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MARINHA DO BRASIL

ESCOLA DE GUERRA NAVAL

VEGETIUS E O PENSAMENTO ESTRATÉGICO MILITAR

Por

TUXAUA QUINTELLA DE LINHARES

Capitão-de-Corveta

2004
SUMÁRIO

VEGETIUIS, SUN TZU E OS PRINCÍPIOS DA GUERRA..............................................22


INTRODUÇÃO

Vegetius e sua obra são muito pouco conhecidas, mesmo entre militares e estrategistas.
Sua obra “De Re Militari”, também conhecida como “Epitoma Rei Militaris”, foi, no entanto,
o tratado militar mais influente no ocidente, da Idade Média até o final do século XIX (7:67),
representando, como constataremos neste artigo, um dos alicerces do pensamento estratégico
militar ocidental. Sua importância é evidenciada pelo fato que sua obra foi traduzida para o
francês, inglês e búlgaro antes mesmo da invenção de imprensa. O número de cópias
manuscritas datadas dos séculos X ao XV totalizam 150 (8:68). A título de comparação
podemos citar que Vegetius foi traduzido para o francês pela primeira vez em 1271, enquanto
César só o foi em 1473. Um manuscrito de Vegetius consta no testamento do Conde Everardo
de Frejus, escrito em torno do ano 837. Ricardo “Coração de Leão” carregava consigo uma
cópia do De Re Militari onde quer que fosse, assim como fazia seu pai Henrique II da
Inglaterra. Carlos Magno considerava como vital o conhecimento dos escritos de Vegetius
pelos seus comandantes (8:67). Alfonso X, Rei de Castela, torna os preceitos de Vegetius
obrigatórios por meio de uma ordenança publicada em 1280 (2:160). Com o advento da
imprensa, Vegetius foi o primeiro autor militar a ter sua obra impressa (em torno do ano 1473
em Utrech), sendo também o autor militar com maior número de edições nos séculos XV e
XVI (10). Montecucolli, um importante general austríaco do século XVII, que tornaremos a
citar mais adiante, disse: - “[...] há espíritos suficientemente arrojados para acreditarem-se
grandes capitães assim que aprendem a dominar um cavalo, a manejar a lança em carga num
torneio, ou assim que acabam de ler os preceitos de Vegetius” (8:67). Nos séculos XVIII e
XIX, Maurício de Nassau, Gustavo Adolfo, Maurice de Saxe e Frederico, o Grande, da
Prússia foram influenciados pela obra de Vegetius, cada qual aperfeiçoando e refinando sua
aplicação, num processo de evolução que forjou o pensamento militar ocidental tal qual o
conhecemos hoje.
A máxima “Si vis pacem, para belum” é atribuída a Vegetius, porém na sua obra esta
frase aparece numa forma mais completa e que nos permite perceber melhor sua importância:
“Igitur qui desiderat pacem, praeparet bellum; qui victoriam cupit, milites imbuat diligenter;
qui secundos optat eventus, dimicet arte, non casu. Nemo provocare, nemo audet offendere,
quem intellegit superiorem esse pugnaturum” (14). Máxima que pode ser traduzida como:

Portanto, quem deseja a paz, prepara a guerra; quem aspira a vitória, adestra
seus soldados diligentemente; quem deseja determinar o resultado dos
eventos, luta se valendo da arte, e não da sorte. Ninguém provoca, ninguém
atreve ofender, quem percebe como sendo superior no combate1.

Vemos claramente a idéia da dissuasão, e a importância de se contar forças com credibilidade


para obtê-la, num documento milenar.
Hoje as idéias de Vegetius nos parecem triviais, obvias e corriqueiras, por estarem
incorporadas ao dia-a-dia do pensamento militar. Porém, o que parece corriqueiro é fruto de
um longo processo de resgate de práticas militares que haviam se perdido e que só acabou no
século XIX. Suas origens foram, no entanto, esquecidas e seu estudo reduzido à curiosidade
de uns poucos estudiosos. É interessante notar que Vegetius escreveu sua obra para um
Império Romano que conhecia estas idéias, e as praticou por quinhentos anos, até as esquecer,
entrar em decadência e desaparecer. Talvez devêssemos tomar como alerta o destino de Roma
e não permitir que o legado de Vegetius se perca.
Houve uma certa dificuldade na pesquisa sobre Vegetius decorrente das poucas fontes
disponíveis com sua obra. Numa consulta à Biblioteca Nacional constatamos a existência de
apenas sete exemplares da obra completa de Vegetius. Destes exemplares o de edição mais
recente data do século XVII, sendo que todos, por se tratarem de documentos raros, não
podem ser retirados da Biblioteca Nacional. Fomos obrigados, portanto, a consultar a tradução
do Tenente John Clarke, cuja primeira edição é de 1767, mas que está disponível na biblioteca
da Escola de Guerra Naval no livro Roots of Strategy (8). Esta tradução tem, no entanto, um
sério inconveniente, ela só traz os três primeiros livros do total de cinco que compõe o De Re
Militari. Segundo John Clarke os livros IV e V seriam interessantes apenas para antiquários
militares e por esta razão não foram incluídos (8:72). O livro IV trata da poliorcética e o V das
forças navais e ambos terão muita importância ao longo da história. Tivemos, portanto que
buscar os textos dos livros IV e V em outras fontes e acabamos por encontrá-los na Internet
sob a forma dos textos originais em latim.
Ao comparar o texto original em latim com a tradução de John Clarke constatamos que
os italianos tem toda razão quando afirmam que traducire é tradire2, pois percebemos em
diversas passagens que John Clarke não se limitou a traduzir Vegetius, mas também o havia
interpretado. Como exemplo podemos citar um trecho da máxima supracitada, qui victoriam
cupit, milites imbuat diligenter, que John Clarke traduz como: “He who aspires victory,
should spare no pains to form his soldiers” (8:124). Imbuat diligenter não pode ser traduzido
como “não poupa sofrimento para formar”, mas sim como “adestra diligentemente”. Em
1
Tradução do autor, por considerar a versão em inglês pouco fiel ao texto original.
2
Traduzir é trair.
outras passagens a tradução/interpretação de John Clarke chega a dificultar a compreensão da
idéia original, nos obrigando a traduzir trechos do original em latim, com o auxílio de um
dicionário.
Aparentemente não fomos os únicos a ter dificuldades em encontrar referências
contendo os escritos de Vegetius para elaborar nossos trabalhos. Constatamos que as obras
dos autores de língua inglesa que consultamos usaram fontes que, provavelmente, também se
basearam no texto do tenente John Clarke, pois os conceitos, equívocos e omissões são quase
idênticos. Michael Prestwich, por exemplo, faz a seguinte afirmação:

Há somente um exemplo conhecido de um comandante se referindo


especificamente a Vegetius. Em meados do século XII Geoffrey, conde de
Anjou, foi encontrado por um monge profundamente imerso na leitura do
livro [De Re Militari] no sítio a Montreuil-Bellay. Quando ele o largou, o
monge o pegou e começou a ler. ‘Fique comigo amanhã, querido irmão’,
disse o conde, ‘e o verás sendo colocado em prática’. A interpretação da
estória não é clara, pois o dispositivo que o conde usou no dia seguinte foi
uma bomba incediária, algo que Vegetius nunca citara (9:186).

Pois bem, no livro IV Vegetius descreve uma mistura composta de betume, enxofre, e óleo
(14), empregada em bombas incendiárias. Afirmar que Vegetius nunca citara tal dispositivo é
um equívoco sério, decorrente, provavelmente, do fato do autor supracitado não ter usado
Vegetius como referência para escrever seu livro, mas sim trabalhos de outros autores ingleses
que podem ter se baseado na tradução de John Clarke, que omite o livro IV. Equívocos
semelhantes são encontrados nos outros autores de língua inglesa que consultamos, sendo que
todos tendem considerar Vegetius algo superado e destinado ao esquecimento. Com os autores
de língua francesa e italiana que consultamos o mesmo não ocorre, e Vegetius é tratado com
mais consideração. No seu Traité de Stratégie, Hervé Coutau-Bégarie afirma que, “nos dias
de hoje, um historiador pode tristemente constatar, que a literatura tática da antiguidade foi
relegada à lixeira da história” (2:160).

