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AUTOR: CELSO TAVEIRA


TÍTULO: “CONSTANTINOPLA E O MUNDO EURO-ASIÁTICO. TURCOS E
ESLAVOS”
FILIAÇÃO INSTITUICIONAL: UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO,
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

1- INTRODUÇÃO

O texto que apresentamos nesse evento constitui o resultado parcial de um primeiro


tópico de nosso projeto de pós-doutorado. O quadro geral no qual está inserido o projeto
vincula-se à situação peculiar vivida pela parte oriental do Império Romano a partir de dois
acontecimentos decisivos da sua história: a criação de uma nova capital em Constantinopla no
século IV e a ocupação da parte ocidental pelos Germanos nas últimas décadas do século V.
Governada a partir de uma capital esplendidamente localizada tanto para a defesa quanto
para o comércio, a parte oriental do Império Romano já se destacava da ocidental no século
IV por ser mais rica, densamente urbanizada, mais cristianizada e mais estável. Embora
denominada Nea Rhoma por Constantino, Bizâncio era uma cidade greco-oriental e com
cultura e economia tipicamente orientais (GERBERING, 2005, p. 21-24). Segundo
Ostrogorsky, Constantino consagrou definitivamente a vitória do Oriente (OSTROGORSKY,
1983, p. 73) e é nesse sentido que esse texto se “orienta”.
Ao perder as províncias ocidentais no século V e ficar doravante concentrado no
Oriente, esse Império Romano gradativamente cristianizado voltou-se cada vez mais para os
assuntos asiáticos, seja nos termos das suas já tradicionais relações com o Império Persa na
Mesopotâmia (e através dali com o comércio internacional das estepes da Ásia Central), seja
nas novas configurações étnicas e geo-políticas introduzidas pelas sucessivas vagas de
migrações, às quais seguiram-se os estabelecimentos de Turcos e Eslavos ao longo das
fronteiras imperiais nórdicas do Danúbio e do mar Negro. Após a efêmera recuperação de
parte das províncias ocidentais por Justiniano, no século VI, o que se vê, a partir daí, é o
estabelecimento de uma nova e extremamente complexa rede de relações voltadas para o
mundo asiático, o qual passa a fazer parte da política externa do Império do Oriente de forma
definitiva e intensa.

Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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Essa orientação do Império Romano em direção ao mundo asiático dava-se, em duas


frentes: uma tradicional a Leste com o Império Persa e atingindo a Índia e a China, outra
mais recente a Nordeste, essa última pelo litoral Norte do mar Negro, através da importante
cidade de Cherson, na atual Criméia1, que também convergia para as imensas estepes euro-
asiáticas e assim atingindo também o Norte da China. Como podemos observar, ambas
confluíam para a China, inserindo-se no milenar comércio internacional de especiarias e
artigos de luxo da rota da seda. Em função do poder e extensão do Império Persa e também
após a conquista do mesmo pelos árabes, o mar Negro se tornou de um interesse vital para
Constantinopla quanto às grandes rotas de comércio que convergiam do Oriente para o
Mediterrâneo e que passavam pela Transoxiana, a região em torno das ricas cidades de
Bukhara e Samarcanda, no atual Uzbequistão, a encruzilhada das caravanas que
atravessavam as estepes da Ásia Central em direção à Pérsia e ao Mediterrâneo.

Pretendemos considerar aqui a atuação dos imperadores bizantinos na prática


corrente das ações diplomáticas, militares e missionárias atendendo ao programa ideológico
de um Império Cristão Universal, no qual os três termos da expressão encontraram total
validez em Bizâncio. Para HALDON (1999, p. 10), “O grau de capacidade de um governo
para monopolizar forças coercitivas é crucial para a extensão do controle exercido pelo poder
político central sobre os recursos necessários para a continuidade de sua existência”.
Constantinopla exerceu esse papel de centro do poder político, administrativo, religioso e
militar, tornando-se um centro espiritual e eclesiástico que viria a ter um significado
profundo para a história da humanidade (GRUMEL, 1989, p. 187-288; OSTROGORSKY,
1983, p. 72)2.

