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CRÔNICAS & ENSAIOS
GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA
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Esse livro faz parte do acervo de publicações do Psiquiatra e Psicólogo


Galeno Alvarenga. Disponibilizamos também a versão impressa, que
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Tags: Comportamento / Condutas, Crenças antigas / Mitos / Superstições,
Doenças Mentais (transtornos), Drogas / Medicamentos / Remédios, Educação e
Conhecimento, Emoções Sentimentos Controle, Estresses Problemas e Adversida-
des, Família e Casamento, Festas populares e Lazeres, Informação Linguagem e
comunicação, Livros Online Grátis, Livros Psicologia, Livros Psiquiatria, Pintura
dos esquizofrênicos, Política: Políticos e Corrupção, Problemas Familiares, Socie-
dade: Valores e Cultura, Uso de Drogas (Consumo)

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Índice
Família, Casamento, Educação
7 Prelúdio para um Casamento Morto
10 A Difícil Arte do Casamento
14 Os Descasados
19 Incesto Emocional
22 Separação e Perícia: Advertências
25 A Última Lembrança
Sociedade: Valores e Cultura
28 Desespero do Executivo J.S.
33 As Mulheres: O Silêncio das Inocentes
45 Duas Classes: Cultos e Incultos
47 As Constituições que Passei na Vida
53 A Multidão Solitária
56 O que Desejam as Pessoas?
58 Dinheiro, Nossa Atual Devoção
61 Senhores do Poder
64 Os Narcisistas Modernos
66 Os Novos Deuses
Informação e Linguagem
69 “Gays”, Loucos, Ateus e Velhos
71 Televisão e Burrice
74 A Verdade de Cada Um
77 Transtorno Médico-Psiquiátrico ou Ficção?
86 A testemunha do Ponto de Vista Psiquiátrico
90 Quando as Palavras Mentem
92 A Mensagem
95 Videntes: A Prostituição das Palavras
100 O Poder do Boato
Comportamento
104 O Dilema do Gordo: Comer ou Não Comer?
108 Diga NÃO sem se sentir Culpado
112 A Prisão Domiciliar nas Grandes Cidades
117 Benditas sejam as Queixas
121 O Terapeuta amador
124 A Liberdade dos Jovens
129 Bichos ou Seres Humanos?

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131 Guerra, Heróis e Inocência
134 Homem: Animal Contraditório
139 Como Controlar os Acontecimentos
Crendices
143 Computador e Ferradura
148 Afirmações Duvidosas
152 A Loucura: Fabricação da Normalidade
157 AIDS: O Pânico está Solto
159 Fé: Um Poderoso Medicamento
163 A Santa que Fala Português
Doenças e Doentes
167 Câncer: O Paciente, a Família e o Médico
174 Obsessivos e Compulsivos
178 A Triste História dos Deprimidos
182 Tome seu Tranquilizante e Viva Feliz
184 Sono, Insônia E Pílulas
190 O Casamento do Neurótico
193 PEDÓFILO: O Monstro de Duas Faces
195 Suicídio pela Provocação de seu Assassinato
200 Médico X Cliente
203 Confissões de uma Médica
206 A Propósito de uma Gripe
211 Duas vertentes
214 Placebo, a Pílula Dourada
Festas populares; Lazeres
219 O Natal de Jésus
221 Por um Natal Diferente
224 No Embalo das Últimas Férias
229 A Boa Terapia do Carnaval
Personalidade e Neurose
235 Disque 145 para amar
238 Diante de uma Provocação
241 Os Agitados e os Sossegados
243 Solitários mas Não Isolados
246 O Chantagista Emocional
252 O Vasto Mundo das Drogas
Artistas e Arte
257 O Amor nas Canções Populares
265 A Pintura dos Esquizofrênicos

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PARA OS LOUCOS E OS NÃO LOUCOS DESSE MUNDO

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Família, Casamento, Educação

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Prelúdio para um Casamento
Morto
Todos nós já convivemos com casais que estão no último round de uma
luta de muitos assaltos, na busca de uma separação. O que ou­vimos são
quase sempre as mesmas histórias, semelhantes a várias ou­tras, ou seja,
repletas de acusações mútuas, com vários lances teatrais e quase sempre
enfadonhas. Nunca ouvimos do cônjuge nosso amigo um relato onde ele
se diz culpado, pois o errado é sempre o outro.