No presente artigo nos propusemos a verificar qual foi a influência de Vegetius no


pensamento militar estratégico, sendo aqui considerado apenas o pensamento militar
estratégico ocidental. Para tal verificaremos quem foi Vegetius, qual o conteúdo de sua obra e
como os conceitos nela contidos influenciaram a arte da guerra da Idade Média até o século
XIX, quando elas foram incorporadas à prática militar de tal forma que deixaram de ser um
diferencial entre os exércitos para se tornarem conceitos, procedimentos e características
basilares do pensamento militar estratégico ocidental.
QUEM FOI VEGETIUS?

O manuscrito mais antigo que cita Vegetius data do século VII e lhe dá o nome de
“Plubius Vegatius [sic] Renatus” (13). Este mesmo nome aparece como autor do
Mulomedicina, um tratado sobre veterinária de bovinos e eqüinos. O fato de ambas as obras
terem sido escritas na mesma época, em latim tardio, e no mesmo estilo, permite, segundo
alguns estudiosos, considerá-las como sendo do mesmo autor (13). Ainda assim, precisar
quem foi Vegetius, e qual era seu nome exato é, ainda hoje, objeto de controvérsia. Com o
passar dos séculos e sucessivas traduções de seu trabalho, seu nome assumiu diversas formas
como: Flavius Vegatius, Vegitus, Vigitus, Vicetus e até mesmo Negotius, Renatus3. A forma
atualmente mais aceita de seu nome é: Plubius (Flavius) Vegetius Renatus. Outro aspecto
interessante de seu nome é que Renatus significa “nascido novamente” (re-natus), sendo um
antropônimo adotado por muitas famílias romanas para denotar sua conversão ao cristianismo.
Vale ressaltar que à época de Vegetius a religião oficial do Império era o cristianismo. Em
diversos trechos de sua obra Vegetius evidencia sua fé cristã, fato que facilitou a aceitação dos
seus preceitos na Idade Média (13).
A posição social de Vegetius também é objeto de discussão acadêmica. Manuscritos
antigos o qualificam como uir illustris, tratamento reservado às maiores personalidades do
Império, como prefeitos, chefes de milícia, ou ministros (13). Segundo o humanista italiano
do século XV, Raphael de Volterra, Vegetius seria o Conde de Constantinopla (8:68), mas
Philippe Richardot4 discorda desta informação baseado no fato do seu nome não constar no
Notitia Dignitatum, documento datado entre 395 e 425, que relaciona os grandes personagens
do Estado Romano (13). Certo é, que ele devia ter algum prestígio na corte romana, tanto que
seu primeiro livro chega ao conhecimento do Imperador que encomenda a continuação da
obra (Livros II, III, IV e V).
Vegetius demonstra conhecer perfeitamente a terminologia e técnicas militares da sua
época, e sua modéstia, “[...] this work, as it requires no [...] extraordinary share of genius, but
only great care and fidelity in collecting and explaining, for public use, the instructions and
3
É interessante observar que Flavius não era um nome, mas um título honorífico adotado pelos altos funcionários
do Império Romano por determinação do Imperador Constantino I após sua vitória sobre Licinius em 323.
Flavius seria o equivalente romano para “Senhor” (13).
4
Philippe Richardot é Doutor em História, encarregado de curso e conferencista do Institut d’Études Politiques
d’Aix-en-Provence, encarregado de pesquisas do Institut de Stratégie Comparée e membro da Commission
française d’Histoire Militaire.
observations of our old historians of military affairs […]” (8:73), não pode ser tomada como
prova de desconhecimento ou inexperiência em assuntos militares, contrariamente ao que
afirma o Tenente John Clarke na introdução à sua tradução da obra de Vegetius (8:68). Sua
atitude modesta era típica de uma retórica cautelosa, necessária numa obra dedicada ao
Imperador, e que podia ser mal recebida (13). O autor de Mulomedicina relata muitas viagens
por todo o Império, e viagens de altos funcionários eram sempre acompanhadas por escoltas
militares, possibilitando ao autor observar o funcionamento da máquina de guerra romana.
Supondo ser correta a premissa de que Mulomedicina e De Re Militari (ou Epitoma Rei
Militaris) sejam do mesmo autor, podemos imaginar Vegetius como sendo uma pessoa de
culta e experiente. É, portanto, plausível considerá-lo como capacitado a escrever a respeito
da arte militar com conhecimento de causa (13).
Para fixar a época em que Vegetius viveu devemos observar que, no prefácio do livro I,
Vegetius dedica sua obra ao Imperador Valentinianus. Muito provavelmente este seria o
Imperador Valentinianus II, e não Valentinianus I, já que seu sucessor, Gratianus, é citado no
livro. Além disso, entre os reinados de Valentinianus II e Valentinianus III, Roma foi atacada
e queimada por Alarico, Rei dos Godos, fato que certamente teria sido citado por Vegetius
(8:68). Assim De Re Militaris teria sido escrito entre 375 e 392 d.C., período do reinado de
Valentinianus II, o que permite considerar que Vegetius teria vivido no final do século IV.
Portanto, para respondermos à pergunta em epígrafe, podemos dizer que Vegetius era,
muito provavelmente, um cristão, alto funcionário do Império Romano do Século IV, com
algum conhecimento da arte militar (e de veterinária), cujo nome completo seria Plubius
Flavius Vegetius Renatus.

A OBRA DE VEGETIUS

A obra de Vegetius, conhecida como Epitoma Rei Militaris (sumário dos assuntos
militares) ou De Re Militari (dos assuntos militares) foi escrita na forma de cinco livros. O
primeiro foi escrito e oferecido ao Imperador Valenciano II (375-392d.C.), os outros quatro
foram escritos por determinação do Imperador. Ao escrever sua obra Vegetius tinha o
propósito explícito de resgatar a glória militar de Roma pelo retorno ao modelo republicano
das legiões onde soldados-cidadãos disciplinados e adestrados formavam uma máquina de
guerra invencível. Vegetius desenvolve seu tratado de maneira didática, cobrindo
praticamente todos os aspectos da guerra e é pioneiro no estabelecimento de regras gerais da
guerra (regulæ bellorum generales), ou na terminologia atual, princípios da guerra.
Os conceitos e procedimentos descritos por Vegetius na sua obra são voltados para as
técnicas empregadas pela legião romana, cujo poderio era baseado, primordialmente, sobre a
infantaria pesada, cabendo à infantaria leve e à cavalaria, papéis secundários (3:164).
No Livro I, Vegetius destaca a disciplina e o adestramento como causa da grandeza das
legiões romanas, realçando que os romanos antigos contavam mais com a perícia e disciplina
de suas tropas do que com seu número ou coragem. A seguir ele descreve como deve ser a
seleção e o adestramento de recrutas, assim como a castrametação5 das legiões. Detalhes
como: idade, porte físico ideal, qualidades desejáveis e profissões são esmiuçadas e
explicadas. Também é pormenorizado o adestramento a ser dado aos recrutas, que incluía,
além do manejo de armas, natação, e um aspecto aparentemente trivial que, mais adiante,
tornar-se-á bastante significativo: marchas. Vegetius preconizava a realização de exercícios
mensais de longas marchas onde os legionários portavam todo seu equipamento. Concluindo
o livro, Vegetius garante que a seleção e treinamento descritos acima evitam que períodos de
paz prolongada degenerem as qualidades guerreiras de um povo. Finalmente, ele destaca que
treinar seus cidadãos é menos oneroso ao estado do que pagar estrangeiros para o serviço das
armas.
O Livro II, escrito por determinação do Imperador, começa com Vegetius se
desculpando por estar mencionando a arte da guerra ao “Senhor e Mestre do mundo e
conquistador de todas as nações bárbaras” (8:97). Notamos neste prefácio um estilo
extremamente cauteloso, o que nos parece coerente com o fato de que críticas à situação de
decadência da legião romana poderiam não ser bem recebidas pelo Imperador. Porém, ao que
tudo indica, o Imperador percebeu o valor do trabalho de Vegetius uma vez que determinou
sua continuação. Neste livro Vegetius se dedica à organização das legiões, sua constituição,
sua divisão em coortes, sua hierarquia e outros aspectos logísticos e administrativos. Dentre
estes aspectos está a música legionária, cujos ecos chegam até os dias de hoje, sob a forma dos
toques de corneta e bandas marciais, e que terão um papel relevante na evolução da arte da
guerra do século XVII, como veremos mais adiante neste trabalho.
No Livro III, que se dedica à tática e estratégia, estaria contida a essência da sabedoria
de Vegetius. Seguindo uma prática iniciada pelo lacedaemonianos6, mas cujo conteúdo se
encontrava disperso nas obras de diversos autores, Vegetius compila uma série de regras
gerais da guerra - regulæ bellorum generales -. São exatamente estas máximas que levarão os
5
Técnicas de acampamento militar.
6
Espartanos.
generais a buscar nos escritos de Vegetius meios para a invencibilidade. A título de exemplo,
e buscando perceber o significado do trabalho de Vegetius, destacamos as seguintes máximas:

É da natureza da guerra que tudo o que lhe for benéfico é prejudicial ao


inimigo e o que for útil ao inimigo lhe ferirá. É, portanto, uma máxima
nunca fazer, ou deixar de fazer, qualquer coisa como conseqüência das
ações do inimigo, mas buscar antes, invariavelmente e tão somente seus
próprios interesses. E você se afasta destes interesses sempre que buscar
imitar as ações que o inimigo realiza buscando benefícios. Pela mesma razão
será errôneo o inimigo seguir os passos que você toma buscando vantagem.
É preferível vencer o inimigo pela fome, surpresa ou terror do que em
batalhas decisivas, pois neste caso a sorte pode ter uma participação maior
que o valor.
Os melhores planos são aqueles onde o inimigo é mantido na ignorância até
o momento de sua execução. Freqüentemente na guerra é melhor depender
da oportunidade do que da coragem.
É preferível manter tropas em reserva do que estender demais a frente de
batalha.
Dificilmente se derrota um general capaz de avaliar verdadeiramente as suas
tropas e as do inimigo.
Valor é superior a quantidade.
A natureza do terreno freqüentemente tem maiores conseqüências que a
coragem.
Poucos homens nascem corajosos; muitos podem tornar-se corajosos pelo
esforço e pela força da disciplina.
Um exército é fortalecido pelo trabalho e enervado pela inércia.
Não se deve levar para o combate tropas que não estejam convencidas da
vitória.
Dificilmente se derrota um general capaz de avaliar verdadeiramente as suas
tropas e as do inimigo.
Novidades e surpresa levam um inimigo à consternação; mas incidentes
comuns não têm efeito algum.
Aquele que persegue precipitadamente um inimigo em fuga com suas tropas
em desordem, parece inclinado a resignar-se de uma vitória que já havia
sido obtida.
Ao descobrir que o inimigo tem notícia das suas intenções, você deverá
imediatamente alterar seus planos de operações.
Consulte-se com muitos a respeito das medidas apropriadas a serem
tomadas, mas comunique os planos que você pretende executar a poucos, e
somente àqueles de fidelidade mais assegurada; ou melhor, não confie em
ninguém a não ser em si próprio.
Punições e, portanto, medo, são necessários para manter a ordem entre os
soldados no quartel; mas no campo eles são mais influenciados pela
esperança e recompensas.
Bons oficiais nunca engajam em batalhas decisivas, a não ser quando a
oportunidade os induz, ou a necessidade os obriga.
É marca da perícia fazer o inimigo sofrer mais pela fome do que pela espada
(8:171 e 172).

Percebe-se nos exemplos acima dois aspectos peculiares do pensamento de Vegetius: o


primeiro é a busca da vitória, não necessariamente numa batalha decisiva, mas por meio da
manobra e do desgaste do inimigo com ataques à sua logística, ou abatendo o seu moral; o
segundo é a importância de se contar com tropas adestradas, disciplinadas e motivadas,
aspectos que seriam capazes de compensar até uma desvantagem numérica - “Valor é superior
a quantidade” (8:172). Clausewitz, no primeiro dos oito livros que compõem o Vom Kriege,
analisa profundamente este conceito.
O Livro IV foi muito consultado durante a Idade Média, pois nele Vegetius trata da
poliorcética, ou seja, das fortificações e como atacá-las. Fossos, trincheiras, muralhas, como
construí-las, as vantagens e desvantagens de cada tipo, seu emprego, e como sobrepujá-las é
explicado em detalhe. Vegetius descreve os diversos engenhos de sitio empregados pela
legião, como as ballistis, os onagris, os scorpionibus, torres de assalto e aríetes, entre outros.
Os métodos para atacar e destruir muralhas empregando, entre outras coisas, túneis também
são descritos. Há ainda a descrição de uma mistura incendiária composta de betume, enxofre,
e óleo que podia ser empregada em bombas incendiárias rudimentares.
Em seu último livro, Vegetius discorre sobre as forças navais que ele divide em
marítimas e fluviais, descrevendo a organização da esquadra romana e sua hierarquia. Os
cuidados a serem tomados na construção dos navios, desde a escolha de madeira, e seu corte,
até a formação das peças estruturais são abordados. Vegetius trata ainda da arte da navegação,
descrevendo os ventos, as marés e as tempestades, chegando mesmo a discutir como prevê-
las. A importância dos remadores e as armas navais também são abordadas. Vegetius termina
este seu último livro descrevendo os métodos e meios de combate empregados numa batalha
naval. Estes conceitos chegaram a influenciar Portugal no século XVI onde o monge Fernando
de Oliveira redige, em 1555, o Arte da Guerra do Mar, em grande parte inspirado em
Vegetius (2:503).
Em síntese, os aspectos centrais da obra de Vegetius seriam: a importância de se contar
com um exército de cidadãos altamente disciplinados, adestrados e motivados; e buscar a
vitória, sempre que possível, pela manobra ou desgaste do inimigo, e não necessariamente
engajando-o em batalhas decisivas. Sua obra chegou tarde demais para cumprir seu propósito,
qual seja, resgatar o poder militar romano. Na República todo romano para se tornar cidadão
antes deveria servir Roma nas legiões. No Império esta prática foi sendo lentamente
abandonada e, à época em que o De Re Militari foi escrito, o serviço das armas não tinha mais
o mesmo prestigio de antes, sendo relegado às classes inferiores ou a estrangeiros
mercenários. Assim, as tropas já não tinham mais o preparo e a disciplina que tornaram as
legiões invencíveis. Os soldados reclamavam do peso de suas couraças e capacetes, chegando
mesmo a receberem autorização para não usá-los (8:89). Em 476, ocorre o inevitável: a queda
do Império Romano do Ocidente, derrubado por bárbaros que, pouco antes, haviam lutado
como mercenários de Roma contra os hunos.