A interpenetração de motivos políticos e religiosos e a íntima associação entre Igreja e


Estado na tarefa comum de estender a superioridade da oikoumene sobre os bárbaros
situados além de seus domínios compõem os dois lados da mesma moeda nas relações de
Bizâncio com os povos da Europa Centro-oriental e das estepes (OBOLENSKY, 2000, p. 60).
Um Estado imperial, ou seja, um Estado que tenha pretensões universais como alicerce
1
Cidade já cristianizada no século IV, de acordo com achados arqueológicos. Teve papel decisivo para os interesses
bizantinos na região da Criméia nos séculos V e VI e desempenhou papel central, entre os séculos X e XII, nas relações
de Bizâncio com os Khazares, os Petchenegues e os Russos de Kiev (Oxford Dictionary of Byzantium, 1991, p 418-
419, doravante ODB).
2
A obra de Grumel fornece referências preciosas quanto às atas do patriarcado de Constantinopla relativas à intensa
correspondência do patriarca Nicolau I o Místico (segundo mandato, 912-925) junto aos Búlgaros e outros povos
fronteiriços (Alânia, Abasgia, Armênia, Ibéria, Cherson, Khazaria) junto aos quais a política missionária era intensa no
século X. O autor recenseia vinte e sete cartas do patriarca ao tzar Symeon da Bulgária.
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ideológico, não se concretiza a não ser através do exercício efetivo de dominação e também do
exercício de poderosa ascendência cultural sobre outros povos e seus respectivos espaços
físicos com os quais mantenha relações e sobre os quais procure exercer algum tipo de
hegemonia: econômica, política e, em nosso caso, particularmente religiosa e, por extensão,
artística. No caso do Império Bizantino, permanentemente ameaçado nas fronteiras, onde
estão o exército e a Igreja, altos interesses políticos e religiosos de estado estão sempre
envolvidos, em nosso caso geralmente atendendo preocupações defensivas e diplomáticas
(HALDON, 1999, p. 7-8)3. Diplomacia, exército, religião e comércio se desenvolvem num vasto
complexo de relações envolvendo o contexto internacional, a manutenção e distribuição do
exército, o proselitismo religioso e o conhecimento da organização político-ideológica e
tecnológica dos povos vizinhos. A interpenetração de motivos políticos e religiosos e a íntima
associação entre Igreja e Estado na tarefa comum de estender a hegemonia do Império
Cristão compõem a agenda da concepção imperial bizantina. Junto a todos esses fatores, não
devemos ignorar também a questão da construção da imagem através da qual os imperadores
queriam ser vistos pelas nações vizinhas, atitude que fica clara no tratado do imperador
Constantino VII, De Administrando Império (DAI), de meados do século X, nossa principal
fonte (MORAVCSIC, 1967, passim)4.

Em outros termos, o que temos em jogo é um constante quebra-cabeça regido pelas


profundas implicações da geografia estratégica. Um exemplo de grandes proporções nos é
oferecido pela história da cidade de Constantinopla do século VI a meados do VII, quando de
capital de um Império mediterrânico sob Justiniano I tornou-se a capital apenas de um
Estado balcânico e anatólico, restrito na sua parte ocidental aos mares Egeu e Adriático e
fortemente pressionado por invasões eslavas e turcas nos limites nórdicos e orientais do
Danúbio e do mar Negro. Além disso, ocorrem profundas alterações na geografia estratégica
do Oriente Médio e Próximo com a invasão árabe do século VII, as quais provocam um novo e
surpreendente quadro internacional atingindo decisivamente as relações entre Constantinopla
e as províncias. Foram as graves perdas em recursos financeiros e humanos no Egito e no
Oriente Médio que implicaram em profundas mudanças institucionais e administrativas nos
territórios conservados, os quais passaram a ser considerados como elementos potenciais para

3
Aqui cumpre ressaltar que, se expansionismo houve no final, esse foi indubitavelmente de caráter religioso e cultural
(DUCELLIER, 1986, 441-68).
4
Para o DAI ver recentemente STEPHENSON, 2006, cap. 1, p. 18-46, que fornece ótimo suporte analítico para o texto
de Constantino VII.
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a determinação de possibilidades logísticas, estratégicas e financeiras à disposição dos


imperadores bizantinos a partir de então (HALDON, 1999, p. 34-94).

