e realista. Vão
acreditar em mim?.77
No final, o Che se refere a um problema que iria atormentá-lo até o fim
de seus dias. Desde meados do ano, a responsabilidade por seu acompa-
nhamento, apoio, comunicação e logística passara para as mãos de Manuel
Pineiro, ou seja, do Vice-Ministério do Interior e sua chamada "Seção de
Libertação". Com Aragonês fora de Cuba, a tarefa deixou de ser do partido.
Osmany Cienfuegos viajava cada vez mais e, portanto, carecia do aparato
necessário para realizar esse trabalho. Desde o início de agosto, chegaram a
Dar Assalaam dois funcionários de Pineiro: Ulises Estrada, responsável pela
África (de origem africana, seria embaixador de Cuba na Jamaica em mea-
dos dos anos 70, sendo expulso por irresponsabilidade e ingerência indevi-
da), e um oficial subalterno chamado Rafael Padilla. E a eles que o Che se
refere quando aconselha Castro a desconfiar das informações procedentes
da Tanzânia. Conhecendo há anos a equipe de Pineiro, depois reagrupada
no Departamento do Partido Comunista para a América, sabia que em meio
a suas muitas virtudes destacavam-se dois enormes defeitos.
Quem se dedica a exportar a revolução tem de acreditar nela. Quem
constantemente solicita dinheiro, armas, apoio moral e diplomático para
peripécias revolucionárias no exterior não pode agir como uma ave de mau
agouro. Pineiro e seus colaboradores sempre foram os mais empenhados nas
lutas da América Latina e da África. Seu entusiasmo e sua fé nunca fraque-
jaram. Mas a contrapartida inevitável desse fanatismo eram informes
ilusórios, ingénuos ou simplesmente maquiados sobre o estado real de cada
operação. A tendência ao exagero e a menosprezar os obstáculos, a inca-
pacidade de avaliar a correlação de forças com isenção são uma constante no
trabalho do chamado Ministério da Revolução. O Che sofreu as conse-
quências das ilusões do aparato. Na África, não chegaram a ser fatais; na
Bolívia, sim.
O segundo defeito dos serviços cubanos dedicados ao fomento de insur-
reições pelo mundo foi a imperícia, inevitável em uma revolução tão recente
e disposta a tudo, mas carente de quadros adequados para buscar seus fins. O
encarregado em Havana — que resolvia as questões do Congo, Bolívia, El
Salvador ou Nicarágua — dependia do observador no terreno. Pineiro
apoiava-se em Estrada e Padilla; Fidel, em Pineiro. As informações proce-
dentes das frentes de combate mostraram-se desastrosas, e Pineiro, Raul e
Fidel Castro tiraram delas conclusões totalmente falsas. Por isso o Che pedia
que não levassem em conta os informes provenientes de Dar Assalaam; por
isso desembarcaria na Bolívia, um ano mais tarde, sem a mais remota possi-
bilidade de êxito.
Além do ânimo abalado pelas divergências internas da tropa cubana e
pelos reveses da luta, também a saúde do Che se deteriorava dia a dia. Foi
vítima de uma terrível diarreia, provavelmente uma disenteria. Já não sobra-
va muito de seu humor e resistência. O abatimento se refletia no trato com
os congoleses e os cubanos, até os mais próximos:
Seu estado de ânimo estava péssimo. Acho que por isso as crises de asma eram
cada vez mais frequentes. Teve inclusive uma diarreia, que durou quase dois
meses, junto com a asma que o maltratava sem parar. Estava cada dia mais
magro e mais mal-humorado. Não que nos tratasse mal, mas ficava o tempo
todo sozinho, com seu livro, só lendo, sem aquela disposição. Não se juntava
conosco como no início. Aquele não era o Che que estávamos acostumados a
ver. Todo mundo perguntava: Que é que há com o Che ? Não sei. Teve um que
foi perguntar e recebeu uma resposta atravessada. Era o comentário que cir-
culava entre nós.78
Como se não bastasse, entre 6 e 10 de outubro chegava à tropa cubana
uma notícia que caiu como uma verdadeira bomba: em Havana, Fidel Cas-
tro lera em público a carta de despedida do Che Guevara. Era o famoso
escrito em que o Che se despede de Cuba e de Fidel, abrindo mão de seus car-
gos, seus títulos, da cidadania cubana, em suma, onde renuncia ao poder e
inicia sua caminhada rumo à crucificação. Na carta, Che Guevara recapi-
tula a história de seus anos na ilha e assume inteira responsabilidade por seus
atos, fossem quais fossem. O objetivo da leitura pública desse texto era
óbvio: ao anunciar-se a composição do Comité Central do Partido Comu-
nista, ninguém entenderia a ausência injustificada do Che. Além disso, os
boatos sobre seu paradeiro e destino se multiplicavam dia após dia em todo
o mundo. A pressão era insuportável.* Á margem da beleza do texto —
provavelmente o mais bem escrito de todos os que Guevara deixou —, sua

(*) "A certa altura, tornou-se inevitável a divulgação da carta, pois todos aqueles
tumores eram muito prejudiciais sem uma resposta, uma satisfação para a opinião pública
internacional. Não restava nenhuma alternativa a não ser divulgar a carta." (Fidel Castro,
cit. emGianni Mina, LJn encuentro, op. cit., p. 327.)
divulgação teve um fortíssimo efeito que repercutiu em todo o mundo, mas
sobretudo no pequeno círculo de combalidos cubanos acuados no Congo.
As lembranças de Aragonês e Fernández Mell apresentam duas versões
difrentes do modo como o Che soube da leitura pública de sua carta. O
primeiro jura que foi através de uma emissão da Rádio Pequim; o segundo,
que Drake contou-lhe depois de ter recebido um pacote de cartas e revistas
de Havana. Em todo caso, os dois testemunhos coincidem sobre a perplexi-
dade e resignação do Che ao inteirar-se da leitura de Fidel. Nas observações
pessoais que aparecem no final de seu diário, Guevara indica os estragos que
a notícia causou na tropa. Fez com que "os companheiros vissem em mim um
estrangeiro entre cubanos, algo que só me acontecera no início da luta na
sierra Maestra. Naquele momento, o que estava chegando; agora, o que esta-
va de partida. Deixávamos de ter muitas coisas em comum... Eu me separa-
va dos combatentes".79 Na verdade, a consequência mais grave da divul-
gação da carta não era o afrouxamento dos laços com os soldados cubanos.
Aquilo na verdade vinha queimar os navios do Che. Dada sua maneira de
ser, a divulgação pública da carta liquidava de vez a opção de voltar a Cuba,
mesmo que por pouco tempo. A ideia de uma mentira pública parecia-lhe
odiosa e inadmissível: depois de anunciar sua partida, não podia mais voltar.
A isto se deve sem dúvida sua violenta reação. Benigno, uma testemunha
direta, recorda um episódio particularmente dramático:
Quando Dreke chega e comunica que houve em Cuba um ato público em que
Fidel leu a carta, o Che estava sentado num tronco [...] Estava com febre, com
diarreia e em plena crise de asma. Parou e disse: "Repita isso, repita. Como é ?".
Então Dreke ficou um pouco assustado e disse: "Calma, Tatu. Veja, foi assim
que me contaram". Começa então a explicar. Aí o Che começa a andar de um
lado para o outro, resmungando: "Bando de bostas", dizia. "São uns imbecis,
uns idiotas." A gente foi se afastando, porque quando ele se enfurecia a melhor
coisa era deixar a fera solta, nem chegar perto. Nessas horas todo mundo que-
ria distância, porque sabia como era quando ele se enfurecia.80*
Os problemas se multiplicavam e as soluções pareciam cada vez mais
remotas. Até o que poderia encher o coração do Che de alegria e saudade —
a primeira e única participação em um combate no Congo — resultou em
desastre. Em 24 de outubro, houve um ataque ao acampamento, onde se

(*) Dariel Alarcón Ramírez, Benigno, op. cit. Em outras entrevistas e em seu próprio
livro, Benigno deu a mesma versão, mas com outras circunstâncias. De acordo com esses
relatos, o Che teria convocado vários de seus colaboradores para escutar o discurso de Fi-
del pelo rádio.
construíra um depósito para pólvora, morteiros, rádios e outros equipamen-
tos. O Che vacilou entre a retirada e a resistência, optando pela segunda.
Mesmo assim, os congoleses fugiram em debandada e, depois de resistir por
algumas horas, o próprio Che acaba ordenando a retirada. Perdeu-se o paiol,
o equipamento e a posição. Os congoleses desempenharam novamente um
papel lamentável. O Che conclui em seu diário: "Pessoalmente eu estava
com o moral terrivelmente baixo. Sentia-me culpado por aquele desastre,
por falta de previsão e firmeza".81 Talvez o Che tenha chegado então à mes-
ma conclusão do encarregado da África no Conselho de Segurança
Nacional em Washington, que informou a seu chefe, McGeorge Bundy, em
29 de outubro de 1965: "A guerra no Congo provavelmente terminou".82
A partir daí, o relacionamento de Guevara com a tropa cubana se
deteriorou por completo. Ninguém acreditava na perspectiva de vitória.
Cada vez mais homens (a metade deles, pelos cálculos do Che) voltariam a
Cuba se pudessem. As queixas se multiplicavam. Havia quem perguntasse:
Se é impossível exportar a revolução e os congoleses se recusam a lutar, o
que estamos fazendo aqui? Aragonês chegou a lembrar ao Che que, por ser
cubano há mais tempo, sabia que os comentários da tropa se voltavam cada
vez mais contra os superiores. Como ele recorda, as orientações de Guevara
tocavam as raias do absurdo. Exigia que se tomassem alimentos do inimigo,
mas o inimigo não tinha alimentos, nem havia inimigo. "Então, comíamos
mandioca sem sal." A revolta entre os soldados cubanos aumentava ao ver
que os congoleses se negavam a carregar o equipamento e os mantimentos,
gritando-lhes que não eram caminhões nem cubanos para andar carregan-
do quilos de material. Pior ainda: a tropa rebelde exigia dos cubanos uma
atenção extra. Já no fim da campanha no Congo, em um dos acampamen-
tos fora da base de Kibamba, enquanto o Che lia um de seus livros de sem-
pre, ouviu-se o eco de um bombardeio. Erguendo levemente os olhos, o Che
instruiu Fernández Mell: "Mande pôr um cubano na porta de cada cabana,
para que os congoleses não saiam em disparada", e voltou a mergulhar na
leitura. Minutos depois, acontecia o ataque das hostes de Mobutu. Os
cubanos não conseguiam ver por qual das duas vias de acesso, e de fuga,
avançavam os mercenários e congoleses oficialistas. Nem o Che sabia por
onde bater em retirada. Quando os bombardeiros e morteiros já forçavam a
movimentação, ele decidiu: "Vamos pelo caminho de baixo. Tomara que
eles estejam vindo pelo outro".S! Aquela altura, tudo se resumia a um
"tomara".
A partir de outubro, quatro fatores vieram contribuir para a retirada
final das tropas cubanas. A situação piorava à medida que os mercenários e
os oficialistas congoleses avançavam rumo ao lago, tomando os povoados
até então em poder dos rebeldes. No balanço do mês de outubro, o último
escrito no Congo, o Che escreveu, sem meias-palavras: "Mês de desastre
total. À vergonhosa derrota em Baraka, Fizi e Lubonja [...] soma-se [...] uma
total desmoralização dos congoleses [...] Os cubanos não estão muito me-
lhor, desde Tembo e Siki (Aragonês e Fernández Mell) até os soldados".84
Sendo assim, mesmo que não tivesse ocorrido mais nada, a aventura de Gue-
vara no Congo chegara ao fim: ou ele escapava, ou seria capturado, ou se
entregaria a uma luta suicida às margens do Tanganica. Os mercenários
avançavam pelo norte e pelo sul, cercando os cubanos entre as montanhas,
a oeste, e o lago, a leste. Porém, dois outros fatores ajudariam a aniquilar os
sonhos africanos de Che Guevara.
Graças às cartas do Che e aos relatos de seus enviados, Fidel Castro
começou a perceber que a iniciativa na África não prosperava. Por isso
enviou à Tanzânia um contigente de comunicações, além de novos pilotos
com barcos mais apropriados para o caso de ser necessária uma retirada pelo
lago fronteiriço. Mais uma vez mandou Osmany Cienfuegos ao Congo, des-
ta vez para persuadir o Che de abandonar a expedição, reconhecer a derro-
ta e salvar-se.*" Por fim, escreveu uma carta, que o Che recebeu em 4 de
novembro:
Devemos fazer tudo, menos o absurdo. Se Tatu avalia que nossa presença se
tornou injustificável e inútil, devemos pensar na retirada, agir de acordo com
a situação objetiva e o espírito de nossos homens. Se vocês considerarem que
devem permanecer, trataremos de enviar todos os recursos humanos e mate-
riais que julgarem necessários. Preocupa-nos que vocês abriguem o temor,
equivocado, de que sua atitude possa ser considerada derrotista ou pessimista.
Se optarem pela retirada, Tatu poderá manter sua condição, regressando para
cá ou indo para outro lugar. Qualquer que seja a decisão, nós a apoiaremos.
Evitem toda aniquilação."6
A carta expressava claramente o desejo de Fidel de que o Che se reti-
rasse e ao mesmo tempo oferecia uma saída: ou o regresso a Cuba ou uma
nova epopeia em outro lugar. Castro sabia que era impossível o retorno à ilha
depois da leitura da carta. Já acenava com uma alternativa.
Os acontecimentos de outubro no Congo seriam o golpe mortal na
quixotesca, absurda e heróica tentativa de liderar uma revolução no coração
das trevas. Em 13 de outubro de 1965, às vésperas de uma reunião com a
cúpula da OUA a ser realizada em Acera, o presidente Kasavubu demitiu o
primeiro-ministro Tshombé.* Um mês depois de Guevara deixar o Congo,
Kasavubu seria derrubado por Mobutu. Logo após o afastamento de Tshombe,
o mandatário congolês compareceu à OUA com um espírito conciliador.
Acabara de cumprir com a principal condição para que a organização fizesse
as pazes com ele. Por outro lado, o grupo dos Estados radicais não tinha mais
motivos para continuar ajudando os rebeldes. Mesmo antes disso, alguns
líderes já haviam deixado de fazê-lo: Ben Bella fora deposto em junho por
Houari Boumedienne; Obote, da Uganda, suspendera o apoio de seu país;
Nkrumah, do Gana, seria derrubado poucos meses depois. Julius Nyerere, o
principal suporte dos rebeldes, estava praticamente isolado e não tinha
grandes pretextos para continuar respaldando uma luta que definhava e se
consumia em suas eternas divisões.
Nyerere chegou a propor a Kasavubu que, ao retornar de Acera, se
reunisse com os rebeldes. Entrou em contato com o governo do Congo-Braz-
zaville para que este também reduzisse a ajuda à rebelião de Pierre Mulele.
Assim, a conjuntura regional transformou-se radicalmente no final de ou-
tubro. A frente dos países progressistas se esfacelou ao mesmo tempo que a
frente de batalha às margens do grande lago. Agora só faltava que Nyerere,
obedecendo à resolução da cúpula de Acera sobre a não-intervenção nos
assuntos internos dos países-membros da OUA, solicitasse a retirada dos
cubanos, junto com a dos sul-africanos. Ele o fez no início de novembro.
Mike Hoare abandonou o Congo no mesmo mês, embora alguns de seus
homens ainda tenham permanecido até 1966. No dia le de novembro,
chegava ao acampamento do Che a mensagem de Nyerere solicitando for-
malmente a suspensão da ajuda cubana. Com isso, punha-se um ponto final
na política de ajuda ao que restara da rebelião congolesa. Para o Che, era "o
golpe de misericórdia em uma revolução moribunda".
Mas o alquebrado e desnutrido argentino não dava o braço a torcer.
Enquanto os mercenários sul-africanos permanecessem no Congo, consi-

(*) Vários autores suspeitam da participação da CIA e de Lawrence Devlin na derrubada


de Kasavubu em 25 de novembro, mas não necessariamente no caso de Tshombé. Entre-
tanto, alguns pensam que foram duas etapas de uma mesma operação. (Ver, por exemplo,
Ellen Ray, William Schapp, Karl van Meter e Louis Wolf (eds.), Dirty work, theCIA in África,
vol. 2,LyleStuart, Secaucus, 1979, p. 191.) A proximidade entre Devlin e Mobutu pode ser
confirmada por este comentário do embaixador dos Estados Unidos em Léopoldville:
"Devlin está mais próximo de Mobutu que qualquer não-congolês que eu conheça". (AmEm-
bassy to SecState, 25/11/65 (secreto), National Security File, Country File, Congo, vol. XII,
#
47,LBjLibrary.)
derava injusto abandonar a luta, a menos que os rebeldes congoleses o pedis-
sem. O único líder restante na área era Masengo, lugar-tenente de Kabila.
Em meados de novembro, ele e o Che celebraram uma reunião decisiva,
enquanto os mercenários fechavam o cerco em torno da base. Guevara
expôs as alternativas: "Resistência e morte, ou retirada". Masengo tomou a
palavra: "Não, não concordo com você. Se nós não somos capazes de colo-
car um congolês, um único que seja, ao lado dos cubanos para que morra com
eles, não podemos pedir aos cubanos que o façam". E o Che replicou: "A
decisão tem de ser de vocês, e tem de ser muito clara. Ou seja, não pode haver
nenhuma ambiguidade. Nós faremos o que vocês decidirem que devemos
fazer. Mas a decisão deve partir de vocês e de mais ninguém".87
Parecia iminente um último combate, o do auto-sacrifício. Os
cubanos insistiram na solicitação formal de retirada: "Basta você redigir
um documento dizendo que considera que os cubanos devem se retirar, já
que sua presença aqui provoca maior repressão". O Che reitera: "Veja, eles
já estão a um passo, estão a um passo daqui. Só nos resta agora preparar-nos
para nosso enterro. As coisas aqui estão bem claras: é resistência e morte
ou retirada".88 Por fim, o líder congolês atendeu a seu pedido e todos os
cubanos se dirigiram para os barcos, prontos para cruzar o lago rumo a Ki-
goma e à salvação.
O Che, porém, ainda fez um último esforço por manter vivo o sonho
africano. Antes de embarcar na lancha, avisou a Aragonês e Fernández
Mell que preferia ficar, com uns poucos homens, e empreender uma longa
marcha de mais de 1500 quilómetros, atravessando o Congo até Kwilu, para
unir-se a Mulele nas bases do Leste e continuar a luta. Seus grandes amigos
cubanos não entenderam sua posição. Fernández Mell jogou seu chapéu no
chão e, pela primeira vez, perdeu a paciência. Aragonês, mais flexível e
experiente, argumentou: "Escute aqui, Che, até agora eu fiz tudo o que você
mandou, sem discutir, e não por falta de vontade, tudo sempre à risca, como
um subordinado. Mas agora eu vou dizer uma coisa, Che: nem tente man-
dar que eu vá embora com a tropa enquanto você fica aqui". O Che con-
cordou, mas ainda não era sua última palavra. Logo inventaria outro pre-
texto: "Eu vou ficar aqui com cinco cubanos fortes para procurar nossos
soldados mortos ou desaparecidos". Segundo ele, "a ideia de levantar acam-
pamento e partir como tínhamos chegado, deixando ali camponeses inde-
fesos e homens armados, mas também indefesos, dada sua reduzida capaci-
dade de luta, derrotados e com a sensação de terem sido traídos, essa ideia
me doía profundamente".39 Os barcos se enchiam de mulheres e crianças
das aldeias rebeldes que se lançavam às praias do lago fugindo do inevitável
avanço dos mercenários. O encarregado cubano das lanchas, Changa ou
Lawton, ficou perplexo ao ver seus barcos, tão zelosamente cuidados, abar-
rotados de mulheres e crianças gritando que não as abandonassem, enquan-
to seu próprio comandante, em terra, recusava-se a zarpar. O Che então
apelou para uma última alegação: mulheres e crianças, primeiro. Lawton
replicou que não era essa a ordem que tinha recebido, e argumentou: "Olhe,
esses negros são daqui, da selva, estão dispostos a viver aqui. Não são eles
que os mercenários perseguem. Perseguem o senhor e os negros cubanos".
O Che insistiu: "Quando chegarem aqui vão massacrar essa gente". E Law-
ton: "Pode ser, mas eu recebi ordens de não deixar os cubanos serem mas-
sacrados, portanto são os cubanos que devo tirar daqui. Eu tenho muito
respeito pelo senhor e acato todas as suas ordens, mas vim aqui cumprindo
ordens de Fidel, e se eu tiver de levar o senhor amarrado, eu não tenho dúvi-
da: amarro e levo".*
Tal como o Che lamenta na introdução de seu diário do Congo, foi tudo
a história de um fracasso.90 As razões foram muitas, algumas sagazmente
apontadas pelo comandante guerrilheiro, outras visíveis agora, trinta anos
depois. De fato, como Ben Bella lastima no início deste capítulo, o Che
chegou atrasado ao Congo. Isso ocorreu porque seu tempo, o tempo de seus
demónios e anseios, não era o das lutas africanas. Guevara quis repetir no
Congo sua versão da epopeia da sierra Maestra. Nem a cópia, nem o original
correspondiam à realidade. Talvez o maior desmentido das aspirações e
delírios de nosso personagem resida numa curiosa nota marginal, que bem
pode servir de epílogo para este alucinado relato.
Três fontes indiscutivelmente autorizadas formulam a mesma pergunta e
apresentam três respostas diferentes, em uma estranha recriação da Mandrá-
gora de Maquiavel. Como foi possível a fuga de uma centena de cubanos e
dezenas de combatentes ruandeses e rebeldes de outras etnias, atravessando
em plena luz do dia um lago incessantemente patrulhado pelas velozes lanchas
sul-africanas, pela CIA e pelo exército congolês? Benigno acrescenta mais deta-
lhes ao enigma: em suas lanchas fazendo água e sobrecarregadas, rodeadas por
embarcações de um inimigo que conhecia todos os seus horários e itinerários,
os cubanos se conformaram à perspectiva de um combate no lago onde certa-
mente perderiam até o último homem. Mas isso não aconteceu. Ninguém os

(*) "Esse diálogo enlouquecedor foi narrado ao autor por Benigno e confirmado, em
separado, por Aragonês e Fernández Mell. A existência de três fontes justifica sua reprodução
textual, com a natural licença dos anos transcorridos e o exagero cubano.
viu, ou quem os viu não quis abrir fogo e massacrá-los.* O desfecho foi descon-
certante. Mesmo cercados, os cubanos conseguiram escapar ilesos. A missão
belga se enfureceu. Não estava convencida de que a retirada cubana fosse
definitiva. Lawrence Devlin apresentou uma explicação que, no coração da
África milenar, não é de todo inverossímil: "Deixei uma lancha a postos para
impedir que os cubanos cruzassem o lago, mas ela quebrou, e os cubanos
escaparam. Nunca vou me perdoar por isso".91 O major Bem Hardenne con-
fessou sua perplexidade e apresentou a seguinte versão do episódio:
As condições atmosféricas tinham melhorado sensivelmente, o posto de
comando da OPS-SUD dirigia as operações a partir de um avião DC-3. A aero-
nave detectou a partida dos cubanos, a bordo de numerosas embarcações que
atravessavam o lago ou costeavam suas margens rumo ao sul. Por razões que
nunca serão explicadas, os aviões e lanchas do ANC, pilotados por mer-
cenários, não só não estavam a postos, apesar das estritas ordens recebidas,
como não responderam aos chamados do avião do posto de comando. Essa má
execução das ordens permitiu a fuga dos cubanos.92
Jules Gérard-Libois, do Centro de Pesquisa e Informação Sócio-Política
(CRISP), de Bruxelas, que há trinta anos estuda as guerras do Congo, considera
incompreensível o fato de os belgas, sul-africanos e cubanos anticastristas
terem permitido que o Che deixasse o Congo. Segundo ele, as ordens da OPS-
SUD transmitidas aos batalhões congoleses sob sua jurisdição diziam clara-
mente que a vida dos cubanos devia ser preservada. Enquanto isso, os dois pilo-
tos belgas a serviço da CIA eram retidos em seu quarto de hotel. De acordo com
Gérard-Libois, o próprio chefe da agência norte-americana em Albertville
comentara com dois oficiais belgas que havia recebido instruções superiores
no sentido de não provocar nenhum incidente com os cubanos antes de 1 ° de
dezembro. Tais instruções parecem ter prevalecido sobre aquelas que deter-
minavam a "destruição operacional do inimigo" por parte dos aviões e lanchas
sob o comando da CIA, pois nada foi feito nesse sentido.** Gérard-Libois rela-

(*) Dariel Alarcón Rodríguez, o Benigno, op. cit.: "Fiquei muito surpreso com o lugar
por onde cruzamos ao amanhecer. Para mim era impossível cruzar por ali sem sermos vistos,
porque íamos passar entre duas fragatas. Tivemos que desligar os motores e nos jogar na água,
todos os que sabiam nadar, para ir empurrando a lancha até passar entre as duas fragatas, que
estavam bem próximas. Eu achava que de um momento para outro iam começar a atirar em
nós. Era humanamente impossível que não nos vissem".
(**) Tais comentários foram amavelmente transmitidos ao autor por Jules Gérard-
Libois em várias conversas telefónicas, sobretudo em 18 de novembro de 1995 e ao longo de
dezembro de 1995, e em uma série de cartas com data do início de 1996.
ciona toda essa misteriosa clemência com um fato ocorrido na mesma época
do outro lado do mundo: o chamado acordo migratório de Camarioca entre
Cuba e os Estados Unidos, intermediado pelo embaixador da Suíça em
Havana, que permitiria, durante vários meses, a saída de milhares de cubanos
desejosos de abandonar a ilha. Durante o primeiro ano de vigência, mais de 45
mil cubanos emigraram para a Flórida com base nas disposições do acordo.
Em 27 de outubro, Castro anunciara seu propósito de deixar sair da ilha
quem assim o desejasse. Segundo ele, a dificuldade para a emigração era causa-
da por Washington, que não fornecia vistos de entrada. A declaração de Castro
deixou uma porta aberta para a negociação, que seria conduzida pela embaixa-
da da Confederação Helvética em Cuba e anunciada nas duas capitais em 4 de
novembro, em simultâneas coletivas de imprensa. Segundo a interpretação de
Gérard-Libois, os norte-americanos preferiram evitar qualquer ato que atra-
palhasse ou impedisse a aplicação de um acordo de tão difícil obtenção. O tema
da migração reapareceria nas relações entre os dois países, com a mesma comple-
xidade, em 1980, com o êxodo do Mariel, e no verão de 1994, com o drama dos
balseros. Segundo o pesquisador belga, parece lógico que Washington advertisse
todas as suas missões no mundo para que evitassem qualquer atrito ou enfrenta-
mento com os cubanos, fosse qual fosse o motivo, até que o acordo de Camarioca
começasse a ser aplicado e as migrações se consumassem. Obviamente, os
norte-americanos não imaginavam que com isso permitiriam a retirada do Che
Guevara. Era apenas uma orientação genérica, que os funcionários norte-ame-
ricanos no Congo parecem ter interpretado mal. O fato é que, com isso, teriam
permitido a evacuação dos combatentes cubanos de Kibamba.
De todos os funcionários norte-americanos envolvidos na teia de con-
junturas e mistérios da época, nenhum recorda qualquer instrução desse
tipo, nem atribui maior credibilidade à tese de Gérard-Libois. Devlin diz que
jamais recebeu uma ordem dessa natureza. A pedido do autor, consultou seus
antigos subordinados em Albertville (em particular Richard Johnson), mas
não obteve nenhuma informação nesse sentido. Gustavo Villoldo, um dos
cubanos anticastristas que combateram no Congo, jura que jamais teria
acatado uma ordem dessas, mas que de qualquer forma ela nunca foi dada.
Por fim, William Bowdler, o diplomata que negociou o acordo de Camario-
ca em nome do Departamento de Estado norte-americano, também não
recorda qualquer decisão de Washington nesse sentido.
No entanto, o mistério continua: como e por que o Che conseguiu sair
do Congo? Não seria a última ironia de sua história se ele devesse sua sobre-
vivência na África a uma estranha e feliz coincidência. A fuga do Congo e a
curta sobrevida até a tragédia na Bolívia poderiam ser atribuídas a um acor-
do tácito entre Fidel Castro, as autoridades diplomáticas e de migração dos
Estados Unidos, a CIA e os mercenários sul-africanos nos arredores do lago
Tanganica. Se tivesse terminado seus dias ali, não seria menor seu sacrifício,
nem menos sólida a base sobre a qual se ergueu um dos maiores mitos do sécu-
lo, mas com certeza seria diferente. A história avança de viés, mascarada.
Ninguém melhor que o próprio Che para avaliar sua atuação na guer-
rilha congolesa. Ele nunca perdeu sua lucidez e capacidade de auto-análise.
Encerra o último livro de sua vida com uma cruel avaliação de seu desem-
penho na África:
Fiquei de mãos atadas pela forma um tanto atípica como entrei no Congo e
não fui capaz de superar esse inconveniente. Fui inconstante em minhas
reações. Mantive por muito tempo uma atitude que poderia ser considerada
demasiado complacente e, por momentos, tive explosões de cólera muito con-
tundentes e ofensivas, o que talvez seja uma característica natural de minha
personalidade. O único setor com o qual mantive relações corretas foi o dos
camponeses, pois estou mais habituado à linguagem política e à explicação
direta, por meio de exemplos, e acho que nesse terreno poderia ter alcançado
bons resultados [...] Quanto ao contato com meus homens, acho que meu sa-
crifício foi suficiente para que ninguém possa recriminar-me qualquer debili-
dade no aspecto pessoal e físico. Minhas duas principais fraquezas foram satis-
feitas no Congo: o tabaco, que quase nunca faltou, e a leitura, sempre
abundante. O desconforto de um par de botas furadas, uma muda de roupa
suja, de comer a mesma comida da tropa e viver nas mesmas condições para
mim não significa sacrifício. Mas acho que o fato de retirar-me para ler, fugin-
do dos problemas cotidianos, tendia a afastar-me de meus homens, sem con-
tar que há certos aspectos de meu caráter que tornam difícil o trato comigo.
Fui duro, mas acho que não me excedi, nem fui injusto. Empreguei métodos
que não são usados em um exército regular, como o de suspender a comida, mas
que é o único eficiente que conheço em tempos de guerrilha. No início quis
aplicar castigos morais, mas fracassei. Tentei fazer com que minha tropa
tivesse o mesmo ponto de vista que eu, e fracassei. Ela não estava preparada
para encarar com otimismo um futuro que só podia ser visto através de brumas
tão negras no presente [...] Não me atrevi a pedir o sacrifício máximo naquele
momento decisivo. Deparei com um bloqueio interno, psíquico. Seria muito
difícil para mim ficar no Congo. Do ponto de vista do amor-próprio de um
combatente, era o certo. Sob o prisma de minha atividade futura, se não era a
melhor coisa a fazer, era, no mínimo, indiferente. Quando refletia sobre a
decisão a tomar, eu sabia como seria fácil para mim assumir o sacrifício decisi-
vo, mas essa certeza acabou sendo prejudicial. Na esteira desta análise
autocrítica, considero que eu deveria ter vencido a mim mesmo e impor o
gesto final a um pequeno grupo de combatentes. Que fôssemos poucos, mas
devíamos ter ficado [...] Saí de lá com mais fé do que nunca na luta guerrilheira,
mas o fato é que fracassamos. Minha responsabilidade é grande; nunca esque-
cerei a derrota nem seus mais preciosos ensinamentos.1"
; TRAÍDO POR QUEM?