VEGETIUS E A GUERRA MEDIEVAL

Na introdução deste artigo citamos alguns personagens centrais da Idade Média, como
Carlos Magno e Ricardo “Coração de Leão”, e como estes prezavam os escritos de Vegetius.
Outro exemplo de seu prestígio é o fato de Eleanor, rainha de Eduardo I da Inglaterra, ter
comissionado uma tradução de Vegetius para seu marido na Cruzada de 1270 a 1272 (9:186).
Os registros de estudos sobre estratégia na Idade Média são muito raros, até porque a
estratégia, seguindo uma das máximas de Vegetius (8:174), era assunto secreto. Assim temos
Vegetius como a principal fonte para quase todos os documentos medievais, que são
compilações, traduções ou até mesmo plágios de Vegetius (2:157). Este é o caso das obras
atribuídas a um certo Modestus, cuja primeira edição data de 1471 e tem o título De disciplina
militari. O que se acreditava ser um autor clássico romano era na realidade um extrato
medieval da obra de Vegetius como revelou o humanista François de Maulde em 1580 (11).
A guerra na Idade Média, como quase todos os aspectos da vida medieval, era dominada
pela Igreja (4:5). A queda do Império Romano do Ocidente, em 476, e o surgimento do
feudalismo fracionou a autoridade política de uma forma que a guerra imperial praticada pelo
Império Bizantino não fazia sentido (3:171). Neste contexto, Santo Agostinho e seu livro A
Cidade de Deus, escrito em 410 para explicar o saque de Roma, passa a ser a principal
influência para a concepção medieval da guerra. Neste livro Santo Agostinho rejeita as idéias
triunfalistas do Império Bizantino e se recusa a identificar a civitas Dei, a comunidade
invisível dos salvos, e até mesmo a organização visível da Igreja, com o Império Romano ou
qualquer cidade terrena. A Guerra, como todos os outros males, seria uma punição pelo
pecado original, mas seria também um freio ao pecado, onde o justo prevaleceria sobre o
pecador graças à divina providência. Por trás de tudo estariam os misteriosos planos de Deus,
que determinavam a ascensão ou queda dos impérios, sendo presunçoso aquele que se achasse
capaz de compreendê-los. A visão agostiniana da guerra é extremamente pessimista, não
sendo atribuído à mesma nenhum aspecto positivo. Para Santo Agostinho uma guerra justa
seria permitida apenas por motivos caridosos. Isto foi interpretado como havendo a obrigação
de se fazer a guerra para resistir a qualquer imoralidade. Também não havia nos trabalhos de
Santo Agostinho nada que sugerisse que uma guerra justa não pudesse ser ofensiva, bastava
que ela tivesse motivos “puros”. A doutrina da guerra justa que daí surgiu pode ser sintetizada
como tendo que preencher três requisitos: ter uma causa justa, ter uma intenção justa e ser
declarada por um soberano, como estabeleceu São Tomás de Aquino na obra Summa
Theologiæ (3:173), escrita entre 1268 e 1272. Como causas justas estavam repelir ou vingar
injúrias e recuperar bens. O conceito de injúria era bastante flexível e sujeito a interpretações.
A idéia da guerra travada com intenção justa é a grande contribuição medieval à teoria da
guerra, prevalecia o princípio agostiniano de que a guerra deveria ser travada com um espírito
caridoso, sem ódio pelo inimigo. Esta postura levou a um jus in bello onde a imunidade dos
não combatentes era defendida. Esta é uma diferença notável em relação à guerra da
antiguidade onde povos derrotados eram exterminados ou escravizados. Há, no entanto, vários
episódios que demonstram que a imunidade dos não-combatentes era desrespeitada, como na
Guerra dos Cem Anos, na qual os chevauchées7 ingleses deixaram um rastro de morte e
destruição no interior da França, queimando vilas, fazendas, matando o gado, assassinando
camponeses entre outras violências, contra aqueles que, supostamente, estariam a salvo, se as
normas da cavalaria fossem respeitadas.
Vegetius escrevera sua obra baseada nas táticas e características das legiões romanas do
período republicano. Estas legiões tinham na disciplina e adestramento o segredo de sua
invencibilidade, e na infantaria pesada a base de sua força. Na Idade Média o fracionamento
do poder político e da autoridade no sistema feudal tornava proibitivo manter-se forças
permanentes e adestradas, e o núcleo da força dos exércitos medievais foi, até a batalha de
Agincourt, em 1415, a cavalaria pesada, composta por nobres. Havia, também, a infantaria
pesada, formada por nobres sem posses suficientes para terem cavalos de batalha, e a
infantaria leve, formada pela plebe, servos ou mercenários, que tinham, porém, o papel
secundário de apoiar a cavalaria, a quem cabia, efetivamente, combater. Os nobres se
exercitavam constantemente na arte da guerra e manejo das armas, havendo adestramento
militar para a plebe, como na Inglaterra do século XIII, onde todos os homens eram
regularmente adestrados no uso do arco e flecha. Ainda assim, o recrutamento era difícil e
esporádico, sendo, portanto, impossível qualquer estrutura organizada nos moldes do que
preconizava Vegetius. Mesmo quando o rei convocava os exércitos, cada nobre mantinha o
comando sobre aqueles que ele havia trazido consigo e, caso ocorressem desentendimentos
entre os comandantes, parcelas significativas de um exército podiam simplesmente abandonar
o campo de batalha e voltar para seus domínios.

7
Grupos montados que realizavam incursões no território inimigo para saquear e destruir (9:347)
Na guerra medieval, tropas mercenárias, ainda que freqüentemente empregadas, eram
encaradas, de uma forma geral, como sendo compostas por párias, miseráveis e criminosos,
pois ganhar a vida com a guerra era visto como uma atividade pecaminosa. A infantaria
pesada, formada por nobres de menores posses, e a infantaria leve, formada principalmente
pela plebe, eram consideradas como tendo apenas papéis secundários de apoio à cavalaria, a
quem cabia efetivamente o combate .
O fracionamento do poder político e da autoridade no sistema feudal tornava proibitivo
manter forças permanentes e adestradas aos moldes das legiões de Roma. Ainda que um
exército fosse convocado pelo Rei, cada nobre mantinha o comando sobre aqueles que ele
havia trazido consigo e, caso ocorressem desentendimentos, parcelas significativas de um
exército podiam abandonar o campo de batalha, ou passarem para o lado adversário.
A guerra medieval tinha, também, todo um significado econômico para aqueles que dela
participavam. Promessas de posse sobre terras conquistadas ou de saquear os tesouros das
cidades derrotadas eram, muitas vezes, as principais motivações que levavam nobres a apoiar
um rei em suas campanhas. Como parte do componente “econômico” da guerra medieval
havia o costume de se procurar capturar nobres inimigos, a fim de cobrar resgate pela sua
soltura. Cada nobre buscava no campo de batalha um refém adequado à sua posição social e
que lhe permitisse auferir um bom lucro. Qualquer tentativa de manobra organizada ficava
seriamente comprometida. Conseqüentemente, as batalhas medievais eram, de um modo
geral, um conjunto pouco organizado de combates individuais centrados nos cavaleiros (4:5).
Ainda assim as regulæ bellorum generales de Vegetius eram estudadas pelos generais
que, de uma forma geral, buscavam segui-las, até porque alguns reis, como Carlos Magno e
Alfonso X de Castela as tornaram obrigatórias para seus exércitos. O sucesso de Vegetius,
mesmo em uma era em que a guerra pouco se assemelhava ao modelo por ele preconizado, se
devia à crença de que nas regulæ bellorum generales residia o segredo da invencibilidade para
quem as compreendesse e interpretasse corretamente. Ou seja, Vegetius representava para os
comandantes militares medievais o que a pedra filosofal representava para os alquimistas.
O caráter místico da guerra justa agostiniana tornava-a um assunto dos nobres que a
praticavam seguindo as regras da cavalaria e os preceitos de Vegetius. A guerra era feita
segundo as regras do código da cavalaria, que constava de livros como o Livre des Faits
d’Armes et de Chevalerie, escrito em 1410 pela poetisa francesa Christine de Pisan8, e que
continha, também, uma versão simplificada dos preceitos de Vegetius (2:160).
8
Christine de Pisan (1365-1430) foi uma figura notável. Viúva de um secretário da corte de Carlos V da França,
ela tornou-se uma poetisa de renome numa época em que as mulheres eram, em sua maioria, analfabetas e
consideradas inferiores aos homens.
O Livro IV de Epitoma Rei Militaris foi muito empregado na Idade Média. Ainda que
no século XIII o surgimento do trebuchet9 tenha superado as antigas armas de arremesso
descritas por Vegetius, as técnicas de poliorcética usadas na Idade Média foram um legado
seu.
Ainda que não tenhamos encontrado em nenhuma das referências bibliográficas
consultadas nada relativo à influência de Vegetius sobre as ordens militares da Idade Média,
consideramos notável a semelhança entre as normas de adestramento e disciplina adotadas
pelos os Cavaleiros do Templo de Salomão e pelos Cavaleiros do Hospital de São João10 e os
preceitos de Vegetius.

