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Fale com ela.

Primeiramente esse é um título intrigante para um filme, mas


sem dúvida muito apropriado. Ao mesmo tempo em que podemos interpretá-lo como
uma ordem, ao assistir o filme (com o mesmo título) é possível compreender a
complexidade tanto do título, como do enredo, como dos atores que o interpretam.
Fale com ela trata de temas bastante rebuscados, sensíveis e muitas vezes
difíceis de digerir. E a dificuldade aumenta muito mais quando pensamos no tema
que circunda todo o filme como um fantasma: a ética.
Um enfermeiro apaixonado por sua paciente em coma há 4 anos. Um
romance arrebatador entre um jornalista e uma toureira que culmina também no
coma desta. Uma amizade incomum entre dois homens que apaixonados por
mulheres na mesma condição se identificam e passa a trocar experiências e
confissões.
Como discorrer sobre um amor obsessivo de um homem por uma mulher que
não pode lhe corresponder no mesmo nível de consciência? Como argumentar
sobre uma gravidez inesperada desta paciente que não podia expressar sua
vontade, seus desejos, sua ânsia de ter ou não seu corpo penetrado por um homem
que ela nunca conheceu quando ainda não tinha sofrido o acidente que lhe deixou
em coma? Como tocar a mulher que um dia, com toda sua vivacidade, fez um
homem se apaixonar por ela e agora, inerte, sem vida, em uma cama grita por
cuidados?
Questões complexas, mais uma vez. E aqui nos atendo à ética é difícil tomar
uma posição e analisar casos tão sentimentais, que englobam tantos aspectos
psicológicos, emocionais, culturais...
Na questão que permeia a situação da gravidez de Alícia (nome da
personagem pela qual o enfermeiro Benigno Martin -Javier Câmara- se apaixona)
podemos nos pautar nas palavras de Singer (2002, p. 18) quando o mesmo diz que:
Para serem eticamente defensáveis, é preciso demonstrar que os atos com
base no interesse pessoal são compatíveis com princípios éticos de bases
mais amplas, pois a noção de ética traz consigo a idéia de alguma coisa
maior que o individual. Se vou defender a minha conduta em bases éticas,
não posso mostrar apenas os benefícios que ela me traz. Devo reportar-me
a um público maior.

Nesse caso, podemos dizer que o ato sexual realizado por Benigno foi uma
violação ética. Ele se beneficiou com o acontecimento, ou não. Mais tarde, ao final
do filme, ele é preso, e depois se suicida visto que as convenções sociais
condenavam seus atos. Por mais que ele dizia amar Alicia, em um caso como esse,
o ato sexual, as duas pessoas precisam estar de acordo para que o mesmo atinja
seu objetivo: a procriação, o prazer carnal, etc. Alicia não podia expor sua vontade,
devido ao coma no qual estava imersa. Ela participou de uma ação pela qual não
poderia responder, não podia ativamente e conscientemente participar. É nesse
momento que a universalidade da ética entra em vigor. Se “apossar” de um corpo
inerte, sem respostas conscientes é uma violação dos direitos humanos. O cuidar, o
tratar bem, o zelar por esse corpo é algo totalmente diferente de entrar na
privacidade de uma pessoa em tais condições (coma) e invadir seu mundo interior. E
falo aqui do “mundo” psicológico, biológico, emocional, fisiológico....
Já na questão que diz respeito a Marco Zuluaga (interpretado por Darío
Grandinetti) e sua amizade com Benigno, os dois foram leais e amigos até o final da
vida do enfermeiro. Marco ajudou Benigno quando esse estava na cadeia,
aconselhou o enfermeiro a tirar do pensamento a idéia de casar-se com Alicia, esta
estava em coma e não haveria jeito de manter uma relação consciente e completa
com essa união. Nesse amizade, apesar dos choques de opinião, Marco conseguiu
manter seus princípios éticos. Singer (2002, pág. 332) comenta que “[...] os nossos
princípios éticos são, por definição, os princípios que assumimos como
fundamentalmente importantes”. Para Marco ficou claro que ele precisava ajudar o
amigo Benigno na hora em que esse mais precisa. Não se importou em nenhum
momento com as conseqüências que poderia sofrer, por ser amigo de um presidiário
acusado de estupro.
Mas existe uma situação bem comum no filme. Marco recebe a notícia de que
Alicia se recuperou do coma e ao dar à luz, o bebê nasce morto. Ao ser questionado
por Benigno sobre onde está Alicia e o bebê, Marco mente e diz que Alicia continua
em coma. Após esse episódio, o enfermeiro se suicida, disposto a ir ao encontro de
sua amada obsessão. Fica a pergunta: Poderia marco ter evitado o suicídio de
Benigno se tivesse dito a verdade? Onde estava a ética nesse momento?
Numa opinião pessoal, Marco estava tentando poupar todos (Alicia, Benigno,
familiares de Alicia) de uma situação desconfortável e na opinião do personagem
desnecessária. Mas estaria Marco agindo eticamente?
Singer (2002, pág. 20) mais uma vez nos fala: “Ao admitir que os juízos éticos
devem ser formados a partir de um ponto de vista universal, estou aceitando que
meus próprios interesses, simplesmente por serem meus interesses, não podem
contar mais que os interesses de uma outra pessoa”. Assim, Marco deveria ter
contado a Benigno a vida para qual Alicia tinha voltado
agora. Ao invés disso, no final do filme pode-se entender
que Marco e Alicia se conheceriam mais intimamente. O
que também poderíamos perguntar: onde está a ética
nesse caso?
Por fim, ainda que humildemente descrito, o filme
Fale com ela tratou de questões nada mais, nada menos
que perturbadoras. Questões que nos fazem pensar e
refletir sobre nosso próprio cotidiano e postura frente às
pessoas que amamos. Em um retrato fiel da
extravagância e do exagero, Fale com ela nos comunica a força de quem realmente
não tem medo de amor, seja lá o que esse for.
REFERÊNCIAS

SINGER, Peter. Ética prática. 3.ed. São Paulo: Martin Fontes, 2002.

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