As brigas do casamento já não são mais como antigamente, quan­do


poucas separações ocorridas eram devidas às “traições” diversas ou ao
abandono do lar, geralmente por parte do homem.

Hoje elas se dão, em grande parte, pela disputa do poder. Luta-se pelo
direito de dar ordens. Antigamente, o poder, quando exercido pelas
mulheres, o era às escondidas, pois aceitava-se como normal os homens
mandarem.

O prelúdio da separação é caracterizado por discussões contínu­as, algu-


mas vezes acompanhadas de agressões físicas. Os temas deba­tidos, que
na verdade servem de “aperitivos” para a entrada das agres­sões pessoais,
são vários: o horário de se chegar a casa, a demora para se aprontar, o
sabor ruim da comida. As diversas disputas revelam os valores anta-
gônicos do casal, como as queixas quanto à escassez ou ao excesso das
relações sexuais, a saída ou não de casa para fazer visitas ou passeios.

Várias condutas dos cônjuges servem para precipitar ressenti­mentos


como: o marido fica vendo o jornal na TV, enquanto a esposa deseja
conversar, a mulher quer a casa bem arranjada e o marido a suja e nem
liga, um deseja ficar abraçado ao outro e este, que detesta, sente-se como
estivesse assentado em espinhos.

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Também os diversos projetos familiares tendem a promover brigas:
quando e onde ir nas próximas férias, onde passar os fins de semana,
como educar os filhos ou os netos, qual a melhor hora de se levantar ou
de se deitar, quem fará as compras.

Nos momentos finais de um casamento, tudo serve para desper­tar anti-


patias, discussões e despertar antigas irritações transitoriamen­te ador-
mecidas. Essas últimas surgem por motivos fúteis, tais como o modo
de andar, mastigar, ir ao banheiro, dormir, roncar, dirigir, as­sentar-se e
tossir, do outro cônjuge. E como elas ficam insuportáveis. Tudo mudou.
Antes, no período do namoro e paixão, as preferências de cada um eram
admiradas e encantadoras. Agora, no tempo das disputas, ela passam a
ser ridículas como gostar de assobiar, soprar o café para esfriá-lo, fazer
ginástica, tomar cerveja, ouvir música caipira, andar de ônibus ou fazer
compras na rua dos Caetés.

Os diálogos de um casamento em fase final têm características singu-


lares. Quando um cônjuge pergunta algo ao outro, ele não quer ouvir
respostas objetivas ou possíveis, quer descobrir pretextos para criticar,
arrumar uma briga, a partir da “deixa” dada pelo parceiro. Assim, a água
retorna ao rio, reinicia-se a velha e conhecida briga in­terrompida por
motivos alheios aos dois. Muitos desses diálogos são, de fato, metadiálo-
gos, isto é, discute-se acerca dos próprios diálogos e não de algo externo
à fala, como nos exemplos: “você sempre me agride” ou “você está sem-
pre me acusando”. A comunicação é sobre a própria briga. Esta, quase
sempre, coloca mais lenha na fogueira.

O casal lembra com saudades os velhos tempos quando havia comple-


mentaridade nas conversas. Antes, quando um fazia um co­mentário a
respeito do dia, afirmando que esse estava lindo, o com­panheiro, sorrin-
do, concordava usando um tom de voz calmo e me­lodioso, achando a
observação pertinente e poética. Nos prelúdios do casamento morto, a
mesma declaração desencadeará uma série de agressões, muito diferen-

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te dos comentários carinhosos de antigamen­te: “Você sempre teve um
gosto estranho, o dia hoje está horrível!” Num ambiente desses, torna-se
penosa e incerta a vida a dois.
O ataque poderá surgir a qualquer momento, nenhum deles sabe quan-
do e como ele virá e essa incerteza produz insegurança e desconfiança.

As mensagens trocadas no fim do casamento são com frequên­cia am-


bíguas, como nos casos do marido que, com uma voz áspera e usando
palavrões, afirma para a esposa que a ama muito, não poden­do viver
sem a sua companhia. Ou no caso da esposa que prepara um delicioso e
requintado jantar para o aniversário do marido mas, ao mesmo tempo,
mostra uma cara amarrada e de enfado na presença dele com o que está
fazendo.