VEGETIUS NA IDADE MODERNA

Passado o que Hervé Couteau-Begarie chamou de “eclipse medieval” (2:160), a


Renascença marcou profundas transformações no pensamento estratégico militar. A guerra
perdeu seu caráter místico e a infantaria, que desde a batalha de Agincourt, em 1415, vinha
substituindo a cavalaria como rainha das armas, retoma o papel de centro do poder dos
exércitos. Dois aspectos marcam o pensamento renascentista, o humanismo que, em oposição
ao teocentrismo medieval, coloca o ser humano como centro das questões, e o retorno dos
valores clássicos com Platão e Aristóteles assumindo o lugar antes ocupado por São Tomás de
Aquino.
O principal expoente do pensamento militar renascentista foi certamente Nicolau
Maquiavel (1469-1527). Rompendo completamente com as teorias medievais de guerra justa,
Maquiavel coloca a guerra como instrumento político à serviço da defesa dos interesses do
Estado (7:20). Na sua obra Dell’arte della Guerra, escrita em 1520, Maquiavel busca o
retorno aos ideais militares da Roma republicana tendo como centro os seguintes temas: a
necessidade de uma milícia própria em substituição aos exércitos mercenários que
dominavam o cenário militar à época; a vergonhosa situação militar da Itália; a formação
técnica e o comando do exército; a seleção e adestramento dos soldados; a revalorização da
infantaria; as normas e procedimentos da guerra; os dispositivos a serem empregados pelo
exército em batalha; entre outros (1). Fica evidente a semelhança entre Maquiavel e Vegetius.

9
Catapulta que emprega um grande contrapeso, diferentemente das catapultas romanas que empregavam cordas
ou peles de animais torcidas para armazenar a energia necessária para o arremesso, tinham um alcance muito
menor e lançavam objetos muito menores.
10
Também conhecidos, respectivamente, como cavaleiros Templários e cavaleiros Hospitalares.
Dell’arte della Guerra foi escrita num estilo muito diferente do De Re Militari, mas é
no diálogo imaginário entre Fabrizio Colonna e Cosimo Rucellai11 que Maquiavel descreve,
na sua obra, os conceitos de Vegetius que são discutidos e atualizados para a realidade
renascentista (1). Maquiavel torna a ressaltar a necessidade e a importância da disciplina e do
adestramento dos exércitos em outras obras suas como Il Principe e no Discorso
dell’Ordinare lo Stato di Firenze alle Armi (5:XXIV).
A influência de Vegetius sobre Maquiavel, no entanto, vai muito além dos aspectos
técnicos da guerra. Vegetius abriu os olhos de Maquiavel para o papel da guerra moderna. Na
Idade Média a guerra era conduzida por uma classe particular da sociedade e fora moldada
segundo seus valores e código de honra. No mundo antigo a guerra visava a defesa do Estado,
não sendo, portanto, tarefa de uma classe específica, mas sim de toda a sociedade. Do esforço
de Vegetius em restaurar a glória de Roma pela recuperação de seu poderia militar, Maquiavel
compreendeu que a vida de um Estado depende da excelência de seu exército e que suas
organizações políticas devem ser organizadas de forma a criar condições favoráveis ao
funcionamento da organização militar. Esta conclusão de Maquiavel é a tradução da máxima
elaborada por Vegetius no prefácio do Livro III de sua obra, cuja forma abreviada é “si vis
pacem para bellum” e que já comentamos na introdução deste trabalho. Podemos considerar,
portanto, que Vegetius é um dos alicerces do pensamento estratégico militar de Maquiavel.
As idéias de Maquiavel, como as de Vegetius, não deram frutos de imediato. Em 1512,
sua milícia Florentina foi derrotada em batalha pelas tropas profissionais espanholas aliadas
do Papa. Tropas mercenárias ou profissionais dominavam o cenário militar no início do
século. Ainda assim, as idéias de Maquiavel representam o novo patamar a partir do qual se
vai construir a guerra moderna.
É partindo das idéias de Maquiavel e do conceito de Vegetius, de soldados-cidadãos
sobrepujando inimigos mais numerosos, mas menos disciplinados, que vão surgir nos Países
Baixos quando forças muito eficientes comandadas pelos príncipes da casa de Orange-Nassau,
dentre os quais destacamos Maurício de Nassau12. O fundamento para a organização destas
forças deveu-se, em grande parte, ao filósofo holandês Justus Lipsius (7:35), admirador de
Maquiavel e estudioso de Vegetius. Seguindo suas idéias, a Holanda organizou um exército
extremamente adestrado, disciplinado e eficaz, garantindo a sua independência da Espanha. O
exército de Maurício de Nassau ainda era formado por soldados mercenários, mas não era

11
Os personagens da obra de Maquiavel eram pessoas reais, contemporâneas do autor e que gozavam de grande
prestígio. Expondo suas idéias num diálogo imaginário entre pessoas reais, Maquiavel toma-lhes emprestada a
credibilidade e o prestígio (1).
12
Trata-se do mesmo Maurício de Nassau do governou Pernambuco durante a ocupação holandesa.
como os exércitos mercenários do passado onde o grosso das tropas era de pessoas à margem
da sociedade, criminosos, assassinos e párias. Seu exército era altamente adestrado e
disciplinado e totalmente submisso à autoridade política da República Holandesa. Esta forma
de fazer a guerra ficou conhecida como “Escola Holandesa”.
A Escola Holandesa teve grande influência sobre a organização militar das demais
potências européias. Um de seus admiradores foi o Rei Gustavo Adolfo, da Suécia (1594-
1632). Gustavo Adolfo levou o modelo holandês um passo adiante, instituindo o recrutamento
nacional para o serviço militar. As tropas nacionais eram, no entanto, empregadas na defesa
nacional e tropas mercenárias eram usadas em suas campanhas estrangeiras. Com uma base
populacional de cerca de um milhão e meio de habitantes, a Suécia não podia prescindir dos
mercenários para ter um exército suficientemente numeroso. Porém, Gustavo Adolfo foi o
primeiro a ter um exército regular nacional. Quando Gustavo Adolfo morreu, em 1632, o
exército sueco contava com 120.000 homens, dos quais um décimo era de suecos.
Outro admirador da Escola Holandesa e leitor de Vegetius foi Raimondo Montecucculi
(1609-1680), marechal-de-campo do Exército austríaco, dos Habsburgos. Tendo lutado contra
os suecos e contra os turcos ele incorporou-lhes os métodos de guerrear criando o que se
chamou “Escola Imperial”. Montecuculli, além de ser considerado um dos fundadores do
exército regular dos Habsburgos, é também considerado o primeiro estrategista militar
moderno (2:171). Seus estudos a respeito da guerra não se limitam a aspectos táticos e
materiais, ele desenvolve um estudo metódico da guerra classificando-a em civil ou
estrangeira, ofensiva ou defensiva e marítima ou terrestre, abordando aspectos morais,
psicológicos, sociais e econômicos. Seguindo a prática inaugurada por Vegetius,
Montecucculi estabelece suas máximas da guerra e afirma:

Tentei neste trabalho conciso açambarcar as vastas áreas de estudo da única


ciência vital ao monarca, e eu o fiz somente para descobrir as mesmas regras
básicas nas quais toda ciência se baseia [...] e, tendo considerado toda a
história do mundo, me atrevo dizer que não encontrei um único
aproveitamento militar que não coubesse nestas regras (7:63).