É dentro desse quadro que queremos focalizar o papel histórico e geográfico


especialmente peculiar desempenhado pela cidade de Constantinopla nas suas relações com o
mundo exterior, o qual surpreende sempre pela abrangência dos aspectos implicados. Cidade
portadora de um passado brilhante, única por ser simultaneamente européia e asiática,
capital de dois Impérios, o Romano Oriental ou Bizantino e o Otomano, foi também chamada
de a “pérola das cidades do Mediterrâneo” pelos Otomanos após a conquista de Mehmet II
em 1453, quando a cidade foi rebatizada como Istambul (Yerasimos, 2005, p. 20-21 e 206-
215). No século X, enquanto o Ocidente “estava se tornando mais europeu” (GERBERING,
2005, p. 21), Liutprando de Cremona descrevia um Império cercado por temerosos inimigos:
Húngaros, Petchenegues, Khazares e Russos (HALDON, 1999, P. 21). Apesar disso,
Constantinopla se manteve como o centro de um Império mundial (HALDON, 1999, p. 16-17)
enquanto pôde controlar a rota terrestre da Europa para a Ásia e a rota marítima do
Mediterrâneo para o mar Negro e dali para as estepes asiáticas e o Sul da Rússia (HALDON,
1999, p. 16-17). Voltando-se para a defesa e proteção da oikoumene nos limites nórdicos do
Danúbio e do mar Negro, para além dos quais situava-se o confuso mundo dos bárbaros das
estepes, os basileis e os cronistas cometiam uma série de anacronismos étnicos para o
historiador moderno: Com freqüência os Turcos eram chamados Persas, os Húngaros Turcos
(Tourkoi), os Normandos Francos, os Francos e Alamanos (Alamanoí) Germanos (Germanoi) e
os Búlgaros, Petchenegs, Cumanos (ou Polovtsianos) e Russos eram chamados conjuntamente
de Citas. Até mesmo a princesa georgiana Maria era chamada “de Alânia” no século XI.
(ODB, verbetes diversos; KAZHDAN & EPSTEIN, 1990, p. 167-170). Os próprios Bizantinos
se consideravam Romanos (Rhomaioi), eram chamados de Gregos (Grekoi) pelos Eslavos e de
Romanos (Rum) pelos Turcos. Consideremos a situação relativa aos Turcos e aos Eslavos.

2- OS TURCOS

Foi em fins do século IV e ao longo do século V que os Hunos, os primeiros povos cuja
origem se confundia com os Turcos, causaram grande pavor entre os Godos, esses que foram
os primeiros dentre os povos germânicos a formar um grande Estado no Sul da Rússia, junto
à margem Norte do mar Negro e, em seguida, junto à fronteira danubiana na parte oriental

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do Império Romano. Os Hunos apareceram primeiramente na Rússia meridional, ali


dispersando os Alanos e os Godos (Ostrogodos) e forçando uma grande confederação de
Visigodos da Dácia (hoje Romênia) a buscar e obter refúgio em território romano ao Sul do
Danúbio, mais especificamente na Trácia, em 376, onde foram estabelecidos como foederati
pelo imperador Valente (364-378)5. Após a superação do problema germânico em fins do
século IV, são os Hunos que passam a constituir graves ameaças. Procópio, historiador
bizantino do imperador Justiniano I no século VI, registra em sua História Secreta como
Justiniano enviava pródigas somas de dinheiro do tesouro imperial desnecessariamente, como
presentes para os chefes dos Hunos.

“Assim é que nações estrangeiras de todos os lados vieram a experimentar toda


a riqueza dos Romanos, seja sendo presenteados com ela pela mão do
imperador, seja devastando o Império Romano, seja vendendo de volta seus
prisioneiros de guerra, ou ainda exigindo dinheiro em troca de cessar as
hostilidades” (WILLIAMSON, 1988, p. 138-139).

Num outro momento o mesmo Procópio menciona a geografia das invasões na região
balcânica no século VI, registrando assim problemas militares que irão permanecer ao longo
de toda a história bizantina:

“A Ilíria e toda a Trácia – isto é, do golfo jônico até os subúrbios de Bizâncio,


uma área que inclui a Grécia e o Quersoneso – eram percorridas quase todos os
anos por Hunos, Eslavos e Antes, desde o dia em que Justiniano assumiu o
governo do Império Romano (Idem, p. 132).