A vida parara de sorrir para Che Guevara, mas sua admirável vontade
e sua sorte durariam o bastante para uma nova aventura. O homem que
emergiu da derrota do Congo conservava sua força interior, suas convicções
e os grandes traços de seu caráter, mas trazia algumas marcas da caminhada.
Perdera muito peso, não chegava nem a cinquenta quilos, enquanto a asma
e a disenteria o castigavam com tremenda frequência e crueldade. * Para pio-
rar, o desânimo e o desespero ante um destino sombrio logo se transfor-
maram em depressão. Por várias semanas, ele permaneceu prostrado em uma
minúscula sala no primeiro andar da embaixada de Cuba em Dar Assalaam.
Logo, porém, começaria a se recuperar, primeiro das doenças, depois do
abatimento que começou a desvanecer-se à medida que avançavam seus
planos para o futuro. Como recorda uma pessoa que esteve com ele durante
aqueles meses na Tanzânia: "Eu não acho que ele tenha saído com um espíri-
to de derrota. Saiu, sim, com um espírito crítico em relação à cúpula políti-
ca da organização e com um espírito de compreensão e amor pelas brigadas
congolesas".1
Desde que foi acolhido por Pablo Ribalta na capital da Tanzânia, o
Che tomou duas decisões definitivas: não voltaria a Cuba e seu próximo
destino seria Buenos Aires. Benigno recorda: "Ele não quer regressar a Cuba,
não quer por nada deste mundo".2 A razão era evidente: a leitura pública de
sua carta de despedida por Fidel Castro. Ele não queria quebrar seu com-

(*) Segundo Colman Ferrer, seu secretário na Tanzânia, "estava magro, pálido, mal ali-
mentado". (Entrevista com o autor, Havana, 25/8/95.)
promisso, nem que fosse na mais absoluta clandestinidade. Se renunciara a
tudo em Cuba, não poderia regressar vencido e cabisbaixo. Além disso, a
economia cubana tomara um rumo completamente alheio a suas con-
vicções. Seus colaboradores mais próximos tinham sido excluídos do
Comité Central do Partido Comunista; suas teses internacionalistas ti-
nham naufragado frente à dura realidade do atraso e das idiossincrasias
africanas. No fundo ele não tinha para onde ir. Por isso, voltaria ao ponto
de partida. Agora, sim, retornaria, não como o filho pródigo que se reinte-
gra ao torrão natal e familiar, mas para fazer a revolução onde sempre qui-
sera fazê-la: na Argentina.
Angel Braguer, o Lino, um dos responsáveis na Bolívia pelos serviços
cubanos de informação, não tinha dúvidas a esse respeito. Desde sua conva-
lescença em Dar Assalaam, o Che perseguia um único propósito: ir a Buenos
Aires, com ou sem preparativos, recursos e acompanhantes. "Ele se impôs
uma missão muito heróica, quase sem nenhuma condição. Era o mesmo que
permanecer às margens do lago Tanganica sem apoio. Era muito semelhante
a continuar o combate às margens do rio, quase em campo aberto, contra
uma força superior que o estava vencendo".*
Os últimos meses do Che na África encerraram uma intensa disputa
entre Havana e Dar Assalaam: Guevara, puxando sem descanso para o
cone sul; Castro e Cuba inventando novos subterfúgios e estratagemas para
evitar uma tragédia nas mãos do exército argentino, que Emilio Aragonês
tanto e com tanta razão temia. Uma das primeiras armas que Castro empre-
gou para evitar a viagem foi Aleida; outra, Ramiro Valdés, o maior amigo
do Che em Cuba, escolhido como tutor de seus filhos em caso de morte.
Pablo Ribalta recorda a passagem de Aleida pela Tanzânia: "Sua esposa
chegou a Dar Assalaam. Ficaram na embaixada. O Che estava muito afá-
vel, muito contente, falaram das crianças, se abraçaram... Ela ficou mais
algum tempo".' Ou, segundo uma fonte do aparato cubano: "Foi uma joga-
da de Fidel para que (o Che) não fosse à Argentina, mas voltasse a Cuba.
Fidel mandou Aleida e outras pessoas para vê-lo. O Che queria ir direto
para Buenos Aires. Fidel inventou a Bolívia, usando os recursos existentes
naquele país, para convencê-lo a regressar a Cuba em vez de ir para a
Argentina".4

(*) Angel Braguer, o Lino, entrevista com o autor, Havana, 24/1/96. Benigno apresen-
ta exatamente a mesma versão em seu livro de memórias, publicado em Paris em 1995, sus-
citando diversas e violentas reações oficiais cubanas. (Ver Dariel Alarcón Ramírez, Benigno,
Vie et Mort de \a Révolution Cubaine, Paris, Fayard, 1995, p. 108.)
Aos poucos, o Che foi aceitando a ideia de ir à Bolívia ou, pelo menos,
de passar por lá a caminho da Argentina, mas não a de voltar a Cuba. Logo
mandou José Maria Martínez Tamayo, o Papi, para a Bolívia. Ele chegou a
La Paz em março, com a missão de preparar a viagem para sua terra natal.
Também instruiu o Pombo e Tuma para que fossem ao país andino, recu-
perassem umas malas cheias de dólares e o esperassem na fronteira com a
Argentina. Na verdade, esses seus dois colaboradores se demoraram em
Cuba, onde as autoridades os fizeram mudar de planos, pelo menos até julho,
quando desembarcaram na capital boliviana.5
Enquanto esperava, o Che preencheu o tempo livre com sua ativi-
dade preferida, depois do combate e da leitura: escrever. A partir do diário
de seus sete meses de estadia no Congo, iniciou a redação do livro citado
várias vezes no capítulo anterior: Pasajes de Ia guerra revolucionaria (el Con-
go). Colman Ferrer, um jovem secretário da embaixada cubana em Dar
Assalaam, fez as vezes de assistente; o Che ditava, com base nas anotações
de campanha; Ferrer transcrevia. Mais tarde, Guevara revisava o texto.
Ao escrever, o Che fazia uma avaliação dos combatentes e, segundo as
palavras de Ferrer, via os dias correrem, "matando o tempo, preparando as
condições para outro cenário". Com certeza, não sofria de tédio. Oscar
Fernández Mell recorda: "Uma das grandes virtudes do Che era seu gosto
pela leitura [...] Ele era capaz de ficar lendo horas a fio, feliz da vida, mes-
mo estando só".6
Nosso personagem trabalhava com extrema minúcia. Como obser-
va Ferrer, "tinha muito cuidado com aquilo que escrevia, evitando come-
ter erros. Era muito zeloso, analisava, relia as transcrições da gravação".7
Concentrava-se por completo no que estava redigindo e dava pouca
atenção a seus passatempos. "Escrevia dia e noite. Só muito de vez em
quando se distraía jogando umas partidinhas de xadrez comigo. Um dia
em que eu lhe dei um xeque-mate, ficou olhando para mim como se não
se desse conta do que tinha acontecido. Via-se que sua cabeça não estava
realmente no jogo.""
Finalmente, no fim de fevereiro ou início de março de 1966, ele aceitou
partir para Praga e preparar a próxima etapa de sua vida.* O encarregado de
conduzi-lo à capital tcheca foi Ulises Estrada, o responsável pela África nos

(*) A referência ao final de fevereiro provém de várias fontes: Fernández Mell, que
ficou por mais tempo em Dar Assalaam; Ulises Estrada, que acompanhou o Che na viagem a
Praga, via Cairo; Colman Ferrer, que recorda quanto tempo trabalharam juntos no manus-
crito de Pasajes; e Pablo Ribalta.
serviços de Pineiro.* Em Praga, o Che passou quatro meses recolhido, ainda
recuperando-se das doenças e da depressão — Castro enviara seus médicos
particulares para atendê-lo — e organizando a nova expedição. Os fun-
cionários cubanos que o receberam — entre eles José Luis Ojaldo, da equipe
de Pineiro — inicialmente o alojaram em um apartamento na cidade, depois
em uma casa de subúrbio, a uns vinte quilómetros do centro, no caminho
para a aldeia de Lídice. Ulises ficou um mês em Praga junto ao Che. Depois
foi substituído por Juan Carretero, que mais tarde se celebrizaria como Ariel,
destinatário e emissor das mensagens cifradas entre a Bolívia e Cuba, e
Alberto Fernández Montes de Oca, o Pacho, ou Pachungo, com quem Gue-
vara viajaria à Bolívia em novembro. Estrada recorda sua estadia na
Tchecoslováquia em tons sombrios: o inverno centro-europeu, o estado de
ânimo do Che, a incerteza sobre o futuro estavam bem longe de formar um
quadro alegre ou animador:
Fiquei com ele até que decidiu que eu voltaria a Cuba. Morávamos em um
apartamento de trabalhadores, onde se supunha que o Che teria calma.
Vivíamos um tanto aflitos. Não saíamos para a rua e, quando saíamos, com o
companheiro José Luis (Ojaldo), íamos sempre para os arredores de Praga, a
restaurantes afastados, no campo. Eu chamava muito a atenção, as arru-
madeiras mexiam no meu cabelo... Então ele teve uma conversa comigo e
falou: "Olhe, eu posso ser descoberto por sua causa, porque você chama muito
a atenção. Por onde a gente passa, todo mundo fica olhando. Você tem o pri-
vilégio de ser negro. Em outro lugar, seria discriminado; aqui é admirado. Eu
vou ter que pedir ao Fidel que mande um substituto.**
Foram talvez os piores meses de sua vida: sombrios, tristes, solitários,
cheios de incerteza, impregnados da frieza e escuridão do ambiente. Segun-
do uma versão verossímil mas não comprovada, o Che levou semanas recu-
perando-se de uma espécie de intoxicação provocada por um medicamento
antiasmático soviético com prazo de validade vencido. Continuava abatido
pela doença e sujeito a um sem-número de pressões contraditórias. Suas
recentes experiências o privaram das certezas que antes lhe permitiam re-

(*) "Mas todos voltaram a Cuba e ele ficou só ali na Tanzânia; então ocorreu-me tirá-
lo da Tanzânia e levá-lo para um lugar seguro até que ele decidisse o que faria." Ulises Estra-
da, entrevista com o autor, Havana, 9/2/95.
(**) Ulises Estrada, op. cit. Paço Ignacio Taibo U, em sua biografia do Che, cita pas-
sagens semelhantes dessa mesma entrevista. Através de um fecundo e solidário intercâmbio
de documentações e fontes, Taibo e o autor partilharam informações obtidas em suas
pesquisas. Neste caso a entrevista foi concedida ao autor, que a pôs à disposição de Taibo.
sistir às pressões e ditar seu próprio destino. Os meses se arrastavam, marca-
dos apenas pelo esforço de manter-se incógnito e organizar, à distância, uma
nova tentativa de estopim revolucionário. Nem os tchecos, nem os soviéti-
cos chegaram a saber da presença de Ernesto Guevara em seu país, ou pelo
menos é o que supõem até hoje as pessoas que o acompanharam. A obsessão
de Guevara pelo sigilo certamente dificultou sua localização, embora seja
difícil acreditar que Fidel Castro não tenha avisado Moscou sobre o
paradeiro de seu famoso e turbulento companheiro. Seja como for, os movi-
mentos devem ter despertado suspeitas. Afinal, por que tantos conspi-
radores cubanos apareciam de repente na Europa Central ?
Com efeito, Castro lançou mão de todo tipo de recursos na luta para
convencer o Che a, pelo menos, adiar o retorno a Buenos Aires e prepará-lo
adequadamente.* Aleida visitou-o mais uma vez, pedindo que voltasse.
Ramiro Valdés tornou a ir a Praga. Benigno encontrou o Che em Moscou, na
escala de um vôo, e hoje ele acredita que foi Ramiro quem o convenceu a
regressar a Cuba.9 Tâmara Bunke, ou Tânia, a intérprete germano-argentina
convertida em agente cubana, também viajou a Praga,** segundo Ulises
Estrada, que foi seu namorado por mais de um ano. * * * Depois de ter se inter-
rompido a comunicação entre os cubanos e Tâmara, que se encontrava na
Bolívia, ela foi chamada a Praga para apresentar uma avaliação de seu tra-
balho e das possibilidades que o país oferecia: "Durante um ano, Tânia ficou

(*) Entrevistado por Gianni Mina em 1987, Fidel Castro confirmou que Guevara
recusava-se a regressar a Cuba: "[O Che] não queria voltar porque, depois da divulgação de
sua carta, era algo muito doloroso para ele [...] Mas no fim eu o convenci a voltar, dizendo
que era o mais conveniente para tudo aquilo que ele pretendia fazer". (Fidel Castro, entre-
vista a Gianni Mina, Havana, Oficina de Publicaciones dei Consejo de Estado, Havana,
1988, p. 327.)
(* *) Estrada, op. cit. Com base nos documentos recolhidos pela CIA na Bolívia, Daniel
James, um biógrafo do Che com acesso à informação dos serviços secretos norte-americanos,
reconstituiu parte do itinerário de Tânia. Segundo James, ela saiu da Bolívia em meados de
fevereiro de 1966, via Brasil, chegando ao México em 14 de abril, e "perdeu-se" a partir de 30
de abril. James deduz que ela foi a Cuba para receber instruções do Che, mas hoje sabemos
que Guevara continuava em Praga e Tânia, na verdade, dirigiu-se à Tchecoslováquia, embora
possa ter feito uma escala em Havana. (Ver Daniel James, Che Guevara: una biografia, Edi-
torial Diana, México DF, 1971, pp. 268-9.)
(***) Estrada, op. cit. Tânia refere-se a Estrada em uma carta a seus pais, escrita em 11
de abril de 1964; espera que não "roubem meu negrinho antes que eu volte. Aí vou me casar
[•■•] Se depois vão vir uns mulatinhos, isso eu não sei [...] [Ele é] magro, alto, bem negro, tipi-
camente cubano, muito carinhoso[...]" (Instituto Cubano dei Libro, Tânia Ia guerrillera
inolvidabk, Havana, 1974, p. 195.)
incomunicada em La Paz. Por fim, conseguimos fazer contato com ela no
México e, depois, na Tchecoslováquia. Ali as cifras foram trocadas. Foi lá
que ela recebeu treinamento de comunicação cifrada e aprendeu a usar os
códigos, o horário radial, uma porção de coisas desse tipo. Foi em Praga".10
Segundo Ulises Estrada, os cubanos conseguiram um sítio nos
arredores de Praga para as reuniões do Che com Tâmara Bunke. Ali "ele
esteve com Tânia".* Com isso, cresciam os rumores acerca de um romance
entre o Che e a agente germano-argentina. As especulações remontavam ao
tempo em que os dois se conheceram em Havana, e a frequência em que
eram vistos juntos em reuniões e festas logo alimentou os boatos. Nos
serviços de informação de Cuba chegou a circular o comentário de que a ver-
dadeira intenção do Che ao desfazer-se de Estrada em Praga era afastá-lo de
Tânia. Não é impossível. Nem se pode descartar a versão de que teria havi-
do uma tremenda briga entre Guevara e sua esposa, em uma das visitas de
Aleida à capital tcheca, provocada, justamente, pela presença de Tânia. O
fato é que todas essas visitas, manobras e promessas começaram a montar
cenário da expedição do Che à Bolívia. Todos — Aleida, Fidel Castro,
Manuel Pineiro, os auxiliares tradicionais do Che, seus amigos, Tânia — se
empenharam em forjar uma alternativa à operação na Argentina e con-
vencê-lo de sua conveniência.
A tarefa, entretanto, não era nada fácil. Para evitar uma tragédia em
seu país natal, era preciso apresentar ao Che uma opção que lhe parecesse
viável e que, de preferência, não ficasse longe de seu objetivo maior.
Primeiro, tentou-se a Venezuela. Carlos Franqui recorda que Fidel Castro
recorreu a seus bons contatos junto à guerrilha venezuelana, para que ela
acolhesse o Che." Segundo Franqui, a resposta foi negativa. Teodoro
Petkoff, o líder guerrilheiro venezuelano, na época preso na penitenciária de
San Carlos, hoje ministro de Estado, confirma que, de fato, recebeu um pedi-
do dessa natureza, mas que foi recusado.12 Germán Lairet, ex-representante
das FALN em Havana, recorda que essa não foi a primeira vez: desde 1964, os
cubanos vinham fazendo sondagens sobre uma possível integração do Che

(*) Outra confirmação da presença de Tânia em Praga consta nos arquivos secretos do
Partido Comunista da Alemanha Oriental (SED). Ali aparece uma carta de um colaborador
argentino da revista Problemas de Ia Paz y dei Socialismo, dirigida aos pais de Tânia em 27 de
abril de 1969, que diz: "Nós conhecemos sua filha, como devem se lembrar [...] Durante sua
estada [sic] em Praga, ela nos visitou várias vezes." (Instituí fur Marxismus-Leninismus beim
Zentral Komitee der SED, Zentrales Parteiarchiv, SED Internationale Verbindungen, Argen-
tinien 1962-72, DY 30/iv A2/20/694, Berlim.)
à luta guerrilheira venezuelana.* Entretanto, devido às divisões internas, à
ofensiva do governo e à conjuntura internacional, o grupo considerava que
não estava em condições de garantir a segurança de Guevara. Mas, acima de
tudo, os interessados queriam manter distância de Guevara porque, segun-
do Petkoff, a presença de alguém como ele confirmaria a acusação de que o
movimento era fomentado por estrangeiros. No início de 1967, com o Che
na Bolívia e a guerrilha venezuelana agonizando, Fidel Castro lançaria um
feroz ataque contra os dirigentes desta, acusando-os de traição por terem
abandonado as armas. A Venezuela não era mesmo o refúgio mais apropria-
do para o comandante Guevara.
Outra alternativa era o Peru. Desde 1963, as lutas guerrilheiras de Luis de
Ia Puente e Hugo Blanco vinham oferecendo possibilidades interessantes.
Porém, na verdade, o movimento semitrotskista de Blanco no vale da Con-
vención levara à prisão de seu líder, em 29 de maio de 1963. Semanas depois,
outro núcleo, liderado pelo jovem poeta Javier Hefaud, foi aniquilado em Puer-
to Maldonado quando penetrava no país vindo da Bolívia. Quanto ao foco
mais tipicamente castrista de Luis de Ia Puente, após alguns êxitos na ofensiva
de junho de 1965, suas colunas foram dizimadas, entre setembro do mesmo ano
— quando seu líder tombou em combate — e o início de 1966.0 último sus-
piro, uma nova frente guerrilheira dirigida por Héctor Bejar, foi dado em
dezembro de 1965. Além disso, o Partido Comunista do Peru se opusera sis-
tematicamente a essas iniciativas, argumentando que as condições objetivas
para a luta armada não estavam dadas. Assim, apesar das intenções originais, os
cubanos foram obrigados a informar os peruanos sobre a decisão de "nosso go-
verno de iniciar a luta pela Bolívia e, posteriormente, passar ao Peru". * * Acres-

(*) Germán Lairet, conversa telefónica com o autor, outubro de 1996. Régis Debray
apresentou, em 1974, uma versão diferente. Segundo ele, foram os venezuelanos, em parti-
cular Luben Petkoff, irmão de Teodoro, que convidaram o Che para ir a seu país, convite que
Guevara recusou por não querer "pegar o bonde andando". (Ver Régis Debray, La critique des
armes, t. 2, Les epreuves dufeu, Paris, Seuil, 1974, pp. 21-2.) As duas versões não são neces-
sariamente incompatíveis. É possível que, em 1966, Fidel tenha voltado a fazer a proposta aos
guerrilheiros venezuelanos justamente porque, em 1964, eles já haviam mostrado interesse
pela possível incorporação do Che.
(**) Harry Villegas, Pombo, El verdadero diano de Pombo, La Paz, La Razón, 9/10/96, p.
17. Até 1996, a única versão disponível do diário do Pombo era uma tradução para o inglês,
retraduzida para o espanhol, entregue pela CIA aos editores Stein and Day em 1968. Em fins
de 1996, o Banco Central da Bolívia, em cujas dependências estão guardados os documentos
da campanha do Che na Bolívia, permitiu a entrada de dois jornalistas para examiná-los e
liberou alguns para publicação, entre eles a versão original do diário do Pombo, aqui citada.
centavam que as condições não eram propícias. Convidávamos peruanos a con-
tinuar colaborando com eles, enviando homens à Bolívia para participar da guer-
rilha no país vizinho e mais tarde formar o núcleo de sua própria luta guerrilheira.
Já não restavam muitas opções em que as velhas desavenças entre cas-
tristas e comunistas latino-americanos não representassem um obstáculo,
tanto ao desenvolvimento das operações como à persuasão do Che, ainda
obcecado por seu delírio argentino. Pior ainda: era preciso convencer o Che
de que, qualquer que fosse a alternativa apresentada, seria apenas uma escala
no caminho para sua pátria. Daí a ideia de organizar uma guerrilha-mãe, da
qual nasceriam várias outras, sendo a principal delas justamente a que pene-
traria na Argentina. Por toda^ essas razões e pelos recursos que os cubanos
possuíam na Bolívia, o país oferecia as melhores possibilidades de êxito.* Só
faltava convencer os bolivianos e o Che.
A Bolívia, com efeito, apresentava uma série de vantagens à primeira
vista insuperáveis para a criação de um foco guerrilheiro. Para começar, den-
tro do Partido Comunista (PCB), formara-se havia já um bom tempo um
núcleo de quadros vinculados aos cubanos. Outro pequeno grupo, compos-
to de estudantes bolivianos, havia recebido treinamento militar em Cuba,
em 1965. Vários deles morreriam com o Che na guerrilha; outros per-
maneceriam retidos em Havana durante a epopeia boliviana. Como recor-
da Mário Monje, o secretário-geral do partido, desde 1962 estabeleceu-se
uma relação peculiar entre o PCB e Havana. Naquele ano, os comunistas
peruanos tinham enviado um grupo de estudantes a Cuba. Eles receberam
treinamento militar, sem o consentimento do partido, como de hábito.
Depois quiseram voltar ao Peru, só que fardados e armados, prontos para a
luta, e decidiram entrar em seu país pela fronteira com a Bolívia, a melhor
via para um retorno clandestino. Quando os cubanos pediram a Monje que
ajudasse os recém-formados guerrilheiros, este respondeu que o melhor seria
eles procurarem o apoio do Partido Comunista Peruano. Os cubanos respon-

(*) Segundo Mário Monje, o secretário-geral do Partido Comunista da Bolívia, o Che


confessou-lhe explicitamente: "Acontece que o único lugar onde temos uma estrutura séria
é a Bolívia, e os únicos que têm condições reais para a luta são os bolivianos. Eu não contaria
com isso na Argentina, que está em um período embrionário, e no Peru, onde ela mal
começou". Ao que o boliviano respondeu: "Mas essa estrutura não é para vocês. Vocês estão
querendo aproveitar uma estrutura que não criaram". Mário Monje, entrevista com o autor,
Moscou, 25/10/95. Esta versão corresponde à que foi fornecida pelo argentino Ciro Bustos às
autoridades bolivianas que o interrogaram sobre uma conversa com o Che. (Ver Account by
Ciro Roberto Bustos ofhis stay with Guevaras guerrillas in Bolívia, citado em Jay Mallin (ed.),
Che Guevara on revolution, University of Miami Press, 1969, p. 200.)
deram: "O partido peruano enviou esses rapazes a Cuba, mas agora não quer
assumir responsabilidades"."
A questão logo se complicou e obrigou Monje a viajar a Havana para
manter várias conversações com Manuel Pineiro e, por fim, entrevistar-se
com o próprio Fidel. Caso o partido boliviano passasse por cima do peruano,
ajudando um grupo de guerrilheiros treinados em Cuba a penetrar no ter-
ritório do país vizinho sem a aprovação nem o conhecimento do PCP, vio-
laria as normas das relações entre "partidos irmãos". Fidel pôs todo o peso de
sua autoridade na balança e fez um último esforço junto a Monje:
Vejam, nós tivemos a nossa experiência. Não vamos impedir que esses jovens
tenham a deles. Se eu peço a vocês, independente de sua opinião, que ajudem
esses rapazes a entrar no país deles, é para que eles tenham a chance que nós
tivemos. Por que negar-lhes a chance? Eles são tão jovens como nós éramos na
sierra Maestra. Por que vocês não ajudam essa gente, em nome do interna-
cionalismo proletário?14
A partir de então, criou-se o aparato militar clandestino do partido
boliviano, que acarretava riscos reais para as relações do PCB com outros par-
tidos latino-americanos. Pouco depois, os cubanos voltaram a pedir a coope-
ração de Monje, para preparar a incursão de Jorge Masetti em Salta. Um au-
xiliar do Che procurou Monje e disse à queima-roupa: "Trago um pedido do
Che, falo em nome do Che. E quero apenas que você nos ajude a mandar essa
gente para a Argentina".15 Monje respondeu que não podia assumir o com-
promisso sozinho e tinha a obrigação de informar o resto da direção, em
especial Jorge Kolle — na época, o número dois do PCB e, depois de 1968, o
sucessor de Monje como secretário-geral. Ao ser informado, Kolle censurou
seu dirigente: "Você se meteu outra vez nisso, primeiro de um lado, agora do
outro. Temos que avisar os argentinos que os cubanos estão se metendo nos
assuntos deles, que os cubanos estão querendo entrar lá". Monje concordou
e perguntou: "Mas, e se eles mandarem mesmo essa gente, o que nós vamos
fazer? É o Che que está por trás disso. Eles me pediram apoio logístico".16
Convém lembrar que o Partido Comunista da Argentina era um dos princi-
pais inimigos da linha castrista na América Latina. Seu líder máximo, Víc-
tor Codovilla, opunha-se às teses guevaristas com particular veemência e
obstinação. Nada disso importava: no final de 1963, Fidel Castro reiterou
pessoalmente o pedido, frisando que se tratava de uma operação do Che. E,
para dourar a pílula, expôs suas teses sobre a Bolívia: "Eu tenho muita pena
de vocês, da Bolívia, porque aí é muito difícil levar adiante uma luta guer-
rilheira. Vocês são um país interior, onde foi feita uma reforma agrária. Por-
tanto, seu destino é serem solidários com os movimentos revolucionários de
outros países, porque a Bolívia será um dos últimos países a alcançar sua li-
bertação. A luta guerrilheira não é possível na Bolívia".17
O Che abonará essa tese em uma conversa com Monje, em Havana,
1964, para grande surpresa do seu interlocutor: "Eu já estive na Bolívia, co-
nheço seu país, e sei que é muito difícil desenvolver a luta guerrilheira na
Bolívia. Lá se fez uma reforma agrária, e não acredito que aqueles índios se
somem à luta guerrilheira. Por isso, vocês têm de apoiar as ações em outros
países".18
Como dissemos, José Maria Martínez Tamayo, o assistente do Che,
chegou à Bolívia em março de 1966. Começou imediatamente a recolher
informações relacionadas com a nova missão, valendo-se de todos esses
antecedentes e de sua antiga amizade, que remonta ao caso Masetti, com
vários comunistas bolivianos, entre eles os irmãos Inti e Coco Peredo, Jorge
Vázquez Viana, Rodolfo Saldana, Luis Tellería Murillo, Orlando Jiménez, o
Camba, e Júlio Luis Mendez, o Nato. Tudo parecia antecipar uma operação
bem-sucedida na Bolívia. Por um lado, já existia um pequeno destacamen-
to, jovem, familiarizado com os cubanos e suas atividades no país. Por outro,
a direção nacional do PCB compreendia que, apesar do flerte dos cubanos
com seus dissidentes pró-chineses, Havana jamais se intrometera em
questões internas do partido, nem se propusera, até então, a instalar um foco
guerrilheiro na Bolívia. Não fizera como no Peru, na Argentina, na
Venezuela, na Guatemala e, mais recentemente, na Colômbia. Pelo menos
formalmente, os comunistas bolivianos concordaram.
Mas isso não significava que Monje, Kolle e os outros membros do
diretório nacional — diferentemente dos integrantes da juventude do par-
tido — tivessem alguma simpatia pela luta armada ou conservassem grande
independência em relação a Moscou. Nos arquivos secretos da ex-URSS
consta o protocolo de uma reunião do Politburo do Comité Central do PCUS
aprovando um orçamento que destinava 30 mil dólares ao PCB em 1966 e
outros 20 mil dólares à Frente Nacional da Bolívia, o braço eleitoral do par-
tido.19 Eram somas consideráveis que, na prática, cobriam boa parte das
despesas da organização e representavam um poderoso fator de persuasão.
Assim, astutamente, Monje e o resto da cúpula comunista tinham
demonstrado menos hostilidade à luta armada que outros agrupamentos
latino-americanos. Monje frequentou um curso de adestramento guerri-
lheiro em Cuba, no primeiro semestre de 1966; pôs à disposição dos cubanos
o pequeno aparato clandestino do PCB; vários comunistas — entre outros, os
irmãos Peredo — também passaram semanas ou meses na ilha, recebendo
treinamento militar. Acrescentando-se tais antecedentes dos militantes
bolivianos às características geográficas de seu país — fronteira com cinco
países, vales e montanhas, florestas tropicais e neve. A Bolívia aparecia
como uma alternativa quase que natural para a ansiada luta argentina de
Ernesto Guevara. A existência ou ausência de condições políticas internas
para o início de um processo revolucionário nunca teve um papel determi-
nante na escolha do cenário. O essencial era oferecer uma saída para o Che
e dispor dos recursos para efetivá-la.
Durante toda a primavera em Praga, o Che continuou discutindo com
Havana seus próximos passos, ao mesmo tempo que avançavam os prepara-
tivos na América do Sul. Quanto mais Guevara se aferrava à ideia de voltar
à Argentina, diretamente ou via Bolívia, mais crescia a pressão do governo
de Havana para que voltasse à ilha, se organizasse devidamente, escolhesse
ele mesmo seu grupo de apoio e o treinasse para, só então, partir para a
Bolívia. Em um diálogo ocorrido em 31 de dezembro de 1966, reproduzido
por Monje, Guevara confessou a origem das tensões:
Che: Você sabe que eu saí de Cuba pela porta da frente. Fidel insistiu várias
vezes para que eu voltasse, mas eu fiquei trancado num apartamento em certo
país (Tchecoslováquia - JGC), pensando, tentando encontrar uma saída. Eu
não podia voltar a Cuba, não podia aparecer por lá. Para mim isso estava fora
de cogitação.
Monje: E por que foi encontrar a solução aqui? Você veio para cair numa
armadilha."
Talvez um dos grandes mal-entendidos — ou enormes equívocos — de
toda esta saga estivesse na sutil diferença entre uma passagem pela Bolívia e a
criação de um/oco na Bolívia. Mário Monje — segundo Fidel Castro, o culpa-
do pela traição que levou o Che à morte — apresenta como um dos principais
argumentos em sua defesa o fato de o caudilho ter pedido, de início, algo muito
diferente do que acabou acontecendo. Segundo Monje, na conversa que man-
teve com Fidel, em maio de 1966, durante um vôo Moscou—Havana, este lhe
disse: "Escute, Monje, eu agradeço toda a ajuda que você sempre nos deu, fazen-
do tudo que pedimos. Agora, há um amigo comum que deseja voltar para seu
país, e eu lhe peço que escolha pessoalmente quem deve proteger esse homem.
Ninguém pode suspeitar de sua condição de revolucionário. Ele só quer voltar
para seu país. Nos assuntos da Bolívia eu não me meto".21
Monje concordou imediatamente, tendo em vista as boas relações com
Cuba e por não se tratar mais de peruanos ou argentinos, mas de algum líder
da Revolução Cubana com destino à Argentina. O boliviano não hesitou
em consentir, nem demorou a adivinhar que se tratava de Che Guevara. O
resto da cúpula do PCB não suspeitava disso, mas fez a mesma interpretação
das intenções cubanas.* Jorge Kolle confirma:
Achávamos que seria uma repetição da experiência de Masetti, pois, embora
não soubéssemos o roteiro completo, tomaríamos parte de uma sequência de
atos que nos davam uma ideia do que ia ser feito, e onde. Nancahuazú fica mais
perto da Argentina, mais perto da Argentina ou do Paraguai que de La Paz.
Está numa área quase sem população que possa abastecer a guerrilha, em uma
província, Cordillera, que tem 82 mil quilómetros quadrados, quase a área de
toda Cuba, mas só com 40 mil habitantes. Isso nos levava a acreditar que nos-
sa tarefa seria transportar um grupo para a Argentina.22
O PCB pôs à disposição dos cubanos os quatro quadros que já vinham
colaborando com eles: Roberto Peredo, o Coco, Jorge Vázquez Viana, o Loro,
Rodolfo Saldana e Júlio Mendez, o Nato. Os três primeiros foram quase ime-
diatamente despachados para Havana, para um novo período de instrução
para a guerrilha. Voltaram em julho, via Praga, onde provavelmente se
encontraram com o Che. Ao regressar, encarregaram-se de reunir um grupo
de membros da Juventude Comunista para enviá-los, junto com Inti Peredo,
o irmão de Coco, para o treinamento militar em Cuba. A manobra era muito
mais ambiciosa e complicada do que parecera num primeiro momento: visa-
va nada menos que estabelecer uma guerrilha-mãe na Bolívia. Monje, apeli-
dado de Altoperuano por seus correligionários — por causa de seu caráter
impenetrável e ardiloso, identificado com o dos habitantes do Alto Peru —,
acredita hoje que Fidel o enganou, e é bem provável que esteja certo.
Mas pode-se aventar outra hipótese: ao fazer o acordo com Monje, Cas-
tro talvez pensasse que o Che insistiria em logo cruzar a Bolívia e voltar para
a terra natal. Ainda não o convencera a permanecer em território boliviano,
em vez de marchar para a morte certa na Argentina. Não se sabe se Fidel
enganou Monje ou não. Na realidade, os comunistas bolivianos nunca
chegaram a descartar categoricamente a luta armada em seu país, querendo
com isso evitar uma clara divergência com cubanos. Quando Pombo e Tuma
chegaram a La Paz, em fins de julho, e celebraram a primeira reunião com

(*) Desde agosto de 1966, Jorge Kolle intuiu que os cubanos escondiam algo. No con-
gresso do Partido Comunista Uruguaio, realizado naquele mês em Montevidéu, Kolle confi-
denciou a Rodney Arismendi, o dirigente do partido anfitrião, que existia "um projeto guer-
rilheiro orientado para o sul, em que os cubanos desempenham um papel de destaque". (Ver
Régis Debray, La guerriíla dei Che, SigloXXl, México DF, 1975, p. 79.)
membros do partido, estes afirmaram que Monje se incorporaria à luta arma-
da ou, do contrário, o resto do partido o faria.25 Na mesma reunião, o próprio
Monje prometeu aos delegados do Che que cederia pelo menos vinte ho-
mens para a guerrilha. Quando os cubanos sondaram Monje sobre a possível
integração do Che à luta, o boliviano respondeu que "se isso acontecer,
lutarei ao lado dele, seja onde for".24 Ninguém punha as cartas na mesa, e
todos se vangloriavam de sua habilidade para blefar, como confessaria Jorge
Kolle anos mais tarde: "Eu me orgulho de ter despistado os cubanos, pois um
dia eles achavam que eu era pró-guerrilha e no dia seguinte, antiguerrilha.
Ou seja, eu os despistei completamente".25
Segundo Williatn Gálvez, o hipotético autor de uma biografia oficial
inédita do Che, sua passagem por Praga prolongou-se até julho.* Quando
Guevara achou que tudo estava em seu devido lugar, decidiu voltar a Cuba.
Foi recebido no aeroporto de Rancho Boyeros por Raul Castro, em missão
de paz e reconciliação. Logo foi para uma casa de veraneio em San Andrés
de Taiguanabo, na cordilheira de los Organos, onde procurou, por várias
semanas, minimizar os estragos causados por longos anos de ausência.
Começou também a preparar seriamente a nova epopeia, procurando evitar
os erros que teriam causado o desastre no Congo. Mas, como lamentaria
anos mais tarde um de seus amigos, sua obsessão por não repetir os erros da
África levou-o a cometer outros incontáveis equívocos: fez na Bolívia o que
devia ter feito no Congo, e vice-versa.
Desta vez, ele mesmo selecionou o grupo, homem a homem, junto com
o comandante René Tomasevich, a equipe de Pifieiro e Raul Castro. Mui-
tos dos que insistiram em ser incluídos na lista não o foram: Ulises Estra-

(*) "Cuando el Che se Uamó Ramón", entrevista com William Gálvez, revista Cuba
Internacional, ns 296,1995, p. 31.0 general Gálvez escreveu, em tese, um relato da passagem
do Che pelo Congo, pelo qual chegou obter o prémio Casa de Ias Américas de 1995, mas que
se particularizou por não ter sido publicado [...] Sem dúvida foi o primeiro livro a ser premia-
do antes de estar pronto. É provável que as mesmas razões de 1967 tenham impedido qual-
quer outro cubano de escrever uma biografia do Che, ou mesmo a publicação em Cuba de
documentos como as Actas dei Ministério de Industrias ou Pasajes... {el Congo), e dificultem
também a conclusão e edição do texto de Gálvez. Benigno afirma que o Che voltou a Cuba
em abril de 1966, mas essa data provavelmente esteja antecipada. Não é preciso dizer que em
Cuba esse capítulo da vida do Che permanece cercado de mistério. Os "cronólogos" cubanos
não fornecem nenhuma informação sobre o período, embora indiquem a data de 20 de julho
como a de seu retorno a Cuba. (Ver Dariel Alarcón Ramírez, Benigno, Vie et mort, op. cit., p.
113, e Adys Cupull e Froilán González, Un hombre bravo, Ediciones Capitán San Luis,
Havana, 1995, p. 309.)
da, Emilio Aragonês, Alberto Mora, Haydé Santamaría e vários outros. O
Che estabeleceu comunicações com o país andino e começou a definir onde,
com quem e quando as operações teriam início. Logo surgiram as primeiras
dúvidas: operar em uma área boliviana chamada Alto Beni, no noroeste do
país, e concentrar-se na microrregião semitropical chamada Los Yungas,
próxima a La Paz? Ou no sudeste, na bacia do rio Grande, perto de Camiri,
a capital petrolífera do país? Apoiar-se no Partido Comunista da Bolívia,
que, segundo Fidel Castro e Manuel Pifieiro, já estava plenamente compro-
metido com a ação armada? Ou buscar alianças com grupos maoístas com os
quais o Che já havia feito contato, entre outros o encabeçado por Oscar
Zamora — a quem Guevara conhecera na ilha em 1964, antes de sua expul-
são do PCB como pró-chinês? Depender exclusivamente do aparato cubano,
em especial dos homens de Pifieiro e Raul, que tanto o decepcionaram no
Congo por sua incrível incompetência? Ou montar paralelamente uma rede
própria de comunicações, apoio, logística e informação? Entre julho e
novembro — quando abandonou a ilha para sempre —, o Che debateu-se
entre essas alternativas, sem chegar a se decidir definitivamente por uma
delas, exceto no que dizia respeito à localização do foco. E mesmo nesse pon-
to, a decisão foi fruto mais das circunstâncias que de uma deliberação pon-
derada e consciente.
Os principais combatentes eram quase todos quadros ligados ao Che
desde a "invasão", inclusive vários que o acompanharam ao Congo e outros
que estiveram com ele no Ministério da Indústria. Uma vez escolhidos,
foram aquartelados em um campo de treinamento em Ocidente. Ali ficaram
até serem levados para a casa do Che em San Andrés, onde aconteceu uma
cena célebre: René Tomasevich conduziu os futuros e os antigos guerri-
lheiros ao terraço, onde logo apareceu um homem idoso, de estatura media-
na, calvo, sem barba e de óculos, que começou a insultá-los, chamando-os
de "bostas" e incapazes, ineptos para a luta armada. A audiência foi se irri-
tando, até que Jesus, o Ruivo, Suárez Gayol vice-ministro de Indústrias e
companheiro do Che desde a batalha de Santa Clara, reconheceu-o e
abraçou seu antigo chefe.26 Os recrutas se encheram de orgulho e felicidade; a
honra de terem sido escolhidos superava qualquer possível dúvida ou temor.
Não imaginavam que quase todos iriam morrer nos grotões bolivianos.
Pouco depois do aniversário de Fidel, em 13 de agosto, começou o
treinamento a sério. O Che partilhava com seus homens o ritmo desenfrea-
do de todas as tarefas, físicas e burocráticas. Começou com uma advertên-
cia: teriam de esquecer sua condição de oficiais, convertendo-se novamente
em soldados rasos, porque na Bolívia eles seriam exatamente isso. As sessões
de tiro começavam às seis da manhã, uma hora depois do toque de alvorada.
Às onze havia uma hora de descanso e em seguida uma marcha forçada de
doze quilómetros pelas colinas, com uma mochila de vinte quilos nas costas.
Mais uma hora de repouso, às seis da tarde, e o trabalho recomeçava, com
aulas de cultura geral: línguas, história, matemática, espanhol. Às nove,
para encerrar, duas horas de estudo do idioma quíchua. A lógica do Che era
evidente: para evitar as tragédias do Congo, queria guerrilheiros bem for-
mados militar e politicamente, conscientes do que faziam, dispostos a
enfrentar a morte. Precisava de um batalhão de Che Guevaras.
Nos fins de semana, recebiam visitas de altos funcionários. Segundo
Benigno, Fidel Castro compareceu em várias ocasiões. Explicou aos inte-
grantes os objetivos e o motivo da nova expedição: desviar a atenção dos
Estados Unidos. Na ótica de Castro, os compromissos de Cuba em matéria
de produção açucareira impunham uma participação desmedida da popu-
lação na colheita da cana. Com isso, a educação e o esforço para diversificar
a economia eram preteridos. Cada combatente custava a Cuba 10 mil
dólares. Era preciso impor ao "imperialismo" um custo de 100 mil dólares por
guerrilheiro tombado. A luta na Bolívia seria renhida e prolongada; duraria
de cinco a dez anos. Aliviaria pelo menos uma parte da pressão sobre Cuba.
O raciocínio de Fidel, sem ser absurdo, representava, no fundo, um argu-
mento forjado para justificar uma decisão tomada por outros motivos.
Inscrevia-se na recente mas já inegável tradição cubana de apoio aos movi-
mentos revolucionários no resto do continente. Com uma pequena diferença:
no caso da Bolívia, à diferença da Venezuela, Nicarágua, Haiti ou mesmo da
Colômbia, o movimento não existia. Os cubanos seriam a vanguarda, e não
uma força de apoio. A suposta disposição do PCB para lançar-se à luta armada
não equivalia a um foco preexistente. Os cubanos e o Che não chegariam para
respaldar uma iniciativa anterior à sua chegada, eles mesmos seriam o estopim
da guerrilha. Com isso, levava-se ao extremo a tese de que a revolução pres-
cindia de condições objetivas prévias: elas seriam criadas por um grupo
estrangeiro. Pela primeira vez desde a invasão da República Dominicana em
1959 — que redundou no massacre de todos os expedicionários —, um grande
número de combatentes cubanos era destacado para lutar em um ponto da
América Latina onde não havia um núcleo anterior de combatentes locais.
A guerrilha boliviana foi inteiramente concebida e preparada de
encomenda para o Che. Mas como era indispensável formar um foco, foi
necessário dar-lhe um embasamento estratégico, pois, do contrário, saltaria
aos olhos sua irracionalidade política. Daí o raciocino, montado a posteriori,
de distrair a atenção do imperialismo para romper o bloqueio imposto a
Cuba. E verdade que uma vitória revolucionária em outro país daria novo
fôlego à ilha. Mas se a luta que levasse a tal vitória se identificasse demais
com Cuba, o preço a ser pago pelo regime neutralizaria os ganhos da vitória.
Assim ocorreu na Nicarágua sandinista, uma década depois, mesmo sem
uma presença cubana tão decisiva como na Bolívia: os custos para Cuba
foram tão altos como os benefícios.
Parecia uma última aposta de Fidel Castro: era um tiro no escuro. Se
a aventura boliviana frutificasse e triunfasse, ou se o foco-mãe conduzisse
ao êxito em uma nação vizinha, o isolamento de Cuba diminuiria, novos
horizontes se abririam. Do contrário, Castro se resignaria a um inevitável
alinhamento com Moscou, até que surgisse uma nova trégua ou um
alargamento de sua margem de manobra. Durante o período de sobre-
vivência do Che na Bolívia, um pouco antes e um pouco depois, Castro
mudou nitidamente seu discurso e seu comportamento com relação à
URSS. Voltou a apoiar as tentativas insurrecionais no continente. Em
princípios de 1968, as relações cubano-soviéticas atravessaram sua pior
crise, com a suspensão do fornecimento de petróleo russo a Cuba. Depois
da derrota definitiva do Che e dos focos remanescentes em outros países,
chegou a hora de Fidel arcar com os prejuízos. Em agosto de 1968 ele se
curvou ante a invasão soviética da Tchecoslováquia, concordando com
uma medida que marcaria para sempre o futuro do socialismo no mundo
e em Cuba. Foi a verdadeira consequência do fracasso boliviano do Che.
Outro futuro aguardaria a América Latina se o argentino não tivesse sido
crivado de balas em La Higuera. Mas efeitos não são causas. A guerrilha
na Bolívia representava a solução de um compromisso, não um objetivo
estratégico.