Em seus estudos Montecucculi enfatiza, na nossa opinião, a guerra de manobra, ao


melhor estilo das máximas de Vegetius, evitando a batalha decisiva a não ser quando
absolutamente necessário ou oportuno. Suas obras como Sulle Battaglie, Tratato della
Guerra, Aforismi dell’Arte Bellica e Della Guerra col Turco in Unggheria, publicadas
postumamente, foram muito influentes sobre o pensamento militar ocidental.
O passo seguinte na formação dos exércitos modernos é dado na França. Seguindo o
exemplo Sueco e coerentemente com o projeto centralizador iniciado por Richelieu e
Mazarino, a França reorganiza seus exércitos criando uma hierarquia e critérios de promoção,
menos ligados aos privilégios e mais ligado à capacidade e ao preparo. É instituído o
recrutamento regular, complementado por milícias provinciais, só incorporadas em caso de
guerra e que permitem a mobilização de um exército numeroso sem que seja necessário
apelar-se para a contratação de mercenários (16:23). A administração e organização dos
exércitos são também aperfeiçoadas, surgindo, por criação de Louvois13, o Estado-Maior.
Dentre os generais franceses deste período destacamos o Marechal Maurice de Saxe14
(1696-1750). Estudioso de Vegetius, Maurice de Saxe adestrava incansavelmente suas tropas
e encontrou em Vegetius um aspecto que até então não havia recebido atenção: a marcha
cadenciada. No Livro I do De Re Militari Vegetius descreve os exercícios mensais de marcha
das legiões romanas. Nestes exercícios os legionários, completamente equipados, deveriam
marchar vinte milhas em doze horas, mantendo a formatura e com um passo cadenciado
(8:95). Maurice de Saxe resgatou esta prática que, desde os romanos, havia sido abandonada.
Com isso ele transformou suas tropas de um bando desorganizado em um exército
disciplinado e que podia se deslocar de modo organizado, com maior rapidez, possibilitando
um grau de mobilidade que lhe conferia grande vantagem sobre seus adversários, além de
garantir que suas formações não seriam desfeitas em combate (8:203). Para cadenciar o passo
e dar ânimo aos seus combatentes ele redescobre a música marcial. A esse respeito ele faz o
seguinte comentário: - “É absurdo imaginar que os sons aguerridos não tinham outro
propósito que confundir uns aos outros” (8:202). Maurice de Saxe também reorganizou suas
tropas segundo os preceitos de Vegetius, subdividindo seu exército em unidades menores,
semelhantes às legiões que daria origem, mais tarde, à hodierna organização por divisões
(8:185). Até então, os exércitos eram divididos em três ou quatro alas, independentemente do
seu tamanho, o que dificultava muito a manobra. A nova organização estabelecida por Saxe
era o retorno do emprego da legião romana contra as falanges gregas em que se haviam
tornado os exércitos de então15. A este respeito Saxe afirma que concorda com Vegetius
quando este alega que a legião teria sido uma criação divina (8:210). Em sua obra Mês

13
François-Michel Le Tellier, o marquês de Louvois (1641 – 1691) foi Secretário da Guerra do rei Luis XIV.
14
Hermann-Maurice, Conde de Saxe, foi um personagem singular. Grande general, mercenário e aventureiro era
também amigo de Madame Pompadour, amante do rei Luis XIV (8:181). Como sinal de gratidão pelos seus
feitos, recebeu do rei Luis XV o castelo de Chambord, onde ele tinha seu próprio regimento e um grande pátio
para exercícios de manobras militares.
15
As falanges gregas, enormes formações muito poderosas, mas com pouca capacidade de manobra, foram
derrotadas pelas legiões romanas, compostas de formações menores que lhe davam maior capacidade de manobra
(3:112).
Rêveries, Maurice de Saxe aprofunda, expande e atualiza os conceitos de Vegetius e as
práticas de seus predecessores como Gustavo Adolfo e Montecucculi, acrescentando mais um
tijolo à construção do pensamento estratégico militar ocidental.
Outro notável general da Idade Moderna, estudioso das idéias de Vegetius (2:159) e que
contribuiu significativamente para a evolução do pensamento estratégico militar ocidental foi
Frederico, O Grande (1712-1786), Rei da Prússia. Durante seu reinado o exército prussiano é
reestruturado, o adestramento é incrementado, é estabelecido um sistema de recrutamento
regional, a disciplina é rígida, a moral elevada. A profissão das armas deixa de ser encarada
como degradante ou ocupação para a escória da sociedade16, pelo contrário, seu exército é o
orgulho da Prússia, sendo uma honra nele servir, buscava-se um exército patriótico de
cidadãos (4:55). É invenção sua o modelo da mobilização moderna (16:35). Suas obras como:
Príncipes géneraux de la guerre, Élements de castramétrie et de tactique e L’art de la
guerre17, ainda que não contenham referência direta a Vegetius, representam, na nossa
opinião, o resgate e atualização dos seus conceitos. Com Frederico o modelo do exército
dinástico atingiria seu zênite, e é preparado o terreno para o surgimento dos exércitos
nacionais na Revolução Francesa.
No final da Idade Moderna os exércitos já se assemelhavam bastante ao modelo
imaginado por Vegetius quando escreveu sua obra. A infantaria havia recuperado seu papel
central nas batalhas e os exércitos tinham grande capacidade de manobra e mobilidade.
Faltava, no entanto, um aspecto para que o modelo previsto no De Re Militari fosse
completamente aplicável: os exércitos deveriam ser compostos por cidadãos que lutavam pelo
bem de seu Estado. Os exércitos deste período são dinásticos e lutam para atender aos
interesses de seus soberanos que, em sua maioria, eram reis absolutistas. Mesmo grandes
líderes como Frederico, O Grande, eram na realidade déspotas. Ainda que o recrutamento
nacional tivesse se tornado uma prática generalizada, só com as transformações políticas que
se seguiram é que os exércitos assumiram o caráter de exércitos nacionais.

VEGETIUS E A FORMAÇÃO DOS EXÉRCITOS NACIONAIS

Profundas transformações políticas ocorreram no final do século XVIII. A teoria da


origem divina do direito dos soberanos foi desafiada por idéias revolucionárias que
16
Alguns cafés e lugares públicos exibiam cartazes onde se lia: Proibida a entrada de cães, lacaios, prostitutas e
soldados.
17
L’art de la Guerre é um tratado militar didático escrito sob a forma de poesia!
consideraram a vontade do povo como sede do Poder. Estas idéias influenciaram muitos
eventos significativos como a Independência dos Estados Unidos da América e a Revolução
Francesa, e influenciaram, também, a guerra. Os exércitos, que até então lutavam em nome
dos seus reis, passaram a lutar em nome de suas Nações. Surgiam os exércitos nacionais e a
guerra, como na Antiguidade, passou a envolver a totalidade das sociedades.
Na França, a Revolução de 1789 inicialmente cria um sério problema para as Forças
Armadas. Boa parte da oficialidade emigra, prejudicando a instrução dos novos conscritos que
são recrutados em grandes números para fazer frente aos inimigos da República (16:43). Com
isso, as táticas e estratégias dos exércitos republicanos são simples, empregando-se formações
em linha com grandes grupos de atiradores, como era típico no século XVIII. Porém, este
exército tinha uma característica peculiar: seus soldados eram cidadãos que lutavam pela sua
Pátria, tratava-se, na nossa opinião, exatamente do tipo de tropa a quem os preceitos de
Vegetius haviam sido compilados.
A falta de comandantes resultante da fuga em massa da nobreza para o estrangeiro, uma
vez que a alta oficialidade era, em geral, formada por nobres, criou, num primeiro momento,
um quadro de extrema confusão nas tropas francesas. Tal situação levou o Comitê de
Salvação Pública, de 1793, a tomar a direção geral da guerra (16:44). Sob a Direção de Carnot
o exército foi reorganizado e a falta de generais acabou abrindo oportunidade para o
surgimento de grandes comandantes militares revolucionários, como Napoleão Bonaparte.
Efetivamente não surge uma escola napoleônica. Bonaparte não descobre grandes
princípios da estratégia ou da tática (16:47), mas extrapola e expande as práticas de seus
antecessores moldando a guerra contemporânea. As batalhas não têm mais finalidade
exclusivamente militar, mas também, e muitas vezes, principalmente, política (16:48).
Napoleão desenvolve e aperfeiçoa o Estado-Maior, a manobra, a logística e a arte das
marchas. Seu planejamento, e a manobra decorrente se norteiam pela informação e busca
anular todas as possibilidades do inimigo. Seu gênio consistia em combinar todos os aspectos
do combate, o que lhe conferia, simultaneamente, a habilidade de conjugar movimentos, a
capacidade de sofrer um embate sem o sacrifício da concentração de forças, e perceber o
momento da decisão de modo a explorá-lo.
Na nossa opinião, em Napoleão vemos o pleno resgate dos preceitos clássicos
compilados por Vegetius em sua obra. O gênio de Bonaparte permitiu reunir as lições de
Vegetius que Maquiavel, a Escola Holandesa, Gustavo Adolfo, Montecucculi, Maurício de
Saxe e Frederico, o Grande, vinham resgatando, contribuindo para dar à guerra a forma que
serviu de ponto de partida para a elaboração do pensamento estratégico militar ocidental atual.
VEGETIUS E OS “PAIS FUNDADORES”