Após um grande, mas efêmero, império huno comandado por Átila (434-453), ondas
sucessivas de povos de origem turca deslocaram-se para o Ocidente e entraram em contato
com o Império Bizantino: Ávaros, Búlgaros, Khazares, Petchenegues (Turcos Oghuz), Uzes
(idem, gr. Ouzoi), Cumanos (ou Polovtsianos), Turcos Selçuks (ou Seldjúcidas, aparentados

5
Valente morreu na batalha de Hadrianópolis em 378, combatendo uma insurreição visigoda motivada por abusos de
oficiais romanos na região, que se aproveitavam da carestia de alimentos para suprir a nova e numerosa população. A
divisão entre Visigodos e Ostrogodos é confusa. Antes da entrada dos Visigodos no Império Romano os Ostrogodos
formavam um grande reino na bacia do baixo Don, no Sul da Rússia (ODB).
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com os Uzes) e finalmente os Turcos Otomanos viriam a preencher a agenda diplomática e


militar de toda a história bizantina até o desfecho de 1453.6
O teste crucial para a sobrevivência do Império do Oriente diante dessas novas
migrações de bárbaros sucedendo aos Germanos se deu no final do século VI e início do VII,
quando ocorreu a temível coalição representada pelo Khanato dos Ávaros nos Bálcãs, o qual
incorporava também importantes contingentes de Eslavos e Búlgaros, e pelos Persas na Ásia
Menor. Após ter conquistado uma parte Norte dos Bálcãs em 582, a ofensiva dos Ávaros
atingiu o ponto culminante em 626, quando assediaram Constantinopla juntamente com os
Persas. Nesse cerco teve papel preponderante a perícia náutica que os eslavos vinham
adquirindo desde o final do século VI, através de operações no mar Egeu e um ataque a Creta
em 623. O reino ávaro viria a ser destruído apenas em 795-96 e no início do século IX por
Carlos Magno e uma cooperação franco-búlgara (YERASIMOS, 2005, p. 156-158; ODB,
1991, p. 237-238; HERRIN, 1989, p. 451-52; HAMBLY, 1977, p. 1-63; RICHÉ, 1968, p. 114-
115; BURY, s. d., p. 314-316).7

3- OS ESLAVOS

O nome “Eslavo” aparece na forma Sklavenoi ou Sthlabenoi em fontes gregas e latinas,


ao que parece a partir de meados do século VI (ODB, 1991, p. 1916-1918). Mas parece ter sido
ao longo do século VII que tomou forma a chamada Sklaviniai nos Bálcãs, coincidindo com a
penetração intensa dos eslavos em território imperial e fazendo de Tessalônica a fronteira e o
foco das relações bizantino-eslavas.
O início da história dos Eslavos se presta a conjeturas. À época de seus primeiros
contatos com o mundo romano nos séculos V e VI sua história se confunde com a dos Ávaros,
conforme vimos acima. Os Eslavos parecem ter sido agricultores e pastores semi-nômades em
suas origens, quando se encontravam instalados no Norte da Europa Central, numa região
próxima ao mar Báltico e entre os rios Vístula (hoje na Polônia), a Noroeste, e Dniepr ao Sul
6
ODB, 1991, p. 2129-2130; A terminologia é confusa. Os Turcos são originários do Turquestão, chamado Turan a
partir do século VI d. C., uma vasta região situada entre a margem oriental do mar Cáspio a Oeste e os montes Altai a
Leste, em direção à Mongólia e à China. De Turan temos o adjetivo Turaniano. Já o termo Turcomanos (gr.
Tourkománoi) aparece em fontes islâmicas apenas no século X, passando para o grego na segunda metade do século
XII. Os Turcos Otomanos, por sua vez, têm seu núcleo originário no emirado de Osman, saído da gradual dissolução do
sultanato seldjúcida e estabelecido nas vizinhanças dos territórios cristãos bizantinos. De forma generalizada aparecem
nos textos termos como “Turanianos” ou “Turcomanos”.
7
Os ávaros se confundiam com os Xuan Xuan que do Norte da China haviam se deslocado para as estepes ocidentais
(RICHÉ, 1968, p. 17).
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(Sudoeste da Rússia) (KOBYLINSKI, 2005, p. 524-544; ODB, 1991, p. 1916-1919; DVORNIK,