A partir de agosto de 1966, os preparativos se intensificaram. Vários


bolivianos receberam treinamento em Cuba. Ao mesmo tempo, Pombo,
Papi e Pachungo arrematavam orgulhosamente os últimos detalhes na
Bolívia. Tâmara Bunke, a Tânia, de volta a La Paz ao fim da viagem a Praga,
assumiu o papel de contato. Escondeu os cubanos, introduziu-os em dife-
rentes círculos locais e garantiu a logística: dinheiro, casas seguras, do-
cumentos, armas. Logo, porém, os cubanos perceberam que nem tudo era
tão fácil: algo ia mal.
A relação com o partido boliviano se complicou. Quando Monje e os
outros dirigentes do PCB de deram conta de que os cubanos não passariam
simplesmente pela Bolívia, rumo à Argentina, mas pretendiam se estabele-
cer no país, ficaram extremamente incomodados. Os cubanos solicitaram ao
dirigente boliviano os vinte homens prometidos, mas ele desconversou.
Disse ter "problemas com o Comité Central, que se opõe à luta armada". Os
delegados de Guevara sentiram que havia "muita incerteza quanto à decisão
de aderir à luta armada". Nada avançava, os planos marcavam passo: "Há
pouco entusiasmo sobre o assunto". Concluíram que "somos os únicos que
fazemos toda a organização; eles não estão nos ajudando".27 Quando infor-
maram Havana sobre a confusão e a adversidade, provocaram desânimo e
desconcerto: "Eles estão loucos (na Bolívia) porque nada está pronto aqui".28
A situação se agravou no inverno de 1966, quando entrou em cena um
personagem pouco ortodoxo, o escritor francês Régis Debray, que visitara La
Paz em 1964 como uma espécie de emissário chinês, designado pelos maoís-
tas de Paris. Agora chegava à Bolívia enviado por Fidel Castro, com outro
propósito: estudar as diferentes regiões do país para verificar qual seria a mais
propícia para um foco; fazer contato com os sindicalistas pró-China de
Moisés Guevara (um líder sindical mineiro), distanciados tanto do PCB
como do grupo maoísta encabeçado por Oscar Zamora, com quem ele tam-
bém manteve conversações.* Além de escolher a área mais indicada para a
guerrilha, Debray fora incumbido de reforçar o trabalho de convencimento
do Che sobre a viabilidade do esquema boliviano. A vinculação do escritor
francês com o caudilho cubano estava longe de ser um segredo. Para quem
ainda tivesse alguma dúvida, acabava de ser publicado seu livro Revolução na
Revolução?, com prefácio do próprio Fidel Castro.
Foi justamente a aparição de Debray em setembro, aliada à presença de
Pombo, Papi e Tuma em La Paz e Cochabamba desde julho de 1966, que des-
pertou as suspeitas de Mário Monje. A versão inicial de Fidel, da mera "pas-
sagem" de um alto dirigente cubano rumo à Argentina, não combinava com
a chegada de personagens como Debray e os auxiliares do Che. Como recor-
da Jorge Kolle, "conhecíamos Debray fazia muito tempo, sabíamos de suas
relações com os venezuelanos e de seu alinhamento com a dissidência
maoísta, a dissidência chinesa".29 Quando os comunistas souberam da pre-
sença do francês em Los Yungas, compreenderam que os cubanos "estavam

(*) "Eu conversei com Zamora. Fui falar com ele sobre a guerrilha. Ele disse sim." (Régis
Debray, entrevista com o autor, Paris, 3/11/95.)
sonegando informações, não nos deram o roteiro completo".30 Monje, ao ver
Régis Debray certo dia em Cochabamba, enfureceu-se e interpelou Papi e
Pombo: "O que Régis Debray está fazendo na Bolívia? Vocês o conhecem,
mas nós não temos nenhum contato com ele. Ele veio para que vocês come-
cem a luta guerrilheira". "Nada disso", responderam os cubanos, "nós não
temos nada a ver com ele." E Monje: "Vamos ter que apurar isso. Vocês estão
querendo desenvolver a luta guerrilheira aqui e não estão cumprindo o com-
promisso".*
Desencadeou-se nova série de discussões, agora entre Monje e a maio-
ria da cúpula de seu partido, de um lado, e Castro e Pineiro, de outro, tendo
o Che como espectador mais ou menos inocente. Os cubanos faziam jogo
duplo: incitavam Monje a participar da luta armada, que ele não desejava
desencadear em seu país por considerá-la inviável.** Ao mesmo tempo,
procuravam infiltrar-se no Partido Comunista da Bolívia para provocar
divisões, reforçando como podiam a facção partidária da via militar, com-
posta por d irigentes como os Peredo, J orge e Humbero Vázquez Viana, e pela
Juventude, encabeçada por Loyola Guzmán. Era lógico que o Che e os
cubanos se identificassem com esses interlocutores dentro do partido, liga-
dos a eles por laços de solidariedade, afeto, experiências comuns e uma
grande afinidade ideológica. Para não colocarem seus amigos diante da dura
escolha entre a luta armada e a disciplina partidária, Guevara e os cubanos
não podiam romper com a direção do PCB.*** Mais tarde, em 31 de dezem-
bro, ocorreria a ruptura, a cisão, a hostilidade declarada do PCB, mas até
aquele momento era indispensável suavizar as tensões entre cubanos e
comunistas locais. A única forma de consegui-lo era por meio de artima-

(*) Mário Monje, op. cit. Debray confirma que, de fato, não conhecia Papi nem Pom-
bo. (Régis Debray, entrevista com o autor, Paris, 3/11/95.)
(**) Apesar das arestas que ainda persistem entre Monje e Kolle, suas visões coinci-
dem. Kolle afirma: "Como íamos nos meter em um projeto que tínhamos combatido? A vida
inteira nós fomos solidários com a Revolução Cubana, a vida inteira, e estamos dispostos a
suportar tudo para defender a revolução — inclusive que nos acusem de traidores, covardes
ou o que for. Mas uma coisa é o fato histórico da Revolução Cubana e outra são as vicissitudes
dos personagens através da história". (Kolle, op. cit.)
(***) O Che tinha consciência do dilema dos comunistas dispostos a se incorporar à luta
armada. Em um dos primeiros registros de seu diário de campanha, ele diz: "Adverti os bolivianos
sobre as responsabilidadesque assumiriam violando a disciplina de seu partido ao adotarem outra
linha". (Ernesto Che Guevara, "Diário de Bolívia", nova edição comentada, em Carlos Soria
Galvarro (ed.), ElChe en Bolívia, documentos y testimonios, t. 5, La Paz, Cedoín, 1994, p. 63.
Esta é a edição mais recente do diário e a que contém notas mais detalhadas.)
nhãs. O Che e seus homens não se equivocavam quanto à integridade, cora-
gem e compromisso dos comunistas simpáticos a sua causa, tanto dos mem-
bros da Juventude como da facção pró-castrista. Mas pagaram um alto preço
por dedicar tanto tempo e esforços exclusivamente ao PCB, em detrimento
de outros grupos. Além disso, a estratégia de alimentar divisões internas e
agir às escondidas da direção teria graves consequências.
Monje, por seu lado, logo começou a preparar suas próprias armadilhas
e disfarces. Primeiro, fez que o sítio dos cubanos não fosse comprado em Alto
Beni-Los Yungas — os lugares mais indicados para as operações cubanas. O
novo lugar escolhido, Nancahuazú, respondia a seu próprio objetivo: tirar o
quanto antes o Che e os cubanos da Bolívia. A diferença com a localização
inicial, no noroeste, era evidente. A primeira não tinha boas vias de acesso.
Era apropriada para uma luta na Bolívia, mas não para uma coluna-mãe da
qual sairiam contingentes rumo a outros países, nem muito menos para uma
rápida incursão à Argentina. O Sudeste, ao contrário, reunia as melhores
condições para esse fim. Em seguida, Monje convocou o birô político do par-
tido e advertiu em tom solene: "Senhores, a luta guerrilheira vai começar na
Bolívia em setembro ou outubro. Régis Debray está reconhecendo o ter-
reno"." Decidiu viajar a Havana, para consolidar o compromisso inicial
com os cubanos ou rompê-lo de uma vez.
Ao mesmo tempo, Fidel e Pineiro escondiam do Che, na medida do
possível, a contradição de interesses e posições em jogo. Até a véspera de sua
viagem à Bolívia, o Che ignorava que Monje não apoiava sua incorporação
à luta armada e fora até certo ponto enganado por Fidel. Nem imaginava que
os comunistas efetivamente comprometidos com o plano representavam
apenas uma minoria marginal do PCB. Os motivos de Castro eram com-
preensíveis: o principal atrativo alegado para estabelecer um foco na
Bolívia, e não na Argentina, eram os "recursos" de Cuba no país. Revelar ao
Che a situação real, o ceticismo dominante e a precariedade de recursos seria
contraproducente: Guevara responderia que, nesse caso, o melhor seria par-
tir de uma vez para sua pátria. Construiu-se assim uma cadeia de enganos,
mal-entendidos, eufemismos e simulações a fim de sustentar uma decisão já
tomada: iniciar a luta armada na Bolívia, contra tudo e todos. Mais tarde,
convergiriam para o trágico desfecho: o completo fracasso da tentativa e a
morte, atroz ou heróica, de todos os seus protagonistas diretos.
Durante as duas últimas semanas em San Andrés de Taiguanabo,
acelerou-se o treinamento e começou a ser elaborada uma falsa biografia
para cada um dos cubanos. Uns seriam uruguaios (o Che); outros, equato-
rianos (Benigno); uns terceiros, peruanos e até bolivianos. No total, partiram
21 cubanos.'2 O grupo incluía cinco membros do Comité Central do partido
e dois vice-ministros. Guevara esboçou um primeiro plano e um cronogra-
ma de longo prazo, que seria totalmente desobedecido. A intenção era criar
duas frentes, uma perto da cidade de Sucre, outra no Alto Beni. Até 20 de
dezembro deviam chegar todos os cubanos escolhidos, além de sessenta boli-
vianos. A partir desse núcleo inicial não seria criado apenas um foco guer-
rilheiro, e sim uma espécie de escola de quadros qualificados para a guerrilha
sul-americana. As características principais do acampamento deveriam ser,
portanto, o sigilo, a impenetrabilidade, o isolamento, e não tanto a proxi-
midade de povoações camponesas que facilitassem o recrutamento e
abastecimento. Em princípios de 1967, seria feito um apelo às lideranças
revolucionárias latino-americanas para que enviassem seus melhores
quadros, pelas vias de acesso facilitadas pelo PCB e por Monje.* Do acampa-
mento inicial partiriam diversas colunas nacionais, rumo a seus países, para
incursões mais de treinamento e reconhecimento que de combate. Ao fim
de vários ensaios, essas colunas entrariam definitivamnte em seus países,
com o Che à frente da coluna argentina.** Antes, porém, em 26 de julho de
1967, a guerrilha faria sua primeira aparição pública na Bolívia, tomando de
assalto o quartel de Sucre em Chuquisaca, promovendo o batismo de fogo
dos recrutas." Saltava aos olhos a semelhança com a experiência da sierra
Maestra: a criação de uma coluna-mãe da qual se desdobrariam outras.
O dia D foi 15 de outubro. Nessa data, desmontou-se o campo de treina-
mento de San Andrés e começaram as transferências à Bolívia, todas
escalonadas e seguindo longos e complicados trajetos. Com isso, a operação
contou com a vantagem inicial do sigilo absoluto, mas, por outro lado, o
enorme esforço para mantê-lo logo se mostraria desproporcional. Como o
próprio Che confessaria a Renán Montero, um de seus contatos na capital
boliviana, quando os dois se encontraram na fronteira com o Brasil, em mea-

(*) Talvez algumas partes desse plano delirante fossem factíveis. Um relatório confi-
dencial da Seção de Informação do Departamento de Defesa dos Estados Unidos assinalava,
em 16 de março de 1967, que um grupo de revolucionários panamenhos pensava em zarpar
clandestinamente de seu país com destino à Argentina, onde receberia treinamento militar
em um acampamento comandado por Ernesto Guevara. (Department of Defense Intelli-
gence Report, AUeged trainingofPanamanian revolutionaries in Argentina, Colón, 16/3/67, nfi
2230024967, secreto.)
(**) Esta versão já foi divulgada por Régis Debray, em La guerrilla, op. cit., p. 75. O
testemunho de Benigno é valioso por confirmar que a ideia partiu de Cuba, concebida por
alguém que esteve no campo de treinamento. (Ver Vie et Mort, op. cit., p. 127)
dos de novembro, os dispositivos de segurança das autoridades fronteiriças
bolivianas revelaram-se muito mais falhos e permeáveis do que ele pensara.
O empenho por manter o sigilo foi, em parte, desnecessário.* Talvez tanto
esforço tivesse outra finalidade. É provável que os soviéticos não tenham se
inteirado imediatamente dos preparativos e da missão na Bolívia. Dessa vez
Castro não informou Alexeiev.M Uma nota secreta da CIA, com data do ano
seguinte, relata que, no outono de 1966, Castro "informou Brejnev sobre a
ida do Che à Bolívia, com homens e equipamento fornecidos por Cuba".'5
Mas o fato é que os preparativos desgastaram o Che. Dias antes da par-
tida de Cuba, ocorreu um incidente que é uma boa amostra de sua obsessão
pelo segredo, bem como de seu estado de ânimo e o de seus companheiros.
Aleida costumava visitar o Che no acampamento. Já na iminência da
viagem, quando os outros combatentes não tinham mais permissão para
encontrar-se com os familiares, Ramiro Valdéz levou-a a San Andrés para
que passasse os últimos dias com o marido. O Che armou um enorme escân-
dalo, insultando Valdéz e proibindo Aleida de descer do carro. Em pleno
bate-boca, chegou Fidel. Ao entender o que estava acontecendo, sugeriu ao
Che que deixasse que todos os expedicionários vissem seus entes queridos
mais uma vez antes da partida. Assim, nenhuma regra de ouro da clandes-
tinidade seria violada. Guevara concordou e, nessas condições, aceitou que
Aleida ficasse em San Andrés. * * As exageradas exigências que ele impunha
a si mesmo e aos demais contribuíram bastante para o desastre boliviano.
Foi montado um impressionante aparato de desinformação em torno
da expedição à Bolívia. Se tivessem dedicado o mesmo tempo e esforço a
outros aspectos da operação, com certeza tudo seria bem diferente. Ramiro
Valdéz e os serviços do Ministério do Interior forjaram uma história para que

( *) Renán Montero, o Ivan, entrevista com o autor, Havana, 25/8/95. De todas as


entrevistas realizadas para este livro, essa é a única que não pôde ser gravada nem feita na pre-
sença de uma testemunha. Renán Montero nunca falara sobre seu papel na Bolívia, nem
muito menos de sua participação na Nicarágua, onde combateu desde 1961, com Toraás
Borge e o grupo de sandinistas armados pelo Che, e onde foi subchefe de segurança do Esta-
do entre 1979 e 1990. Um correspondente estrangeiro em Havana acompanhou o autor até
a casa onde Montero se encontrava de passagem, comprovou que era efetivamente ele e pode
confirmar que Montero concordou em ser entrevistado pelo autor, mas não presenciou a
entrevista.
(**) Dariel Alarcón Ramírez, Benigno, Vie et mort, op. cit., pp. 131-2. O filho de Jesus
Suárez Gayol, o primeiro expedicionário cubano morto na Bolívia, confirmou o sentido ge-
ral desse relato, em companhia de sua esposa Marial, durante uma conversa em Havana em
janeiro de 1996.
cada combatente pudesse justificar sua hipotética viagem de estudos à URSS.
Entregaram-lhes cartas, postais e documentos falsos a fim de que seus pa-
rentes se convencessem do destino que os aguardava, chegando ao refina-
mento de elaborar a lista dos presentes típicos dos países do Leste europeu
que cada um traria para suas esposas e filhos.
Conta-se que, pouco antes da partida, na barranca de San Andrés,
onde tinha sido instalado um cabo para a prática de tiro com alvos móveis,
o Che e Fidel sentaram-se juntos em um imenso tronco e tiveram sua última
conversa a sós.* Um oficial do Ministério do Interior que assistiu a todos os
treinamentos, mas que acabou sendo excluído da expedição, conseguiu
entreouvir parte da conversa e deduziu o resto pelos gestos dos dois amigos:
Castro, falando; o Che, carrancudo e retraído; Castro, intenso, loquaz; Gue-
vara, silencioso. O Caballo, como sempre chamaram Fidel em Cuba, insistiu
nos problemas que haviam surgido e nas dificuldades inerentes à expedição
boliviana. Enfatizou a deficiência das comunicações com o longínquo país
andino. E revelou — agora sim — as reservas de Monje e a deficiência de
organização de Inti e Coco Peredo. Procurava dissuadir o Che, ou ao menos
conseguir que ele adiasse a viagem. Ambos pararam e trocaram fortes pal-
madas nas costas, que não chegavam a ser socos, mas eram mais que um
abraço. Os gestos de Fidel revelavam seu desespero diante da teimosia do
argentino. Sentaram-se de novo, em silêncio. Depois, Fidel levantou-se e foi
embora.
Pela última vez na vida, o Che foi vencido pela pressa. Embora lhe fal-
tassem muitas informações, pôde compreender que boa parte dos planos
para a Bolívia tinham ido por água abaixo. A medida que fora tomando
consciência da envergadura do esquema, Mário Monje passara a sabotá-lo
de forma explícita. Os encontros com Pombo e as andanças de Debray
demonstraram suas suspeitas, confirmadas nas viagens de seus colegas à ilha:
os cubanos queriam montar um foco no Alto Beni. Ele decidiu então "quei-
mar" a área de operações, ou seja, fazer com que a notícia dos planos cubanos
chegasse aonde não devia. Assim, obrigou os colaboradores do Che a aban-

(*) Essa versão foi confiada ao autor por uma fonte que pediu para não ser citada, mas
que já provou ser segura. Ela não contradiz necessariamente o testemunho de Fidel Castro em
sua entrevista de 1987 para Gianni Mina. Castro conta como, "no dia em que ele foi embo-
ra", fez uma brincadeira com o Che, convidando-o para jantar com vários companheiros da
cúpula cubana. Ninguém o reconheceu, mas essa não foi a última vez em que estiveram a sós,
Fidel e o Che. Na ocasião, Guevara já estava clandestino. Até mesmo seus companheiros de
partido não sabiam onde ele estava.
donarem o projeto do Alto Beni-Los Yungas e trocá-lo pelo do canhão de
Nancahuazú, no Sudeste boliviano, um lugar totalmente impróprio para a
guerrilha, embora adequado para uma remota escola de quadros ou para
servir como base de um novo foco argentino.* Hoje, Monje confessa que
induziu o deslocamento para Nancahuazú sabendo que era uma ratoeira,
pois queria aproximar ao máximo o Che da Argentina, evitando a defla-
gração da luta armada na Bolívia.**
Debray complica ainda mais o assunto ao afirmar que o melhor texto
político de sua vida foi justamente o informe, encomendado por Fidel e
entregue a Pineiro, expondo por que o Alto Beni-Los Yungas era a região
mais propícia para uma guerrilha, devido ao clima, ao relevo, aos
antecedentes políticos, rurais e urbanos. *** Porém, de acordo com as lem-
branças atuais de Debray, o Che jamais recebeu o estudo que foi entregue a
Pineiro e, portanto, não assimilou de todo a enorme diferença entre a região
do Alto Beni e a de Nancahuazú.**** Em abril de 1968, meses depois da
morte do Che, reuniriam-se em Havana os três sobreviventes cubanos da
Guerrilha: o mais novo dos irmãos Peredo, António; o irmão de Jorge
Vázquez Viana, Humberto; Juan Carretero, ou Ariel; e Angel Braguer, o
Lino. Pombo disse: "Nós pensávamos que a luta se desenvolveria no Norte
[...] Não achamos que ia ser em Nancahuazú".16 E, dirigindo-se a Ariel, acres-
centou: "O Che foi enganado. Tinham dito para nós que era uma zona de

(*) Monje afirma que, em sua conversa com Guevara em 31 de dezembro de 1966,
esclareceu a questão da seguinte forma: "Nós compramos essa propriedade, em primeiro
lugar, para ser um ponto de passagem para o sul, de concentração e deslocamento de forças.
O lugar é ruim; estrategicamente é muito ruim. Não só porque os montes são raros e quase sem
vegetação, mas porque quase não há povoações por perto. E uma espécie de arapuca: não
serve para sustentar uma luta guerrilheira. Para a luta armada, é um lugar mal escolhido,
porque na verdade não era esse seu propósito." (Mário Monje, op. cit.)
(**) Humberto Vázquez Viana, elemento próximo à guerrilha, um dos responsáveis
pela rede urbana e irmão de Jorge, o LOTO, sustenta que Monje também se opunha ao Alto Beni
porque na região havia organizações camponesas de inspiração maoísta, controladas por seus
arquiinimigos pró-chineses de Oscar Zamora. (Ver Humberto Vázquez Viana, Antecedentes de
laguerrilla en Bolívia, Universidade de Estocolmo, Research Paper, 1988, p. 27.)
(***) Régis Debray, entrevista com o autor, Paris, 3/11/95. Debray acrescenta: "Eu pre-
parei um informe e o entreguei a Pineiro. Não falei com o Che".
(****) Debray até hoje ignora se seu trabalho não foi aproveitado por razões de tempo
— quando terminou o relatório, o Che já estaria a caminho da Bolívia — ou por motivos
políticos — por hesitação de Pineiro e/ou Castro em apresentá-lo. Depois, comentaram que
seu informe na realidade serviria para a abertura da segunda e terceira frentes, no Alto
Beni e em Chapare. (Debray, entrevista, op. cit.)
colonização, e não era. É preciso rever os relatórios, que devem estar por
aí".'7 Como concluiu Humberto Vázquez Viana, aquilo significava que a
escolha da zona de operações da guerrilha não se baseara em um estudo sério
e ponderado: Pombo e Papi simplesmente não conheciam o país.* Além dis-
so, o Che não escondia seu descontentamento com o desempenho de seus
enviados. Na versão integral do diário de Pombo, Martínez Tamayo relata que
em setembro foi vítima de uma das conhecidas explosões do Che: "Meu
grande erro foi enviar você (à Bolívia), pois não serve para nada". Papi respon-
deu que o comentário lhe doía na alma, pois estava naquele país "não por um
interesse particular pelas coisas da Bolívia, mas por lealdade ao Che".'8
Eis aqui mais uma consequência do fracasso do Congo: o Che não quis
depender dos Serviços cubanos de Informação, valendo-se de seus próprios
colaboradores. Nenhum dos homens de Pineiro foi enviado para a ação de
reconhecimento na Bolívia.** Nenhum dos funcionários antes lotados na
embaixada de Cuba em La Paz foi requisitado para viajar ao país andino.
Debray não pôde ser ouvido. Não se ouviu sequer Furri, o confidente de Raul
Castro que participara dos preparativos da guerrilha de Salta. Depois do com-
portamento dos homens de Pineiro no Congo, o Che desconfiava de todos,
exceto de seus colaboradores mais próximos. Mas estes, como o próprio Gue-
vara reconhecerá na conversa com Monje no final do ano, eram militares e
não operadores políticos. Enquanto o argentino esteve em Cuba, as infor-
mações procedentes da Bolívia também foram filtradas pela equipe de Pineiro.
O próprio Barbaroja, Armando Campos e Juan Carretero o visitavam quase
todos os fins de semana. Segundo Benigno, "as informações só chegavam ao

(*) Viana e Saraiva, Bolívia: ensayo, op. cit. Benigno sugere outra explicação para o fato
de Papi Martínez Tamayo ter aceito a região de Nancahuasú: "Papi era um homem que se ilu-
dia. As ilusões andavam junto com seus problemas pessoais. Por ali, em Lagunilla (perto de
Nancahuasú) havia umas moças que ele e Coco Peredo tinham conhecido. Aquilo fez que eles
estabelecessem mais relações na região". A ideia parece ligeiramente rebuscada, mas quando
conhecemos a avaliação que o Che faz do Papi, inédita até princípios de 1996, torna-se mais
plausível, embora ainda improvável: "7/2/67 (três meses). Não atingiu plenas condições físi-
cas, nem tem o caráter ideal. Um pouco rancoroso e ressentido, aparentemente porque sua
posição privilegiada no C. fica muito diluída nesta constelação." "7/5/67 (seis meses). Mal.
Apesar de eu ter falado com ele, não melhorou suas deficiências e só se mostra ativo e entu-
siasta na hora do combate." (Carlos Soria Galvarro, "El Che evaloa sus hombres", La Razón,
9/10/96, La Paz.)
(**) "O aparato de Pineiro tinha condições de apoiar a ação de Ernesto, fosse no Con-
go, na Argentina ou na Bolívia, mas eles não tinham preparado esquema algum na Bolívia.
Ninguém da equipe de Pineiro esteve aqui." (Jorge Kolle, op. cit.)
Che através de Pineiro [...] Levavam-lhe notícias de tudo que se fazia na
Bolívia, o abastecimento, a logística, e só lhe diziam maravilhas".'9 O Che ti-
nha razão em desconfiar deles. Repetiram a mesma jogada do Congo.
Desde agosto Guevara deu instruções precisas a Pombo, Tuma e Papi
para que comprassem o sítio no Alto Beni. Mas eles, manipulados por Mon-
je e constrangidos pela necessidade de manter relações cordiais com ele para
protegerem seus amigos do PCB, insistiram no Sudeste boliviano. Apresen-
taram ao seu comandante um fato consumado, a compra de uma propriedade
em Nancahauzú e começaram a levar as armas para lá. O Che cedeu, talvez
por não conhecer o informe de Debray, por ainda não ter definido clara-
mente sua intenção — se um foco na Bolívia ou uma mera escala a caminho
da Argentina —, ou ainda porque o tempo o premia.* Opor-se a seus delega-
dos no país andino significaria recomeçar do zero. Também implicaria adiar
sua própria partida para a Bolívia, já que ele não poderia permanecer
indefinidamente nas cidades, sendo obrigado a internar-se com certa rapi-
dez em algum acampamento, para evitar indiscrições e delações. Não teria
como instalar-se sem comprar um sítio, e não teria sítio se não aproveitasse
o que o PCB escolhera justamente em Nancahuazú. Em vez de esperar, o Che
preferiu apressar-se e sair de Cuba o quanto antes. Temia, com razão, que a
demora fizesse que Monje e o PCB o "queimassem", ou que Fidel Castro, ao
perceber o fracasso dos preparativos, abortasse a expedição. Como recorda
Lino: "Não havia tempo para preparar mais nada".**
Ao chegar à Bolívia, o Che confirmou a inexistência dos combatentes
prometidos ou solicitados por Castro e cedidos a duras penas por Monje. Em
vez de reaproximar-se dos comunistas bolivianos ou dos pró-chineses de
Oscar Zamora (que também se abstiveram de participar da guerrilha), ou
mesmo de reorientar suas atividades para o movimento popular e dos
mineiros, o Che optou por recrutar um grupo maoísta dissidente, encabeça-
do pelo sindicalista Moisés Guevara. Quanto menores eram as exigências
para o recrutamento e quanto mais as redes se ampliavam, maior era a pos-
sibilidade de infiltrações e escolhas equivocadas: gente que aceitava incor-

(*) Lino afirma, ao contrário de Debray, que "o Che leu o informe do francês, mas
aceitou o fato consumado do Sudeste porque tinha pressa e, principalmente, não queria mais
brigas em Cuba". (Entrevista, op. cit.)
(**) Lino, entrevista, op. cit. Segundo a versão de Ciro Bustos para sua conversa com
o Che no acampamento, Guevara lhe contou que, quando Papi Martínez Tamayo viajou a
Cuba, em setembro, disse-lhe que, se não entrasse logo na Bolívia, nunca mais conseguiria
entrar. (Ver Ciro Bustos, Account ofhis stay, op. cit., p. 201.)
porar-se à guerrilha por dinheiro ou promessas e desertaria no primeiro
choque com a realidade da guerra. Mas selecionar as pessoas com mais cuida-
do implicaria também adiar o início das operações. Era impossível começar
sem combatentes bolivianos, e os de Monje tinham se reduzido a quatro ou
cinco quadros, alguns dos quais deveriam permanecer nas cidades. Resta-
vam apenas peruanos resignados e cubanos superexcitados. Era indispen-
sável a presença de bolivianos, independente de sua filiação. Esse conjunto
de circunstâncias, pela lógica, devia levar o Che a repensar toda a aventura,
ou pelo menos adiar a partida de Cuba. Mas ele, ao contrário, optou pela fuga
para a frente, aquela que seria a última de sua vida. Apesar de tudo, resolveu
manter o cronograma previsto, com os planos incompletos e os meios que ti-
nha à mão. Um homem sensato, prudente, com tempo e paciência, mesmo
não sendo guerrilheiro, teria recuado ao avistar a beira do abismo. O Che, não.
Ele tinha pressa, ansiava por sair de Cuba, onde já não havia lugar para ele.
Antes de partir, ele se despediu de Aleida e das crianças. Disfarçado de
funcionário uruguaio e com o nome falso de Ramón, calvo, barrigudo e
míope, jantou com suas filhas sem revelar-lhes sua identidade. Elas só sabe-
riam disso bem mais tarde, quando foi confirmada a notícia de sua morte. Em
23 de outubro deixou Havana, rumo a Moscou, em companhia de Pachun-
go, seu companheiro de viagem. Em Moscou tomou um voo para Praga e, de
trem, passou por Viena, Frankfurt e Paris. Depois seguiu de avião para Madri
e São Paulo e, novamente de trem, chegou a Corumbá, na divisa com a
Bolívia, em 6 de novembro. Os viajantes cruzaram a fronteira sem maiores
problemas. Horas depois, Papi, Renán Montero e Jorge Vázquez Viana os
pegaram em um jipe, levando-os a Cochabamba e La Paz. O jipe quase capo-
tou quando Vázquez Viana, observando o rosto familiar, embora desco-
nhecido, do passageiro, descobriu que se tratava do legendário comandante
Guevara. Até aquele momento, ele não sabia quem era.
Durante muito tempo, circularam diversas versões e houve muitas
dúvidas quanto ao verdadeiro itinerário do Che. Há ainda certas incon-
gruências nos passaportes que ele utilizou. Quando o exército boliviano
penetrou no acampamento e apreendeu grande quantidade de documentos,
descobriu dois passaportes falsos uruguaios, com a mesma foto, um em nome
de Adolfo Mena González, o outro de um certo Ramón Benítez Fernández.
Cada um deles tinha os carimbos de entrada e saída do aeroporto de Madri,
mas em dias diferentes do mês de outubro. Também circularam muitos
rumores sobre a presença do Che em outras partes do mundo. Betty Feijin,
ex-esposa de Gustavo Roca, o amigo do Che em Córdoba, recorda que, em
setembro ou outubro de 1966 seu marido a avisou de que se ausentaria por
uns dias. Ao voltar, insinuou que se reunira com Ernesto Guevara em
Tucumán ou Mendoza. Nora, irmã de Betty, casada com um funcionário
diplomático argentino lotado em Santiago do Chile, e que conviveu com o
Che na juventude, jura que estava em seu carro quando viu Ernesto, cami-
nhando pela rua Monjihas, perto do clube de golfe, em um dia de primavera
na capital chilena. Ele ia em mangas de camisa, disfarçado, mas perfeita-
mente identificável por quem o conhecesse bem.* Ela acenou para ele e o
Che respondeu com um gesto, como dizendo: por favor, não dê sinais de que
me reconheceu. Nora seguiu seu caminho. Ao informar seu marido, este
pediu-lhe que esquecesse o assunto, pois do contrário seria obrigado a noti-
ficar o adido do Serviço de Informação Nacional na embaixada.**
Também j á se especulou que o Che teria passado por Córdoba e inclusive
se hospedado na casa da família Beltrán, nos arredores da cidade. Nenhuma
dessas suposições é inteiramente descartável, devido ao absurdo segredo ain-
da imposto por Cuba sobre esse período da vida do Che. Vários autores, desde
o argentino Hugo Gambini até os bolivianos González e Sánchez Salazar,
mencionam diversas escalas no périplo de Guevara até a Bolívia. O general
Alfredo Ovando, o militar boliviano de mais alta patente que participou dire-
tamente da campanha contra o Che, anunciou, meses depois, que o coman-
dante ingressara no território boliviano entre 15 e 22 de setembro de 1966,
voltando, definitivamente, em 24 de novembro.40 Daniel James não só afirma
que Guevara esteve na Bolívia e em vários outros países latino-americanos na
primeira metade de 1966, como cita um artigo do jornal mexicano Exsélsior,
publicado em 14 de setembro de 1966, indicando o local exato da entrada do
Che na Bolívia, mas dois meses antes da data conhecida.41 No entanto, já são
tantos os relatos publicados, e tão irracionais parecem as razões para manter o
estudioso desinformado, que tudo permite concluir que o trajeto de Cuba à
Bolívia foi efetivamente o que consta nos documentos apreendidos.