O ambiente político-militar posterior à derrota de Napoleão exigiu novas posturas


intelectuais que incorporassem toda a dimensão que a guerra havia assumido (10:54). Estas
posturas assumiram a forma de duas vertentes: a científica e a histórica. A científica,
representada pelo Vom Kriege de Karl Philip Gottlieb von Clausewitz (1780-1831) e a
histórica, pelas obras de Antoine-Henri Jomini (1779-1869). Estes dois pensadores, também
chamados de “pais fundadores” (2:188) por Hervé Coutau-Bégarie, contribuíram para moldar,
respectivamente, a teoria e a prática da guerra tal qual a conhecemos hoje, ainda que o
pensamento dos dois seja contrastante em diversos aspectos como, por exemplo, a forma de
encarar a tática e a estratégia. Clausewitz percebia a tática e a estratégia como partes de um
continuum cuja ligação é o combate, Jomini as via como estanques e sem outro
relacionamento que não o de serem partes da arte da guerra.
Jomini, ainda que atualmente não tenha a mesma popularidade que Clausewitz,
produziu uma Escola que acabou por se confundir com a raiz identitária das Forças Armadas
nacionais e profissionais do século XIX (10:54) e com o linguajar e percepção do mundo
militar dos séculos XIX e XX, que não são mais que a popularização ou distorções de
concepções jominianas. Saltaram-nos aos olhos as semelhanças entre Vegetius e Jomini.
Ambos tinham intenções tradicionalistas e restauradoras e usaram uma abordagem
popularizante e reducionista (10:56 e 8:71). Jomini estudou os principais textos militares do
século XVIII, dentre os quais constava, muito provavelmente, Vegetius, mas certamente
aqueles que ele influenciou, como já comentado no decorrer deste artigo. Empregando um
método analítico que, na nossa opinião, assemelha-se muito ao empregado por Vegetius,
Jomini, mantendo-se fiel aos escritos e práticas militares do final do século XVIII, analisa os
feitos militares bem-sucedidos de Frederico, o Grande e Napoleão e os utiliza para
exemplificar um sistema teórico principal de validade universal para a condução da guerra. A
vitória seria possível sempre que as ações fossem calcadas nos princípios universais da guerra,
o que, na nossa percepção, representa a continuidade da prática iniciada por Vegetius com
suas regulæ bellorum generales. Sua abordagem tinha a vantagem de não reconhecer em
Napoleão qualquer ruptura com o que houvera antes e, conseqüentemente, atender os anseios
de estabilidade de um mundo que se transformava rapidamente. Jomini oferecia no seu Précis
de l’art de la guerre, um processo taxonômico e classificatório que levava a um conjunto de
preceitos para a obtenção da vitória (10:58). Nos pareceram notáveis os pontos de semelhança
entre os ensinamentos contidos no De Re Militari de Vegetius e as condições que Jomini
enumera para o exército perfeito, entre os quais destacamos: um bom sistema de
recrutamento; uma boa organização; bom adestramento de oficiais e homens na disciplina
física dos exercícios militares, nos serviços internos, bem como nos de campanha; disciplina
estrita e espírito de subordinação e responsabilidade, nascidos da convicção; um sistema de
recompensas adequado; e engenharia e artilharia bem instruídas18 (10:65). Uma crítica ao
trabalho de Jomini seria o caráter abrangente e vago de seus requisitos, pois poderíamos
indagar o que seria um bom sistema de recrutamento. No entanto, nos parece muito
interessante observar que as respostas de como devem ser preenchidos os requisitos
estabelecidos por Jomini podem ser encontradas em Vegetius. Considerando que Vegetius, ao
final do século XIX era bastante conhecido, como já comentamos neste artigo, nos parece
bastante razoável a conclusão de que Vegetius seria, portanto, complementar a Jomini. É
nosso entendimento que desta complementaridade, e do processo de resgate e incorporação
dos preceitos compilados por Vegetius, que se formou a base do pensamento estratégico
militar. É digno de nota o fato de que entre os pensadores militares influenciados diretamente
por Jomini podemos incluir Denis Hart Mahan, pai de Alfred Tayer Mahan, cuja obra The
influence of sea power upon history é perfeitamente harmônica com o pensamento jominiano
(10:103) e influencia até hoje o pensamento estratégico naval (10:134).
Clausewitz, seguindo uma abordagem dialética, elaborou um modelo ideal da guerra e
depois o comparou com a realidade, buscando uma teoria verdadeira, despida de tudo que
fosse circunstancial. Sua obra era densa e profunda, daí a dificuldade de sua compreensão e
adoção pelos pensadores militares. O fato de Clausewitz ter falecido antes de completar sua
obra também prejudicou sua compreensão, pois o próprio Clausewitz a considerava
incompleta e carente de revisão. Vale observar, no entanto, que os exemplos históricos e a
realidade militar que Clausewitz utiliza no seu método dialético para estudar a guerra foram
moldados, como já comentamos antes neste artigo, pela lenta reincorporação e resgate dos
preceitos contidos no De Re Militari de Vegetius. Assim a teoria da guerra esmiuçada por
Clausewitz fora elaborada com relação à guerra na forma que ela havia assumido a partir dos
alicerces lançados por Plubius Flavius Vegetius Renatus.
Jomini e Clausewitz formam a base do pensamento estratégico militar ocidental, tendo
dado, respectivamente, forma e essência à guerra tal qual hoje a visualisamos (2).
Percebemos, portanto, em Jomini e Clausewitz a conclusão da edificação iniciada por

18
Entendemos as armas de arremesso romanas como sendo a artilharia da guerra na antiguidade.
Vegetius no século IV. Tratou-se de um longo processo, algumas vezes interrompido (como
na Idade Média) onde cada geração foi resgatando e incorporando os preceitos clássicos
compilados pelo sábio romano até que toda a plenitude da guerra fosse restaurada e
compreendida. Paradoxalmente a conclusão deste processo faz com que os preceitos de
Vegetius deixem de ser um diferencial, que indicava a quem os compreendesse um caminho
para a vitória, para tornarem-se características basilares do pensamento estratégico militar.
Com isso as palavras do sábio romano passaram a soar óbvias e o Epitoma Rei Militaris deixa
de ser objeto da atenção dos estudiosos de estratégia.