As tensões, ao crescerem dia após dia, levam os dois, muitas ve­zes, ao


desespero, pois as feridas surgidas pela discussões violentas, produzem
marcas que não desaparecem nunca mais. Ao mesmo tem­po, a possi-
bilidade de virem a se separar e terem que reiniciar uma vida longe um
do outro, assusta os dois. No final de um casamento, cada um, sozinho,
passa grande parte do tempo pensando acerca da vida ruim que está
levando.

Alguns, depois de muitas e muitas brigas, exaustos acabam por desistir


de continuar a luta: renunciam às agressões e também ao amor. Isolam-
-se, cada um no seu canto, sob o mesmo teto, dormindo muitas vezes
na mesma cama. Desfazem de todos os modos possí­veis as comunica-
ções que poderiam despertar antigas rixas. Nesses casos, aos olhos dos
outros, eles passam a viver felizes para sempre. Comemoram todas as
bodas possíveis e, impotentes, ficam esperando a morte os separar, pois
enquanto viveram, eles não tiveram fôlego suficiente para isso.

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A Difícil Arte do Casamento
Acerca do casamento todos nós podemos falar, mesmo os que nunca se
casaram nem mesmo pensaram casar-se, pois tudo o que se diz é certo e
ao mesmo tempo não o é. Sabemos muito acerca do ca­samento, porém
não sabemos realmente muitas coisas. Todos nós, até os peritos em casa-
mento, falham ao falar sobre este tema.

Uma pessoa se casa por dois motivos básicos: o primeiro – e a cada dia
torna-se o principal – é a busca da própria satisfação e a do seu cônju-
ge, através do encontro com o outro. Busca-se uma “com­plementação”
do que lhe falta, ou seja, uma preenchimento de si mes­mo. Um nutre o
outro do alimento biopsicossocial. Em segundo lugar, casa-se para pro-
criar, mas, diga-se de passagem, aumenta o número de casais sem filhos.

O casamento, infelizmente, contém muitos ingredientes para não dar


certo e é necessário muito esforço, habilidade e flexibilidade, para que
conduza a melhores condições de vida. Vejamos alguns des­tes ingre-
dientes frequentes em todos casamentos, variando apenas quanto ao
grau: a) Passam a morar juntas duas pessoas de sexo dife­rente, geral-
mente com suposições falsas a respeito de si mesmas. Para isso basta
analisar as ideias “machistas” ou as “feministas”, para perce­ber os estere-
ótipos imputados aos homens e às mulheres; b) Unem-se duas pessoas
provenientes de organizações familiares diferentes, com atitudes, valo-
res, percepções, modos de relações, ideologias e religi­ões diferentes. Um
gosta de uma coisa que o outro detesta: um côn­juge aprecia ficar abra-
çado ao outro, quando junto. Isso lhe fornece segurança e amparo. Por
outro lado o outro cônjuge tem pavor desse agarramento, é como estar
deitado numa cama coberta de cascalho.

A diferença entre os cônjuges é a riqueza e a miséria do casa­mento.


Quando quero crescer ou aprender, procuro conversar ou ler algo que

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possua ideias diferentes das minhas, do contrário nada apren­deria. Bio-
logicamente, há sérios riscos de casamentos entre iguais, podendo esses
conduzir à hipertrofia de defeitos físicos. Do mesmo modo, cognitiva-
mente, se interagirmos com iguais, poderemos, sem perceber, regredir
ao ouvir e seguir opiniões e julgamentos iguais aos nossos, uma soma de
nossas mazelas, pontos cegos ou condutas ingê­nuas. Já o casamento de
pessoas diferentes, tanto no sentido estrito como no lato, pode ser um
contato reparador, que nos desperta e nos faz descobrir mundos nunca
imaginados.