(*) Nora Feijin, conversa telefónica com o autor, Washington DC, 22/9/95. Pergunta-
do diretamente, Gustavo Villoldo, um dos três cubanos enviados pelos Estados Unidos à
Bolívia, confirmou que o Che esteve no Chile. (Gustavo Villoldo, entrevista com o autor,
Miami, 21/11/95.)
(**) Reyna Carranza, segunda esposa de Gustavo Roca, confirmou ao autor que este
lhe contara ter encontrado o Che no aeroporto da cidade argentina de Mendoza (quase na
fronteira com o Chile). O Che estava com os cabelos louros, de óculos, e vinha do Chile.
Roca morreu nos anos 80 e seus papéis foram destruídos em fins da década anterior, quando
teve de exilar-se na Argentina. (Reyna Carranza, entrevista com Marcelo Monje, por incum-
bência do autor, Córdoba, 19/9/96.)
Em princípios de novembro, finda a odisseia e instalado no acampa-
mento de Nancahuazú, Guevara constatou que pouco do que estava previsto
existia e funcionava. Não havia armas. Não havia comunistas além dos já
conhecidos. Monje nem sequer estava no país. A equipe de comunicações
era praticamente inoperante. A zona escolhida tinha todo tipo de inconve-
nientes.* O otimismo de Guevara superava obstáculos e reveses, mas Benig-
no, ao chegar ao acampamento em 10 de dezembro, achou-o "espantosa-
mente impaciente e de péssimo humor".42 Não importava: o prazer de estar
novamente em campo, pronto para o combate, livre das incertezas dos últi-
mos meses em Praga e Cuba, logo o acalmaram enormemente. Nenhuma
dificuldade parecia insuperável. O alto grau de preparação dos cubanos per-
mitiu pôr em prática os planos iniciais, apesar dos tropeços.

O país onde Che Guevara se propôs a iniciar o incêndio da revolução


latino-americana já não era o que ele conhecera em 1953. A crónica instabi-
lidade política cedera espaço momentaneamente a uma incipiente e efémera
institucionalização, marcada pela eleição mais ou menos democrática do pre-
sidente René Barrientos, em 1966.0 estreito vínculo com os Estados Unidos,
nascido da missão de Milton Eisenhower em 1953 — quando o Che peram-
bulava pelos vales e picos andinos —, traduzira-se em uma relação de íntima
ajuda e cumplicidade. Em meados dos anos 60, a ajuda militar norte-ameri-
cana à Bolívia era a mais alta da América Latina e a segunda do mundo, só
ficando atrás da que se concedia a Israel. Mais de mil oficiais bolivianos ti-
nham passado pela Escola das Américas, no Panamá. A cooperação entre os
dois exércitos se fortalecera a tal ponto que Barrientos solicitou um avião da
força aérea norte-americana para realizar uma viagem pela Europa, e o pedido
foi prontamente atendido pela embaixada dos Estados Unidos.** A Bolívia era
um país tipicamente subordinado aos Estados Unidos, mas o nacionalismo da
Revolução de 1952 impunha um viés particular a essa submissão.

(*) Segundo Benigno, "não há comida, não há remédios, não há armas". (Entrevista,
op. cit.)
(**) Hurwitch/Amembassy La Paz to Ruehcr/SecState (secreto), 4/1/66, NSF, Coun-
try File, Bolívia, vol. IV, Box 8, LB] Library. O chefe da CIA em La Paz conta em suas memórias
inéditas que, em certa ocasião, Barrientos suspeitou de uma doença do coração e a CIA en-
viou um cardiologista dos Estados Unidos exclusivamente para examiná-lo: "Barrientos era
muito amigo dos Estados Unidos para que descuidássemos de uma possível enfermidade".
(John Tilton, Unpublished Memoirs, Chapter 9, "Chasing OY Che", gentilmente cedidas ao
autor por John Tilton, p. 113.)
Era, ainda e mais do que nunca, uma nação pobre: a mais atrasada e
desamparada da América Latina depois do Haiti, com uma grande parcela
da população vivendo em zonas rurais, marginalizada e miserável. Mas era
uma miséria sui generis, à moda mexicana: os camponeses tinham recebido
terras graças à reforma agrária; os operários pertenciam a sindicatos
poderosos, ora proibidos, ora legalizados; os recursos naturais — principal-
mente o estanho, o antimônio e o petróleo — tinham sido nacionalizados
pela revolução; e as forças armadas, sempre prontas a intervir no país e
detentoras do recorde continental de golpes militares, faziam uso de um
estranho enxerto de nacionalismo e conservadorismo pró-americano
importado do Brasil. O Movimento Nacionalista Revolucionário de Víctor
Paz Estenssoro abandonara o governo; a Central Operária Boliviana (COB),
de Juan Lechín, mantinha-se na oposição; a sociedade civil boliviana con-
servava um vigor e uma diversidade pouco comuns na região.
Por último, a ascensão de Barrientos à presidência refletia outra pecu-
liaridade boliviana. O novo mandatário era um homem da força aérea que
se destacara como fundador e ativo membro do Programa de Ação Cívica
das forças armadas. Desde 195 2, o velho exército formado no início do século
pelos alemães coexistia com as milícias camponesas e operárias surgidas da
revolução, produzindo uma íntima relação entre militares e líderes cam-
poneses envolvidos na divisão de terras. A partir da criação da Aliança para
o Progresso, a Ação Cívica "permitiu que as forças armadas tomassem a ini-
ciativa política quanto às necessidades locais da população: construção de
escolas e estradas nas zonas rurais, por exemplo".4' Barrientos falava quíchua
correntemente e gozava de real simpatia entre os camponeses. Pouco depois
de assumir o poder como presidente eleito pelas urnas de 1966, assinou o
Pacto Militar-Camponês, que, entre outras coisas, estipulava: "As forças
armadas garantirão o respeito às conquistas obtidas pelas classes majo-
ritárias, tais como a reforma agrária, o ensino básico, o direito à sindicaliza-
ção [...] Os camponeses, por sua vez, defenderão firme e lealmente a institui-
ção militar, em qualquer circunstância. Colocar-se-ão sob ordem militar
contra as manobras subversivas da esquerda".44
A complexidade da vida política e cultural da Bolívia já não cabia na
imagem caricaturesca que muitos cubanos tinham do país: uma espécie de
república de bananas do altiplano, cheia de riquezas minerais, repleta de
pobres à espera de algum benfeitor que os libertasse, viesse de onde viesse.
Em particular, a importância do fator indígena não impedia um forte senti-
mento nacionalista, cuja vigência, sobretudo no seio das forças armadas,
baixava muitas das expectativas de Che Guevara. O país ostentava mais um
paradoxo. Por um lado, tinha um movimento operário altamente politiza-
do, concentrado nas minas de estanho e antimônio, organizado na poderosa
Confederação Operária Boliviana (COB), com inspiração de esquerda e em
certas ocasiões até trotskista. Por sua importância económica, o sindicalis-
mo mineiro, apesar de francamente minoritário, exercia uma enorme
influência. Em 1965, os mineiros representavam apenas 2,7% da população
economicamente ativa do país, mas garantiam 94% do valor das expor-
tações, as quais, por sua vez, respondiam por uma altíssima porcentagem do
Produto Interno Bruto: "Trinta mil mineiros do estanho alimentavam um
país de 5 milhões de habitantes".45
Em contrapartida, a debilidade da esquerda em seu conjunto também
era evidente. Desde a Revolução de 1952, ela vira suas bases abaladas. O Par-
tido Comunista, os grupos maoístas, as organizações civis, embora não
desprezíveis, estavam muito divididos e lutando entre si. Por isso, a CIA, em
um informe secreto de 1966, classificava a Bolívia como o país "de risco"
menos suscetível a sofrer um levante revolucionário. Segundo a agência, a
Bolívia estava em último lugar entre os nove países onde prevaleciam insta-
bilídades capazes de provocar pressões que conduziriam a uma intervenção
direta dos Estados Unidos.46
Era nesse país que, em novembro de 1966, o Che pretendia realizar uma
proeza totalmente oposta à concebida inicialmente. Não havendo qualquer
possibilidade de convocar inexistentes guerrilheiros peruanos, nem pros-
perando de imediato uma série de iniciativas argentinas, a Bolívia conver-
teu-se em berço do foco continental. E tudo em Nancahuazú, o pior lugar
possível para se implantar um foco guerrilheiro. Faltavam comunicações,
população e camponeses sem terra — os lavradores existentes eram princi-
palmente colonos favorecidos pela reforma agrária. Tampouco abundavam
a vegetação, a fauna ou a água, recursos necessários à sobrevivência de uma
guerrilha. Em vez de um sistema de apoio complexo e bem organizado, o Che
deparava-se com um PCB cuja direção era reticente e pouco confiável,
enquanto os quadros que o apoiavam, embora entusiastas, eram limitados e
marginalizados dentro da agremiação. Ainda assim, menos de três meses
depois de o Che ter se instalado no vale do rio Grande, a escola de quadros
e de treinamento de grupos guerrilheiros de todo o continente se converte-
ria, involuntária e inoportunamente, no palco de uma batalha mortal.
A guerrilha do Che nunca venceu a maldição que a perseguiu desde o
início. Atravessou uma crise atrás da outra, desde a chegada do comandante
ao acampamento, em princípios de novembro, até o trágico final de La
Higuera, em outubro de 1967. As peripécias da saga boliviana são conheci-
das em muitos de seus detalhes graças à publicação póstuma do diário do Che
e a uma vasta coleção de livros. Mais do que resenhá-las, convém narrar e
analisar suas sucessivas vicissitudes, bem como a reação cada vez mais deses-
perada e contraditória de Guevara frente a cada uma delas. O destino final
do Che se aproximava. Ele não tinha vontade de morrer, mas desde muito
jovem era fascinado pelo martírio; o sacrifício exemplar em breve o
alcançaria.
A primeira crise girou em torno de um inesperado fim das vacilações do
Partido Comunista. Não era possível tolerar a incerteza que persistia, sobre-
tudo quando a apatíàrfoPCB ameaçava provocar um autêntico desastre. As
armas não chegavam; a rede urbana não se consolidava; os combatentes
eram uma notável ausência; e Mário Monje perambulava pelo mundo. Esta-
va fugindo do Che. Ao voltar de Havana, em junho de 1966, recusara-se a
passar por Praga, acreditando, talvez com razão, que os comunistas cubanos
queriam confrontá-lo com Guevara para que o carismático comandante
exercesse pessoalmente a pressão necessária.* Mas ao voltar do congresso do
Partido Comunista Búlgaro, em dezembro do mesmo ano, Castro intercep-
tou-o em Havana. Informou-lhe que, chegando à Bolívia, seria conduzido
ao acampamento do Che, sem dizer exatamente onde ficava, nem sequer se
era em território boliviano. Monje conseguiu ouvir Pineiro sussurrar a Fidel,
em seu gabinete, que o povoado perto de onde estava o Che chamava-se
qualquer coisa como Ancahuázu.**
Monje chegou a La Paz em fins de dezembro de 1966. Convocou uma
reunião de emergência do secretariado do partido. Anunciou que fora con-
vidado a reunir-se com o Che em um acampamento e pediu a convocação
de reuniões do birô político e do Comité Central para quando voltasse. Ele
sabia que um acordo com o Che seria impossível e que devia a todo custo
conservar a unidade da direção do partido, já que a facção castrista — o

(*) "Alguém, não sei se foi Pineiro, perguntou: Por onde você vai voltar para a Bolívia?
Vou voltar por Moscou — Praga — La Paz. Sabe por que estou perguntando ? Pode ser que lhe
informemos algo em Praga. Então eu cheguei a Moscou e falei: Consigam uma passagem num
vôo direto para a Bolívia. Nada de Praga. Estavam querendo me aprontar alguma em Praga".
(Mário Monje, op. cit.)
(**) Mário Monje, op. cit. Em uma mensagem cifrada de Castro ao Che, datada de 14
de dezembro de 1966 e encontrada entre os papéis apreendidos em outubro de 1967, Fidel
avisa ao Che que "desinformou" Monje sobre a localização do acampamento. (Ver Carlos
SoriaGalvarro, ElChe, op. cit., t. 4, p. 299.)
aparato clandestino, a Juventude — apoiaria os cubanos e se uniria à luta
armada.
Em 31 de dezembro, Tânia conduziu Monje ao quartel-general de Gue-
vara. As instalações já estavam concluídas e tinham capacidade para alojar
e alimentar uma centena de homens. Havia várias bases secundárias afas-
tadas da "casa de zinco", no sítio, postos de segurança, um anfiteatro para
conferências, um forno de pão, um pequeno e bem aparelhado hospital. A
propriedade se transformara em uma praça de guerra, defendida por um sis-
tema de comunicações, trincheiras, esconderijos para provisões, medica-
mentos, equipamentos e papéis.
A reunião seria tensa e decisiva: se a proposta do Che se apoiava na
colaboração do Partido Comunista da Bolívia, e ela simplesmente deixara
de existir, salvo pela participação de alguns indivíduos heróicos e talentosos,
mas apenas indivíduos, qual o sentido de insistir no projeto? Segundo Mon-
je, o Che deu com a língua nos dentes, dizendo que ele e Fidel o tinham
enganado: "Na verdade, enganamos você. Eu diria que Fidel não tem culpa.
Ele foi parte da minha manobra, já que lhe fez um pedido em meu nome. Ini-
cialmente, eu tinha outros planos, mas mudei-os... Desculpe o companheiro
que o procurou; ele é muito bom, de absoluta confiança, mas não é político,
por isso não pude transmitir-lhe meus planos. Sei que ele foi muito grosseiro
com você".47
O "companheiro" era Papi Martínez Tamayo. Os planos iniciais, o pro-
jeto de ir para a Argentina. Já se falou aqui da hipótese, não de todo descar-
tável, de que em algum momento Castro tenha considerado impossível dis-
suadir o Che de seu despropósito na Argentina. Mas também é concebível a
tese de Monje, aqui admitida pelo próprio Che: os cubanos o enganaram,
sabiam perfeitamente que a intenção era instalar um foco guerrilheiro na
Bolívia, assim como tinham plena consciência de que Monje e o resto do PCB
jamais aceitariam isso. Por isso era preciso ludibriá-los com a ideia da "pas-
sagem para o sul".
Em seguida, o Che convidou Monje a se incorporar à luta armada,
como chefe político, esclarecendo que a direção militar permaneceria com
ele. Monje disse que renunciaria à direção do partido para incorporar-se à
guerrilha, mas sob três condições. Primeiro, a formação de uma ampla frente
continental, a começar por uma nova conferência dos partidos comunistas
da América Latina. Segundo, insistiu em que a luta armada deveria ser
acompanhada de um movimento rebelde nas cidades, obviamente coorde-
nado pelo PCB, enfatizando a necessidade de criar uma frente política
nacional que reunisse todos os grupos do país em um comando revolu-
cionário único. Por último, reivindicou que a luta não fosse exclusivamente
armada, ou seja, que a guerrilha se conjugasse com outras formas de luta e,
em todo caso, que a chefia militar se subordinasse à política, a qual ele
aceitaria exercer. Não concordava que a direção da luta ficasse com um
estrangeiro, por mais ilustre e experiente que fosse. A autoridade máxima
devia ser exercida por um boliviano. Segundo as versões dos diários de
alguns dos colaboradores do Che, Monje insistiu também na exclusão dos
maoístas de Oscar Zamora, com o que o Che concordou, confessando ter se
enganado a respeito de Zamora.48
Guevara registrou em seu diário que as três condições lhe pareciam
artificiosas: na realidade, o boliviano queria romper com o Che. Para tanto,
inventara exigências que certamente seriam inaceitáveis para Guevara.*
Este advertiu Monje de que sua renúncia à Secretaria-Geral do PCB seria um
erro, mas disse que, de qualquer forma, a decisão era dele. Quanto à condição
de formar-se uma frente continental, mostrou certa indiferença, mas um
forte ceticismo: seria inócua. Mas, acima de tudo, rejeitou terminantemente
a exigência em relação ao comando: "Não poderia admitir isso, de jeito
algum. O chefe militar seria eu, e não aceitaria dúvidas a esse respeito".49
Para Emílio Aragonês, esse foi o erro fatal de seu amigo: um político
teria aceitado as exigências de Monje para depois tentar superá-las ou con-
torná-las. Fidel teria concordado.** O Che, porém, quase que preferia pres-
cindir de Monje. Talvez ainda acreditasse nas fantasias do aparato cubano
de que a maior parte dos membros e dirigentes do Partido Comunista se
uniria à sua causa, virando as costas para o secretário-geral. Talvez por isso
anotasse a seguinte conclusão em seu diário: "A atitude de Monje pode, por
um lado, retardar o desenvolvimento, mas, por outro, contribui para liber-
tar-me de compromissos políticos".*** Aqui o Che estava redondamente
enganado: onze dias mais tarde, Monje obteve o total apoio do birô político

(*) "Minha impressão é que, ao notar [...] minha decisão de não ceder em questões
estratégicas, ele se aferrou a esse ponto para forçar o rompimento". (Che Guevara, Diário, op.
cit.,p. 73.)
(**) Monje diz que Castro enviou uma mensagem ao Che em dezembro, antes do
encontro, aconselhando-o a "fazer todas as concessões, exceto no aspecto estratégico", que
poderia ser, justamente, a questão do comando do movimento. (Mário Monje, op. cit.)
(***) Ernesto Che Guevara, Diário, op. cit., p. 72. Ao fazer o balanço do mês, o Che
afirma, resignado: "O partido está se levantando contra nós e não sei até onde chegará, mas
isso nos retardará e talvez, a longo prazo, seja benéfico (tenho quase certeza). As pessoas mais
honestas e combativas ficarão conosco [...]" (ibidem, p. 88).
e do Comité Central, que redige uma carta coletiva e unânime a Fidel Cas-
tro reiterando a postura assumida perante o Che.*
Mas nem por isso as esperanças estavam perdidas. Em fins de janeiro,
quando Jorge Kolle e Simón Reyes se entrevistaram com Castro em Havana
buscando uma conciliação, foram avisados de que o Che seria "duro com
eles". Aceitaram repensar sua atitude, ao serem informados da natureza con-
tinental do projeto. De certa maneira, era uma nova fraude. As alternativas
em outros países já estavam afastadas, se é que algum dia existiram: a opção
peruana fora descartada, a argentina não decolava e a brasileira sempre fora
uma quimera. Fidel procurou minimizar a intransigência do Che, justifican-
do seu empenho em dirigir a guerrilha boliviana com o suposto caráter inter-
nacional do empreendimento. Recorreu a seus maiores dons de persuasão,
mas de nada adiantou. Por momentos, a discussão chegou a ser violenta,
segundo o relatório secreto prestado ao governo alemão por um outro mem-
bro do birô político do PCB, Ramiro Otero:
A luta armada foi imposta ao Partido Comunista Boliviano por parte dos
camaradas cubanos e de outros países. O PCB dirigiu-se por carta a Fidel Cas-
tro pedindo-lhe que a decisão sobre quando e como seria essa luta fosse reser-
vada ao partido. Fidel reagiu de forma negativa. Resultado: o aparato de pro-
paganda da organização se desintegrou completamente, o partido foi proibido,
os membros do Birô Político foram detidos [...] O camarada Otero vê con-
tradições entre Guevara e Fidel Castro. Acredita que o Che é mais inteligente,
mas politicamente mais perigoso.**
Os bolivianos em Havana assumiram o compromisso de pelo menos
dar apoio logístico ao Che e, se possível, enviar mais gente. Mas, em princí-
pios de fevereiro de 1967, Pombo registrava em seu diário que no acampa-
mento eta esperada uma segunda visita de Monje.50 De acordo com Benigno,
36 bolivianos tinham sido treinados em Cuba e poderiam ter se integrado à

(*) "A revolução boliviana e a luta armada deverão ser planejadas e dirigidas por boli-
vianos. Nossa direção não se esquiva e assume seriamente sua responsabilidade nesse terreno.
Tal exigência não subestima nem recusa a ajuda voluntária que possa advir de quadros re-
volucionários e militares experimentados de outros países [...] Essa forma de pensar da Comis-
são Política foi unanimemente apoiada pelo Comité Central." (Cit. em Carlos Soria Gal-
varro, El Che, op. cit., t. 1, p. 51.)
(**) Informe sobre Ia situación en Bolívia (en base ai informe de Ia delegación dei PC Boli-
viano en conmemoración de Ia Vil Reuntón Partidária en Ia RDA). Institut fur Marxismus-
Leninismus beim Zentral Komitee der SED, Zentrales Parteiarchiv, SED Internationale
Verbindungen, Bolívia 1963-70, DY 30/lV A2/20/142, Berlim.
guerrilha, mas isso simplesmente não aconteceu.51 A discussão sobre
cumprir ou não os compromissos assumidos em Havana logo se tornou
ociosa: a deflagração dos combates, em 23 de março, eliminou a possibili-
dade de qualquer visita do PCB à guerrilha.
Aqui deparamos novamente com as cicatrizes do Congo. Depois de
definhar por oito meses na savana africana, devido a restrições impostas pela
ausência de uma hierarquia de comando, o Che não podia tolerar nenhuma
dúvida a esse respeito.* Em outras condições, talvez tivesse admitido um
conselho de direção, ou outra solução cómoda, embora pouco prática, que
contornasse a principal objeção de Monje sem entregar-lhe o comando.
Mas, depois do calvário congolês, o Che não estava disposto a sutilezas ou
arranjos de conveniência. Pagaria isso com a vida.
As conversações se encerraram com um total desacordo. Monje pede
para dirigir-se aos comunistas bolivianos já incorporados à guerrilha, expli-
cando sua posição. O Che concorda, acrescentando que todos os que
quisessem deixar o acampamento e retornar junto com o líder máximo do
partido poderiam fazê-lo: todos permaneceram. Monje expôs sua posição,
mas logo confirmou o que mais temia: os cubanos tinham conquistado sua
gente, em especial os Peredo, nos campos de treinamento da ilha. Concluiu
com uma advertência trágica e profética: "Quando o povo souber que esta
guerrilha é dirigida por um estrangeiro, vai voltar-lhe as costas e negar-lhe
apoio. Tenho certeza de que ela vai fracassar por ter à frente não um boli-
viano, mas um estrangeiro. Vocês morrerão com muito heroísmo, mas não
têm perspectiva de vitória"."
O Che, por sua vez, se manteve impassível, mas sentiu o golpe. Benig-
no relata: "Ele procurava não demonstrar, mas imagine, aquilo o obrigava a
mudar todo o plano. Reuniu-nos e disse: 'Bom, isto aqui acabou antes de ter
começado. Não temos nada a fazer aqui'. Disse que tanto os bolivianos como
os cubanos que desejassem abandonar a base podiam fazê-lo, que o cubano
que quisesse ir embora ao lado de um boliviano podia fazê-lo também, que
não ia ser considerado desertor nem covarde"."
Com o fracasso das negociações com Monje, acelerou-se o recruta-
mento de outros grupos, em especial os dissidentes maoístas liderados por

(*) Esse ponto de vista é não só de um de seus companheiros de armas do Congo e de


Régis Debray (ver Laguerrilla, op. cit., p. 103), mas também o que o Che transmitiu a Mário
Monje: "Falou-me da experiência na África. Começou a contar-me os problemas que tivera
lá, como dependia de determinadas forças que nunca se mobilizavam, que havia contradições
que ele não podia resolver". (Monje, op. cit.)
Moisés Guevara. Como isso tomaria tempo, o Che aproveitou para organi-
zar uma marcha de reconhecimento e treinamento, prevista para durar
alguns dias, que se prolongariam por semanas. Deixou quatro homens na
base, para receberem visitantes e novos recrutas, e formou três grupos para a
marcha: a vanguarda, integrada por cinco combatentes e dirigida por Mar-
cos (ou António Sánchez Díaz, ou comandante Pinares); o centro, a cargo
do próprio Che, com dezoito homens; e a retaguarda, composta por seis guer-
rilheiros, sob responsabilidade dejoaquín (Juan Vitalo Acufia). Os 29 expe-
dicionários — quinze cubanos, catorze bolivianos — voltariam em franga-
lhos, exaustos e desmoralizados.
O percurso, previsto inicialmente para ser completado em 25 dias,
demorou mais de seis semanas, terrivelmente árduas, estafantes e desgas-
tantes. Eles percorreram vales, cruzaram riachos que se transformaram em
rios, passaram por pequenos povoados quase desertos; exploraram escarpas
e desfiladeiros, até o rio Grande e o rio Masicuri. Dois novos recrutas — Ben-
jamin e Carlos — morreram afogados no caminho, sem terem disparado um
só tiro. A vegetação espinhosa e cerrada, os mosquitos e outros insetos —
entre eles o boro, uma mosca que deposita sua larva debaixo da pele —, a
escassez de caça para alimentar a tropa, as chuvas e a cheia dos rios, tudo con-
figurava um quadro dramaticamente diferente da sierra Maestra e das expec-
tativas do Che. Os exploradores tinham de abrir caminho a golpes de facão.
No terceiro dia, o terreno acidentado deixou vários combatentes sem suas
botas. A fome e a sede os atormentavam. Os recrutas esgotaram suas pro-
visões de mantimentos antes do tempo e o Che tornou a aplicar o castigo de
suspender a ração. Esgotados os mantimentos, decidiram devorar o cavalo
que tinham comprado dias antes; "um banquete de cavalo", com as pre-
visíveis consequências intestinais, anotou o Che. E, como era de se esperar,
as tensões cresceram, as divisões e conflitos afloraram entre os guerrilheiros.
A marcha foi útil para expor esses pontos fracos, mas a um custo alto demais
para uma guerrilha embrionária. Por fim, a 17 de março, a tragédia começou
a despontar: ao atravessar um rio torrentoso, a balsa em que estavam virou.
Perdem-se mochilas, equipamento, seis fuzis e um terceiro homem, o melhor
dos bolivianos da retaguarda, segundo o Che.
Em 20 de março, voltaram à base, arrasados por quase sete semanas de
fome, sede, cansaço e brigas. Quando viram o Che pela primeira vez, seus
visitantes se comoveram: era um homem macilento, com vinte quilos a
menos, o rosto, as mãos e os pés inchados. Reinava um "caos terrível". Por
diversas razões que o argentino ainda desconhecia, caíra a máscara do acam-
pamento, da guerrilha e do próprio comandante. As deserções do grupo de
Moisés Guevara, as suspeitas da vizinhança e o trabalho de inteligência dos
bolivianos e da CIA, além dos encontros com vários técnicos em prospecção
de petróleo de Camiri, alertaram o exército, que marchou imediatamente
para o sítio de Nancahuazú.
Entre 11 e 17 de março, ocorreu mais uma série de acontecimentos
fatais para a guerrilha. Desde meados de fevereiro, haviam se incorporado à
base sete homens do sindicalista Moisés Guevara. Dentre eles, um acom-
panharia o Che até a morte, sendo, como ele, executado a sangue-frio, e três
o trairiam naqueles fatídicos dias de março. Embora ninguém soubesse, o
Departamento de Investigação Criminal do Ministério do Interior já vinha
seguindo o dirigente sindical. Em janeiro, ele fora localizado em Camiri,
junto com seus companheiros. Em março, quando Moisés Guevara dirigiu-
se para o acampamento, acompanhado por Tânia e Coco Peredo, foi nova-
mente seguido pela polícia. A informação foi transmitida à 4S Divisão do
exército, com sede em Camiri.54 Em 11 de março, Vicente Rocabada Ter-
razas e Pastor Barrera Quintana, dois dos recrutas encarregados da caça, fugi-
ram do acampamento principal, desfizeram-se de suas armas e fugiram para
Camiri. Em 14 de março, depararam com a polícia, que os entregou à 4-
Divisão. Ali forneceram informações completas e detalhadas sobre a guer-
rilha, o acampamento, o número de homens e, acima de tudo, a presença de
Che Guevara, seus nomes de guerra, as datas de sua entrada no país e muitos
outros detalhes. Ambos mencionaram o Che, embora reconhecendo que
nunca o tinham visto, pois saíra em missão de reconhecimento.* Rocabada
declarou que desde 12 de janeiro, quando Moisés Guevara convidou-os a se
unirem à guerrilha, sabia da identidade do Che.
Duas circunstâncias se aliaram contra o desamparado punhado de
cubanos. Por um lado, Moisés Guevara fora displicente ao fazer seu recruta-
mento. Superestimara seu prestígio como líder e, para não fazer feio com um
número demasiado escasso de combatentes, aceitou homens sem con-
vicção, em alguns casos oferecendo-lhes dinheiro e exagerando a força da
guerrilha à qual se integrariam. Haveria atrativo maior do que a chance de
combater sob o comando do legendário Che Guevara? Ao deparar com a
realidade, esses recrutas semivoluntários e semiconscientes desertaram. A
culpa, porém, não coube apenas a Moisés Guevara. Sem o apoio do PCB e

(*) O texto do interrogatório — que demonstra de maneira incontestável ter sido


essa a primeira informação fidedigna sobre a presença do Che na Bolívia — é transcrito na
íntegra em Prado Salmón, Laguerrilla, ibidem, pp. 80-2.
obcecado pela necessidade de aumentar a participação de bolivianos, o Che
contagiou a todos, inclusive Moisés Guevara, com sua pressa em acelerar o
recrutamento. O próprio Che assinalou em seu balanço do mês de janeiro: "O
que andou mais lentamente foi a incorporação de combatentes bolivianos"."
Por outro lado, apesar do longo treinamento em San Andrés de Taigua-
nabo, a ausência do Che provocara nos cubanos um repentino relaxamento
da disciplina. Regras elementares de segurança foram violadas. Os guerri-
lheiros da ilha foram os autores da maioria das indiscrições no contato com
os homens de Moisés Guevara. Cometeram muitas outras durante as várias
visitas que receberam no acampamento durante essas semanas, incluindo a
mania quase doentia de posar para fotografias — um costume que era tam-
bém do Che. A delação de Rocabada e Barrera forneceu informações pre-
cisas e detalhadas ao exército, já alertado por outras fontes sobre a possível
presença de homens armados na região. Seguiu-se o envio de uma patrulha
para investigar a "casa de zinco" no sítio de Nancahuazú. Com trinta ho-
mens em missão de reconhecimento fora da base central da guerrilha, os
outros se repartiram pelas bases secundárias, ficando na principal apenas um
dos recrutas de Moisés Guevara, Salustio Choque Choque. Quando a patru-
lha do exército chegou, o boliviano entregou-se sem resistência e, nos inter-
rogatórios, confirmou todas as informações de seus companheiros. A qui-
nhentos metros da casa, a patrulha encontrou vestígios de um acampamento
provisório, inclusive seis malas contendo roupas com etiquetas cubanas e
mexicanas.
Outros dados, além dos fornecidos pelos desertores, chegaram aos mi-
litares bolivianos. O general Ovando revelaria, meses mais tarde, que, desde
fins de fevereiro, as forças armadas dispunham da informação de que cinco
estrangeiros tinham interrogado moradores locais, perguntando em particu-
lar sobre os pontos onde se podia vadear o rio Grande. Mais tarde, os mesmos
cinco homens tinham sido vistos nadando e levando grandes quantidades de
dólares e pesos bolivianos. Por sua vez, o pelotão de vanguarda, dirigido por
Marcos, ao desligar-se dos outros dois para voltar antes ao acampamento,
provocara um incidente na aguada de Tatarenda, ostentando suas armas e
não escondendo sua condição de guerrilheiros, agindo com arrogância e
indiscrição diante do técnico de prospecção petrolífera Epifanio Vargas. O
comportamento de Marcos e seus homens despertou a suspeita de Vargas, que
primeiro seguiu-os e em seguida correu a Camiri para denunciá-los.
Havia antecedentes: desde a instalação do foco guerrilheiro, em
novembro, um certo Ciro Algaranaz, morador da região, mostrara-se exces-
sivamente interessado no trabalho do acampamento e se oferecera para aju-
dar os supostos sitiantes, pensando que se tratava de uma plantação de coca
e um posto de refino de cocaína. Depois confiou a um de seus empregados —
que os guerrilheiros chamavam de vallegrandino — a tarefa de vigiar a casa
de zinco. Ao chegarem, em março, os militares já contavam com as infor-
mações e suspeitas levantadas por Alagaranaz e o vallegrandino.
Assim, quando o chefe da 4a Divisão do exército boliviano enviou a
patrulha para inspecionar o sítio, já acumulara um bom número de indícios
de que ali havia um grupo armado. Marcos e sua vanguarda cruzaram com a
patrulha do exército. Os guerrilheiros mataram um soldado e em seguida
recuaram, evitando o combate e abandonando o sítio. Os militares retor-
naram a Camiri, estimulados pelo mais precioso trofeu: a informação segu-
ra sobre a existência de um grupo "subversivo" no canhão de Nancahuazú.
A guerra tinha começado, nas piores condições imagináveis. Em vez de se
recuperar da marcha, descansar, treinar os novos recrutas, atender às visitas
e melhorar o abastecimento, os combatentes recém-chegados à base tive-
ram de enfrentar de imediato as consequências de sua descoberta pelas
forças repressivas.
Marcos já esgotara a paciência do Che durante a marcha, por suas
repetidas brigas com os demais, em especial com Pachungo, também vítima
de vários rompantes do argentino. Depois de restabelecido o contato, já
inteirado do ocorrido com Marcos e da descoberta da casa de zinco, Guevara
explodiu. Insultou o chefe da vanguarda, acusando-o de covardia por ter
adotado uma posição defensiva e recuado. "Uma guerrilha não se retira sem
lutar. Não se vence sem combater", anotou o Che em seu diário. Segundo
Debray, a reação foi violenta: "O que está acontecendo aqui? Que bagunça
é esta? Por acaso estou rodeado de covardes e traidores? Nato, não quero nem
ver os seus bolivianos cagões. Estão todos sem comida até segunda ordem".56
Não importava ao comandante que a posição defensiva visasse preparar uma
emboscada, nem que ocorrera uma longa discussão entre Marcos, Rolando e
António (Orlando Pantoja) sobre sua melhor decisão a tomar. Contrariado
com o curso dos acontecimentos, desgastado pela fome, pela sede, pela
ansiedade, pelas eternas brigas internas, invejas e mesquinharias, em cir-
cunstâncias terrivelmente adversas, Che Guevara tomou então uma das
decisões mais críticas e questionáveis de sua vida. Contrariando suas
próprias teorias e experiências, e apesar da oposição silenciosa mas expres-
siva de seus subordinados, armou uma emboscada contra o destacamento
militar que, sem dúvida, viria nos próximos dias, quando o quartel de Camiri
reagisse à descoberta da base e à morte de um de seus homens. A guerrilha
não estava minimamente preparada para iniciar as hostilidades. Tanto a
precária coesão como a estratégia escolhida desaconselhavam qualquer ini-
ciativa desse tipo. Por mais que já soubessem de sua existência, naquele
primeiro momento ainda seria possível fugir, evitar o contato com o inimi-
go. O Che decidiu o contrário.
Tanto Humberto Vázquez Viana, integrante da rede urbana e irmão do
Loro, como Gary Prado, o militar boliviano que em outubro capturaria o
Che na Quebrada dei Yuro, concordaram que a decisão de Guevara parecia
inevitável e planejada. Vázquez Viana acha que tanto a localização como o
momento eram os originalmente previstos, que o Che nunca pensou em
ficar meses sem submeter seus quadros — bolivianos novatos e cubanos mal-
acostumados — a uma prova de fogo. Em sua opinião, o fracasso ocorreu não
por causa da precipitação dos combates, mas devido a vários outros fatores."
Prado, por sua vez, julga a decisão do Che acertada em vista das circunstân-
cias, pois as alternativas — fugir ou dissolver a guerrilha — seriam piores. A
fuga não anularia a descoberta do exército, e dissolver o grupo seria impos-
sível.58 Por outro lado, o próprio Fidel declarou que a antecipação dos com-
bates custou caro à guerrilha do Che.* Não é absurdo supor que a confusão
do exército, naturalmente propenso a evitar o combate, tivesse permitido
que os guerrilheiros se afastassem e recomeçassem adiante, sem grandes difi-
culdades. Os serviços de informação dos Estados Unidos enfatizaram repeti-
damente que as patrulhas da 4a Divisão de Camiri só perseguiram os guerri-
lheiros com muita relutância e a contragosto.**
Em 23 de agosto, na quebrada do rio Nancahuazú, metade do contin-
gente militar de oitenta homens enviado para o acampamento do Che foi
atacada pelos guerrilheiros, em uma emboscada clássica. Os voos da aviação