VEGETIUIS, SUN TZU E OS PRINCÍPIOS DA GUERRA

Como expusemos na introdução, Vegetius é muito pouco conhecido nos dias de hoje,
mesmo entre militares e estudiosos da estratégia. Mesmo tendo sido o alicerce sobre qual o
pensamento estratégico militar ocidental foi construído, Vegetius foi esquecido enquanto
outro mestre do passado, Sun Tzu, alicerce do pensamento estratégico militar do oriente, é
objeto de interesse destes mesmos militares e estudiosos da estratégia. Pelo que se tem notícia,
os escrito de Sun Tzu só teriam chegado ao ocidente em 1772 (6:16).
Ainda que Sun Tzu tenha antecedido Vegetius em aproximadamente mil anos19, não
pudemos perceber nenhum indício de que Vegetius tenha sido influenciado por Sun Tzu. O
fato de que os escritos de Sun Tzu só chegaram ao Japão, vizinho da China, em 760 d.C.
(6:16) corroboram para que aceitemos esta suposição como sendo correta. Isto torna notável a
constatação de que a essência dos escritos destes dois mestres da estratégia seja a mesma. Os
estilos empregados pelos dois autores e seus contextos culturais diferentes fazem com que as
obras sejam bastante diferentes na forma e nos detalhes, mas as idéias centrais são as mesmas.
Para reforçar esta percepção relacionaremos alguns trechos das obras dos dois mestres onde as
semelhanças são excepcionais:
SUN TZU VEGETIUS

19
A Arte da Guerra de Sun Tzu teria sido escrito entre 403 e 221 a..C. e De Re Militari, de Vegetius, entre 375 e
392 d. C.
“A guerra é um assunto de vital importância para “Portanto, quem deseja a paz, prepara a guerra;
o Estado; a província da vida ou morte; a estrada quem aspira a vitória, adestra seus soldados
para a sobrevivência ou a ruína. É imperativo que diligentemente; quem deseja determinar o
ela seja profundamente estudada” (Livro I). resultado dos eventos, luta se valendo da arte, e
não da sorte. Ninguém provoca, ninguém atreve
ofender, quem percebe como sendo superior no
combate” (Livro III, Prefácio).
“Portanto, examine-a em termos dos cinco fatores “Dificilmente se derrota um general capaz de
fundamentais e faça comparações dos sete avaliar verdadeiramente as suas tropas e as do
elementos mencionados mais adiante. Assim você inimigo”.
poderá avaliar seus pontos essenciais. O primeiro “Poucos homens nascem corajosos; muitos podem
desses fatores é a influência moral; o segundo, as tornar-se corajosos pelo esforço e pela força da
condições climáticas; o terceiro, o terreno; o disciplina”.
quarto, o comando; e o quinto a doutrina. (livro “Um exército é fortalecido pelo trabalho e
I)”. enervado pela inércia”.
“Portanto, eu digo: ‘Conheça o inimigo e “Não se deve levar para o combate tropas que não
conheça a si mesmo; em cem batalhas, você estejam convencidas da vitória”.
jamais correrá perigo. Quando você é ignorante “A natureza do terreno freqüentemente tem
quanto ao inimigo mas conhece a si mesmo, suas maiores conseqüências que a coragem”.
chances de vencer ou perder são iguais. Se “Bons oficiais nunca engajam em batalhas
ignorante tanto quanto ao inimigo como quanto a decisivas, a não ser quando a oportunidade os
si mesmo, não há dúvida de que correrá perigo em induz, ou a necessidade os obriga”. (Livro III,
todas as batalhas”. (Livro III) Regulæ Bellorum Generales)
“Porque obter cem vitórias em cem batalhas não é “É preferível vencer o inimigo pela fome,
o máximo de habilidade. Subjugar o inimigo sem surpresa ou terror do que em batalhas decisivas,
luta é o máximo de habilidade”. pois neste caso a sorte pode ter uma participação
“Assim, os peritos em guerras subjugam o maior que o valor”. (Livro III, Regulæ Bellorum
exército do inimigo sem combater. Capturam as Generales)
cidades sem tomá-las de assalto e derrubam o
estado sem operações prolongadas”. (Livro III)
“Aquele que souber quando pode lutar e quando “Bons oficiais nunca engajam em batalhas
não pode, será vitorioso” (Livro III) decisivas, a não ser quando a oportunidade os
“Nada é mais difícil do que a arte da manobra. O induz, ou a necessidade os obriga”. (Livro III,
que manobra tem de difícil é fazer da rota mais Regulæ Bellorum Generales)
tortuosa e mais direta e transformar o infortúnio
em vantagem”. (Livro VII)
As semelhanças e paralelos nos ensinamentos dos dois mestres não se resumem aos
pontos mostrados acima, mas a muitos outros. Abstraindo-se aspectos culturais e de estilo os
conceitos das duas obras guardam um paralelo notável. Para Raimondo Montecucculi,
Frederico, o Grande, e Antoine-Henri Jomini, isto não é surpresa alguma, pois eles
perceberam que a guerra é calcada num conjunto universal de princípios, sejam eles chamados
de regula bellorum generales, máximas da guerra, príncipes géneraux de la guerra, princípios
universais da guerra, ou, na terminologia hodierna, princípios da guerra. Observando a notável
semelhança entre o mestre da estratégia militar ocidental, Vegetius, e o mestre da estratégia
militar oriental, Sun Tzu, somos inclinados a concordar com esta percepção.

CONCLUSÃO

Ao longo deste artigo procuramos verificar qual foi a influência de Vegetius sobre o
pensamento estratégico militar. Para tal comentamos que Vegetius teria sido um alto
funcionário romano do século IV cujo nome, provavelmente, era Plubius Flavius Vegetius
Renatus, que escreveu De Re Militari na tentativa de resgatar a glória militar de Roma. Nesta
obra Vegetius descreve a organização, treinamento, equipamentos, técnicas e procedimentos
das legiões de Roma, além de relacionar uma série de máximas da guerra. Os preceitos
contidos na obra de Vegetius foram escritos para um exército de soldados-cidadãos motivados
pelo amor à pátria e cuja base de poder residia na infantaria pesada.
Na Idade Média, ainda que Vegetius tenha sido a referência para quase todos os escritos
militares, seus preceitos não podiam ser plenamente empregados uma vez que a base dos
exércitos era a cavalaria pesada e as batalhas eram, na realidade, um conjunto de combates
individuais, não havendo espaço para as manobras preconizadas por Vegetius. Ainda assim
seus livros foram bastante empregados, especialmente o que tratava da poliorcética.
Com o Renascimento e a volta aos valores clássicos, Maquiavel retoma o que ensinava
Vegetius quanto à necessidade de se contar com um exército de cidadãos e não depender de
mercenários. A infantaria retoma seu lugar de rainha das armas e os preceitos de Vegetius
passam a ser gradualmente resgatados e reincorporados à prática militar. Processo que se
acelera nos séculos XVIII e XIX com generais como: Maurício de Nassau, Gustavo-Adolfo,
da Suécia, Raimondo Montecucculi, Maurice de Saxe, Frederico II, da Prússia e Napoleão
Bonaparte. A este último coube o gênio de combinar e aplicar os conhecimentos de seus
antecessores, dando à guerra sua plena dimensão.
Partindo da guerra tal qual Napoleão a moldara, Henri-Antoine Jomini e Karl Von
Clausewitz escreveram suas obras que representam o nascimento do pensamento estratégico
militar moderno. A guerra passou então a ter a prática baseada em Jomini e a essência em
Clausewitz. O ponto de partida do trabalho de ambos era, no entanto, na nossa opinião, a
conclusão de um processo de resgate e reincorporação dos preceitos compilados por Vegetius
a, aproximadamente, mil e quinhentos anos.
Observando os conceitos contidos no De Re Militari e no A Arte da Guerra de Sun Tzu,
percebemos que a essência dos ensinamentos destes dois mestres é a mesma, o que corrobora
a noção da existência de princípios de guerra de validade universal.
Concluímos, portanto que a importância de Vegetius para o pensamento estratégico
militar é a de representar um dos alicerces sobre o qual este pensamento foi construído. Sua
pouca notoriedade nos dias de hoje se deve, na nossa percepção, ao fato de que seus preceitos
nos parecem óbvios e já teriam sido plenamente incorporados à prática militar.

BIBLIOGRAFIA

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