Anteriormente a “grande família” – avós, tios, primos – vivia como um


clã e seus membros interagiam uns com os outros com muita fre­quência.
Atualmente, cada família vive quase isolada, mantendo ape­nas contatos
esporádicos e superficiais com os parentes. Como con­sequência, en-
quanto nossos antepassados podiam observar de perto diferentes mo-
delos de vida, hoje os nossos filhos possuem, quando muito, apenas os
pais, e mesmo esses muitas vezes pouco contato têm com os filhos. Nos
velhos tempos os filhos presenciavam o tra­balho dos pais e vivenciavam
suas satisfações e insatisfações diárias. Hoje os filhos só veem o pai e
mãe à noite, quando isto ocorre. Muitas crianças são educadas apenas
pelas mães ou babás, sem a presença de modelos masculinos.

Os casamentos são, em grande parte dos casos, entre duas pes­soas


inseguras, medrosas, com pouco conhecimento de si mesmas e fazendo
pouco uso de suas potencialidades, percebendo, avaliando e atuando
mal nos eventos de seu mundo. Por isso, a escolha de um companheiro,
não como ele é, mas como se julga, imagina e deseja que seja, baseado
em suas aspirações. Espera-se, na ligação, um su­porte ou direção externa
que leve a alcançar uma “boa vida”, ou uma felicidade que não foi con-
seguida através do esforço próprio. Julga-se que o poder de uma “vida
feliz” encontra-se no outro e exige-se deste a felicidade não conseguida
em si mesmo. “Só serei feliz junto a você”, “Não aguento viver sem você”.

Essas são frases comuns entre pessoas enamoradas. Nada mais falso.

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Não se pensa o que um poderá fazer para ajudar o outro, pensa-se no
seu oposto, ou seja, como serei ajudado já que não tenho o que dar. Está
claro que após o casamento os dois percebem o que ocorreu: ambos
estavam enganados. Assim, as exigências começam, pouco a pouco
surgem os desgostos, as brigas, as agressões, o deses­pero, as ameaças e,
ao mesmo tempo, a dificuldade de sair disso tudo. As agressões costu-
mam ser sutilíssimas, já que os cônjuges conhecem muito bem os pontos
fracos e as feridas do outro.

No casamento de pessoas mais amadurecidas, a escolha é mais bem


feita, as diferenças mais respeitadas, cultivadas e até incentivadas, pois
aprende-se com elas. Como não é fácil conviver com diferenças, os
cônjuges amadurecidos estão sempre se modificando, utilizando novas
técnicas e métodos de lidar com pequenos aborrecimentos e crises que
inevitavelmente ocorrem, mas que são superados pela co­municação en-
tre eles. Essa é feita de maneira clara e objetiva, sem ro­deios e sem medo.
Fundamentalmente, se os casais são amadurecidos, cada cônjuge con-
segue reajustar-se ao novo relacionamento, criando um sistema de vida
conjugal sem que este determine a extinção dos sistemas individuais.

Com o nascimento dos filhos, nova adaptação torna-se necessá­ria, já que


os cônjuges terão também de participar do sistema paren­tal. No casa-
mento de pessoas inseguras o sistema individual de cada cônjuge, que já
não era claro e eficiente, vai se esvaindo no sistema conjugal e é muitas
vezes enterrado para sempre, no sistema parental que poderá surgir.

Para finalizar, podemos distinguir dois tipos diferentes de casa­mento:


o “arranjado” e o procurado. O casamento “arranjado”, que era o pre-
dominante em épocas passadas, baseia-se na premissa bá­sica de que “o
amor vem depois”. É o casamento de desiguais, as­simétrico, onde o casal
comumente tem grande número de filhos, tendo como objetivo manter
o poder social e econômico. Pouca im­portância é dada à relação entre os
cônjuges e por isso o número de separações é pequeno.

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Casamentos deste tipo ainda são frequentes nos grupos de maior poder
político e econômico e em pequenas cidades do interior.

No casamento procurado, a crença básica é a de que o amor vem primei-


ro e a ênfase é dada à relação entre os cônjuges que supos­tamente são
iguais: em direitos e deveres. Geralmente são casamen­tos com poucos
filhos e o poder econômico não é muito relevante. Casa-se para comple-
mentar um ao outro e para troca de prazeres e o número de separações
neste tipo de casamento é mais frequente. Estamos vivendo um período
de transição com aumento do número de casamentos procurados ou
livres. Mas em ambos os tipos citados, os cônjuges estão presos aos pa-
drões e valores sociais mesmo quan­do suas escolhas são “livres”. Assim
um rapaz “escolhe livremente” uma moça que tem a sua cor, cultura,
valores e educação, frequenta os mesmos lugares, comunga a mesma re-
ligião, o mesmo partido po­lítico e assim por diante. Ou seja, o indivíduo
“escolhe” um tipo de companheira já escolhida previamente pela sua
cultura, seguindo os valores que foram impressos em sua mente sem sua
crítica. Poucos conseguem escapar desse domínio simbólico e descobrir
outros ca­minhos possíveis.