(*) A CIA também considerou que os acontecimentos se precipitaram: "O profissio-


nalismo dos guerrilheiros manifestou-se, apesar de que foram descobertos acidentalmente
muito antes de estarem preparados para iniciar as operações". (Central Intelligence Agency,
Directorate of Intelligence, Intelligence Memorandum, The Bolivian guerrilla movement: an
ínterim assesment, 8/8/67 (secreto), NSF, Country File, Bolívia, vol. IV, Box 8, Intelligence
memo, LBjLibrary.)
(**) "Depois de muita insistência, as patrulhas do exército começaram a levantar
informações sobre estranhos barbados no Sudeste boliviano. Em 23 de março encontraram
acidentalmente um esconderijo guerrilheiro." (Central Intelligence Agency, Intelligence
Memorandum, Cuban-inspiredguerrúíaactivity in Bolívia, 14/6/67 (secreto), National Securi-
ty File, Intelligence File, Guerril!a/>rob/emmLatin America, Box 2, Memo, ne6, LBjLíbrary.)
alertaram os rebeldes. A larga experiência do Che e de seus companheiros
permitiu-lhes efetuar a operação com absoluta perfeição. No enfrentamen-
to, morreram sete integrantes das forças armadas, inclusive um oficial;
outros catorze se renderam, entre eles quatro feridos. A guerrilha não sofreu
nenhuma baixa. O butim capturado incluiu dezesseis fuzis com 2 mil balas,
três morteiros com projéteis, duas metralhadoras Uzi, uma submetralhadora
e dois equipamentos de rádio. Do ponto de vista estritamente militar e táti-
co, foi uma bela vitória: um batismo de fogo vitorioso, eficaz e económico.
Mas, daí em diante, o pequeno bando, isolado, exausto, com homens mal
armados e subalimentados, teria de enfrentar todo o poder de um exército,
sem dúvida medíocre, mas apoiado pelos Estados Unidos. Já era impossível
esconder: havia uma guerrilha na Bolívia, com a participação de bolivianos
e estrangeiros. Sua localização, força e capacidade tática eram conhecidas.
As reuniões programadas com a direção do Partido Comunista, o recruta-
mento de novos quadros bolivianos, a formação coordenada da rede urbana,
a difusão das teses e realizações da guerrilha — todos os planos minuciosa-
mente traçados foram aniquilados. Em 14 de abril, o PCB foi declarado ilegal.
Até os militantes marginalizados pela direção — como Loyola Guzmán, a
dirigente da Juventude encarregada das finanças da rede urbana — passaram
à clandestinidade, não podendo, portanto, desempenhar as funções desig-
nadas para as cidades.
Debray recorda que, para o comandante, o saldo da escaramuça não foi de
todo negativo. Ele compreendia perfeitamente que do ponto de vista estratégi-
co fora inconveniente, mas sentia certa satisfação com o fim da inatividade e
da incerteza. O combate endurecia a tropa, elevava o moral, punha as coisas às
claras.59 E preciso relembrar o contexto de derrotismo e apatia em que o Che
tomou a decisão fatal. Convém, ainda, atentar para o estado de ânimo do
comandante. Ele se tornara mais taciturno e introspectivo do que nunca:
Afastado, sentado na rede, fumando seu cachimbo, sob um teto de plástico, ele
lia, escrevia, pensava, tomava chimarrão, limpava o fuzil, escutava a Rádio
Havana à noite em seu transistor. Ordens lacónicas. Ausente. Fechado em si
mesmo. Atmosfera tensa no resto do acampamento. Disputas, suscetibili-
dades nacionais, discussões sobre a tática a seguir, tudo exacerbado pelo esgo-
tamento, a fome, a falta de sono e a permanente hostilidade da selva. Outra
pessoa teria se integrado com a tropa, conversando, brincando. O Che punha
a disciplina a nu, sem rodeios nem relações pessoais.60
Antes do regresso do Che, tinham sido introduzidos no acampamento
três personagens que já deixaram suas marcas nestas páginas: Régis Debray,
Ciro Bustos e Tâmara Bunke. Esta não deveria estar ali; sua tarefa era enca-
minhar os recrutas e visitantes ao acampamento e voltar a La Paz. Mas ela,
por assim dizer, queimou seus navios. Talvez movida por uma decisão pensa-
da, talvez inconscientemente — um emaranhado de fantasmas, culpas,
desejos e obsessões onde se misturavam a aspiração guerrilheira, um prová-
vel amor por Guevara, a displicência e o nervosismo —, a agente dos
serviços cubanos de informação abandonou seu jipe na casa de zinco, que foi
ocupada pelo exército dias depois. No veículo esqueceu agendas telefónicas,
roupas e outros objetos que facilitaram sua identificação pelo Serviço de
Informação do exército. Como disse o Che em seu diário, Tânia foi "identi-
ficada e perderam-se dois anos de bom e paciente trabalho".61 Segundo a
revista alemã Der Spiegel, Guevara esbofeteou-a ao voltar ao acampamento
e encontrá-la ali, vestida de guerrilheira.62 Rompia-se mais um dos poucos
elos da diminuta rede urbana do Che na Bolívia. Os outros se quebrariam nas
semanas seguintes, privando a guerrilha de qualquer contato com o exterior:
com La Paz e com Havana.
Quem era Tanial Por que teimou em engajar-se numa guerrilha para a
qual não estava fisicamente preparada e à qual poderia servir com mais
eficiência na cidade l Convém, antes de mais nada, descartar as versões fan-
tasiosas que surgiram na esteira de sua morte, três meses mais tarde, e de sua
transformação em "guerrilheira heróica", como a batizaram os cubanos. A
tese de que Tarda era uma agente dupla — da KGB ou do Ministério da Segu-
rança do Estado (MFS) da Alemanha Oriental — surgiu por vários motivos,
mas principalmente devido à entrevista concedida por Gunther Mannel,
que fora responsável pelos serviços secretos alemães-orientais, publicada em
26 de maio de 1968.6' Mannel, que bandeou para o Ocidente em 1961, con-
tou que reconheceu Tânia assim que viu sua foto, já morta. Ele fora seu "con-
trolador" nos serviços da Alemanha Oriental. Recordava perfeitamente que
ela trabalhava para o MFS desde 1958. Especializara-se na relação com visi-
tantes estrangeiros — foi assim que conheceu o Che, quando ele fez sua
primeira viagem a Berlim, em 1960 — e recorria a todas as artimanhas fe-
mininas da literatura de espionagem. Segundo Mannel, em 1960, a KGB quis
ampliar o número de agentes em Cuba e foi ele o encarregado de recrutar
Tânia para a nova missão, tarefa realizada em uma estação ferroviária de
Berlim.64 Tais afirmações nunca puderam ser confirmadas, e Mannel jamais
forneceu maiores detalhes. Daniel James retomou a versão em sua biografia
do Che, mas sem oferecer mais evidências ou informações.
Marcus Wolf, renomado chefe da contra-espionagem alemã-oriental
— o deslumbrante personagem dos romances de John Le Carré conhecido
como Karla —, foi entrevistado em 1995 pelos produtores de um documen-
tário sobre Che Guevara. Afirmou que, ao menos que ele soubesse, Tânia
nunca trabalhou para o MFS.65 Além disso, Wolf nunca a mencionou em ne-
nhuma de suas declarações públicas nem nos julgamentos que ocorreram na
Alemanha depois da queda do muro de Berlim. Tampouco se refere a ela
como agente em suas memórias, publicadas em 1997. Pode ser que estivesse
mentindo, ou que aos oitenta anos não recordasse o nome de todos os seus
antigos subordinados. Mas a fama de Tânia não era pequena. É improvável
que ele não se lembrasse de uma Mata Hari desse gabarito se já tivesse tra-
balhado sob suas ordens.
O mais provável é que, em 1961, Tâmara Bunke já tivesse sido aborda-
da pelos serviços de informação de seu país, assim como ocorria com mi-
lhares de jovens da Alemanha e de todo o bloco socialista. Como falava
muito bem o castelhano e nascera na Argentina, era candidata natural a tra-
balhar na área internacional. Não parece inverossímil que tenha viajado a
Cuba em agosto daquele ano ainda sob orientação indireta de Karla. Mas
não existe absolutamente nenhum indício que sugira que ela desempenhou
o papel de agente dupla, nem nos arquivos alemães, nem em Moscou, nem
no comportamento de Tânia na Bolívia. Outra coisa é se ela se apaixonou
pelo comandante Guevara e que isso a tenha levado a cometer uma série de
imprudências ou descuidos incompatíveis com sua formação e experiência.
Ulises Estrada confirma-o agora, trinta anos depois: Tânia estava mais
do que apaixonada, estava fascinada pelo Che, e quis estar ao lado dele, fos-
se como fosse. Tal como aconteceria com Michèle Firk na Guatemala dos
anos 60 e com as admiradoras do subcomandante Marcos em Chiapas, seu
desejo era ser guerrilheira e não um contato burocrático dos chefes e com-
batentes com La Paz, transportando-os de hotel em hotel e de contato em
contato, sempre distante das grandes decisões e proezas. Queria, de uma vez
por todas, tomar parte de tarefas e aspirações mais grandiosas. O início das
hostilidades, ao fechar as saídas do quartel-general de Guevara, impossibi-
litava seu retorno a La Paz com a identidade anterior. Seu desejo, consciente
ou não, realizava-se: permaneceria no acampamento com Debray e Bustos.
Ela foi amante do Che? Isso nunca se saberá ao certo. Os testemunhos
dos sobreviventes que conviveram com os dois são contraditórios. Das cin-
co pessoas vivas que poderiam ter uma opinião fundamentada e ao mesmo
tempo independente, duas — Debray e Bustos — negam ou ao menos
recusam-se a afirmar; outras duas — Urbano e Pombo — são burocratas
cubanos sem voz própria. Debray não acredita num romance entre os dois
por considerar que faltava o mínimo de energia indispensável a qualquer
amor não-platônico. Bustos jamais mencionou o assunto. Em seu livro,
Benigno não adota uma posição fechada, mas, em uma entrevista posterior,
afirma categoricamente a existência de um namoro, sem argumentos ou
provas muito convincentes.66 Dois fatores alimentam a especulação. O
primeiro são os antecedentes: Tânia e o Che se conheciam desde fins de
1960, tinham se encontrado em uma infinidade de reuniões e festas, estive-
ram juntos em Praga durante uma temporada na primavera de 1966 e tudo
indica, pelo menos, que ela estava perdidamente apaixonada por ele.
Em segundo lugar, quando o corpo de Tânia foi resgatado, em agosto,
circularam rumores de que trazia no ventre um feto de três meses de idade.
Não ficou claro se ela passou por uma autópsia. Alguns dizem que o mesmo
médico que cortou as mãos do cadáver do Che — o boliviano Abraham Bap-
tista Moisés, hoje funcionário do Hospital Universitário da cidade de
Puebla, no México — efetuou uma necropsia completa no corpo de Tânia.
Sempre correu o boato de que ela morreu grávida.* Não é provável nem
impossível que o pai fosse o Che, mas seria de se esperar que, nesse caso,
algum testemunho confiável e direto teria surgido ao longo desses trinta
anos.** É mais provável que Tânia fosse uma espécie de entusiasta da re-
volução, logicamente enfeitiçada pelo fascinante personagem que co-
nhecera em Berlim seis anos antes. É natural que toda a situação se preste às
mais variadas interpretações e tentações, mas parece improvável que o Che
tenha reencontrado o encanto das "minas" argentinas nos traços austeros e
quase masculinos de Tânia.
Ciro Bustos foi o primeiro argentino convocado para a Bolívia. Nos
primeiros dias de fevereiro, Eduardo Josami, um dirigente do Sindicato dos
Jornalistas, foi contatado por Tânia em La Paz e depois conduzido a Camiri.

(*) Diz o chefe do Country Team da CIA enviado à Bolívia, Gustavo Villoldo: "A
autópsia de Tânia não foi feita. Ela não estava grávida. Não se sabia de nada, primeiramente
porque não houve autópsia. Havia o rumor de que estava grávida, mas eu não acredito que
fosse verdade". (Villoldo, entrevista, op. cit.) Já Felix Rodríguez, outro dos agentes da CIA
presentes na Bolívia, declarou em diversas entrevistas, inclusive uma com o autor, que Tânia
realmente esperava um filho. Ver Felix Rodríguez, entrevista com o autor, Miami, 24/4/95.
Ver também Tâmara Bunke, Der Spiegel, op. cit.
(**) Benigno observou que se a gravidez tinha três meses, o Che não podia ser o pai. A
divisão da guerrilha em dois grupos deu-se em 20 de abril, e Tânia morreu em 31 de agosto.
Para Benigno, o pai seria Alejandro, um dos integrantes do grupo de retaguarda, com quem
Tânia tinha uma relação de amor e ódio.
Ali foi informado sobre a marcha de reconhecimento do Che. Teria de
esperar algumas semanas até o regresso do comandante. Resolveu voltar um
mês depois, em vez de esperar em Camiri, exposto a todo tipo de perguntas
e suspeitas. O próprio Josami recorda hoje que "o objetivo da viagem nunca
esteve claro para mim", que ficou um tanto impressionado com "a pre-
cariedade dos meios", temeroso de que o vaivém do jipe de Tânia com dois
peruanos engajados na guerrilha alertasse as forças armadas.67 Foi o que ocor-
reu. Ele nunca chegou ao acampamento.
Já Ciro Bustos chegou, sim. Seus contatos com o Che remontavam a
1963, por ocasião da frustrada guerrilha de Jorge Masetti. Tânia convidara
Bustos para ir ao acampamento em janeiro, mas só o levaria, com Debray, em
6 de março. Ele era um pintor medíocre e um ativista ingénuo. Sua missão
fora definida pelo Che tempos atrás: preparar seu retorno ao país natal, orga-
nizando as facções e dissidências comunistas, peronistas e até trotskistas
para que dessem início a um grupo armado argentino. Bustos não pensava
em uma visita prolongada. Sua passagem deveria ser rápida e silenciosa.
Dividiu por mais de três anos a prisão de Camiri com Régis Debray.
O francês realizava sua terceira viagem à Bolívia em três anos, mas na
ocasião seu propósito era mais político e público que das vezes anteriores. Ele
fora enviado por Fidel Castro, trazendo algumas mensagens e análises para
o Che e para levar outras de volta. Devia atuar como uma espécie de inter-
mediário entre o Che e outros grupos latino-americanos. Programara a
seguir uma visita a São Paulo, para coordenar as ações de Guevara com as de
Carlos Marighela.68 Esperava ficar apenas alguns dias no acampamento, já
que sua missão exigia que deixasse a Bolívia o quanto antes.
Os três visitantes ficaram menos de um mês com o Che na base guer-
rilheira. Sua partida provocaria uma nova crise, de consequências desas-
trosas, mas antes disso a paz interna já havia sido quebrada por outros acon-
tecimentos. O primeiro foi o corte das comunicações devido a uma avaria ou
limitação dos transmissores da guerrilha; o outro, a ocorrência de novas
deserções e indiscrições que permitiram ao exército boliviano ter uma ideia
exata do inimigo.
As comunicações foram o calcanhar-de-aquiles da guerrilha do Che.
Havia dois enormes transmissores norte-americanos, pesados, de válvulas,
herdados da Segunda Guerra Mundial, para os quais era necessário um ge-
rador elétrico autónomo. Um dos encarregados da comunicação com a
Bolívia em Cuba recorda: "Eles tiveram um rádio transistor que jamais
chegou a funcionar, um aparelho enorme, com motor, que nem foi instala-
do. Nunca tiveram comunicação externa. O único rádio que tinham era um
receptor de seis faixas. Com ele ouviam a Rádio Havana, mas não tinham
condições de transmitir nenhuma mensagem".69
Um dos aparelhos molhou e deixou de funcionar desde janeiro, por ter
sido enterrado em um esconderijo malfeito; duas válvulas do outro
queimaram. Loro Vázquez Viana foi encarregado de comprar outras válvulas
em Santa Cruz. Em vez de comprar uma caixa, contentou-se com duas e
jogou-as no chão do jipe. Ao fim de seiscentos quilómetros por caminhos
precários, as válvulas chegaram a Nancahuasú totalmente imprestáveis.70 Em
março, acabou a gasolina para o gerador; os guerrilheiros não voltaram a ter
combustível. Seus dois aparelhos adicionais, para radioamadores, também
estragaram rapidamente. Por fim, dispunham somente de um aparelho de
radiotelegrafia, mas não da chave para utilizá-lo. Em outras palavras: "Foi
tudo improvisado. O equipamento para as comunicações parecia bom, mas
na hora não serviu para nada, uma bosta. Então compraram-se walkie-talkies,
pareciam os melhores do mundo, mas depois não funcionavam, eram brin-
quedos de criança. E quando as baterias acabaram, não havia outras".71
A partir de fevereiro, o Che ficou sem comunicação com La Paz, Cuba
e o mundo. Somente podia receber mensagens. Não podia enviar informes,
pedidos de ajuda ou comunicados de guerra.* Quando, além disso, caiu a
rede urbana e interrompeu-se a comunicação por via pessoal, todos os laços
estavam cortados: o Che ficara só. Os cubanos sabiam, desde antes de
fevereiro, que a guerrilha já não tinha transmissores nem qualquer outro
meio de comunicação com a ilha. A partir de então, Havana dependeria das
agências de notícias para saber o que acontecia na Bolívia. Carecia por com-
pleto de qualquer informação direta, exceto algumas mensagens enviadas
do acampamento nos primeiros meses e, em março, as notícias trazidas com
a volta a Cuba de Renán Montero, um dos contatos urbanos. Dada a enorme
importância desse fator na guerra de guerrilhas, o isolamento era um sinal de
alarme, mas não causou maior inquietação na ilha.
O início dos combates e a descoberta da guerrilha levaram a novas
deserções e conduziram as forças armadas aos acampamentos. Em uma
reunião em 25 de março, com todo o pessoal, o Che criticou todos; descar-
regou sua ira contra Marcos e destituiu-o da chefia da vanguarda, dando-lhe
a opção de ser rebaixado a simples combatente ou voltar para Havana. Disse

(*) "Não, não pudemos enviar uma só mensagem do monte. Nunca. Sempre recebe-
nws, mas nunca transmitimos. Nada. Não tínhamos como". (Benigno, entrevista, op. cit.)
que mais três recrutas de Moisés Guevara — Chingolo, Pepe e Paço — não
serviam, pois não trabalhavam nem contribuíam em nada; tinham pedido
para se separar do grupo e voltarem a suas casas. O Che achou que deviam
ser afastados na primeira oportunidade. De imediato, caso não trabalhas-
sem, ficariam sem comida, assim como outro recruta boliviano, chamado
Eusebio, "ladrão, mentiroso, hipócrita", que também pedira baixa.
Em 7 de abril, a 4a Divisão do exército boliviano ocupou o acampa-
mento central, tomando o hospital de campanha. Foram apreendidos os
medicamentos, o forno e uma grande quantidade de objetos dos guerri-
lheiros, abastecendo a Inteligência militar com uma infinidade de infor-
mações e detalhes. O achado não bastou para livrar o exército de uma nova
derrota, em 10 de abril: algumas emboscadas guerrilheiras à beira do rio, a
caminho do acampamento, provocou no inimigo nove mortes, uma dezena
de feridos, treze prisioneiros, e proporcionou um considerável butim de
armas, granadas e equipamento. O grupo comandado por Rolando mostrou
grande engenho tático depois do primeiro enfrentamento: em lugar de
atacar e fugir, atacou duas vezes. Foi a vitória mais importante dos insurre-
tos. Desmoralizou o governo, deu alento aos simpatizantes da guerrilha e
abalou seriamente o regime de René Barrientos.
A situação das autoridades bolivianas era de fato preocupante. Em ape-
nas duas semanas, elas contabilizavam dezoito mortos, vinte feridos e perdas
materiais consideráveis. No mesmo período, a guerrilha só teve uma baixa
— Jesus Suárez Gayol, o Rubio —, e o moral da tropa oficial era baixíssimo.
Os oficiais exageravam as proezas e o número de combatentes rebeldes —
alguns falavam em quinhentos. Barrientos percorreu a região e prometeu
erradicar o grupo armado o quanto antes, mas mostrava nervosismo e um
comportamento titubeante. Só com o tempo e por insistência norte-ameri-
cana o comandante-em-chefe das forças armadas, general Alfredo Ovando,
retomou aos poucos o controle da ação governista. Ele concluiu que a luta
seria prolongada. Seria preciso obter apoio externo, em armas, treinamento
e inteligência, e formar corpos de elite para a luta contra as forças rebeldes.
Embora convencidos da presença do Che, os militares preferiam falar
de cubanos e estrangeiros em geral. Evitavam mencionar o comandante
Ernesto Guevara: "As primeiras notícias que se tem sobre a provável pre-
sença do Che Guevara são tratadas com cuidado. Sem divulgá-las, estão
sendo contatados os serviços de informação de outros países para se tentar
obter uma confirmação".72 Os norte-americanos também não queriam dar
publicidade à participação do Che e evitaram que a imprensa estrangeira
soubesse dela.* Essa atitude mostrou-se bastante proveitosa: como declarou
Mário Monje em sua carta de 1968 ao Comité Central do PCB, o segredo
sobre a identidade do Che, antes e depois de o governo descobri-la, talvez
tenha protegido o argentino, mas impediu que dezenas ou centenas de mi-
litantes se somassem à luta encabeçada por aquele que era uma verdadeira
lenda viva latino-americana.
Quando e como se confirmou a presença do Che na Bolívia? Segundo
Gustavo Villoldo — que chegou pela primeira vez à Bolívia em fevereiro e
retornou em fins de julho para encabeçar o Country Team da CIA —, ele se
convenceu da presença de Guevara graças à infiltração de três pessoas no
aparato urbano montado pelos cubanos e pelo PCB. Ainda hoje, Villoldo
nega-se a fornecer os nomes dos dois bolivianos e um peruano, que ainda
vivem sob "proteção"do Estado. Mas acrescenta: "Posso dizer, sim, que infil-
tramos uma série de agentes e foram eles que começaram a nos dar a infor-
mação necessária para neutralizá-los. Todo esse mecanismo, esse apoio
logístico, ao ser neutralizado, deixou a guerrilha totalmente desamparada.
Penetramos totalmente no aparato urbano".7'
Larry Sternfield, chefe da equipe da CIA na Bolívia até abril de 1967,
declarou que, de fato, confirmou a presença do Che antes das autoridades boli-
vianas, por intermédio de fontes locais de nível médio que trabalhavam em
contato com a CIA. John Tilton, substituto de Sternfield, corrobora essa ver-
são em suas memórias inéditas: "Certa noite, o presidente René Barrientos
telefonou-me para perguntar sobre um boato de que Che Guevara estaria na
Bolívia. Encontramo-nos e eu lhe disse que o rumor parecia procedente".74
Não é de estranhar que a cúpula da CIA em Langley não desse crédito a seus
chefes de equipe em La Paz. Ocorrera o mesmo com os relatórios de Lawrence
Devlin sobre o Che no Congo. Tilton ainda hoje lamenta as dificuldades que
teve para convencer a matriz a levar suas suspeitas a sério.
Quando Debray e Bustos foram presos, em 20 de abril, as forças
armadas já dispunham dos dados fornecidos pelos desertores e por Salustio
Choque Choque, em poder das autoridades. Com eles, já podiam ter como
certo que o chefe da guerrilha era o Che. * * Além disso, em 24 de abril, Jorge

(*) "A imprensa recebeu todo tipo de provas e confidências da embaixada dos Estados
Unidos e dos assessores militares de Washington, assegurando que o pânico boliviano era
uma manobra para arrancar mais ajuda militar norte-americana". (Andrew St. George,
"How the US got Che", True Magazine, abril, 1969, p. 92.)
(**) "O que houve com Debray e Bustos não foi decisivo do ponto de vista de [saber]
que era ele. Já se sabia." (Gustavo Villoldo, op. cit.)
Vázquez Viana foi ferido e capturado pelo exército, segundo alguns quando
tentava fugir, segundo outros por desorganização. Depois de ser submetido a
uma cirurgia em um hospital militar, foi interrogado por um agente da CIA
que operava com o nome de Eduardo González. Para complicar ainda mais
as coisas, havia na Bolívia dois agentes da CIA com o mesmo nome frio: esse
González, que chegou primeiro, e o outro, cujo verdadeiro nome é Gustavo
Villoldo e que aparece nas fotos junto ao cadáver do Che em Vallegrande.*
O primeiro González, hoje já falecido, interrogou Vázquez Viana, Debray e
Bustos. Ele armou uma cilada para o Loro, fingindo ser um jornalista pana-
menho de esquerda. Viana contou tudo, de fio a pavio."
Durante as primeiras semanas de interrogatórios e torturas, Debray sus-
tentou a história combinada: era jornalista e fora à Bolívia para entrevistar
os guerrilheiros. Escutara rumores sobre a presença do Che, mas não o vira.
Depois, acabou reconhecendo que o entrevistou, mas disse acreditar que ele
não se encontrava mais na Bolívia. Munido da informação obtida do Loro,
González fez a acareação entre Debray e Bustos. Este descreveu os guerri-
lheiros e a vida no acampamento com riqueza de detalhes, fornecendo
mapas e rotas de acesso. Trocando em miúdos, abriu o bico. Cedeu a seus
interrogadores quando estes lhe mostraram as fotos de suas duas filhas e
ameaçaram sequestrá-las. Não tinha a integridade e a firmeza necessárias
para resistir. Sequer foi espancado.
Obrigado a deslocar-se, a encontrar uma saída para seus visitantes e
buscar novas fontes de abastecimento, privado de comunicações e da rede
urbana, em 18 de abril o Che provocou uma nova crise na campanha da
Bolívia, ao dividir suas forças. A divisão, a princípio provisória, tornou-se
definitiva e fatal: uma força tão pequena não poderia repartir-se. Separados
e incomunicados, os dois destacamentos passaram quatro meses procuran-
do-se mutuamente pelas serras bolivianas, às vezes a poucas centenas de
metros e até abrindo fogo um contra o outro, sem jamais se reencontrarem.
A divisão foi feita devido à necessidade de conseguir uma saída para
Bustos e Debray. Ao verificar que seria difícil se afastar da área, cercada pelo
exército, os dois visitantes expressaram sua disposição de se unir à guerrilha,
mas o Che, pelo menos no caso de Debray, respondeu que ele serviria me-
lhor à causa se permanecesse fora, levando mensagens a Fidel e organizando

(*) A existência de dois González foi comunicada ao autor por Gustavo Villoldo, na
entrevista de 2 2 de novembro de 1995, em Miami. Ainda foi confirmada por Larry Sternfield,
chefe da equipe da CIA na Bolívia até meados de 1967, em uma conversa telefónica com o
autor em 4 de novembro de 1966.
uma campanha internacional de solidariedade. Uma esforço desse tipo
adquiria maior importância com o início das hostilidades e o desbarata-
mento da rede urbana. O diário do Che destaca que Debray expôs com
demasiada "veemência" seu desejo de abandonar o acampamento, mas mes-
mo assim Guevara concordou e agiu de acordo. Deixou dezessete homens
com juan Vitalo Acufia, o Joaquín, seu lugar-tenente; entre eles, Tânia —
debilitada e já sem poder voltar à cidade —, os doentes e os quatro homens
de Moisés Guevara — conhecidos como "a ressaca" —, que deveriam dar
baixa o quanto antes. Com os trinta combatentes restantes, o Che marchou
para o Sul, em direção a Muyupampa, um povoado que pretendia ocupar,
aproveitando a confusão resultante para deixar os dois estrangeiros. Deu ordens
precisas a joaquín para que ao fim de três dias se reencontrassem no mesmo
lugar, evitando enfrentamentos que pudessem dificultar a reunificação.
Mas o exército regular boliviano se adiantou e ocupou Muyupampa,
impedindo a tomada pelas armas. No caminho, porém, a vanguarda gue-
varista topou com um jornalista anglo-chileno, de aparência suspeita, que
descobrira o bando armado guiado por dois meninos. George Andrew Roth
aceitou um acordo: em troca de uma entrevista com Inti Peredo, concordou
em voltar a Camiri com Debray e Bustos, confirmando junto às autoridades
que eles eram jornalistas.* O ardil foi inútil. Debray e Bustos foram descober-
tos, detidos pela polícia e entregues à 4a Divisão. Ali foram interrogados, com
a violência característica dos exércitos latino-americanos. Provavelmente,
teriam sido eliminados se não fosse o escândalo na imprensa e a pressão da
CIA. Esta não agiu movida por nenhum alto sentimento humanitário, mas
pela certeza de que os dois poderiam fornecer mais informações. Ambos se-
riam julgados, condenados a trinta anos de prisão e libertados em 1970, logo
que o governo progressista de Juan José Torres subiu ao poder.
O Che não fixou pontos de reunião com a retaguarda caso o exército
ou qualquer outro fator forçasse a dispersão. A falta de comunicações — fos-
se entre os dois destacamentos ou com um terceiro centro, em La Paz ou mes-
mo Havana — impossibilitou o reagrupamento. Quando o exército
executou novas manobras e obrigou o Che a seguir para o norte, longe da
área onde Joaquín o aguardava, o vínculo se rompeu definitivamente. O Che
nunca desistiu das tentativas de reunificação. Mais tarde, quando seus com-
panheiros suplicaram que abandonasse a ideia, enfureceu-se: "Nós certa vez

(*) Em seu próprio relato, Roth não menciona essa troca. Diz apenas que recebeu
instruções dos guerrilheiros para proceder dessa maneira. (Ver George Andrew Roth, "I was
arrested wirh Debray", Evergreen Magazine, 1967.)
nos atrevemos a dizer-lhe: Por que não paramos de procurar o grupo de
Joaquín, para que eles se virem como puderem? Ele nem nos deixou termi-
nar. A explosão que se seguiu foi gigantesca".76 Como a zona era pouco
habitada e os raros moradores que conversavam com os guerrilheiros rea-
giam com temor ou hostilidade, o reencontro só dependia da sorte. E a guer-
rilha do Che na Bolívia nunca contou com a sorte.
Por que o Che não estabeleceu alguns pontos alternativos de reunião com
a retaguarda? Trinta anos depois, o mistério ainda persiste. Na mais profunda
análise escrita por um militar boliviano, Gary Prado atribui o erro a uma supe-
restimação das forças guerrilheiras e um erróneo desprezo pelo exército.77 A
resposta está provavelmente no estado de ânimo do Che, torturado pela fraque-
za, o mau humor e a asma, acossado por uma infinidade de problemas. No seu
diário, o Che registra constantes crises de asma e uma negra nuvem depressiva.
As circunstâncias não ensejavam decisões inteligentes, cuidadosas e prudentes.
Ao longo de abril e maio, quando Guevara esperava estabelecer vín-
culos com os camponeses da região — embora tivesse consciência dos
obstáculos que enfrentaria —, ocorreu o inverso. A morte de dois civis teve
uma péssima repercussão entre a população local. A campanha anticomu-
nista desencadeada pelas forças armadas surtiu efeito. Os comunicados do
recém-batizado Exército de Libertação Nacional tiveram pouca difusão na
imprensa, cada vez mais censurada. Os camponeses aceitavam vender
víveres aos combatentes, mas com receio. Falavam com eles, mas muito
temerosos, e costumavam informar rapidamente as autoridades de qualquer
contato com a guerrilha.
Em 15 de abril, Havana publicou na revista Tricontinental o ensaio do
Che em que o comandante formula seu mais célebre slogan: "Criar dois, três
Vietnãs". Sua exaltação à violência e ao sacrifício da vida — a busca do
martírio, diriam alguns — torna-se explícita: "O ódio como fator de luta. O
ódio intransigente ao inimigo, que impulsiona o ser humano para além dos
limites naturais e o converte em uma eficaz, violenta, seletiva e fria máquina
de matar. Nossos soldados têm de ser assim. Um povo sem ódio não pode
triunfar sobre um inimigo brutal".7S
O tom anti-soviético do discurso também é patente, assim como o tom
panfletário.* Seis fotos do Che são divulgadas, duas à paisana e quatro de

(*) "Há uma triste realidade. O Vietnã [...] está tragicamente só. A solidariedade do
mundo progressista para com [...] o Vietnã assemelha-se, com amarga ironia, ao que o estí-
mulo da plebe representava para os gladiadores do circo romano. Não se trata de desejar
vitórias para o povo agredido, mas de partilhar sua sorte" (ibidem, p. 642).
uniforme verde-oliva. O jornal registra, em 15 de abril, que a publicidade
dada a sua mensagem garante que "não deve haver dúvida quanto à minha
presença aqui". Enquanto isso, na Bolívia, o combate contra os guerrilheiros
transformava-se numa verdadeira caçada. Todos os recursos locais foram
postos a serviço de uma única causa: caupturar e/ou matar Che Guevara.
Logo, milhares de soldados passaram um pente fino em uma área imensa,
mas particularmente hostil, rastreando menos de quarenta homens fa-
mintos e doentes, divididos em dois grupos isolados.

Os Estados Unidos se envolveram desde o início na guerra da Bolívia.