1970; RICHÉ, 1968, p. 21-22). Eles entram com mais clareza para a história durante as ondas
migratórias para o Sul, que parecem ter tido início no final do século V, intensificando-se no
século VI e se estabelecendo definitivamente no VII, com a colonização da imensa região entre
o rio Elba, ao Norte, e o mar Adriático, ao Sul (KOBYLINSKI, 2005, P. 544). Por essa época
viviam, tal como os Búlgaros (ou Proto-búlgaros, Turcos ainda não eslavizados), sob
dominação dos Ávaros. Irromperam na história bizantina no século VI, à época do imperador
Justiniano (527-565), através de maciças invasões da península balcânica realizadas a partir
de seu estabelecimento na margem esquerda do Danúbio8. Sua absorção pelo khanato ávaro
os conduziu a ter importante papel náutico na grande invasão ávaro-persa de 626. É
aparentemente a partir desse momento, quando da grande vitória do imperador bizantino
Heráclio sobre os Ávaros e a Pérsia, que se formam as Sklaviniai ao Norte e ao Sul do
Danúbio.

4- CONSTANTINOPLA DIANTE DOS TURCOS E ESLAVOS

O litoral Norte do mar Negro, enquanto porta de entrada para as estepes euro-
asiáticas, era administrado pelo strategus de Cherson, na atual Criméia. Ali se localizava o
principal foco das relações de Constantinopla com os povos estepários da Eurásia,
particularmente com os Hunos, depois sucessivamente com Ávaros, Alanos, Khazares e
Petchenegues. As vultosas somas em dinheiro oferecidas a príncipes estrangeiros eram
consideradas por estes como tributos humilhantes, ao passo que para a diplomacia bizantina
eram inversamente consideradas como presentes no interesse da paz, como um sábio
princípio de governo e como um triunfo diplomático. Mesmo que fracassos tenham se
acumulado ao longo da história do Império, essa paciente diplomacia rendeu frutos
inestimáveis. A título de exemplo queremos considerar aqui dois casos cronologicamente
distanciados, o século VI e o século X.
Em meados do século VI, após o colapso do grande Império construído por Átila, os
Hunos encontravam-se divididos em dois grupos, estabelecidos a Oeste e a Leste do rio Don,

8
No século VI esses eslavos estão compostos pelos Slavenoi, Sérvios, Croatas e Antae. É por essa época de
estabelecimento ao Sul do Danúbio que a língua eslava parece começar a se tornar uma espécie de “língua franca” entre
esses diversos grupos. O estabelecimento de Estados sólidos se dará posteriormente, com o khanato búlgaro em vias de
eslavização, com os russos do principado de Kiev e, nos últimos séculos da vida do Império, com os Sérvios e os
Croatas. Os Antae desaparecem e os Croatas serão absorvidos pela Igreja latina.
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respectivamente os Kutrigurs e os Utigurs. No ano de 550 o imperador Justiniano autorizou a


instalação de dois mil Kutrigurs na região da Trácia, como recompensa por algum serviço
importante prestado por esse povo ao Império. Em conseqüência disso o khan dos Utigurs
enviou uma embaixada a Constantinopla para protestar contra essa demonstração de
favoritismo para com uma tribo inimiga. Como os hunos eram iliterados, o discurso do
embaixador reproduzindo as palavras do khan utigur foi registrado e talvez melhorado por
escrito pelo historiador contemporâneo Procópio, em sua obra De bellis, reproduzida por
OBOLENSKY em seu estudo seminal sobre a Commonwealth bizantina:

“Eu conheço [disse o khan] um certo provérbio que escutei na minha infância, e
se não o esqueci ele diz aproximadamente o seguinte. Dizem que essa besta
selvagem, o lobo, pode ser capaz de mudar de alguma forma a cor de sua pele,
mas o seu caráter, ele não pode transformar, pois a natureza não o permite
fazer isso. ... E eu sei algo mais que aprendi por experiência, uma dessas coisas
que seria natural que um rústico bárbaro tivesse que aprender: os pastores
pegam cães quando eles ainda estão amamentando e os educam com cuidado na
casa, e o cão é um animal agradecido e muito cheio de carinho para com aqueles
que o alimentam. Agora isso é obviamente feito pelos pastores com esse objetivo
de que, quando os lobos atacam o rebanho em qualquer momento, os cães
possam evitar seus ataques, ficando à frente da ovelha como guardiões e
salvadores. E eu penso que isso acontece por todo o mundo ... e que mesmo em
seu império, onde praticamente tudo é encontrado em abundância, incluindo
sem dúvida mesmo coisas impossíveis, não existe a menor variação dessa regra.
... Mas se essas coisas são por natureza fixadas por toda parte, penso não ser
uma boa coisa você receber com hospitalidade a nação dos Kutrigurs,
convidando um traiçoeiro grupo de vizinhos e fazendo se sentir em casa agora
aqueles que você não suportava além de seus limites. ... Enquanto nós levamos
nossa existência numa terra deserta e inteiramente improdutiva, os Kutrigurs
têm liberdade para comerciar trigo e festejar em seus celeiros de vinho e viver
na fartura da terra. E sem dúvida eles têm acesso a banhos também e estão

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usando ouro –os vagabundos- e não têm falta de finas roupas bordadas e
cobertas com ouro” (OBOLENSKY, 2000, p. 35).9

No século X o imperador macedônio Constantino VII Porfirogênito (905-959,


imperador de 945-959) inicia seu grande tratado De Administrando Império, dedicado a seu
filho e futuro imperador Romano II (959-963) e composto possivelmente entre 948 e 952
(MORAVCSIK, 1993, p. 11) com um primeiro capítulo contendo uma série de considerações
acerca dos Petchenegues, então formando um poderoso khanato às margens nórdicas e
orientais do mar Negro, e também acerca dos Russos, estabelecidos mais a Leste.

“1. Sobre os Petchenegues e quantas vantagens são adquiridas através da paz


com o imperador dos romanos.
(...)
Eu concebo, pois, que é sempre de grande vantagem do imperador dos romanos
estar consciente de manter a paz com a nação dos Petchenegues e concluir
convenções e tratados de amizade com eles e mandar todo ano para eles de
nossa parte um agente diplomático com presentes adequados e apropriados
para aquela nação, tomando do lado deles garantias, isto é, reféns e um agente
diplomático, que serão colocados juntos sob encargo do competente ministro
nessa cidade protegida por Deus, e irão dispor de todos os benefícios e presentes
imperiais apropriados para o imperador conceder.
Essa nação dos Petchenegues é vizinha ao distrito de Cherson e se eles
não estão amigavelmente dispostos conosco eles podem fazer incursões e ataques
saqueadores contra Cherson e podem até destruir a própria Cherson e as
chamadas Regiões.

“2. Sobre os Petchenegues e os Russos.


Os Petchenegues são vizinhos e também marcham juntos com os Russos e
freqüentemente, quando não estão em paz entre eles, atacam a Rússia e a
infligem consideráveis danos e ultrajes.
Os russos também se preocupam muito em manter a paz com os Petchenegues.
Pois compram deles gado de chifre (gr. Bóas), cavalos e ovelhas, por meio dos

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Referências às edições de Procópio à p. 371, nota 10.
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quais vivem mais fácil e confortavelmente, uma vez que nenhum desses animais
mencionados existe na Rússia. Além disso, os russos são incapazes de partir
para guerras além de suas fronteiras10, a não ser que estejam em paz com os
Petchenegues, uma vez que, enquanto estiverem longe de suas casas, aqueles
podem cair sobre elas e destruir e ultrajar suas propriedades. E assim os russos,
para evitar serem prejudicados por eles e por causa da força daquela nação (gr.
éthnos), estão sempre muito preocupados por estar em aliança e em tê-los para
apoio, tanto para ficar livres de sua inimizade quanto para desfrutar de sua
assistência.
Também não podem os russos vir até essa cidade imperial dos Romanos, seja
para a guerra, seja para o comércio, a não ser que estejam em paz com os
Petchenegues, uma vez que, quando os russos chegam com seus navios nas
barragens dos rios (èis tous phragmoùs tou potamou)11 e não podem passar por
elas a não ser levantando seus navios fora dos rios e os transportando
carregados sobre os ombros, os homens daquela nação dos Petchenegues podem
cair sobre eles e, como eles não podem fazer duas coisas ao mesmo tempo, são
facilmente desbaratados e feitos em pedaços ”12.

