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1- INTRODUÇÃO
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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ideológico, não se concretiza a não ser através do exercício efetivo de dominação e também do
exercício de poderosa ascendência cultural sobre outros povos e seus respectivos espaços
físicos com os quais mantenha relações e sobre os quais procure exercer algum tipo de
hegemonia: econômica, política e, em nosso caso, particularmente religiosa e, por extensão,
artística. No caso do Império Bizantino, permanentemente ameaçado nas fronteiras, onde
estão o exército e a Igreja, altos interesses políticos e religiosos de estado estão sempre
envolvidos, em nosso caso geralmente atendendo preocupações defensivas e diplomáticas
(HALDON, 1999, p. 7-8)3. Diplomacia, exército, religião e comércio se desenvolvem num vasto
complexo de relações envolvendo o contexto internacional, a manutenção e distribuição do
exército, o proselitismo religioso e o conhecimento da organização político-ideológica e
tecnológica dos povos vizinhos. A interpenetração de motivos políticos e religiosos e a íntima
associação entre Igreja e Estado na tarefa comum de estender a hegemonia do Império
Cristão compõem a agenda da concepção imperial bizantina. Junto a todos esses fatores, não
devemos ignorar também a questão da construção da imagem através da qual os imperadores
queriam ser vistos pelas nações vizinhas, atitude que fica clara no tratado do imperador
Constantino VII, De Administrando Império (DAI), de meados do século X, nossa principal
fonte (MORAVCSIC, 1967, passim)4.
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Aqui cumpre ressaltar que, se expansionismo houve no final, esse foi indubitavelmente de caráter religioso e cultural
(DUCELLIER, 1986, 441-68).
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Para o DAI ver recentemente STEPHENSON, 2006, cap. 1, p. 18-46, que fornece ótimo suporte analítico para o texto
de Constantino VII.
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2- OS TURCOS
Foi em fins do século IV e ao longo do século V que os Hunos, os primeiros povos cuja
origem se confundia com os Turcos, causaram grande pavor entre os Godos, esses que foram
os primeiros dentre os povos germânicos a formar um grande Estado no Sul da Rússia, junto
à margem Norte do mar Negro e, em seguida, junto à fronteira danubiana na parte oriental
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Num outro momento o mesmo Procópio menciona a geografia das invasões na região
balcânica no século VI, registrando assim problemas militares que irão permanecer ao longo
de toda a história bizantina:
Após um grande, mas efêmero, império huno comandado por Átila (434-453), ondas
sucessivas de povos de origem turca deslocaram-se para o Ocidente e entraram em contato
com o Império Bizantino: Ávaros, Búlgaros, Khazares, Petchenegues (Turcos Oghuz), Uzes
(idem, gr. Ouzoi), Cumanos (ou Polovtsianos), Turcos Selçuks (ou Seldjúcidas, aparentados
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Valente morreu na batalha de Hadrianópolis em 378, combatendo uma insurreição visigoda motivada por abusos de
oficiais romanos na região, que se aproveitavam da carestia de alimentos para suprir a nova e numerosa população. A
divisão entre Visigodos e Ostrogodos é confusa. Antes da entrada dos Visigodos no Império Romano os Ostrogodos
formavam um grande reino na bacia do baixo Don, no Sul da Rússia (ODB).
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3- OS ESLAVOS
O litoral Norte do mar Negro, enquanto porta de entrada para as estepes euro-
asiáticas, era administrado pelo strategus de Cherson, na atual Criméia. Ali se localizava o
principal foco das relações de Constantinopla com os povos estepários da Eurásia,
particularmente com os Hunos, depois sucessivamente com Ávaros, Alanos, Khazares e
Petchenegues. As vultosas somas em dinheiro oferecidas a príncipes estrangeiros eram
consideradas por estes como tributos humilhantes, ao passo que para a diplomacia bizantina
eram inversamente consideradas como presentes no interesse da paz, como um sábio
princípio de governo e como um triunfo diplomático. Mesmo que fracassos tenham se
acumulado ao longo da história do Império, essa paciente diplomacia rendeu frutos
inestimáveis. A título de exemplo queremos considerar aqui dois casos cronologicamente
distanciados, o século VI e o século X.
Em meados do século VI, após o colapso do grande Império construído por Átila, os
Hunos encontravam-se divididos em dois grupos, estabelecidos a Oeste e a Leste do rio Don,
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No século VI esses eslavos estão compostos pelos Slavenoi, Sérvios, Croatas e Antae. É por essa época de
estabelecimento ao Sul do Danúbio que a língua eslava parece começar a se tornar uma espécie de “língua franca” entre
esses diversos grupos. O estabelecimento de Estados sólidos se dará posteriormente, com o khanato búlgaro em vias de
eslavização, com os russos do principado de Kiev e, nos últimos séculos da vida do Império, com os Sérvios e os
Croatas. Os Antae desaparecem e os Croatas serão absorvidos pela Igreja latina.
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“Eu conheço [disse o khan] um certo provérbio que escutei na minha infância, e
se não o esqueci ele diz aproximadamente o seguinte. Dizem que essa besta
selvagem, o lobo, pode ser capaz de mudar de alguma forma a cor de sua pele,
mas o seu caráter, ele não pode transformar, pois a natureza não o permite
fazer isso. ... E eu sei algo mais que aprendi por experiência, uma dessas coisas
que seria natural que um rústico bárbaro tivesse que aprender: os pastores
pegam cães quando eles ainda estão amamentando e os educam com cuidado na
casa, e o cão é um animal agradecido e muito cheio de carinho para com aqueles
que o alimentam. Agora isso é obviamente feito pelos pastores com esse objetivo
de que, quando os lobos atacam o rebanho em qualquer momento, os cães
possam evitar seus ataques, ficando à frente da ovelha como guardiões e
salvadores. E eu penso que isso acontece por todo o mundo ... e que mesmo em
seu império, onde praticamente tudo é encontrado em abundância, incluindo
sem dúvida mesmo coisas impossíveis, não existe a menor variação dessa regra.