Os dois agentes cubanos da CIA ainda vivos, Félix Rodríguez e Gustavo Vil-
loldo, só se incorporaram plenamente à luta antiguerrilha em junho, ater-
rissando em 31 de julho no aeroporto El Alto, de La Paz. Mas, em Washing-
ton, as reuniões para análise da situação na Bolívia vinham sendo realizadas
desde abril. De acordo com o relato de Andrew St. George, o jornalista que
entrevistara Fidel e o Che na sierra Maestra, em 9 de abril reuniu-se pela
primeira vez um comité de alto nível visando dar uma resposta ante as provas
contundentes da presença do Che na Bolívia.* Segundo St. George, a pro-
va definitiva da presença do Che foi a foto do forno de pão de Nancahuazú,
feito de barro batido, redondo e bojudo, copiado dos fornos de pão vietna-
mitas de Dien Bien-Phu.
Após a visita do general William Tope a La Paz, em meados de abril,
Washington concluiu, segundo o general, que "essa gente enfrenta um
enorme problema e vamos ter grandes dificuldades para encontrar um
enfoque comum, para não falar de uma solução".79 Desde 29 de abril embar-
caram para a Bolívia quatro oficiais e doze soldados liderados por Ralph Shel-
ton. Imediatamente iniciaram o treinamento de seiscentos soldados boli-
vianos, um curso de dezenove semanas que os converteu no primeiro grupo
de Rangers na Bolívia, que capturaria o Che e derrotaria sua guerrilha.
Os meses de maio e junho não foram os piores para a guerrilha. Em fins

(*) St. George, How the VS, op. cit., p. 93.0 primeiro documento da Casa Branca afir-
mando a presença do Che tem a data de 11 de maio e diz: "Esta é a primeira informação digna
de fé de que o Che está vivo e em atividade na América do Sul". (Walt Rostow to the Presi-
dem, 11/5/67 (secreto). NSF, Country File, Bolívia, vol. 4, box 8, LBJ Library.) O primeiro
informe disponível da CIA afirmando categoricamente que o Che estava na Bolívia é de 14
de junho. Trata-se de um resumo, evidentemente sintetizando relatórios anteriores. (Central
Intelligence Agency, Cuba-inspiredguerrillaactivity, op. cit.)
de maio, ela ocupou três povoados em um só dia, numa demonstração de
mobilidade e profissionalismo de comando que voltou a desmoralizar o
exército. A guerrilha tinha valor e tenacidade em abundância, mas começa-
va a faltar-lhe imaginação ofensiva. Na prática, o Che quase não empreen-
deu ações ofensivas. Nunca atacou, nem por meio de comandos nem com
forças concentradas, as instalações militares bolivianas, as vias de comuni-
cação ou os povoados de maior magnitude. Apenas reagiu às investidas do
exército com emboscadas, ações defensivas ou a tomada de pequenas vilas.
Nesse período, Guevara perdeu homens valorosos e queridos: em 25 de
abril, San Luis, o Rolando, a quem conhecia desde a sierra Maestra, talvez o
melhor militar da equipe; Tuma, ou Carlos Coello, cuja morte lamentou
como se fosse a de um filho; e em 30 de julho de 1967, em uma escaramuça
menor, Papi, cuja morte, apesar das decepções anteriores, abalou-o muitíssi-
mo. O Che devia saber que, perdendo guerrilheiros a esse ritmo, sem que os
camponeses compensassem as baixas com sua adesão, sua epopeia estava
condenada: por mais golpes que acertasse no exército, o próprio desgaste o
derrubaria. Nos círculos mais íntimos do poder cubano circulava a avaliação
de que as coisas não andavam bem. As notícias da morte de guerrilheiros
permitiram que os cubanos bem informados percebessem a iminência de um
novo fracasso.*
O equilíbrio militar até o momento não desfavorecia os revolu-
cionários. Em um memorando secreto para Lyndon Johnson, escrito em
meados de junho, o assessor de Segurança Nacional Walt Rostow confessa-
va: "Os guerrilheiros levam clara vantagem, face a forças de segurança boli-
vianas inferiores. O desempenho das unidades governamentais mostrou
uma séria falta de coordenação de comando, de liderança dos oficiais, de
treinamento da tropa e de disciplina".80
Mas a vantagem era ilusória. O verdadeiro drama do Che era a falta de
apoio por parte dos habitantes da região por onde ele vagou sem rumo
durante meses. Eles jamais lhe deram boas-vindas, nem compreenderam o
sentido de seu movimento. Não houve um só camponês que tenha se unido
à guerrilha, nem mesmo em fins de junho, quando as atividades do grupo o
puseram em contato direto com a população e o Che até chegou a fazer as
vezes de dentista das vilas. A essa altura o país vivia um momento de inten-
sa mobilização social que tivera início quando os trabalhadores das minas de

(*) Lino, op. cit. Lino reconhece, entretanto, que Cuba não tomou conhecimento da
separação do grupo de Joaquín antes do anúncio público do aniquilamento da retaguarda, em
31 de agosto.
Siglo XX, Hanuni e Catavi entraram em greve, recebendo imediato apoio do
movimento estudantil. Mas nem mesmo essa circunstância aparentemente
tão favorável pôs a guerrilha em contato com o restante do país. A existên-
cia de um movimento operário fora uma das razões mais fortes para que Che
optasse pela localização da guerrilha na Bolívia. Mas os guerrilheiros
estavam isolados no Sudeste, separados pela cordilheira dos Andes e por
mais de mil quilómetros, sem comunicações nem laços políticos com os
mineiros. Testemunharam, impotentes, o massacre de dezenas de manifes-
tantes no dia de São João e a rápida extinção do movimento.
Duas novas crises atingiram a expedição entre abril e setembro. A
primeira compreendia o velho problema da rede urbana, que terminara em
mãos de militantes comunistas marginalizados do PCB, os quais sofreram as
consequências da proscrição do partido e da repressão legalista. Mário Mon-
je atacava alguns comunistas que pretendiam solidarizar-se com a guerrilha;
o governo se encarregava do resto. O PCB não forneceu víveres, armas,
medicamentos nem ajuda. Combatentes, muito menos. Com a incorpo-
ração de Tânia à retaguarda e a captura de Debray, apenas um cubano per-
maneceu nas cidades: era Ivan, ou Renán Montero, cujo desempenho ainda
constitui um dos enigmas da aventura boliviana do Che Guevara. A con-
clusão era evidente para os cubanos na guerrilha: "Ou se escalava alguém
para fazer contato com a cidade, ou as coisas iriam muito mal. Mas só falá-
vamos isso entre nós, ninguém era capaz de dizer uma coisa dessas ao Che".81
Montero era de origem cubana, embora mais tarde obtivesse a nacio-
nalidade nicaragúense pelos serviços prestados à revolução sandinista. Era
provavelmente o único cubano da rede não propriamente ligado ao Che. Era
funcionário dos serviços de segurança do Estado, mas não da equipe de
Pineiro. Ao chegar à Bolívia, em setembro de 1966, foi encarregado, junto
com Tânia, de receber os cubanos, inclusive o Che. Discutia constante-
mente com a germano-argentina, segundo Ulises Estrada, por causa de um
caso amoroso que inclusive explica parcialmente seu intempestivo afasta-
mento da Bolívia.82 Como diz o diário de Pombo, as tensões entre os dois ti-
nham se exacerbado perigosamente. Uma vez sãos e salvos todos os futuros
combatentes de Nancahuazú, a missão de Montero e Tânia consistia em "fa-
zer negócios", segundo o diário do Che, e enraizar-se solidamente na
sociedade boliviana. Ivan cumpriu com o segundo item, porque contava
com a vantagem de ter caído nas graças de uma jovem pertencente à família
do presidente Barrientos. Incentivado pelo Che, chegara até a dispor-se a
casar com ela.8'
Mas depois, em meados de fevereiro, sumiu do mapa: abandonou a
Bolívia, viajou para Paris e pouco depois apareceu em Cuba, em fins de abril,
segundo uma mensagem cifrada de Havana para o Che.M A julgar pelo teste-
munho de Montero, o motivo da partida era simples: devia manter seus
papéis em ordem, já que a sua missão era incompatível com a clandes-
tinidade. Seu passaporte e o visto de permanência venceram após seis meses
na Bolívia. Sem receber instruções do Che — inexistentes porque as comu-
nicações entre a guerrilha e a cidade se interromperam semanas antes —, ele
decidiu fazer o que fora combinado antes: sair do país para renovar seus
papéis.85 Trata-se de uma explicação, ou ingénua, ou ardilosa. Como
esclarece Benigno, "sozinho ele não partiria. Não era ele quem decidia. Não
tenho dúvidas de que recebeu instruções. Mandaram que ele fosse para a
França, para que se recuperasse, e depois voltasse, mas não sei que motivos
o impediram de voltar. Não estou certo sobre o caso do Renán".*
Segundo Montero, ele ainda estava em La Paz quando Tânia foi ao
acampamento pela última vez, no início de março, com Debray e Bustos.
Sabia, portanto, que ela não podia mais atuar como contato urbano.** Ti-
nha plena consciência do início dos combates e das dificuldades dos mem-
bros do Partido Comunista, agora relegados à vida clandestina. Além disso,
seus planos de casamento avançavam, proporcionando-lhe contatos de
altíssimo nível que poderiam facilitar a regularização de seus papéis. "Três ou
quatro dias depois do primeiro combate, encontrei-me com Barrientos, e sua
família aproveitou para apoiar a solicitação de terras que eu fizera para o Alto
Beni".86 Nessas condições, não teria o menor sentido abandonar seu posto e
partir para Paris apenas para regularizar sua situação legal.
A outra explicação, apresentada tanto por Montero como pelo Che,
em seu diário, era a doença. Mas ela também não se encaixa com o costume
imperante de resistir a tudo para cumprir a missão histórica. O diário de
Pombo assinala desde janeiro que Papi Martínez Tamayo comunicara ao
Che seus temores em relação a Montero: "Ivan não ficará porque está va-
cilando". A previsão logo se confirmou. Mesmo dando-se crédito à versão

(*) Benigno, entrevista, op. cit. Lino, ao contrário, considera que, quando a comuni-
cação entre Havana e a Bolívia se interrompeu por completo, Montero decidiu voltar por
conta própria. Julga que ele agiu levado por uma forte amebíase e pela depressão que o atin-
gira ao comprovar que o Che recusava seu desejo mais ardente: incorporar-se à guerrilha.
(**) lván, entrevista, op. cit. Debray, contudo, afirma que Montero não estava em La
Paz durante os primeiros dias de março. Para o francês, a essa altura, Montero já abandonara
a Bolívia.
de que Montero voltaria para Cuba por conta própria, cabe perguntar qual
foi a reação dos cubanos ao verem que o único integrante da rede urbana ain-
da em condições de ação abandonara a Bolívia. O próprio Ivan confessa que
ficou "esperando longos meses em Cuba", mais ou menos do início de abril
até setembro, para retornar, mas "foi decidido que não, por motivos de segu-
rança. Como a presença da guerrilha tinha sido revelada, seria arriscado"."7
Naquele tempo, os quadros guerrilheiros deviam morrer em seu posto.
Do contrário, pagavam caro por sua indisciplina ou traição. Renán Mon-
tero, longe de ter sido castigado por abandono de posto, continua gozando,
trinta anos depois, do favor e proteção do Estado cubano. Os motivos que ele
apresenta são pouco verossímeis. Surgem então duas hipóteses: ou alguém
lhe deu a "dica" para que fugisse da Bolívia e refizesse o contato com Havana
a partir de um país seguro, ou ele fez o pedido a Cuba e recebeu uma resposta
ambígua, que interpretou como aprovação. O essencial, entretanto, é que
desde sua chegada a Havana, ou mesmo a Paris, os dirigentes cubanos pas-
saram a contar com toda a informação necessária para concluir que a guer-
rilha do Che fracassara. Sua fonte foi Ivan, e graças a esse serviço ele goza até
hoje de garantias especiais: Renán Montero sabia que Castro, Raul e Pineiro
sabiam. A penúltima mensagem cifrada que o Che recebeu de Havana infor-
mava que um "novo companheiro" ocuparia "oportunamente" o lugar de
Ivan. Mas o novo companheiro nunca chegou à Bolívia.
Uma segunda crise acabaria por enterrar o Che na Bolívia. Foi causada
pela fraqueza que o seguia como uma sombra desde a infância: a asma. Des-
de abril e o início dos combates, o aumento de adrenalina, em vez de deter
as crises, agrava a doença, acompanhada por outros sofrimentos. Em maio,
o Che escrevia: "No início desta caminhada tive uma fortíssima cólica
intestinal, com vómitos e diarreia. Deram-me demerol e perdi a noção de
tudo enquanto me carregavam numa rede. Quando acordei, sentia-me ali-
viado, mas estava cagado como um bebé de colo".88
A aflição abalava sua capacidade de decisão e agilidade mental. Em duas
ocasiões — em 3 de junho e quando da saída de Debray e Bustos —, ele anotou
em seu diário frases como "o cérebro não funcionou com suficiente rapidez",
"não tive a coragem", "faltou-me energia".89 A vegetação, o clima, o ambiente
e, acima de tudo, a falta de medicamentos derrubam Guevara. Cada decisão,
cada disputa interna ou perda de um guerrilheiro admirado agravavam seu
estado. Ele recorria a todo tipo de preparados e artifícios, desde dependurar-se
de uma árvore e pedir a seus homens que lhe golpeassem o peito com coro-
nhadas até fumar diferentes ervas locais, enquanto buscava efedrina desespe-
radamente. Injetou-se novocaína endovenosa, evitou alimentos que pudessem
provocar crises asmáticas. Quando não podia caminhar, montava uma mula. Já
não suportava a mochila nas costas. Pela primeira vez, pediu a ajuda de seus
companheiros. A vontade de ferro persistia, mas o corpo já não respondia.
A partir de 23 de junho, as referências à asma são quase cotidianas no
diário, ao lado de comentários sohre a falta de medicamentos, a inutilidade
dos sucedâneos, o desespero com o fim dos medicamentos disponíveis. A
angustiante busca de um remédio eficaz levou o Che a tomar uma decisão
que foi também uma oportunidade: a tomada do povoado de Samaipata,
num cruzamnto de estradas entre Santa Cruz e Cochabamba, o maior
povoado que a guerrilha ocupou em sua trágica marcha pelo Sudeste boli-
viano. Os combatentes realizaram a operação com o mesmo profissiona-
lismo das primeiras emboscadas. Enquanto uns falavam com a população,
outros procuravam víveres e medicamentos. O Che ficou em uma cami-
nhonete roubada para a ação e incumbiu seus homens de procurarem os
remédios, mas estes não existiam, ou os guerrilheiros não souberam encon-
trá-los. Frustrou-se o objetivo da operação: "No que toca ao abastecimen-
to, a ação foi um fracasso — não se comprou nada que valesse a pena.
Quanto aos remédios, não se conseguiu nenhum dos que eu preciso".90
Mário Monje tirou suas próprias conclusões do fracasso de Samaipata. Ini-
cialmente, pareceu-lhe excelente a incursão guerrilheira pela planície. Indica-
va que os rebeldes rompiam o cerco e se aproximavam do Chapare, a melhor
região para a luta armada. Mas quando a imprensa informou que os guerri-
lheiros retornavam ao sul, Monje declarou em uma reunião da cúpula do par-
tido: "Senhores, o Che não sairá vivo daqui. Todo o grupo será exterminado.
Cometeram o pior dos erros. Precisamos enviar alguém a Cuba e dizer-lhes que
é preciso salvar o Che".91 Depois de uma longa discussão, decidiu-se mandar a
Havana o próprio Monje para expor seu plano de evasão. Ele saiu via Chile e,
em Santiago, comunicou aos comunistas chilenos seu propósito de ir a Cuba,
pedindo que o ajudassem em sua missão. Ainda recorda o desconcerto da
direção chilena, primeiro incrédula, depois hesitante. Deteve-se em Santiago
por meses e não conseguiu viajar para Cuba. Mas se os comunistas chilenos não
o ajudaram, isso se deveu à relutância do próprio governo cubano em receber o
líder do PCB. Os chilenos jamais teriam agido assim por conta própria.*

(*) A explicação foi sugerida ao autor por Volodia Teitelboim, o escritor e dirigente
comunista chileno, em uma conversa na Cidade do México, em 12 de novembro de 1996. Em
1967, Tetelbiom compunha a cúpula do PCch e teria conhecimento de qualquer decisão par-
tidária a respeito.
Depois da tentativa frustrada de conseguir medicamentos em Sa-
maipata, o Che decidiu enviar Benigno, o mais forte dos sobreviventes, aos
esconderijos da base de Nancahuazú, distantes mais de duzentos quiló-
metros, para recuperar os antiasmáticos guardados lá desde novembro do
ano anterior. Ao chegar, Benigno constatou que o exército já os levara. Foi a
pior notícia do pior mês da guerrilha. Em 31 de julho, os guerrilheiros já ti-
nham perdido onze mochilas, os últimos medicamentos e o gravador usado
para registrar as mensagens que vinham de Havana. A comunicação de fora
para dentro também se rompia. Em 8 de agosto, o Che já perdia a calma,
ferindo a égua que montava, desesperado com a asma, a diarreia e os reveses,
como confessou no diário.92 Um militar boliviano, o capitão Vargas Salinas,
relatou inclusive que desde agosto eram os irmãos Peredo que conduziam as
operações e que o Che tentou o suicídio — afirmação que não foi confirma-
da em nenhum outro testemunho ou diário.*
A descoberta dos esconderijos foi "o pior golpe que recebemos. Alguém
nos delatou. Mas, quem? E uma incógnita".9' Um informante conduziu os mi-
litares ao esconderijo perto do primeiro acampamento, onde estavam guarda-
dos documentos, fotos, víveres, medicamentos e armas. Segundo a versão de
quatro sobreviventes, três do lado guerrilheiro e um das forças repressivas, o
informante foi Ciro Bustos.** O Che o convocara devido aos antigos laços
com a guerrilha de Salta. Confiava nele sem conhecê-lo bem. Segundo
Debray, foi Bustos que levou os militares ao acampamento. "Ele sumia, só con-
seguíamos trocar algumas palavras no pátio da prisão. Mas eu sabia o que ele
contava, pois podia perceber o que os interrogadores já sabiam".94
Benigno também especula que foi Bustos quem guiou o exército até o
local. Ele havia sido convocado à Bolívia pelo Che para que tivesse uma
noção geral de todo o esforço guerrilheiro e pudesse atrair combatentes
argentinos. Por isso mostrou-lhe os esconderijos. "Eu saía andando com
Ciro Bustos e mostrava-lhe onde estavam os esconderijos. Alguns deles

(*) Mário Vargas Salinas, El Che, mito y realidad, Cochabamba e La Paz, Editorial Los
Amigos dei Libro, 1988, p. 57. Vargas Salinas foi o general da reserva que, em novembro de
1995, declarou à imprensa que o cadáver do Che não foi cremado, mas enterrado, desen-
cadeando uma longa, cara e infrutífera busca.
(**) Em cinco ocasiões ao longo de um ano, em telefonemas à sua residência em Mal-
mo, Suécia, ou por escrito, Ciro Bustos recusou-se a responder às perguntas do autor a
respeito. Os cubanos, por seu lado, acusam a "ressaca" e em particular o Chingolo de terem
guiado os militares ao esconderijo. (Ver Cupull e González, La CIA, op. cit., p. 96.) O proble-
ma é que não parece que o Chingolo e seus companheiros tenham visto o esconderijo quando
foi feito.
eram conhecidos pelos bolivianos, outros não".95 Segundo Villoldo, Bustos
forneceu retratos e descrições dos guerrilheiros que foram muito impor-
tantes.96 Também ele confirma que Bustos levou-os ao esconderijo, embora
não saiba a data e diga: "Não posso explicar por que o fez, já que na verdade
sua vida não corria perigo. Não posso dizer que tenha sido por falta de con-
vicção. Ele simpatizava muito com o Che".97
Descoberto o esconderijo, perderam-se os medicamentos do Che. O
enorme esforço de Benigno foi em vão. O governo também conseguiu fotos
de todos os guerrilheiros, inclusive Guevara. Exibiu-as na OEA como prova
definitiva de que o comandante Guevara estava na Bolívia. Já o Che nunca
declarou sua identidade, jamais fez um chamamento à solidariedade local ou
internacional aproveitando sua imagem cada vez mais mítica. Na conferên-
cia da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), realizada
em Havana a 15 de agosto, tanto Osvaldo Dorticós como Fidel Castro omi-
tiram toda e qualquer informação referente ao Che. Não revelaram sua
localização nem sua desesperadora situação, e sequer se cogitou uma cam-
panha para apoiá-lo, protegê-lo ou salvá-lo. Talvez o ingénuo otimismo da
equipe de Pineiro se mantivesse incólume, apesar dos incontáveis e desas-
trosos indícios procedentes da Bolívia. Ou Fidel Castro e os cubanos já
estavam resignados com um desenlace fatal, já iminente.
Depois de três meses seguindo obstinada e cegamente as instruções do
Che de não se afastar da zona sul, onde os dois contingentes se separaram, o
grupo de retaguarda comandado por Joaquín dirigiu-se para o norte, com cin-
co homens a menos. As tensões no seu interior vinham num crescendo já des-
de o início. Tânia mantinha uma péssima relação com os demais, a ponto de
sofrer violências e insultos por parte dos cubanos, que a acusavam de ter sido
a causadora da divisão. Em 30 de agosto, a retaguarda tentou vadear o rio
Grande, com a ajuda do camponês Honorato Rojas, que no início do ano
prestara certa colaboração, joaquín pediu o conselho de Rojas não se sabe por
quê, já que em muitas ocasiões cruzara o rio sem ajuda. Combinaram uma se-
nha: Rojas poria um pano branco junto à margem para indicar que não havia
perigo. Depois que os insurretos se foram, o camponês topou com uma patru-
lha encabeçada pelo chefe do Serviço de Informação da 8ã Divisão, Mário
Vargas Salinas, a quem informou tudo imediatamente. Salinas armou uma
emboscada nas duas margens do vau assinalado por Rojas e esperou os guer-
rilheiros pacientemente. Na tarde de 31 de agosto, minutos antes do pôr-do-
sol que os teria protegido, eles iniciam a travessia do rio. Em Vado dei Yeso,
com a água pelo peito e os fuzis para o alto, eles foram crivados de balas. Mor-
reram dez combatentes, inclusive Joaquín, Tânia, Moisés Guevara e Bráulio.
Seus corpos foram arrastados pela correnteza.
Dois rebeldes bolivianos foram presos. Um morreria por causa dos fe-
rimentos, o outro informaria em detalhes a peregrinação da retaguarda. Este
homem, cujo codinome era Paço, espalhou o rumor de que Tânia, ao morrer,
sofria de câncer de útero, o que constantemente a levava a retardar-se e
explicaria os vestígios de sangue encontrados em suas toalhas higiénicas.*
Paço também divulgou histórias sobre os eternos conflitos entre os guerri-
lheiros do grupo de Joaquín, em particular as crises emocionais de Tânia.
Como Lyndon Johnson seria informado quatro dias mais tarde, por seu asses-
sor de Segurança Nacional: "Ao fim de uma série de derrotas impostas pelos
guerrilheiros, as forças armadas bolivianas finalmente obtiveram sua pri-
meira vitória, e foi uma grande vitória".98
Com a aniquilação da retaguarda, esgotava-se o tempo do Che. Vado
dei Yeso foi o fim da caminhada não só para os que ali pereceram, mas para
toda a guerrilha boliviana. Isolada, dizimada por baixas, doenças e
deserções, com um líder torturado pela asma e a depressão, cercada por um
exército cada dia mais enérgico e competente, ela não tinha saída. Faltavam
cinco semanas para o cruel mas previsível epílogo. Antes de descrevê-lo e
refletir sobre a "bela morte" que produz o mito do Che Guevara, é necessário
buscar uma explicação para o que aconteceu.

Descartadas as teorias fantasiosas — o Che continua vivo, o Che mor-


reu antes, o Che nunca foi à Bolívia** —, a tragédia dá lugar a duas inter-
pretações verossímeis e bem fundamentadas. Uma baseia-se na hipotética
decisão do governo de Cuba de inicialmente apoiar o Che com meios limi-

(*) "Na verdade Tânia sofreu muito, pois tinha câncer e isso não a deixava dormir."
(Paço, cit. em Mário Vargas Salinas, op. cit., p. 102. Ver também Tâmara Bunke, Der Spiegel,
op. cit.)
(* *) Uma das histórias mais rebuscadas e inteligentes aparece no romance La septième
mort du Che, de Joseph Marsant, publicada originalmente em Paris e traduzida para o espa-
nhol em 1979 (Plaza y Janés). Marsant é pseudónimo de Pierre Galice, adido cultural da
embaixada da França em Havana em fins dos anos 60. Sua tese central é que Manuel Pineiro
infiltrou um homem seu na equipe do Che, que no final traiu o argentino. O propósito da
traição era culpar os soviéticos pela morte para induzir um distanciamento entre Castro e
Moscou. Fontes dos serviços de informação de outro país europeu ocidental assinalam — isso
salta aos olhos no próprio texto — que Galice estava muito bem informado e, por mais fan-
tástica que sua história pudesse parecer, não lhe faltam elementos verídicos.
tados e mais tarde sacrificá-lo. A outra pressupõe a boa vontade da ilha, mas
uma enorme imperícia que redundou em fracasso. Convém resumir rapida-
mente as duas teorias, deixando a última palavra ao leitor, e à história.
Fidel Castro teria "vendido" a ideia da Bolívia ao Che para evitar que
ele morresse nas ruas de Buenos Aires. O Che originalmente concebia um
esquema continental a partir da Bolívia, projeto que logo se limitou às
exíguas dimensões do vale do rio Grande, no Sudeste boliviano. Os recursos
postos à disposição do comandante mostraram-se muito inadequados: nem
os homens, nem as armas, nem as comunicações, nem os aliados satisfizeram
as expectativas ou as necessidades. No início da aventura, a insuficiência
talvez não fosse evidente para o Che ou os operadores de Havana, incluído
Fidel Castro. Mas em fins de março de 1967, seria impossível alguém igno-
rar ou sequer duvidar desse fato. Os cubanos tinham plena consciência de
que Monje e o PCB não quiseram comprometer-se, que os combates haviam
começado prematuramente, que as comunicações se interromperam, que a
rede urbana nunca se consolidou e que os Estados Unidos tinham assumido
o caso para si. Mesmo ignorando a divisão da guerrilha em dois grupos,
àquela altura os fatos aqui resumidos, todos de domínio público, ou
dedutíveis a partir das informações existentes, deixavam claro que o Che
produzira uma guerrilha natimorta.
Aceitando-se tais premissas, havia duas atitudes possíveis: apoiar a
guerrilha com um novo e maior esforço ou montar rápida e vigorosamente
uma operação de resgate. Os recursos materiais e humanos permitiam ambas
as opções: graças aos relatos de Lino e Benigno e às mensagens cifradas de
Ariel (Juan Carretero), sabe-se que entre vinte e sessenta bolivianos treina-
dos em Cuba dispunham-se a voltar à pátria para abrir uma nova frente guer-
rilheira ou apoiar a do Sudeste.* Entre eles, convém recordar os nomes de
Jorge Ruiz Paz, El Negro, e Ornar. A oposição à atitude passiva de Monje e
Kolle entre os militantes do próprio PCB podia até provocar uma colaboração
da base partidária superior à inicialmente prometida pela cúpula. E a divul-
gação da presença do Che poderia ter despertado enorme simpatia e so-
lidariedade no país, no hemisfério e no mundo. Essa postura, em suma, pode-

(*) Segundo Lino, mais de sessenta bolivianos tinham sido treinados em Cuba e se dis-
punham a apoiar o Che na Bolívia. Nunca receberam a ordem para viajar. Lino, op. cit. A
penúltima mensagem cifrada dirigida ao Che de Havana, em julho de 1967, informa que
"estamos preparando um grupo de 23 pessoas, na grande maioria pertencentes às fileiras da
Juventude do Partido Comunista da Bolívia". (Ver Carlos Soria Galvarro, El Che, op. cit.,
t.4,p.3O7.)
ria ter proporcionado ao Che os meios realmente necessários à sua emprei-
tada, uma vez constatado que os meios iniciais era insuficientes.* O preço
seria elevado, mas pagável, ao menos em termos militares, em recursos
humanos e dinheiro.
Mas aumentar a aposta na luta boliviana daria à presença cubana na
América Latina um novo perfil, incompatível com o recente alinhamento
político e os laços de dependência que ligavam a ilha a Moscou. Uma coisa era
enviar mais um punhado de homens à Venezuela e ser apanhada em flagrante;
outra muito diferente seria declarar guerra a uma república irmã para apoiar
uma guerrilha dirigida por um ex-ministro do Estado cubano. Independente
das consequências da iniciativa, Cuba simplesmente não podia dar-se ao luxo
de tomá-la, mesmo que seu povo e seus dirigentes se dispusessem a arcar com
os custos. De qualquer maneira, Moscou não a toleraria.
Várias fontes, a começar pela nota secreta do assessor de Segurança
Nacional de Lyndon Johnson, Walt Rostow, indicam que desde princípios
de 1967 desencadeara-se um feroz conflito entre Cuba e a URSS, em torno da
política latino-americana de Fidel Castro. O memorando, datado de 18 de
outubro, dez dias depois da morte do Che, afirma: "Entrego-lhe um interes-
santíssimo informe sobre um ríspido intercâmbio de cartas entre Fidel Cas-
tro e Leonid Brejnev, sobre a forma como Castro enviou o Che à Bolívia, sem
consultar os soviéticos. A correspondência foi uma das razões da visita de
Kossiguin a Havana depois da reunião de cúpula de Glassboro".**
Se em algum momento os cubanos chegaram a pensar em um maior
comprometimento na Bolívia, a atribulada visita de Alexei Kossiguin a
Havana em 26 de junho de 1967 dissuadiu-os da ideia. Moscou e Havana

(*) Em um balanço póstumo, datado de maio de 1968, a CIA estima que os cubanos
investiram menos de 500 mil dólares em toda a operação boliviana. Nem é preciso dizer que
os analistas da agência norte-americana consideravam que "o número de homens, o finan-
ciamento e o planejamento cubanos foram totalmente desproporcionais à envergadura e aos
objetivos da operação". (Central Intelligence Agency, Directorate of Intelligence, "Cuban
subversive policy and the Bolivian guerrilla episode", Intelligence Report, p. 40 (secreto). The
declassified documents catalogue, Carrolton Press, file serie number 2408.)
(**) Walt Rostow to the President, 18/10/67 (secreto), NSF, Country File, vol. IV, Box
8, LBJ Library. O encontro Johnson-Kossiguin em Glassboro, Nova Jersey, foi em julho de
1967; a visita do premiê soviético a Havana ocorreu em 26 e 27 de julho. Sabe-se que Kos-
siguin foi muito mal acolhido em Cuba. Castro nem sequer foi recepcioná-lo no aeroporto.
(Ver Central Intelligence Agency, Intelligence Information Cable, 27/7/67 (secreto), NSF,
Country File Soviet Union, Document Information 26-7 de junho de 1967, distribuído em
27 de julho de 1967.)
discutiam sobre a "questão Che" desde o início do ano. Mas como os soviéti-
cos descobriram um dos segredos mais bem guardados do mundo? Apenas
agora pode-se ter uma noção do emaranhado de conspirações, ardis e segre-
dos que ainda envolvem os últimos meses de vida do Che Guevara. Mário
Monje sempre sustentou que não fez nenhuma escala em sua viagem a Sofia
para assistir ao congresso do Partido búlgaro, em novembro de 1966, exceto
uma, em Havana, para falar com Castro. Mas Benigno, em seu livro de
memórias publicado em 1996, afirma que, ao voltar da capital búlgara, Monje
passou por Moscou. Não apresenta fontes para sua afirmação, mas sugere
que foi justamente nessa escala que o dirigente comunista informou a URSS
das intenções de Che Guevara e recebeu o aval para sua decisão de não
cooperar com o comandante. Em carta ao autor, de outubro de 1996, Mon-
je confirma sua passagem pela capital soviética, alegando motivos eco-
nómicos: os búlgaros pagavam o bilhete, mas em uma viagem com escala em
Moscou. Numa posterior conversa telefónica com o autor, Monje declarou
que esteve duas vezes em Moscou, na ida e na volta da viagem à Bulgária.
Benigno, por sua vez, acrescenta ao que já contou em seu livro que um coro-
nel hispano-soviético da KGB, apelidado Angelito e encarregado da discreta
passagem de cubanos e latino-americanos pelo aeroporto Sheremetovo, na
capital soviética, informou que, quando Monje desceu do avião, foi recebido
por um funcionário do Comité Central, que rapidamente o levou à cidade
de automóvel. O boliviano teria ficado uma semana em Moscou."
Além de confirmar a afirmação de Benigno—confirmação importante,
dada a odiosa campanha desencadeada contra ele pela máquina cubana —,
a fugaz passagem pela capital soviética sugere várias reflexões sobre a
reunião de Monje com o Che em 31 de dezembro de 1966.* Embora Monje
ainda hoje o negue com veemência, parece evidente que ele comentou com
os encarregados da América Latina, no Comité Central do PCUS ou na KGB,
suas suspeitas e certezas acerca da expedição cubana em seu país.** Como
vimos, Monje recebia altas somas da URSS (residiu em Moscou a partir de
1968) e mantinha muito mais lealdade à pátria-mãe do socialismo que à ilha
caribenha. Ê quase certo que tenha consultado seus colegas moscovitas

(*) Em seu livro, Benigno conclui que, durante a estadia em Moscou, "Monje revelou
todo o plano aos soviéticos, que pressionaram Fidel, e assim perdemos o contato. O Che não
foi informado de nada e foi abandonado". (Benigno, Vie et mort, op. cit., p. 170.)
(**) É o que dizem vários dirigentes comunistas que conhecem Monje quando inter-
rogados a respeito. Entre eles, destacam-se o mexicano Amoldo Martínez Verdugo e o
chileno Volodia Teitelboim.
sobre como agir em relação às solicitações cubanas de ajuda. Pode ser que os
soviéticos não tenham pressionado o boliviano para que apoiasse apenas
formalmente a guerrilha,* mas é de se supor que tenham apoiado sua decisão
de limitar severamente a ajuda. E, mesmo que Monje não tenha falado do
Che aos seus anfitriões, é muito provável que durante a visita de Raul Cas-
tro e Dorticós a Moscou, entre 7 e 22 de outubro de 1966, o irmão de Fidel
tenha revelado o segredo de Guevara, seja ao ministro soviético da Defesa,
Grechko, seja à KGB. E difícil imaginar Raul Castro escondendo uma coisa
tão importante de seus amigos soviéticos.** Daí a seguinte versão dos fatos,
hipotética mas plausível.
Em janeiro, após a passagem de Monje pela capital russa, Moscou exige
uma explicação de Havana.*** Convoca ao Kremlin o embaixador cubano
na URSS, Olivares, e o repreende duramente, dispensando-lhe pela primeira
vez um vil tratamento de país-satélite. O cubano deduz que os soviéticos
temem uma intervenção norte-americana contra Cuba e trata de lavar as
mãos. Parte imediatamente para seu país e informa seus superiores sobre a
situação, o que leva a uma série de tentativas cubanas de enganar Moscou e
faz Fidel Castro pronunciar um irado discurso em 13 de março, claramente
dirigido contra o Partido Comunista da Venezuela, mas na verdade alvejan-
do a URSS: "Esta revolução segue sua própria linha. Nunca será satélite de
ninguém. Nunca pedirá permissão para manter sua própria posição". As ten-
sões se acirram quando os soviéticos confirmam que o Che está na Bolívia
montando um foco guerrilheiro e que os norte-americanos decidiram com-
batê-lo.
Em uma troca de mensagens de alto nível entre Moscou e Havana,
preparando a visita de Kossiguin, a URSS queixa-se amargamente da violação
de diversos acordos anteriores, entre eles os da Conferência de Partidos

(*) É o que afirmam os encarregados da América Latina no aparato do Comité Central


do PCUS naquela época: "Estávamos convencidos de que não ia dar certo, mas não nos mete-
mos. Não houve nenhuma tentativa de dissuadir o PCB". (Konstantin Obidin, entrevista com
o autor, Moscou, 31/10/95.)
(**) A afirmação da CIA (ver nota 56) de que Cuba informou Moscou das intenções do
Che desde o outono de 1966 reforça essa suposição.
(***) A seção de análise da CIA parece também ter concluído que a URSS soube da
expedição do Che à Bolívia desde princípios de 1967: "Ao contrário de Pequim, Moscou
provavelmente estava ciente de que Castro planejava embarcar em uma de suas aventuras no
exterior, e isso desde que as hostilidades se iniciaram na Bolívia, em março de 1967. (Central
Intelligence Agency, Directorate of Intelligence, "Cuban subversive policy and the Bolivian
guerrilla episode", Intelíigence Report, maio 1968 (secreto), copy LB] Library, p. 44.)
Comunistas Latino-Americanos, em novembro de 1964, e vários pactos
bilaterais. O Comité Central do PCUS lamentou em particular que Cuba
tivesse agido sem informar Moscou. Afirmou que, portanto, Havana não
deveria responsabilizar a URSS pelas represálias que os Estados Unidos pode-
riam lhe impor. Cuba respondeu que a União Soviética enfraquecia a causa
revolucionária na América Latina ao celebrar acordos e fornecer créditos a
"governos burgueses da região e ao estabelecer relações diplomáticas com
regimes que assassinavame torturavam revolucionários".* Acrescentou que
Moscou também sabotara a expedição do Che ao pressionar Monje para que
não cooperasse. O Che partira por conta própria e, embora não se tratasse de
uma ação de Estado, não podiam deixar de ajudá-lo.
Em julho, quando Kossiguin viajou aos Estados Unidos e se reuniu
com Johnson em Glassboro, os cubanos e os russos concordaram que seria
desejável uma visita do número dois soviético a Havana, para serenar os
ânimos, acirrados ainda mais depois que Brejnev manifestara sua
"decepção com a negativa de Castro em avisar previamente a URSS sobre a
saída de Guevara e criticara fortemente a decisão de Castro de lançar novas
operações guerrilheiras na Bolívia. Perguntou com que direito Castro
fomentava a revolução na América Latina sem se articular com os demais
países socialistas".100 Kossiguin comprovou que Johnson acompanhava de
perto os movimentos do Che na Bolívia. Embora a reunião de cúpula se
concentrasse nos temas do Oriente Médio — onde a Guerra dos Seis Dias
acabara recentemente —, do Vietnã e do desarmamento, o presidente
norte-americano manifestou ao dirigente soviético seu enérgico protesto
contra o intervencionismo cubano:
Por último, instei Kossiguin a empregar a influência soviética em Havana para
dissuadir Castro de apoiar ativa e diretamente as operações guerrilheiras. Disse-
lhe que tínhamos provas de que os cubanos operavam em vários países latino-
americanos. Citei em particular o caso da Venezuela e disse que essa atividade
ilegal de Castro era muito perigosa para a paz no hemisfério e no mundo.101