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Os Descasados
Após o dilema, casar ou não casar, se o indivíduo optou pelo casa­mento,
surge um novo dilema: descasar ou não. Isto, para aqueles que têm à sua
disposição, no seu mundo mental, essa opção. Alguns creem que, uma
vez casados, seu casamento está “garantido”, ou seja, que não há neces-
sidade do esforço de cada cônjuge para mantê-lo durante a crise que o
casal atravessar. No outro extremo, encontram-se aqueles para os quais a
separação constitui a principal, ou mesmo a única arma para a mais sim-
ples crise. Estes últimos, diante de qualquer desavença, argumentam: “É
melhor nos separarmos”, “Vou procurar o advogado” ou ainda, “Se você
fizer novamente esse arroz, eu saio de casa”.

Qualquer casamento tem, inevitavelmente, inúmeras crises. Es­sas, bem


aproveitadas, podem conduzir à produção de um casamento funcional e
sadio, como meios para readaptações, que forçosamente terão de sofrer
os indivíduos quando se casam.

Cada um dos cônjuges possuía, antes de se casar-se, um modelo de vida


próprio, diferente do sistema conjugal formado pelo casamen­to. Ocor-
re o mesmo quando uma pessoa que se acha desempregada, começa a
trabalhar, ou vice-versa. Ela necessitará adaptar-se ao novo esquema de
vida e isto é feito com algum sofrimento, apreensão e perda de conduta e
valores importantes que possuía.

Busca-se no casamento uma melhoria de qualidade de vida do in­


divíduo. Se isto não ocorre, o casamento fracassou e medidas devem ser
tomadas para melhorá-lo ou terminá-lo, caso a melhoria não seja alcan-
çada após diversas tentativas disponíveis ao casal.

Imaginemos um casal que, tendo tentado todos os recursos à sua dispo-


sição e, não obtendo resultados, decida separar-se. O pro­blema é seme-

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lhante quanto ao casar ou não casar.

Antes o problema se constituía em romper um sistema de vida de soltei-


ro, para passar a fazer parte de um sistema conjugal. Agora os cônjuges
já comprometidos num sistema conjugal e, se tiverem filhos, também
no parental, retornarão ao sistema individual após o rompimento do
casamento. Mas não é fácil romper um sistema de vida e entrar em
outro, quando o indivíduo já se encontra amolda­do, principalmente se o
casamento durou muitos anos e, mais difí­cil ainda, se o casal teve muitos
e bons momentos. Não é raro que após a separação, os cônjuges, derro-
tados e amargurados, retornem à casa paterna, tornando-se novamente
“filhos” e não mais “marido” ou “mulher”.

Quando acontece a separação, o casamento já estava provavel­mente


“doente” há muito tempo. Algumas separações iniciam-se antes mesmo
do casamento ocorrer. Quando as brigas continuadas pelos mesmos
temas entre namorados ou cônjuges inicia-se, cada um culpa o outro
pelo ocorrido e, geralmente, recebem dos amigos e familiares – juízes
parciais – uma sentença favorável. Cada um, na interpretação do respec-
tivo amigo, está certo e o culpado é sempre o outro. “Como ele mudou”.
“Era tão diferente quando começamos a namorar”. “Vi­rou um monstro
insuportável, notei isso ainda na lua de mel.

Cada cônjuge busca apoio nas pessoas que têm o seu próprio modelo e
isto reforça a falsa crença no “erro do outro”, aumentando e cristalizan-
do as desavenças e o abismo entre o casal, onde cada um, seguido por
seu exército, dá origem à guerra conjugal. Esta batalha é reforçada com
a ajuda de tropas alienígenas, isto é, advogados, psi­quiatras e outros
assessores.