... Mas se essas coisas são por natureza fixadas por toda parte, penso não ser
uma boa coisa você receber com hospitalidade a nação dos Kutrigurs,
convidando um traiçoeiro grupo de vizinhos e fazendo se sentir em casa agora
aqueles que você não suportava além de seus limites. ... Enquanto nós levamos
nossa existência numa terra deserta e inteiramente improdutiva, os Kutrigurs
têm liberdade para comerciar trigo e festejar em seus celeiros de vinho e viver
na fartura da terra. E sem dúvida eles têm acesso a banhos também e estão
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usando ouro –os vagabundos- e não têm falta de finas roupas bordadas e
cobertas com ouro” (OBOLENSKY, 2000, p. 35).9
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Referências às edições de Procópio à p. 371, nota 10.
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quais vivem mais fácil e confortavelmente, uma vez que nenhum desses animais
mencionados existe na Rússia. Além disso, os russos são incapazes de partir
para guerras além de suas fronteiras10, a não ser que estejam em paz com os
Petchenegues, uma vez que, enquanto estiverem longe de suas casas, aqueles
podem cair sobre elas e destruir e ultrajar suas propriedades. E assim os russos,
para evitar serem prejudicados por eles e por causa da força daquela nação (gr.
éthnos), estão sempre muito preocupados por estar em aliança e em tê-los para
apoio, tanto para ficar livres de sua inimizade quanto para desfrutar de sua
assistência.
Também não podem os russos vir até essa cidade imperial dos Romanos, seja
para a guerra, seja para o comércio, a não ser que estejam em paz com os
Petchenegues, uma vez que, quando os russos chegam com seus navios nas
barragens dos rios (èis tous phragmoùs tou potamou)11 e não podem passar por
elas a não ser levantando seus navios fora dos rios e os transportando
carregados sobre os ombros, os homens daquela nação dos Petchenegues podem
cair sobre eles e, como eles não podem fazer duas coisas ao mesmo tempo, são
facilmente desbaratados e feitos em pedaços ”12.
10
Gr. Hyperoríous; “que está além das fronteiras, que tem lugar fora, estrangeiro; hyperoríos pólemos, guerra fora
(Aristóteles)”, cf. Bailly. Lembremo-nos de que a concepção atual de fronteira era desconhecida na época.
11
Gr. Phragmós: “1 ação de fechar; 2 fechamento, paliçada; 3 lugar fechado”. Cf. Bailly.
12
MORAVCSIK, 1993, p. 49-50. Não existe um título original. O título moderno em latim foi dado por Johannes van
Meurs (Meursius, 1579-1639), o primeiro editor do texto, em 1611.
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século X, uma turca e outra eslava. Aqui a atitude é outra, de grande precaução com o forte
poderio dos dois povos e apontando Cherson, na moderna Criméia, como a grande porta de
defesa dos altos interesses dos imperadores no litoral nórdico e oriental do mar Negro para a
proteção militar das fronteiras e a manutenção de uma rede vital de comércio internacional e
difusão da religião ortodoxa. O texto fornece preciosas informações quanto à intensa
atividade diplomática bizantina junto a Búlgaros, Húngaros, Petchenegues, Russos, Árabes,
khazares e Alanos, numa extensa geografia diplomática, econômica e ideológica se estendendo
para os Bálcãs e o baixo Danúbio e dali para as margens nórdicas e orientais do mar Negro;
3- os dois casos são do mais alto interesse para o estudo da Commonwealth bizantina, uma
vez que ela encontra seus fundamentos ao longo da época das invasões e se consolida ao longo
do período compreendido entre os séculos IX e XI, primeiramente junto aos Eslavos dos
Bálcãs, em seguida junto à longínqua Rússia. Nesse sentido, o testemunho do imperador
Constantino VII se encaixa diretamente no período central de apogeu do Império Bizantino,
poucas décadas antes da conversão final dos russos ao Cristianismo ortodoxo com o príncipe
Vladimir, ocorrida oficialmente em 988 (LAIOU-MAGUIRE, 1992, p. 38; DVORNIK, 1970,
p. 177-179).
Como sucede sempre na história dos grandes impérios, Bizâncio foi mortal para
algumas jovens nações e vivificante para outras. No caso dos países eslavos ortodoxos
Bizâncio aportou sua religião, seu modelo político, sua arte e sua língua grega eslavizada pelos
seus missionários. Aportou, em suma, sua cultura e sua ideologia ortodoxa e universalista, tão
presentes particularmente na Rússia moderna. Na primeira frase de um texto poético e
grave, Pierre Grimal afirma inicialmente que “...as civilizações são mortais” (GRIMAL, 1981,
p. 5). Pronunciando-se por ocasião de uma homenagem recebida em Louvain-La-Neuve,
Bélgica, em 12 de outubro de 1980, Grimal adota como ponto de partida o clima de angústia
reinante numa Europa estabelecida sobre as ruínas da primeira guerra mundial, clima este
intensificado pela segunda guerra e a paz precária que se seguiu com a guerra fria. Grimal
faz alusão, portanto, a uma civilização européia capaz de se tornar mortal para si mesma ao
longo de todo o século XX.
Achamos oportuna a concepção do autor, mas a adotamos no encerramento dessa
exposição dentro de uma outra dialética, qual seja: a de que civilizações podem ser ora
mortais, como foi Bizâncio para os Petchenegues, ora fecunda e criativa, como foi essa mesma
civilização bizantina junto aos eslavos.
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REFERÊNCIAS
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