(*) Na conferência da OLAS, em Havana, os cubanos apresentaram um projeto de re-


solução reafirmando o discurso de Castro e condenando a política de cooperação dos países
socialistas na América Latina. Apesar de várias ameaças soviéticas e de uma intensa pressão,
a resolução foi aprovada por quinze a três, com nove abstenções, embora o texto não fosse le-
vado a público. (Ver Central Intelligence Agency, Directorate of Intelligence, "The Latin
American solidarity conferenceand itsaftermath", IntelligenceMemorandum (secreto), 20
de setembro de 1967, The declassified document catalogue, Carrollton Press, vol. XXI, ng 2,
mar.-abr. 1995, file serie numberO649.)
A URSS viu-se obrigada a pressionar novamente Castro para que desis-
tisse de suas aspirações continentais, ao mesmo tempo que buscava uma re-
conciliação.102 Kossiguin foi recebido com frieza em Havana, mas encon-
trou-se três vezes com Fidel: em 26 de julho, com todo o birô político cubano
e Osmany Cienfuegos, em 27 e 28 de julho, a portas fechadas, apenas com
Raul Castro e Dorticós. Na reunião de 27 de julho, o soviético queixou-se de
que as aventuras na região "faziam o jogo dos imperialistas e enfraqueciam e
desviavam os esforços do mundo socialista para libertar a América Lati-
na".10' Fidel tocou no doloroso tema do Che. Conforme as anotações de Oleg
Daroussenkov, o único intérprete presente na reunião:
Gostaria de ressaltar que a revolução é um fato, não pode ser detida. Assumi-
mos uma determinada posição revolucionária e temos consciência dos riscos
que dela advêm. Os imperialistas fazem seus cálculos, podem atacar-nos a
qualquer momento, mas não conseguirão esmagar o movimento revolu-
cionário, nem aqui, nem em outras partes da América Latina. O companheiro
Guevara encontra-se agora na Bolívia. Mas não participamos diretamente
dessa luta, simplesmente porque não podemos fazê-lo. Limitamo-nos a apoiar
o partido local e a fazer declarações públicas.104
Kossiguin replicou que, em primeiro lugar, tinha sérias dúvidas quanto ao
acerto das ações de Guevara na Bolívia: "Não se pode pretender que o envio de
uma dezena de homens a um país conduzirá imediatamente a uma re-
volução. Não se pode pensar que o Partido Comunista não existe enquanto o
companheiro Guevara não chega e faz a revolução".105 Criticou a própria ideia de
que é possível exportar a revolução e protestou contra as palavras usadas por
Castro em suas críticas aos partidos comunistas latino-americanos.106 Ao mesmo
tempo, tentou convencer Fidel de que o alarmante informe remetido pot ; seu
embaixador em Moscou, dando conta de um iminente ataque dos Estados
Unidos a Cuba, era falso e de que Moscou mantinha sua solidariedade para
com a ilha. O encontro foi excepcionalmente tenso e embaraçoso. A recon-
ciliação fracassou. As relações entre os dois países permaneceriam frias por
mais de um ano, atingindo seu nível crítico no início de 1968.
A pressão soviética impossibilitava uma ação de apoio como a aqui su-
gerida. As alternativas se limitavam a resgatar o Che ou abandoná-lo à própria
sorte, com dor no coração e a alma aos pedaços, mas resignadamente. Depois
da viagem de Kossiguin, até mesmo a opção do resgate teve que ser descartada.
Quase dez anos mais tarde, movido por seu ressentimento em relação a
Manuel Pineiro e sua culpa frente a Benigno, Juan Carreteto, então embai-
xador de Cuba no Iraque, confessou ao sobrevivente da Bolívia os por-
menores de um dos momentos mais dramáticos da Revolução Cubana. Por
ocasião da visita de Kossiguin, ele fora convocado para a primeira reunião
com os soviéticos. Sua presença se explicava pela ausência de Pineiro. Nor-,
malmente, o convidado da ala Liberación seria o próprio Barbaroja. Car-
retero evocou o ultimato feito pelo soviético: ou a ajuda cubana às guerrilhas
da América Latina cessava, ou cessaria a ajuda soviética a Cuba. Nesse
momento, Carretero foi convidado a abandonar a reunião e procurar
Pineiro para substituí-lo. Nunca voltaria a ser convidado.
Carretero e Armando Acosta tinham formado fazia algum tempo um
grupo de cubanos para salvar ou apoiar o Che caso se fizesse necessário. Fi-
zeram-no "por conta própria", sem instrução alguma de Castro, mas con-
vencidos de que um belo dia Fidel poderia dar a ordem. Era preferível
adiantar-se à hipotética decisão do caudilho. Porém, alguns dias depois,
Pineiro avisou-o das conclusões do encontro com Kossiguin: "Escute, tome as
medidas para mandar de volta para casa aqueles homens que preparamos".107
Em uma entrevista de 1987 concedida a um jornalista adepto da causa
e sem capacidade de réplica, Fidel Castro descartou com desprezo a opção do
resgate. Disse que não havia a menor possibilidade de enviar um grupo de
homens e tirar o Che da Bolívia. O isolamento, o cerco militar e a falta de
comunicações comprometeriam irremediavelmente qualquer tentativa de
operação de comando. Como de costume quando se trata de Fidel, essa
aparente verdade de polichinelo deve ser relativizada. Dispomos de vários
testemunhos sobre a disposição cubana de fazer um esforço que teria exata-
mente essas características. Ao voltar da Bolívia, em 1968, Benigno, um dos
três sobreviventes da epopeia, manteve em Havana o seguinte diálogo com
Armando Campos e Juan Carretero:
"Se sabiam que a única via de comunicação eram vocês, porque não agiram?"
Carretero e Armando Campos, como querendo se desculpar, disseram: "Não
tivemos responsabilidade nenhuma quanto a isso porque, logo que soubemos
da morte de Tânia e da relação das pessoas que desertaram, começamos imedia-
tamente a preparar um grupo aqui em Cuba, para o caso de o alto comando
ordenar uma operação de resgate. Nós preparamos tudo, informamos Pineiro,
e ele disse que informou Fidel, mas nunca recebemos a ordem para iniciar a
operação". E eles disseram: "Nossa responsabilidade ia até aí. Fizemos o que
tínhamos de fazer, mas nunca recebemos ordens para nada".*

(*) Benigno, op. cit. Entre os cubanos mobilizados para a missão, havia muitos vetera-
nos da "invasão" de 1958 que não tinham sido aceitos na expedição à Bolívia. Conhecemos
alguns nomes: Henrique Acevedo (irmão de Rogelio, um dos heróis de Santa Clara), os
irmãos Tamayito (do pelotão suicida de Vaquerito) e Harold Ferrer.
O certo é que os três sobreviventes conseguiram escapar da ratoeira boli-
viana atravessando a cordilheira até o Chile, graças em parte aos contatos
que conseguiram estabelecer com os restos intactos da rede urbana. O pro-
blema não residia, portanto, nas remotas possibilidades de um resgate, e sim
no momento, no lugar, na disposição das forças e na decisão de agir. Caso se
enviassem vários grupos separados, empregando os conhecimentos de Mon-
tero — que estava em Cuba —, Rodolfo Santana — que continuava em La
Paz — e dos demais bolivianos ainda livres e familiarizados com as rotas de
acesso à região, um salvamento não seria impossível. As comunicações "de
ida" permitiriam que se avisasse ao Che sobre o envio das equipes. Seria pos-
sível combinar pontos de encontro por mensagens cifradas, até ocultando a
natureza da iniciativa, apresentando-a como um reforço e não como um res-
gate. O pior que poderia acontecer seria o fracasso. E quantos cubanos dariam
com satisfação suas vidas pela salvação do comandante Ernesto Guevara!
Fidel tinha vários outros motivos para descartar essa alternativa. O
principal dilema advinha não do possível fracasso da operação, mas de seu
remoto êxito: O que fazer com o Che se ele escapasse da nova peripécia?
Seria a terceira vez em três anos: ele já se salvara de Salta por ter demorado
a partir e pela rápida eliminação do foco, do Congo e agora da Bolívia. Fidel
enfrentaria novamente um terrível conflito: encontrar para seu compa-
nheiro de armas uma alternativa entre a morte e o misto de rendição,
resistência e resignação que ele fatalmente viveria se voltasse a Cuba. O eter-
no guerrilheiro teria de estar plenamente convencido de que sua nova aven-
tura se encerrara. E, supondo-se que o Che se deixasse persuadir, persistiria o
velho problema: Qual seria o passo seguinte, após o amargo regresso a Cuba?*
Ao cogitar seriamente a possibilidade de um resgate, é provável que
Fidel tenha decidido que um Che mártir na Bolívia serviria mais à revolução
que um Che vivo, abatido e melancólico em Havana. O primeiro permitiria
a criação do mito, o aval para decisões cada dia mais difíceis, a construção do
martírio emblemático que a revolução precisava para levá-lo ao panteão de
seus heróis, junto a Camilo Cienfuegos e Frank País. O outro acarretaria
eternas discussões, tensões, divergências, todas insolúveis, e, no fim, conse-

(*) No último capítulo de um romance inacabado sobre a vida do Che, seu amigo de
infância Pepe Aguilar afirma que, quando a guerrilha já era insustentável, Fidel Castro pediu
a Guevara que deixasse a Bolívia. Reproduz uma conversa que teria mantido com Castro
pouco depois de saber da morte de seu amigo. "O erro do Ernesto foi não ter voltado quando
você lhe pediu." Se essa versão for verídica, confirmaria que Fidel tinha plena consciência da
gravidade da situação. (Pepe Aguilar, manuscrito inédito obtido pelo autor.)
quências semelhantes, se não idênticas. Julgar Fidel Castro incapaz de um
cálculo de tamanha frieza e cinismo seria desconhecer os meios que garan-
tem sua permanência no poder há quase quarenta anos. Significaria ignorar
seu comportamento em circunstâncias análogas, embora sem a mesma car-
ga emocional e mítica do martírio de Che Guevara. Fidel não enviou o Che
para morrer na Bolívia. Nem o traiu. Nem o sacrificou. Simplesmente
deixou que a história seguisse seu curso, com plena consciência de qual seria
o desfecho. Não fez, deixou que se fizesse.
Dois fatores reforçam as evidências em favor dessa hipótese. O
primeiro é posterior à morte do Che: em 1968, os cubanos enviaram uma
missão de resgate à Venezuela, de onde conseguiram arrancar 24 guerri-
lheiros sitiados, inclusive Arnaldo Ochoa, fuzilado por ordem de Fidel
Castro 21 anos depois. Eles saíram através do Brasil, graças, em parte, ao
apoio do Partido Comunista local. Em segundo lugar, convém acrescentar
ao dossiê a estranha experiência de François Maspéro, o editor francês que
já então era muito próximo dos cubanos. Viajou duas vezes à Bolívia, em
parte para tentar visitar Debray no cárcere de Camiri, em parte a pedido
dos cubanos. Deixou La Paz justamente a tempo de assistir, em Havana, a
um grande encontro cultural de verão e às comemorações do 26 de julho
na sierra Maestra. Quando chegou sua vez de saudar Fidel, a quem já co-
nhecia e que tinha pleno conhecimento de sua missão boliviana, respon-
deu com um irreverente "mal" à pergunta do caudilho sobre como estava
o país andino. Mas nunca foi convidado a informar Fidel, que não queria
saber mais do que j á sabia. Pelo mesmo motivo, os cubanos evitaram a visi-
ta de Mário Monje nessa ocasião. Preferiam deixá-lo encalhado no Chile
a esquivá-lo em Cuba.
Essa atitude corrobora a impressão de duas testemunhas que estiveram
com Fidel Castro nas horas imediatamente posteriores à morte do Che. Pepe
Aguilar descreve um homem obcecado por convencer a família do Che na
Argentina de que este realmente estava morto. Mais do que consternado
pela perda do amigo, Fidel mostrava-se preocupado com o manejo político
da situação. Angustiava-o o fato de possuir informações de primeira mão,
enviadas por vários virtuais agentes cubanos na Bolívia — António
Arguedas, Gustavo Sánchez, Carlos Vargas Velarde —, mas não poder uti-
lizá-las para persuadir Ernesto Guevara Lynch do falecimento de seu filho.
Carlos Franqui, que fora convocado por Castro para confirmar se as páginas
do diário do Che divulgadas pelas autoridades bolivianas eram realmente de
sua autoria, recorda um Fidel "claramente eufórico". Esses dois retratos
mostram um personagem que já se resignara muito antes ao inevitável des-
fecho da campanha e à perda de seu companheiro de mil batalhas.
A outra explicação baseia-se no impressionante acúmulo de erros e
mal-entendidos ocorridos na Bolívia e em Cuba, e também possui forte dose
de verossimilhança. A inépcia do aparato cubano e dos colaboradores de
Guevara, as confusas teorias deste, a insensibilidade de Castro em relação
aos comunistas bolivianos, a irresponsabilidade dos recrutas e recrutadores
da Bolívia, tudo isso junto configura uma característica essencial da ope-
ração: uma incrível desproporção entre os fins e os meios. Vejamos três bons
exemplos disso.
Primeiro: o Che não duvidou que o conflito que pretendia desencadear
se internacionalizaria vertiginosamente. Assim que o exército boliviano
considerasse que a situação escapava de seu controle, pediria ajuda a seus vi-
zinhos, sobretudo a Argentina e os Estados Unidos. Isso daria à guerra uma
conotação nacional, rumo à criação dos famosos dois ou três Vietnãs. A
intervenção ianque arrastaria para o lado revolucionário as forças bolivianas
indecisas ou recalcitrantes. Era uma quimera. A ingerência externa no con-
flito foi limitada no tempo e na forma. Resumiu-se a modestos envios de
armamentos, alimentos e material, um já mencionado punhado de agentes
da CIA e as duas dezenas de boinas-verdes sob o comando de Pappy Shelton
— para treinarem o Segundo Batalhão de Rangers da 8a Divisão. Gary Pra-
do e os militares bolivianos subestimaram a importância da ajuda norte-
americana. Ela certamente teria aumentado caso fosse necessário. E, como
afirma Larry Sternfield, a resistência inicial dos bolivianos a enfrentarem a
guerrilha reverteu-se em grande parte devido aos norte-americanos. Os
Estados Unidos fortaleceram a espinha dorsal de Barrientos.108 Mas o Che foi
vencido pelas forças armadas da Bolívia, assistidas por uma potência impe-
rial que alcançou seu objetivo sem maiores comprometimentos. Se Guevara
pensou que os Estados Unidos se meteriam num cipoal semelhante ao do
Vietnã, enganou-se; se acreditou que permaneceriam passivamente na
expectativa, também errou.
Segundo exemplo: a seleção de pessoal. Os desastres, abandonos, as
promessas quebradas e a incompetência foram mais do que frequentes entre
as forças de Guevara. Papi Martínez Tamayo, Tânia, Renán Montero, Juan
Carretero (Ariel), Pinares (Marcos), ]oaquín (Vital Acuna), Arturo
Martínez Tamayo (o irmão de Papi encarregado do rádio que nunca con-
seguiu operar) e outros, cuidadosamente escolhidos pelo Che e por Havana,
simplesmente não serviram. Mal escolhidos, mal treinados, desestimulados,
esses quadros jamais conseguiriam levar adiante um processo revolucionário
continental. Sua abnegação e valor não compensavam a inadequação para
as tarefas a eles confiadas. Sua imperícia superava qualquer previsão: se a
missão só podia contar com eles, deveria ser cancelada.
Terceiro: a improvisação e os desencontros na relação com o Partido
Comunista boliviano. No fundo, o que os cubanos poderiam recriminar nele
foi ter se oposto à criação de um foco guerrilheiro dirigido pelo Che Guevara
em seu país: uma posição perfeitamente natural, dados os seus antecedentes
e as suas posições. Pensar que Monje era partidário da luta armada e se enga-
jaria no foco contra a maioria da direção, ou que a facção pró-cubana do par-
tido arrastaria consigo a maioria, foi uma típica fantasia da equipe de
Manuel Pineiro. Desvario maior ainda — infelizmente comuníssimo nos
anais da esquerda latino-americana — foi supor que meia dúzia de quadros
marginalizados dentro do PCB, apoiados pelos jovens treinados em Cuba e
por líderes da Juventude, como Loyola Guzmán, poderiam arrastar para a
guerrilha o resto do partido, em particular seu magro contingente nas minas.
Frente a tamanha improvisação e imperícia, não é de estranhar a
reação inoportuna e impensada dos combatentes diante das adversidades.
Como assinala Gustavo Villoldo, o principal agente da CIA na Bolívia de
então:
Acontece que foi tudo muito rápido. Fidel, em Havana, não sabia do número
de efetivos que tínhamos no país e tinha medo de que uma ação de sua parte
pudesse ser identificada por nós. Por isso, não tomou qualquer iniciativa no
sentido de ajudar o Che. Não que houvesse um racha, uma divisão, ou proble-
mas entre Havana e o Che. Nada disso. Simplesmente, o esquema deles falhou,
e quando isso aconteceu eles não souberam o que fazer. Em casos assim, ou você
é muito agressivo ou opta por ficar quieto. E a opção dele foi esta. Ele se expo-
ria demais, por exemplo, se tirasse os homens da zona de operação por via aérea
ou estabelecesse um esquema alternativo de comunicação. Isso demonstra que
a montagem da operação não tinha tal grau de profissionalismo.109
Nem os quadros, nem o esquema, nem a direção cubana estavam à
altura de uma tarefa do calibre que se impusera por solicitação do Che ou,
caso se prefira, para oferecer uma opção ao Che. François Maspéro não se
esquece do dia em que a notícia da queda do grupo de Joaquín chegou a
Havana. Pineiro, Anel, hino e Armando Campos o convidaram para assistir
a um dos noticiários mostrando os cadáveres dos guerrilheiros. Em seguida o
convidaram a permanecer na sala de projeção e ver um filme com Ronald
Reagan. Mostravam a maior indiferença.
Assim como no Ministério da Indústria, Guevara exigiu demais da re-
volução, dos cubanos, da economia nacional, da URSS. Também na Bolívia
suas demandas tácitas foram exageradas. Por devoção, audácia e irrespon-
sabilidade, seus companheiros tentaram atender a suas exigências e aspi-
rações. A envergadura da empresa estava muito além de suas possibilidades,
sobretudo em sua dimensão mais ambiciosa e crucial: compartilhar da
vocação para o martírio que norteava o Che Guevara desde sua primeira
juventude.
Como em toda tragédia, o último ato da epopeia do Che, inevitável e
lancinante, inscreve-se em sua origem e em sua trama. O destino trágico do
Che estava escrito. Só a morte o salvaria da condenação, oferecendo-lhe o
lugar na história que ele buscou por toda a vida. Alcançou-o em uma manhã
de outubro, em La Higuera, um ermo povoado do Sudeste boliviano. Ali ter-
minam a marcha e o calvário de Che Guevara. Ali começam a ressurreição
e o mito que darão ao rosto despojado da foto de Vallegrande a tão almejada
paz interior.
MORTE E RESSURREIÇÃO

A morte de Che Guevara deu significado a sua vida, e sua vida a seu
mito. Se o comandante não fosse executado pelo tenente Terán, na escu-
ridão da miserável escolinha de La Higuera, teria igualmente realizado
proezas épicas e gloriosos feitos, mas seu rosto não estaria hoje em tantos mi-
lhões de paredes e peitos. Caso o governo boliviano o tivesse indultado, ou
a CIA lhe salvasse a vida, a contribuição do Che a sua causa poderia ter sido
muito maior, mas o auto-sacrifício jamais teria as dimensões que teve. Sua
morte, aguardada, quem sabe até bem-vinda, não foi um final triste e defi-
nitivo, mas o previsível e irrevogável início de uma nova jornada. As cir-
cunstâncias da execução transcenderam a tragédia que toda morte encerra
para gerarem um mito que perduraria até o fim do século. Como ele sempre
imaginou, foi uma morte grandiosa: a sangue-frio, heróica, bela, estóica —
assim a retrataram as fotos póstumas que deram origem a esta história. Numa
palavra, foi uma morte emblemática.
As condições de sua morte são indissociáveis da lenda que engendrou.
O momento, da mesma forma, está ligado à aura que emana do límpido olhar
do cadáver de Vallegrande, que tanta admiração despertou. Se Guevara
tivesse morrido dois anos antes, no Congo, ou um depois, na Argentina,
talvez o homem e sua época não tivessem se cristalizado em tão singular har-
monia. O Che pereceu às vésperas de um ano crucial para a segunda metade
do século XX: 1968, quando pela última vez tudo pareceu possível e pela
primeira vez a juventude de uma boa parte do mundo desempenhou um
papel decisivo nos rumos da história. Ninguém melhor do que o Che per-
sonificou as inquietudes da época. Poucas semanas após sua morte, as tropas
norte-vietnamitas e o Vietcong iniciaram a ofensiva do Tet, que marcou o
início da derrota dos Estados Unidos na antiga Indochina. Em sua esteira,
rebentaram apaixonados protestos e mobilizações nos Estados Unidos,
Europa ocidental e América Latina.
As primeiras imagens do comandante — a foto de Alexander Korda,
com a América Latina como fundo — apareceram durante o turbulento ou-
tono de Turim. Depois, encabeçaram as irreverentes e indignadas marchas
dos estudantes da Universidade de Columbia, em Nova York, e as manifes-
tações de massas do Quartier Latin, em Paris. Quando ainda não se comple-
tara um ano da captura do Che em Quebrada dei Yuro, sua imagem tentaria
conjurar os tanques soviéticos nas ruas de Praga. E, já às vésperas do primeiro
aniversário da execução, centenas de estudantes que marchavam carregan-
do sua imagem na praça de Tlatelolco, na Cidade do México, tombariam
crivados de balas do exército mexicano. A sincronia entre esses fatos é a um
só tempo surpreendente e enganosa: o que permitiu ao Che encarnar os
desejos e sonhos daqueles milhões de jovens enlutados foi o fato de ter mor-
rido justo naquele momento. Mas o vínculo entre a figura exangue de La
Higuera e as ilusões de uma geração nascida do naufrágio da Segunda Guer-
ra Mundial foi sua própria vida.
As analogias são incontáveis. Segundo a sociologia alternativa norte-
americana,1 por exemplo, a consonância ideológica no seio das famílias que
dirigiram o "movimento" foi uma constante dos anos 60: eram os chamados
red-diaper babies. * Foi justamente o que ocorreu na família do Che: as ideias
políticas de Guevara coincidiram com as de sua mãe até a morte desta na
Buenos Airesde 1965. Praticamente todos os personagens do que se chamou
"a nova esquerda" europeia e norte-americana pertenciam à classe média
branca e instruída do baby boom.** Esses eram também os traços funda-
mentais da família que Ernesto Guevara Lynch e Célia de Ia Serna consti-
tuíram em Córdoba às vésperas da Grande Depressão. Também em torno à
morte são muitas as semelhanças. Nos anos 50, milhões de adolescentes e,
nos 60, outros tantos milhões de estudantes tiveram revelações políticas e
intelectuais a partir do trágico e prematuro desaparecimento de seus ídolos:
primeiro James Dean, em 1954, aos 24 anos; para os mais sofisticados, Albert
Camus e Lenny Bruce, já no fim da década; nos anos 60 e 70, para os menos
politizados, Jimi Hendrix, Jim Morrison e Janis Joplin; para os afro-ameri-

(*) Bebés de fraldas vermelhas. Em inglês no original. (N. T.)


(**) O aumento mundial da natalidade no pós-guerra. (N. T.)
canos, seus amigos e aliados do resto do mundo, Martin Luther King e Mal-
colm X; e os irmãos Kennedy para os liberais e social-democratas de muitos
países. A vida promissora interrompida por uma morte prematura se con-
verteu em leitmotif da época. E ninguém a encarnou melhor que o Che. Os
paralelismos semearam e cultivaram a identificação entre o mito e seu con-
texto. Nenhuma outra vida captaria como a sua o espírito da época. Ne-
nhum outro momento histórico se espelharia com a mesma intensidade em
uma vida como a dele.
Mais do que a pressa ou a arrogância, o que distinguiu a juventude
daqueles anos foi um misto de idealismo e sentimento de onipotência repre-
sado durante anos, sem encontrar vazão, até 1968. A determinação exacer-
bada e narcisista de conseguir tudo aqui e agora; slogans como laplage sous
les pavês, <we want the world and we ivant it now, * "devemos ser realistas e exi-
gir o impossível" anunciavam o advento do império da vontade. Nesse ter-
reno lançaram raízes a vida e a morte do Che. Também os objetos de desejo
mudaram radicalmente: em vez de dinheiro, liberdade; em vez de poder, re-
volução; em vez do lucro, a batida do rock. Deter a violência e a guerra, dis-
tribuir a riqueza, pregar a liberação das paixões e do desejo, experimentar
sensações fortes e inéditas aparentemente sem risco nem custo, eis os valores
da geração que se espelhou no Che Guevara.
A identificação entre o Che e a juventude de seu tempo inspirou
muitas metáforas, porém a de Júlio Cortázar talvez seja a mais eloquente: "Os
estudantes argentinos que tomaram o dormitório na Cidade Universitária
de Paris batizaram-no 'Che Guevara' pela mesma simples razão que a sede
leva à água e o homem, à mulher".2 Quando o Che se converteu no símbolo
das barricadas parisienses, já não era um homem jovem, mas a precocidade
de sua morte o fez rejuvenescer, permitindo que uma geração posterior à sua
fizesse dele o seu mito: um homem jovem — quase de meia-idade — foi exe-
cutado na Bolívia; era não só um revolucionário, mas um mártir, "puro". Ou
talvez a vítima tenha sido reconhecida como reflexo justamente devido à
maneira como morreu.
Uma pesquisa de 1968 mostrou que o Che era o personagem histórico
com o qual os universitários norte-americanos mais se identificavam, mais
do que com qualquer um dos candidatos presidenciais daquele ano ou das
demais personalidades sugeridas.' Em 1969, no mesmo universo, 80% dos

(*) "A praia sob os paralelepípedos", em francês no original. "Queremos o mundo e o


queremos agora", em inglês no original. (N. T.)
entrevistados se reconheciam acima de tudo em "minha geração": um sen-
tido de pertinência e autodefinição que por muito tempo não se repetiria.4
Como era de se esperar, os traços diferenciadores daquela geração não resis-
tiram ao tempo. O processo natural de envelhecimento fez com que a imen-
sa maioria dos manifestantes, militantes e heróis daquela época rebelde ter-
minassem recuando. Nesse ínterim, contudo, a necessidade de criar laços
entre o "aqui" e o "lá", entre o presente e o futuro, entre as posturas políticas
e estilos de vida acabariam impregnando o pensamento da geração de 68, a
"geração Che Guevara".
A juventude de Paris ou de Berkeley reclamava igualmente a revolução
em seu país, seu bairro, a solidariedade para com o Vietnã ou Cuba. O Che
se propunha a forjar na ilha um homem novo e ao mesmo tempo combater
pela libertação do ex-Congo belga. Os estudantes não se propunham meras
mudanças na política, mas transformações na própria vida — rompendo
com velhos costumes, preconceitos, gostos e tabus —, sem esperar um glo-
rioso amanhecer ou a "construção do socialismo". Com seu trabalho volun-
tário, seu ascetismo e sua solidariedade internacional, Guevara tentou con-
jugar os esforços individuais de seu tempo com utopia sóciopolítica que
imaginava para o futuro. Porém, jamais abandonou a postura apolítica que
cultivara quando universitário. Sempre foi um político sui generis. Desse
paradoxo nasceu a identidade entre ele e aquela geração tão politizada e ao
mesmo tempo tão hostil às posições políticas e existenciais de seus pais. O
Che jamais se dedicou à política propriamente dita.
Outro princípio que orientou sua vida e coincidiu com as atitudes da
época foi a permanente recusa da ambiguidade, que o perseguiu como uma
sombra desde a infância asmática até Nancahuazú. Os anos 60 foram em grande
medida um categórico não às contradições da vida, uma permanente fuga para
a frente de boa parte da geração do pós-guerra, rejeitando desejos, metas, políti-
cas ou sentimentos contraditórios. As atitudes e a têmpera dos manifestantes
de então não deixavam espaço para sutilezas, nem para o realismo ou a coe-
xistência entre pólos contrapostos. Tanto a natureza das lutas empreendidas
como o momento histórico eram incompatíveis com raciocínios sensatos,
moderados, buscando ponderar os prós e contras de cada escolha. Mas também
é verdade que tanto os jovens dos anos 60 como o Che abrigavam uma reserva
de tolerância que brotava de outra fonte: o fascínio pelo difernte, que com o
tempo se traduziria em indulgência e respeito para com o outro.
E desnecessário dizer que um grande emaranhado de contradições con-
ceituais separa o verdadeiro Che do personagem que seus admiradores cons-
truíram. As excessivas exigências que ele fazia a si mesmo não podiam ser
aplicadas aos demais sem uma dose de brutal autoritarismo. O homem novo
que buscara construir e pretendia encarnar não cabia no mundo de sua
época, nem talvez em nenhum mundo concebível por seus contemporâ-
neos. Os milhões de manifestantes que marcharam sob sua efígie nos anos
60 não se davam conta da contradição. Viam nele somente o símbolo da sub-
versão que veneravam e cultivavam.
Como já assinalaram vários autores cubanos,5 o efeito duradouro da
figura do Che deve-se também ao fato de ter sido assimilada ao espírito sub-
versivo do momento. Ela converteu-se em emblema de três tipos de subver-
são. O primeiro e mais evidente relaciona-se diretamente com a Revolução
Cubana: buscava inverter a hierarquia mundial que mais tarde seria defini-
da em termos de Norte-Sul. Implicou um esforço, por fim infrutífero mas
teoricamente realizável, que visava reverter a relação entre os países ricos,
poderosos e dominantes, e os demais, pequenos, pobres e subjugados como
a ilha caribenha. Para os jovens que protestavam no início dos anos 60 con-
tra a colonização francesa na Argélia e pouco depois repudiaram os bom-
bardeios norte-americanos contra o Vietnã, a tarefa de transformar um sta-
tus quo geopolítico injusto e cruel era a um só tempo heróica e factível.
A segunda subversão, simbolizada pelo Che em 1967-8, estava arraiga-
da na juventude de classe média dos Estados Unidos e da Europa ocidental.
Seu alvo era a ordem interna imperante em seus países. Segundo a acertada
explicação de Todd Gitlin,6 a juventude rebelde dos países industrializados,
em sua desesperada procura de modelos e valores, foi buscá-los justamente
em seus antípodas. Seus ídolos e arquétipos políticos provinham dos inimi-
gos de seus inimigos: primeiro, Patrice Lumumba, o FLN argelino e suas guer-
rilhas em Kasbah e no deserto; depois, Ho Chi Minh e a FLN vietnamita; e,
sempre em destaque, a Revolução Cubana e o próprio Che. Quanto mais
mirradas fossem as manifestações nos Estados Unidos, França e Holanda,
mais numerosos eram os retratos do comandante Guevara e as proclamações
de solidariedade para com "a luta dos povos do mundo". Quanto mais remo-
tas fossem as chances da revolução no país em questão, mais atraente se tor-
nava o substituto exótico, fosse ele argelino, vietnamita ou cubano.
O terceiro objeto da subversão era o socialismo existente: o cinza
carcerário do stalinismo e a pisoteada Primavera de Praga, a traição do Par-
tido Comunista francês ao Maio parisiense e a do Partido Comunista ita-
liano ao outono milanês, tudo amalgamado em uma repulsiva distorção da
utopia. A afinidade do Che com essa luta não era nem um pouco evidente.
Como apontou Régis Debray, os estudantes que exibiam cartazes do Che nos
parques, universidades e avenidas do Ocidente e da Tchecoslováquia igno-
ravam que o herói deles tinha sido, em sua primeira juventude, um fã
incondicional da União Soviética. Resistiam a ver que o espírito libertário
guevarista dificilmente desafiava os valores do caudilhismo e a hierarquia
militar cultuada na boina, na estrela e nas roupas verde-oliva.7 E, no entan-
to, sua percepção não era de todo errónea: tanto o espírito como as teses e
posturas do Che, até o final de seus dias, foram uma crítica feroz e aguda ao
socialismo na Europa oriental e a sua implantação em Cuba.

O que mais favoreceu a criação do mito, e a consonância do homem


com seu tempo, foi a morte. Desde o início de outubro de 1967, quando
começaram a circular as primeiras notícias sobre sua captura e execução, até
o verão de 1968, quando seu diário de campanha foi sub-repticiamente res-
gatado da Bolívia para reaparecer nas editoras Ramparts, nos Estados
Unidos, François Maspéro, na França, Feltrinelli, na Itália, e Arnaldo Orfi-
la e Siglo XXI, no México, cada detalhe e cada minuto da vida do Che
encaixou-se na matriz que daria forma a seu mito. A dele foi uma morte que
vale a pena reviver.
A princípio, o Che não deu crédito à notícia da aniquilação do grupo
dejoaquín em Vado dei Yeso. Seu diário assinala que as notícias podiam
provir da propaganda governista ou de informações erróneas. Á medida que
foram surgindo maiores detalhes, pareceu resignar-se com a perda dos com-
panheiros. Pombo, um dos três sobreviventes, afirmou em numerosas
ocasiões que o Che acabou aceitando a morte de Tânia e dos demais.8 Benig-
no, outro que escapou com vida, é menos categórico.* Em todo o caso, o
comandante não viu na destruição de sua retaguarda uma perda irreparável
para a campanha, nem um motivo para fugir da Bolívia ou da zona de ope-
rações. Perseverou em seu projeto. Em nenhuma parte do diário ou dos teste-

(*) Félix Rodriguez recorda a conversa de duas horas que teve com ele depois de ter
sido capturado. Guevara comentou, sobre o desaparecimento da retaguarda: "Já que você
diz, eu acredito, mas até agora pensei que fosse mentira. Supus que alguns podiam ter mor-
rido, mas que isso de todos mortos era coisa do governo". Félix Rodriguez, entrevista com
o autor, Miami, 24/4/95. Vale mencionar que há certas dúvidas sobre a veracidade das afir-
mações de Rodriguez. Gustavo Villoldo, seu supervisor na Bolívia, declara: "O Che esta-
va em um pequeno salão da escola e Félix do lado de fora, fotografando o maternal. Félix
não falou com ele e tampouco estava ali quando o mataram". Gustavo Villoldo, entrevista
com o autor, Miami, 27/11/95.
munhos há qualquer indício de que Guevara pensasse em escapar da mortal
armadilha que se fechava ao seu redor.
Acossado pelas doenças, pela fadiga, pela desnutrição e pelas disputas
internas, o pequeno grupo guerrilheiro — seriam entre vinte e 25 — vagou
durante o mês de setembro seguindo o rumo nordeste, do rio Grande até os
povoados de Pucará e La Higuera. Em Vallegrande, o maior povoado da
comarca, instalara-se o quartel-general da 8ã Divisão do exército boliviano.
Sua missão consistia em fechar qualquer rota de fuga ao sudeste, ou seja, para
o outro lado do rio. Com ajuda da Ar Divisão, aquartelada em Camiri, a tropa
cercara o Che: a sudeste estava o rio Grande; a leste e a oeste, a passagem
estava bloqueada por gargantas e grotões; ao norte, rodeada por milhares de
soldados, estava Vallegrande. A partir dessa povoação, o 2B Batalhão de
Comandos empreenderia a busca e o extermínio do bando rebelde. "Pappy"
Shelton e dois agentes cubanos enviados dos Estados Unidos pela CIA
estavam a ponto de completar o treinamento da tropa boliviana. Se o bata-
lhão de Rangers ainda não havia participado da caçada, era porque só estaria
pronta para a ação em meados de setembro. Mesmo então, sua intervenção
foi prematura. Entretanto, no final do mês, mais de mil militares bolivianos,
bem treinados ou não, dedicavam-se à captura do Che e seus companheiros.
Tudo era apenas de uma questão de tempo.
O princípio do fim começou em 26 de setembro. Chegando ao casario
de Alto Seco, ao sul de La Higuera, o Che falou para uma minúscula audiên-
cia e em seguida conversou com os moradores, tentando obter alguma infor-
mação. Confirmou o que já anotara com pesar em seu diário: os camponeses
bolivianos eram impenetráveis; não conseguia comunicar-se com eles.
Segundo as impressões dos moradores registradas pela imprensa boliviana, a
saúde do Che piorara a olhos vistos: "Guevara parecia doente e exausto;
montava uma mula e via-se que não conseguia caminhar sem apoio".9 Na
primeira oportunidade, alguns camponeses desapareceram rapidamente
para informar ao exército a chegada dos revolucionários. Um destacamento
de três guerrilheiros dispôs-se a explorar a trilha que conduzia a Jaguey,
mas do alto da escarpa que ladeava o caminho uma patrulha militar desco-
briu-os e abriu fogo. Miguei e Júlio morreram na hora; Coco Peredo foi ferido
de morte e, embora Benigno tenha conseguido retirá-lo dali, não conseguiu
escapar levando o companheiro nas costas. Talvez Peredo tenha morrido de
outra rajada, quando já pendia dos ombros de Benigno, ou ele próprio tenha
dado o tiro de misericórdia ao ver que só lhe restavam algumas horas de vida.
A morte de um dos mais importantes combatentes bolivianos abalou o âni-
mo do grupo. Já não havia para onde ir. Dois bolivianos desertaram na con-
fusão: Camba, ou Orlando Jiménez Bazán, um dos primeiros e mais velhos
militantes do Partido Comunista, e António Rodríguez Flores, o León.