Tudo isso ocorre em virtude de uma cegueira coletiva acerca da propa-


lada ideia de “causa de um só lado”. Em toda relação, a conduta de cada
um dos indivíduos é resultado de sua própria conduta e do comporta-
mento do outro. Em outras palavras, se um deles muda, a conduta de

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seu companheiro fatalmente mudará.

Os dois têm, em suas mãos, os lances necessários para mudar a conduta


do “outro”, simplesmente agindo de maneira diferente do es­perado, ou
seja, em desacordo com o sistema estabelecido, desenhado, estrutura-
do e compartilhado por ambos os cônjuges e não por apenas um deles.
Minha mãe já há muito dizia: “Quando um não quer, dois não brigam”.
Está aí, de forma simples, toda a sabedoria da causalidade circu­lar ou
do poder de ambos, em contraposição à linear, ou seja, do poder de
apenas um dos indivíduos. Se sairmos do “jogo” a disputa terminará
ou, se desejarmos, fazendo uma provocação, a briga ocorrerá. Uma vez
separados, a tendência normal dos descasados é a de se manterem ainda
casados, seja através da continuação dos encontros ou das brigas, seja
através do “casamento” com os filhos, ou até arranjando apressadamen­te
um novo casamento. Neste último caso, o fracasso do novo casamen­to
é quase a regra, pois quando estamos nos afogando, qualquer “galho”
parece-nos ótimo para segurar. Um pouco mais tarde, verificamos que o
“galho” salvador é fraco e não servirá para nos apoiar.

Caso o modelo mental do cônjuge não lhe permita viver só, ao procu-
rar os seus familiares estará perdendo a oportunidade de “cur­tir” uma
solidão, que, uma vez bem cultivada, poderá lhe permitir ser criativo
ou recompor sua vida. O medo ao desconhecido, viver sem o cônjuge,
poderá ser uma forma de crescimento individual, pois constitui um
novo modo de vida e é, talvez, o principal obstáculo à separação, quando
o casamento está se deteriorando. Outros fatores criam pressões para
a não separação: a antiga crença no compromisso “até que a morte nos
separe”, a admiração por aqueles que, mesmo vivendo mal, não ousam
separar-se, o valor atribuído pela sociedade à vida conjugal, reputado
como superior à vida de solteiro, a ideia de que um homem bem-sucedi-
do deve estar casado, os problemas financeiros futuros, a dificuldade de
educar os filhos sozinhos e, por último, o sofrimento do afastamento da
família.

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Esses motivos provavelmente constituem as principais barreiras contra a
separação, que podem levar os cônjuges à depressão, assassi­nato, suicí-
dio, ao surgimento de várias doenças orgânicas graves, mas também ao
crescimento individual.

De qualquer modo, os primeiros meses ou anos da separação são quase


sempre dolorosos. O que fazer para escapar aos seus as­pectos negativos
e alcançar os positivos? Teoricamente é simples. Todo sistema humano
é aberto e por isso transforma e é transfor­mado pelos sistemas vizinhos.
Todo indivíduo acha-se ligado com vínculos humanos, ora mais fortes,
ora mais fracos. O sistema conju­gal e parental constituem, entre outros,
sistemas com ligações fortes para a maioria dos humanos. Mas existem
outros sistemas também fortes que o descasado poderá procurar: o de
sua família, o trabalho, o lazer, os amigos, a saúde física e mental, o eco-
nômico, o criativo, artístico e outros.

Rompendo-se, pela separação, o sistema conjugal e comumente o paren-


tal para os homens, o indivíduo provocará uma piora na sua vida caso
abandone também, ou diminua, o envolvimento com os de­mais sistemas
como, por exemplo, afastando-se ou desinteressando-se do seu trabalho,
dos amigos, família, lazer, etc. Por outro lado, se o descasado hipertro-
fiar ou incrementar suas energias nos vários outros sistemas que haviam
sido cortados devido ao casamento, ou ligar-se a outros sistemas grati-
ficantes que não haviam ainda sido vivenciados, a separação será mais
suportável, agradável e podendo, até mesmo, ser benéfica para os dois
cônjuges e para os filhos.