Nesses dois casos cronologicamente tão distanciados (séculos VI e X) queremos


destacar os seguintes pontos:
1- o pronunciamento do embaixador do khan dos Hunos Utigurs na corte de Justiniano
evidencia o valor que os “bárbaros”, Germanos e em seguida estepários de origem turco-
mongol, atribuíam à riqueza das terras e ao bem estar material do Império Romano.
Evidencia também o quanto a ação diplomática imperial poderia simultaneamente se servir
das suas divisões internas ou incentivá-las sempre que necessário para seus próprios
interesses;
2- no segundo caso, de quatro séculos mais tardio, temos um texto escrito ou ditado por
um imperador, de caráter sigiloso e no qual os conselhos de Constantino VII a seu filho
refletem grandes conhecimentos de duas grandes nações euro-asiáticas já identificáveis no

10
Gr. Hyperoríous; “que está além das fronteiras, que tem lugar fora, estrangeiro; hyperoríos pólemos, guerra fora
(Aristóteles)”, cf. Bailly. Lembremo-nos de que a concepção atual de fronteira era desconhecida na época.
11
Gr. Phragmós: “1 ação de fechar; 2 fechamento, paliçada; 3 lugar fechado”. Cf. Bailly.
12
MORAVCSIK, 1993, p. 49-50. Não existe um título original. O título moderno em latim foi dado por Johannes van
Meurs (Meursius, 1579-1639), o primeiro editor do texto, em 1611.
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século X, uma turca e outra eslava. Aqui a atitude é outra, de grande precaução com o forte
poderio dos dois povos e apontando Cherson, na moderna Criméia, como a grande porta de
defesa dos altos interesses dos imperadores no litoral nórdico e oriental do mar Negro para a
proteção militar das fronteiras e a manutenção de uma rede vital de comércio internacional e
difusão da religião ortodoxa. O texto fornece preciosas informações quanto à intensa
atividade diplomática bizantina junto a Búlgaros, Húngaros, Petchenegues, Russos, Árabes,
khazares e Alanos, numa extensa geografia diplomática, econômica e ideológica se estendendo
para os Bálcãs e o baixo Danúbio e dali para as margens nórdicas e orientais do mar Negro;
3- os dois casos são do mais alto interesse para o estudo da Commonwealth bizantina, uma
vez que ela encontra seus fundamentos ao longo da época das invasões e se consolida ao longo
do período compreendido entre os séculos IX e XI, primeiramente junto aos Eslavos dos
Bálcãs, em seguida junto à longínqua Rússia. Nesse sentido, o testemunho do imperador
Constantino VII se encaixa diretamente no período central de apogeu do Império Bizantino,
poucas décadas antes da conversão final dos russos ao Cristianismo ortodoxo com o príncipe
Vladimir, ocorrida oficialmente em 988 (LAIOU-MAGUIRE, 1992, p. 38; DVORNIK, 1970,
p. 177-179).
Como sucede sempre na história dos grandes impérios, Bizâncio foi mortal para
algumas jovens nações e vivificante para outras. No caso dos países eslavos ortodoxos
Bizâncio aportou sua religião, seu modelo político, sua arte e sua língua grega eslavizada pelos
seus missionários. Aportou, em suma, sua cultura e sua ideologia ortodoxa e universalista, tão
presentes particularmente na Rússia moderna. Na primeira frase de um texto poético e
grave, Pierre Grimal afirma inicialmente que “...as civilizações são mortais” (GRIMAL, 1981,
p. 5). Pronunciando-se por ocasião de uma homenagem recebida em Louvain-La-Neuve,
Bélgica, em 12 de outubro de 1980, Grimal adota como ponto de partida o clima de angústia
reinante numa Europa estabelecida sobre as ruínas da primeira guerra mundial, clima este
intensificado pela segunda guerra e a paz precária que se seguiu com a guerra fria. Grimal
faz alusão, portanto, a uma civilização européia capaz de se tornar mortal para si mesma ao
longo de todo o século XX.
Achamos oportuna a concepção do autor, mas a adotamos no encerramento dessa
exposição dentro de uma outra dialética, qual seja: a de que civilizações podem ser ora
mortais, como foi Bizâncio para os Petchenegues, ora fecunda e criativa, como foi essa mesma
civilização bizantina junto aos eslavos.

Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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REFERÊNCIAS

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