Em 30 de setembro, a 8ã Divisão interrogou Rodríguez Flores. Arran-


cou informações muito valiosas sobre os planos, a força e a disposição do
Che. O exército logo deduziu que Guevara pretendia avançar até Valle-
grande, seguindo pelas quebradas próximas de La Higuera, que conduziam a
um povoado um pouco maior chamado Pucará. Os soldados se deslocaram
ao longo das colinas que dominavam a baixada, visando obrigar os rebeldes
a subir para uma área de escassa vegetação, exposta, ou encurralá-los nos
grotões. A intenção do Che, nesses últimos dias, permanece confusa. Pom-
bo recorda que a ideia de "tomar" Vallegrande, mesmo parecendo comple-
tamente descabida, tinha certo sentido. Aquele ato desesperado lhes per-
mitiria deixar ali os feridos — Chino, o peruano, e o dr. Morogoro, ambos em
péssimo estado — com uns hipotéticos simpatizantes; conseguir, afinal, os
medicamentos de que o Che tanto precisava; proclamar sua existência para
o resto do mundo e, por último, romper o cerco militar rumo ao nordeste,
para Cochabamba e a região de Chapare.10 Benigno, ao contrário, destaca os
aspectos irracionais da estratégia. Em sua opinião, o Che pretendia apenas
travar um último e glorioso combate, sacrificando a si e a seus homens nas
chamas da imortalidade. Se seu único desejo era conseguir remédios, per-
gunta, por que não ordenou que ele e mais outro cubano em boas condições
físicas assaltassem uma farmácia em Vallegrande? E mais: se o Che pretendia
transformar a tomada da capital provincial em um golpe espetacular, não
tinha sentido fazer que seus homens carregassem mochilas de quarenta qui-
los e vários feridos para onde quer que fossem."
Na penúltima anotação de seu diário, datada de 6 de outubro, Guevara
conta que o grupo encontrou uma mulher idosa, acompanhada de sua filha,
uma anã. Na esperança de que não os delatassem, os guerrilheiros lhes entre-
garam uma pequena soma em dinheiro, mas no fundo não acreditavam em
seu silêncio. O grupo imaginava que, marchando à noite e descansando de
dia em barrancos abrigados, talvez conseguisse furar o cerco a seu redor. A
velha procedeu como eles previram: informou o posto militar mais próximo.
O círculo se estreitou. Após um "descanso bucólico", como o Che o descreve
na última anotação que aparece em seu diário, na noite de lua cheia de 7 de
outubro, os dezessete homens reemprenderam a marcha pelas quebradas dos
afluentes do rio Grande. Avançam por entre uma vegetação mais densa que
no topo das colinas, mas muito rasteira para ocultá-los. A luz da lua, um
lavrador avistou suas silhuetas do outro lado do riacho: um bando de
esquálidos fantasmas barbados, levando fuzis e imensas mochilas que os ver-
gavam. Não teve dúvidas: eram os guerrilheiros. Despachou seu filho para o
posto de comando do capitão Gary Prado Salmón, a poucos quilómetros
dali. Este, um perfeito militar, não esperou a confirmação e logo tratou de
preparar uma emboscada seguindo a receita mais ortodoxa. Posicionou
alguns homens na entrada da quebrada dei Yuro (ou Churo), outros na saí-
da e seu posto de comando no alto. Estava a ponto de começar a última bata-
lha do Che.
Guevara também dera suas ordens de combate, mas ainda não tinha
plena certeza de que o exército o havia localizado. Decidiu dividir a coluna
em vários grupos, para que verificassem se haveria alguma saída pelas estrei-
tas grotas da quebrada. Ao amanhecer, Benigno e Pacho—que tinham acom-
panhado o Che em Praga e em outras incontáveis missões — notaram a pre-
sença de dezenas de soldados aguardando-os no alto do desfiladeiro. Só
tinham duas opções: recuar para a entrada do grotão, na esperança de não
serem vistos, ou permanecer em silêncio até o anoitecer e confiar que o
exército não descobriria o destacamento. Escolheram a segunda alternativa
e colocaram seus homens em um círculo de defesa, para o caso de um ataque.
Aproximadamente à uma e meia da tarde de 8 de outubro, o exército abriu
fogo da boca da ravina contra a unidade de vanguarda. Os outros guerri-
lheiros estavam dispersos. Pouco tempo depois, dois jatos e um helicóptero
sobrevoaram a área, sem metralhar nem bombardear as colinas. A esquadra
do Che, composta por sete homens, tentou entrar por uma grota para abri-
gar-se, pois não poderia sustentar por muito tempo o tiroteio com o exérci-
to. Guevara decidiu dividir seus homens em dois grupos: um com os mais fra-
cos e feridos, outro com ele e mais dois, que ficariam na retaguarda,
dando-lhes cobertura.
Minutos depois, uma rajada de metralhadora arrancou das mãos do
Che sua carabina M-l, inutilizando-a. Outro tiro feriu-o na barriga da per-
na. Era apenas um ferimento no músculo, mas dificultava-lhe o desloca-
mento. Willi, ou Simón Cuba, um dos sindicalistas mineiros que militara no
grupo de Moisés Guevara, arrastou seu comandante por uma ribanceira
rochosa, mantendo-o de pé com uma das mãos, enquanto com a outra
empunhava a metralhadora. Aniceto Reynaga, outro boliviano, seguia-os a
certa distância. Três soldados do pelotão de Prado, Choque, Balboa e Enci-
nas, sob o comando do sargento Bernardino Huanca, perceberam a aproxi-
mação. Esperaram os guerrilheiros escalarem um pequeno penhasco e,
quando estes estavam à vista, gritaram: "Joguem as armas e ponham as mãos
para o alto!". O Che não podia disparar: sua pistola estava descarregada, e a
carabina, avariada. Willi tampouco abriu fogo, fosse por não poder disparar
com uma só mão, fosse por considerar que a situação aconselhava prudên-
cia. Segundo algumas declarações, nesse momento o comandante disse:
"Não disparem. Sou Che Guevara, e valho mais vivo do que morto". Outra
versão, com a marca tendenciosa dos militares bolivianos, atribui-lhe a
frase: "Sou Che Guevara, e fracassei".12 Uma terceira, talvez a mais
verossímil, conta que Willi jogou o rifle e, ao ver que os soldados, cansados e
nervosos, faziam má pontaria, gritou: "Caralho, este é o comandante Gue-
vara, merece mais respeito".11
Quando informaram o capitão Gary Prado da captura, ele correu coli-
na abaixo, enquanto o tiroteio prosseguia na quebrada. Após verificar
repetidamente a identidade do Che, apreendeu sua mochila e, exaltado,
comunicou-se pelo rádio com o quarte-general: "Capturamos o Che". A
guerra terminara. O relógio do herói de Santa Clara marcava suas últimas 24
horas de vida.
Conforme percorria lentamente os dois quilómetros até La Higuera, o
grupo que conduzia o Che foi se convertendo em uma procissão de centenas
de moradores do lugar, atrás dos outros prisioneiros e das mulas com
cadáveres de guerrilheiros e soldados feridos. Ao chegar, aprisionaram Gue-
vara na escola do povoado, em uma sala miserável com chão de terra batida.
Willi ficou na sala ao lado. Naquela noite, enquanto a tropa comemorava sua
façanha, em La Paz o alto comando boliviano discutiu o destino que daria ao
seu legendário e problemático prisioneiro. O Che não sofria dores intensas,
mas, segundo os testemunhos, estava deprimido. Em algum momento, deve
ter pensado na possibilidade de ser fuzilado e não parecia resignado com a
morte. Talvez tenha achado que o governo boliviano preferiria submetê-lo
a um julgamento, para vangloriar-se de sua captura como um marco de
vitória sobre a agressão estrangeira. Não foi isso que ocorreu.
Gary Prado, digno e cortês, e Andrés Selich, arrogante, tentaram inter-
rogar o Che durante a noite e novamente ao amanhecer. O prisioneiro,
porém, permanecia fechado em seu silêncio. No dia seguinte, por volta das
seis e meia da manhã, chegou de Vallegrande um helicóptero trazendo o
comandante Nino de Guzmán, o coronel Joaquín Zenteno, chefe da 8a
Divisão, e Félix Rodríguez, o operador de rádio cubano-estadunidense
enviado à Bolívia pela CIA. Este veio no helicóptero em sinal de deferência
aos Estados Unidos, pelo apoio prestado, e também para confirmar a identi-
dade do Che. Também lhe recomendaram que interrogasse seu compatriota
por adoção e fotografasse os cadernos e documentos encontrados no
momento da captura. Rodríguez e Zenteno, assim como alguns moradores
do lugar, conseguiram finalmente conversar com Guevara.
O exército estava às voltas com um problema monumental. Na Bolívia
não havia pena de morte, nem alguma prisão de alta segurança onde o Che
pudesse cumprir sua pena, que com certeza seria muito longa. Só a ideia de
promover um julgamento causava calafrios tanto ao presidente René
Barrientos como ao general Alfredo Ovando e ao chefe do estado-maior das
forças armadas, Juan José Torres. Se o governo e o país tinham sofrido uma
pressão descomunal e o repúdio do mundo por causa do julgamento de Régis
Debray, era de se prever o tamanho do escândalo que o julgamento de Che
Guevara provocaria e a campanha de solidariedade que apoiaria o heróico
comandante. O Che encarcerado, em qualquer ponto do país, representaria
uma tentação para comandos cubanos, que tentariam a todo custo libertá-
lo, quem sabe até trocá-lo por reféns sequestrados em outra parte do mundo.
Decidir o destino do Che foi um pesadelo para os três militares. A outra
alternativa — entregá-lo aos norte-americanos, que o levariam ao Panamá
para interrogatórios — tampouco era uma solução. A tradição nacionalista
do exército boliviano jamais o permitiria. E o gesto confirmaria as denún-
cias cubanas de que o esforço contra-insurgente não passava de uma forma
velada de intervenção ianque. Todos os documentos e testemunhos sobre a
morte do Che indicam que a opção por executá-lo foi deliberada e unânime.
As autoridades decidiram liquidá-lo o mais rápido possível, antes que a
pressão exterior, sobretudo norte-americana, se tornasse insuportável.
A ordem partiu de La Paz no meio da manhã. Félix Rodríguez rece-
beu-a em La Higuera e remeteu-a a Zenteno. Este ordenou que um pelotão
a executasse.14 Primeiro houve uma sessão de fotografias, em que se bateram
muito mais chapas além das que se publicaram até hoje. A seguir, os solda-
dos tiraram a sorte para ver quem o liquidaria. O tenente Mário Terán foi o
escolhido para executar aquele homem desalinhado e ferido, mas ainda
desafiante, que jazia no chão da escolinha de La Higuera. O carrasco hesi-
tou, fez várias tentativas fracassadas, mas depois de alguns tragos de uísque e
de um pedido do Che para que prosseguisse, disparou-lhe seis tiros no tórax,
um dos quais varou-lhe o coração, matando-o instantaneamente.
Segundo o coronel Arnaldo Saucedo Parada, chefe do serviço de infor-
mação da 8a Divisão e responsável pelo relatório oficial sobre os momentos
finais do Che, suas últimas palavras foram: "Eu sabia que iam me matar; não
deveriam capturar-me vivo. Digam a Fidel que este fracasso não significa o
fim da revolução, que ela triunfará em qualquer outra parte. Digam a Aleida
que esqueça tudo isso, que volte a casar, que seja feliz e cuide para que os meni-
nos continuem estudando. Peçam aos soldados que façam boa pontaria".15
O corpo foi amarrado a uma maca presa ao trem de pouso do heli-
cóptero de Zenteno, que seguiu para Vallegrande. Ali o Che foi lavado, arru-
mado e posto em exibição na lavanderia do hospital de Nuestra Senora de
Malta, de onde esta narração partiu.
A princípio, o governo boliviano tentou encobrir o assassinato, mas seu
estratagema desmoronou de um só golpe. Depois de examinar o cadáver, os
médicos declararam que Guevara estava morto fazia menos de cinco horas.
Como seria possível que ainda estivesse vivo ao meio-dia de 9 de outubro, se
o tiroteio em que supostamente falecera tinha ocorrido no dia anterior? Cen-
tenas de pessoas tinham presenciado o lento cortejo da quebrada dei Yuro até
La Higuera. A multidão de jornalistas que se apinhava no hospital logo apurou
que Ernesto Guevara de Ia Serna fora executado. No dia seguinte, o corpo
desapareceu. Inicialmente, o general Oviedo ordenara que cortassem sua
cabeça e suas mãos, para uma melhor identificação, e que o corpo fosse cre-
mado para impedir que no futuro se construísse um santuário em sua memória.
Mas a história tomou outro rumo. Vários oficiais bolivianos e Gustavo
Villoldo, o cubano da CIA de mais alta posição na Bolívia, opuseram-se à
decapitação. Amputaram-lhe apenas as mãos, conservadas em formol
durante mais de um ano na Bolívia, para depois desaparecerem misteriosa-
mente e reaparecerem mais tarde em Cuba. Diz-se que Fidel Castro pensou
em colocá-las em uma espécie de mausoléu em Havana, mas não o fez porque
a família do Che se opôs. Elas se encontram agora no palácio de Ia Revolu-
ción, onde vários dignitários já foram convidados a vê-las, como eles mes-
mos revelaram.

Os três enigmas que ainda persistem em torno da vida e da morte do


Che não incluem, portanto, as circunstâncias e detalhes de sua morte. Qual
foi o papel dos Estados Unidos na execução? O Che queria morrer ou sim-
plesmente aceitou brava e resignadamente um final inevitável? O cadáver
foi incinerado e teve suas cinzas espalhadas pelas colinas em torno de Valle-
grande, ou está enterrado em alguma parte do povoado?
Segundo a versão oficiosa cubana, quando o presidente Barrientos
inteirou-se da captura, dirigiu-se imediatamente à residência do embai-
xador dos Estados Unidos, onde recebeu a ordem de eliminar o guerri-
lheiro.16 Tanto os dois testemunhos existentes a respeito17 como os dois
informes que o autor recebeu do então embaixador norte-americano, Dou-
glas Henderson, rejeitam taxativamente essas acusações.18 O ex-diplomata
diz que não só não recebeu Barrientos em casa naquela noite como jamais foi
consultado pelo governo boliviano sobre o procedimento a adotar. Explica
que havia uma boa razão para não lhe pedirem conselho: poucos meses
antes, ele se opusera à execução de Régis Debray. Era lógico que o governo
boliviano supusesse que se oporia, da mesma forma, ao assassinato do Che.19
As demais testemunhas sobreviventes tendem a confirmar essa versão,
embora seja inegável que tentam puxar a brasa para sua sardinha. Félix
Rodríguez afirma, em suas memórias, que recebeu de La Paz a ordem de que
o Che fosse fuzilado, mas, antes de cumpri-la, procurou seguir as instruções
de sua sede em Langley: "A primeira coisa que nos disseram em Washington
foi que os bolivianos têm tendência a liquidar seus prisioneiros e que, se cap-
turássemos Guevara com vida, deveríamos tentar por todos os meios man-
tê-lo longe das autoridades locais para que fosse enviado ao Panamá".20
Os demais homens da CIA que na época se encontravam na Bolívia, ou
que conheceram Rodríguez mais tarde, acham que ele pode estar exagerando
seu papel — na época, era apenas o radioperador local —, mas que, em essên-
cia, o que diz corresponde à verdade. John Tilton, chefe da equipe da CIA em
La Paz, estava ausente do país naqueles dias. Confirmou a versão para o autor,
mas dificilmente ele a desmentiria.21 Gustavo Villoldo, líder do Country
Team da CIA, mostra-se um pouco mais sincero em suas opiniões pessoais.
Conta que, chegando à Bolívia, foi conduzido de carro à residência presi-
dencial para entrevistar-se com Barrientos. O presidente advertiu-o então de
que, caso capturassem o Che, faria tudo ao seu alcance para executá-lo. Vil-
loldo indagou: "E se o encontrarmos vivo, o que fará?", ao que o presidente
respondeu: "Se estiver vivo, será feito um julgamento sumário que o con-
denará à morte. O senhor tem a palavra do presidente da República".22
De todos os militares bolivianos envolvidos na captura e execução de
Guevara, o único que ainda vive é Gary Prado. Os demais foram morrendo
com o passar dos anos, perseguidos por uma uma espécie de "maldição do
Che". Prado observa que a decisão de matar o prisioneiro coube unicamente
aos bolivianos. Admite que o fato pareceu-lhe lamentável, pois admirava o
Che pela valentia e fidelidade a suas convicções. Mas, do ponto de vista dos
interesses do exército e do Estado da Bolívia, ainda hoje considera que a
decisão era a única possível.
O testemunho de Prado talvez seja o que mais fielmente revela as
reflexões e o estado de espírito do Che em suas últimas horas. O capitão
tomou nota das conversas que manteve com o prisioneiro e incluiu-as em
seu livro como apêndice. Guevara tinha consciência de que talvez a Bolívia
não tivesse sido a melhor escolha, mas ela não fora exclusivamente sua.
Quem mais se entusiasmara com o país andino tinham sido os próprios boli-
vianos. Após interrogar o oficial sobre o que poderia esperar, comentou ter
escutado no rádio que, se a 8a- Divisão o capturasse, seria julgado em Santa
Cruz, e não em Camiri, para onde o mandariam se fosse preso pela 4-
Divisão. Não eram especulações de um condenado à morte. No mesmo sen-
tido, Prado destaca as condições em que o Che foi preso, escalando a escarpa
para sair da grota, mostrando que queria viver: "Se ele desejasse a morte,
ficaria embaixo e continuaria lutando. Mas não, estava tentando sair. Quan-
do o capturamos, estava abatido, mas seu ânimo melhorou quando viu que
o tratávamos corretamente e tentávamos falar com ele."2'
Rodríguez também diz que o Che parecia convencido de que seria jul-
gado e sentenciado, não fuzilado. Assinala que o prisioneiro sofreu ao saber
que seu destino estava selado. Por último, há o testemunho dos habitantes
de La Higuera, que falaram com ele naquela noite e na manhã seguinte.
Também eles evocam um homem que mostrava apego à vida e não parecia
suspeitar que só lhe restavam algumas horas. A professora Julia Cortês recor-
da que, depois de agradecer-lhe a comida que ela lhe trouxera e de falar sobre
a educação em La Higuera, o Che pediu-lhe que averiguasse o que seus
carcereiros estavam tramando: "Disse: 'Não sei, talvez me matem, ou talvez
me tirem daqui vivo, mas penso que para eles é mais conveniente eu con-
tinuar vivo, pois valho muito'. Ele parecia acreditar que sairia de lá com
vida. Também disse que não me esqueceria".24 Os outros que trocaram algu-
mas palavras com ele naquela noite — militares bolivianos, sobretudo Zen-
teno e Selich — morreram antes que a sabedoria que vem com a idade
pudesse garantir a veracidade e precisão de seu testemunho. Certamente,
Ernesto Guevara enfrentou a morte com a enorme coragem que forjou e cul-
tivou por toda a vida, e também com o medo de alguém que amava tanto a
vida como ele e estava a ponto de perdê-la.
Em novembro de 1995, o New York Times publicou um artigo de pági-
na inteira baseado nas declarações de um oficial da reserva do exército boli-
viano, o general Mário Vargas Salinas. Arquiteto da emboscada de Vado dei
Yeso, Vargas Salinas repetiu ao jornal o que já relatara anteriormente e que
outros oficiais bolivianos — como Luis Reque Terán, chefe da 4â Divisão,
em suas memórias — vinham repetindo havia algum tempo: contraria-
mente à crença generalizada de que o corpo do Che foi cremado pelos mi-
litares, estes na verdade o enterraram no campo de pouso de Vallegrande.
Por sair no New York Times, a história ganhou ares de notícia-bomba, e o go-
verno boliviano foi forçado a iniciar as buscas dos restos mortais do coman-
dante. Muitos legistas argentinos logo acorreram ao local; mais tarde, o ve-
lho povoado do Sudeste boliviano seria invadido por especialistas cubanos.
Cerca de vinte meses depois, em julho de 1997, foram descobertas muitas
ossadas junto ao campo de pouso de Vallegrande. Com base no parecer dos
especialistas argentinos, uma delas foi oficialmente declarada pelo governo
de Cuba como sendo a de Che Guevara. Apesar disso, alguns atores do dra-
ma original, como Felix Rodríguez, ainda se mantêm céticos a respeito.
Embora o mito da cremação de Guevara tenha perdurado por três
décadas," sempre houve boas razões para suspeitar que seu corpo foi enter-
rado.26 Por tratar-se de um país extremamente católico, na Bolívia não há
tradição de cremar os mortos, o que dificultaria bastante a manutenção do
sigilo da operação. A pira necessária para incinerar um cadáver não é peque-
na. Se tivesse sido acesa num lugarejo como Vallegrande, naquela noite de
9 de outubro em que o corpo desapareceu depois de ter sido visto por
inúmeros jornalistas, moradores e curiosos, a fogueira teria sido notada num
raio de muitos quilómetros. Além disso, enquanto um enterro requer apenas
um par de homens fortes, a tarefa de preparar, acender e atiçar o fogo
necessário para uma cremação teria envolvido um número bem maior de
pessoas, e pelo menos uma delas teria trazido a história a público ao longo
destes trinta anos. E ninguém o fez.
Gustavo Villoldo não se encontrava em La Higuera no dia em que o
Che foi executado, mas era o principal oficial dos Estados Unidos presente
em Vallegrande nos dois dias em que tais eventos ocorreram. Ê veemente ao
afirmar que foi ele próprio o responsável pelo sepultamento:
Eu enterrei Che Guevara. Ele não foi cremado; não o permiti, assim
como me opus terminantemente à mutilação de seu corpo. Na madrugada do
dia seguinte, transportei seu cadáver numa caminhonete, junto com os demais
dois guerrilheiros. Eu estava acompanhado de um motorista boliviano e de um
tenente chamado Barrientos, se não me engano. Fomos até o campo de pouso
e ali enterramos os corpos. Eu não teria dificuldade para reconhecer o local. Se
continuarem procurando, eles vão encontrar os restos. Os do Crie poderão ser
reconhecidos pela amputação cirúrgica das mãos; ele não foi mutilado.'7
Ainda hoje, passados trinta anos, La Higuera não tem luz elétrica. O
pequeno povoado permanece tão perdido e miserável como no dia da morte
do Che. Neste sentido, seu sacrifício foi em vão. Só alterou leve e efemera-
mente o estado de abandono e pobreza dos camponeses do Sudeste boli-
viano. E, exceto por um breve devaneio embalado por suas ideias, logo
depois de sua morte e durante o verão de 1968, a Revolução Cubana logo o
esqueceu. Com o fim da Primavera de Praga, o alinhamento de Havana com
Moscou se consolidou. Em 1970, quando Fidel Castro converteu em cruza-
da nacional o disparatado projeto de produzir 10 milhões de toneladas de
açúcar, os ideais económicos e sociais da luta do Che tinham sido relegados
ao esquecimento stalinista. Embora as aventuras internacionalistas de Cuba
tenham se prolongado até a década de 90, por sinal com êxito bem maior que
quando Guevara era vivo, todas terminaram na futilidade ou na infâmia.
Qual é então o legado do comandante? De que valeram seu esforço e
dedicação? Estas perguntas merecem algumas considerações finais.
Enquanto a geração dos anos 60 manteve as características que a mar-
caram, seu vínculo com o Che Guevara encerrou uma simbiose, quase má-
gica, entre o símbolo e o Zeitgeist, baseada em uma sinonímia real. Aque-
la singular mescla de determinação e ânsia transformadora, onipotência e
altruísmo, arrogância e desapego refletia a postura moral e intelectual tan-
to de um indivíduo como de amplos setores juvenis de sociedades análo-
gas. Se a semelhança entre as massas e seus movimentos era tanta, assim
teria de ser entre seus símbolos. Talvez a ubiqúidade do Che se devesse à
natureza quase que universal dos protestos de 1968 e daqueles que os
abraçaram. Evidentemente, havia diferenças entre eles, mas eram as va-
riações próprias de toda homogeneidade. Os estudantes franceses do Maio
de 68 eram um setor vanguardista que também representava uma vasta
classe média descontente e exasperada. Em contraste, os jovens mexicanos
massacrados na praça de Las Três Culturas pertenciam a uma minoria
excepcional, ilustrada e elitista, dentro de uma sociedade profundamente
desigual. No entanto, a idéia-mãe apresentada pelo Che, da vontade auto-
suficiente como propulsora de mudanças, aliada a um espetacular aumento
do número de universitários, gerou uma nova universalidade. Agrupou as
classes médias majoritárias das nações ricas e as irremediavelmente
minoritárias das pobres.
Nessa época, o crescimento do número de jovens era algo assombroso.
Em 1960, havia nos Estados Unidos 16 milhões de pessoas com idade entre
dezoito e 24 anos; em 1970, a cifra saltara para 25 milhões, um crescimento
de 50% em dez anos.28 Na França, o número de universitários passara de 201
mil, em 1961, para 514 mil, em 1968.29 No fim da Segunda Guerra, havia no
Japão apenas 47 universidades; em 1960, já eram 236.'° Também nos Esta-
dos Unidos, o número de universitários subira de 3 milhões, em 1960, para
4 milhões, em agosto de 1964; e em 1965 superara os 5 milhões." A mudança
qualitativa não foi menos significativa: nos Estados Unidos de antes da
Segunda Guerra Mundial não havia universidades estatais; em 1970 já exis-
tiam cinquenta com mais de 15 mil alunos.'2 Tanto no Chile como no Brasil
e no México, os três países latino-americanos que viveram grandes movi-
mentos estudantis nos anos 60, o aumento do número de alunos matricula-
dos nas universidades ficou entre 200 e 400%."
Assim, a mudança começou pela explosão demográfica no Ocidente e
o boom mundial do esnino público superior. Daí partiu para a massificação
do ensino, as manifestações e as revoltas contra a ordem institucional em
Berkeley, Columbia e Nanterre. Atravessou as marchas pelos direitos civis
no Mississipi e os protestos generalizados contra a Guerra do Vietnã e o
autoritarismo, do México à Europa Oriental. Em seguida, politizou-se pro-
fundamente no Boul' Mich e nas rebeliões operárias em Billancourt e Milão,
para arrematar com a estridência radical dos campi, a revolta existencial e a
rejeição "cultural" dos status quo nas comunas. Foi, parafraseando os Beat-
les, um longo e sinuoso caminho, iniciado no início dos anos 60, quando o
Che estava vivo, e desembocou, muito depois de sua morte, na desagregação
de todos os movimentos e no recuo para a nostalgia. Desde os intermináveis
debates de 1968 no teatro Odéon de Paris até o sexo, drogas e rock'n roll de
Woodstock, a passagem do político ao cultural abateu muitos, desiludiu
outros, mas transformou sociedades que, de outra forma, talvez permane-
cessem estáticas.
Os anos 60 deixaram um rastro político, embora não necessariamente
o esperado pela maioria dos seus protagonistas. A petulância daqueles
jovens crédulos e exuberantes que ergueram as barricadas em Milão e no
Pentágono teve um fundamento que ainda hoje lhe dá sentido e atualidade.
Aqueles prosélitos que sonhavam com a transformação radical do mundo
tinham razão. Pela última vez neste século — e quem sabe por quanto tem-
po no futuro — pareceu possível mudar a ordem das coisas por meio de um
plano preestabelecido e inédito. Com o correr do tempo, apareceram outros
tipos de iniciativas, mais bem-sucedidas: a destruição do mundo socialista e
o estabelecimento da ordem capitalista, o fim do Estado de bem-estar social
e da economia keynesiana. No entanto, nunca mais setores tão amplos de
tantas sociedades diferentes se propuseram simultaneamente a transformar
o mundo, a partir de uma premissa que não partia do status quo anterior, nem
de realidades já existentes, mas de um ideal utópico.
A Primavera de Praga de 1968 representou a última oportunidade de
mudar o rumo — e a alma — do socialismo real. A invasão soviética de agos-
to anulou para sempre a possibilidade de reformas de fundo no bloco socia-
lista, impondo um preço cujo montante só seria conhecido vinte anos mais
tarde. Talvez os regimes stalinistas não pudessem ser reformados. Naquele
tempo, porém, as propostas reformistas pareciam tão realizáveis como dig-
nas de admiração. Da mesma forma, os movimentos estudantis e operários
da França e da Itália anunciram a última ocasião em que pareceu possível
uma transformação profunda da sociedade industrial. Nos Estados Unidos,
a maré esperançosa de otimismo, ebulição e solidariedade social, desperta-
da em 1968 pela candidatura presidencial de Robert Kennedy, foi um últi-
mo esforço para construir um país mais nobre e igualitário. Junto com a ten-
tativa de Martin Luther King para conjungar o movimento pelos direitos
civis com a justiça econômico-social e a oposição à Guerra do Vietnã, talvez
tenha sido a última chance para a social-democracia na América do Norte.
A revolução sonhada pelos militantes imberbes do Quartier Latin não
pôde acontecer. Mas, mesmo terminando em fracasso, não era impossível.
Disse-o com argúcia Eric Hobsbawm:
Se houve um momento dos anos dourados após 1945 que correspondeu ao le-
vante simultâneo do mundo, com que os revolucionários sonhavam desde
1917, seguramente foi em 1968, quando os estudantes se rebelaram dos Estados
Unidos e México, no Oriente, à Polónia, Tchecoslováquia e Iugoslávia socia-
listas, largamente estimulados pela extraordinária erupção do Maio de 1968 em
Paris, epicentro de uma rebelião estudantil de proporções continentais.'4
Como não foi assim, o brio dos anos 60 malogrou, tal como a vida do Che
nos ermos bolivianos. Portanto, se aqueles anos e seu ícone marcaram um ten-
to duradouro, ele não poderia ser político ou ideológico, mas de outra natureza.
Para que o Che e os que carregaram seu féretro deixassem um legado político,
teriam de ter vencido alguma vez, em algum lugar, de uma ou outra forma. Não
foi o caso, por mais injusta que a apreciação possa parecer e por mais desigual
que tenha sido o campo de combate. Em 1968, arrebaram-lhes uma vitória que
estava ao alcance da mão. Depois, perderam por culta de golpes de Estado e
estratégias contra-insurgentes tanto na Bolívia como em toda a América
Latina. Foram derrotados na Alemanha, França e Itália por grandes reformas
sociais e uma virulenta reação conservadora. Sucumbiram na Tchecos-
lováquia sob as baionetas e doutrinas de Brejnev. E foram dispersados nos Esta-
dos Unidos devido a assassinatos, excessos e ao extremo pragmatismo do estab-
lishment norte-americano, que limitou suas perdas ao Vietnã.
Assim, o comandante não acabou em um mausoléu ou em uma praça
faraónica, mas em camisetas, pósteres, canecos de chope. A década que ele
simbolizou não alterou as estruturas económicas e políticas das sociedades
que os jovens combateram. Seu impacto infiltrou-se por áreas mais
intangíveis do poder e da sociedade. Se dependesse deles, o Che e os movi-
mentos que ele simbolizou teriam escolhido a outra alternativa: alcançar, de
uma ou outra forma, a revolução política pela qual lutavam. Mas talvez a ver-
dadeira contribuição da época que Guevara encarnou se encontre justa-
mente em outra esfera: a menos espetacular, menos imediata, menos român-
tica, porém mais profunda, de maior alcance e significado. Se hoje o Che é
um ícone cultural, em grande parte é porque suas pegadas marcaram mais a
fundo o terreno cultural que o político.
Nos anos 60, política e cultura convergiram, mas a cultura perdurou e a
política não. Certamente, é por isso que a definição europeia do termo cul-
tural, especialmente em Michel Foucault, é mais precisa. Aquela década
influiu a fundo na esfera do poder e dos poderes, esses sinuosos canais que,
alheios aos foros do Estado, circunscrevem, ordenam, classificam e delineiam
a vida nas sociedades modernas. O que os anos 60 deixaram estabelecido em
todo o mundo foi, primeiro, que o poder existe em outros âmbitos além do
político, do económico e do Estado; segundo, que é necessário resistir a ele,
questionar sua legitimidade, contestar sua permanência. Aí reside a ver-
dadeira herança daquela fase e a razão de sua sobrevivência em nossa
memória. Isso lhe confere uma singular importância e explica a enorme nos-
talgia que ainda hoje ela desperta. Daí a absoluta pertinência do Che. Ele foi
o emblema supremo da revolta cultural que se materializou em um homem
cujas ideias políticas eram convencionais, mas cuja atitude frente ao poder e
à política alcançaram dimensões épicas e excepcionais.
Por isso, os anos 60 ainda nos acompanham, e a imagem do Che con-
tinua aparecendo por todo o planeta. O ano de 1968 provocou uma insur-
reição cultural irreversível no mundo "moderno". A comoção transformou
as relações entre velhos e jovens, homens e mulheres, razão e loucura, saúde
e doença, e igualmente entre os sujeitos e os objetos do poder, entre o que
ensina e o que aprende, entre negros e brancos e mesmo entre ricos e pobres.
Da arca do tesouro daquela fase destaca-se a libertação das tradições na
esfera do sexo e do vestuário, nas preferências musicais e gráficas, na
irreverência para com a autoridade e no reconhecimento da alteridade. É
certo que a mundialização dos arquétipos norte-americanos — os jeans, o
rock, a homogeneidade e a igualdade dos desiguais — não equivale a uma
utopia universal. Mas é preferível ao status quo anterior. Representou um
grande passo à frente para aqueles que antes estavam fora dos cânones orde-
nados e excludentes das sociedades "modernas".
O Che se encontra justamente no lugar que lhe pertence: o dos nichos
reservados aos ícones culturais, aos símbolos dos movimentos que se infil-
traram no subsolo da sociedade, sedimentando-se em suas mais íntimas
frestas e recantos. Para muitos, os elementos mais atraentes e resgatáveis da
vida cotidiana atual são legados dos anos 60. E o Che representa melhor do
que ninguém essa era, se não suas características. Talvez o filho de Célia não
reconhecesse tais valores como aqueles pelos quais lutou e morreu. Mas nem
o comandante Ernesto Che Guevara poderia aspirar a redigir seu próprio
epitáfio. Ele estava destinado, apenas, como pouquíssimos outros, a morrer
como quis e viver como sonhou.

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