Torna-se necessário que além da separação física, o ex-cônjuge a obte-


nha também no plano psicológico. Para isto ele criará um novo “mapa”
do mundo sem a inclusão do antigo cônjuge, sem esperar nada dele
como a compreensão, agradecimentos, exigências, agres­sões, conduta
moral ou imoral e assim por diante. Se possível, não mais falar bem ou
mal acerca do outro cônjuge, mantendo apenas o relacionamento, caso
seja preciso, estritamente necessário. Não pro­curar mais saber de sua

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vida íntima, nem reviver as cenas agradáveis e as amargas do casamento
que terminou. Não mais tentar provar para si e para os outros quem foi
o réu e quem foi a vítima. Em resumo, para separar-se e construir bem
uma nova vida, o indivíduo necessita separar-se também psiquicamente,
do contrário continuará a ser um mal casado até morrer.

Portanto, procure encontrar, ao se separar, sua própria identi­dade, sem


a contaminação do antigo sistema conjugal não mais exis­tente. Adquira
sua autonomia, goze e usufrua de seus benefícios e tire de sua cabeça os
antigos problemas do casamento e da separação. Em resumo: enterre um
casamento morto.

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Incesto Emocional
Algumas famílias escolhem – aleatoriamente – um filho, apenas um,
para ser o “tutor” da família. A partir desse recrutamento os esfor­ços
desse filho não mais serão dirigidos para suas necessidades de crian­
ça, mas sim para ações adultas destinadas a unir, proteger e estabilizar
a família desajustada. Os meninos educados desse modo receberam, de
alguns psicólogos, o nome “Personalidade Atlas” – deus grego condena­
do a suportar o céu nos ombros para impedi-lo de amassar a Terra.

Os estudos mostram que muitas dessas famílias são dominadas por


uma mãe poderosa, egocêntrica, emocionalmente instável e pron­ta para
xingar e explodir sob qualquer pretexto. Estas mães têm sido diagnosti-
cadas pelos psiquiatras como possuidoras de um transtorno de persona-
lidade ”limítrofe” (borderline), onde se inclui a irritação, impulsividade,
tentativas de suicídio, autolesão, sentimento crônico de vazio, pavor de
ser abandonada, além de terem um sentido da realidade diferente do
das outras pessoas. Essas mães esperam, e exigem, que o resto da família
aceite e apoie seu ponto de vista acerca de tudo o que ocorre à sua volta.
Só ela tem razão, os outros estão sempre errados. Responde com explo-
sões de ira às frustrações e decepções e, quase sempre, acusa os familia-
res ou parentes de fazerem “pouco caso” dela.

É nesse ninho disfuncional que desenvolve o filho, ou filha, des­tinado a


suportar, apaziguar e resolver as misérias e “loucuras” ali exibidas a todo
momento. Sua resposta precisa ser rápida e capaz de pôr fim às exigên-
cias extravagantes da mãe egocêntrica e possessa. A culpa da vida deses-
truturada e sem objetivo dos pais é colocada no infeliz e tolerante filho
escolhido. Ele é forçado a participar e tomar partido nas brigas tolas dos
pais: em qual programa a TV deve estar ligada, ou quanto tempo cada
um deve ficar no banheiro.

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O filho altruísta, nessas ocasiões, é acusado por ambos de es­tar tomando
o lado de um ou de outro deles. Este sofredor deverá ouvir as histórias
chatas dos pais, consolá-los com palavras vazias e adocicadas, franzir
a testa e mudar o tom de voz para demonstrar preocupação com as
queixas acerca da saúde, da estabilidade e da sobrevivência deles. Como
guardião da imagem da família falida, o escolhido, ainda muito cedo,
deve se engajar em atividades designa­das para eliminar, camuflar ou,
no mínimo, diminuir os danos exibi­dos pela família. Muitos desses pais
exigem sua ajuda em situações delicadas como tomar a responsabilidade
em falcatruas e obrigar um dos irmãos a tomar decisões cruciais.

Geralmente a escolha é feita cedo. Pouco a pouco esse filho passa a


exercer o papel de “pai e mãe” da família, participando dos diversos pro-
blemas que seriam próprios dos progenitores. Ele opina acerca do que
a mãe terá de fazer ao descobrir que o pai tem uma amante, a cuidar do
alcoolismo da mãe. Esse papel é exercido com frequência pelas crian-
ças cujas mães são alcoólatras. É esse filho que vai buscar soluções para
pagar as dívidas da família, opinar e decidir se os pais devem ou não se
separar, ou, ainda, se devem voltar a mo­rar juntos. Alguns pais consul-
tam o filho acerca de terem ou não mais um filho, ou se seria melhor
praticar um aborto. Também esse infeliz poderá dizer ao pai, inventando
uma mentira, que sua mãe foi fazer compras, quando esta, de fato, estava
com o namorado.

Muito cedo aprendem a cozinhar, limpar, comprar e cuidar dos irmãos


mais novos, inclusive impedindo-os de ver a mãe cambalear ou des-
maiar. Fazendo o papel de “mãe” da mãe, elas ajudam-na a comer, fazer
sua higiene ou a ir-se deitar. Com o tempo, essa tarefa passa a ser reali-
zada rotineiramente. Além de cuidar dos pais, essa criança mantém em
segredo as informações negativas da família. Estas “escolhidas”, olhadas
externamente, são elogiadas pelos pais, parentes e amigos, percebidas
como perfeitas, cooperativas e “devo­tadas” aos pais. Isso as anima a con-
tinuar nesse caminho ingrato.

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A criança escolhida para ser o “provedor”, pode exercer tam­bém a
função de “esposo substituto” para o cônjuge desesperançado, solitário
e infeliz. Caberá a ela fornecer ao cônjuge o apoio emocional e compa-
nhia que deveria vir do outro esposo. Para alguns autores essas crianças
são vítimas de “incesto emocional”, uma forma séria de abuso por ser a
criança seduzida a fazer um papel familiar que não compete a ela e nem
é esperado culturalmente.

Altamente treinados para esse trabalho de ajuda, mais tarde es­ses “pa-
cientes” preocupados e sensíveis aos problemas dos outros, não de si
mesmo, provavelmente encontrarão outros exploradores e, explorados
por esses, irão ocupar posições de responsabilidade, continuando a fazer
o que aprenderam precocemente: ajudar as pes­soas a qualquer preço.
Casam-se, muitas vezes, com mulheres tendo o mesmo perfil de sua mãe
e cuidam delas para sempre. Estes santos ou altruístas fanáticos, que vi-
veram orientados pelos problemas alheios e não pelos próprios, morre-
rão, possivelmente infelizes e arrependi­dos, por não terem escolhido, há
muito, um caminho diferente do trilhado.

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Separação e Perícia: Advertên-
cias
Fim do casamento. O juiz normalmente determina que a guarda dos
filhos menores fique sob a responsabilidade da mãe destes. Este modelo
de custódia dos filhos tem sido aceito sem maiores discus­sões, por quase
todos os que se separam. Excepcionalmente, alguns cônjuges investem
contra essa regra. As alegações, para tentar impe­dir que o cônjuge “ini-
migo” fique com a custódia dos filhos, ou até mesmo faça visitas a eles,
são as mais diversas. Há outras regras de custódia do filho, entre elas a
“custódia compartilhada” recentemente divulgada pela mídia.

O advogado, ao ouvir as queixas apaixonadas e agressivas do cliente,


imagina ser o outro cônjuge um louco ou crápula. A descri­ção, fruto de
percepções distorcidas, mescladas a fortes emoções, procura criar uma
história plausível para impressionar o juiz, o advo­gado e, por que não,
a si mesmo. Espera-se, com a história fantástica, justificar as ações ora
adotadas, conquistar a simpatia dos amigos e, se possível, receber uma
sentença favorável do juiz. Tenta-se de tudo para alcançar o pretendido,
inclusive a destruição, parcial ou total, do ex-amado, que, diga-se de pas-
sagem, nada mais é do que o pai ou mãe dos filhos e que será, no futuro,
um provável sócio e colaborador na educação destes.

Não é raro ver o advogado ficar “decepcionado”, ao conversar com o


“monstro”. Por mais que investigue, não descobre o esquisito parceiro
descrito pela história contada pelo cliente enfurecido. O ad­vogado, ao
relatar a impressão favorável, muitas vezes é dispensado pelo cliente, que
imagina: “Foi comprado, ou talvez conquistado?” Outras vezes, afirma:
“É fingido, parece anjo, mas na verdade é um demônio… você verá.”

O cônjuge, contaminado por emoções violentas e conflitantes, mergu-

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lhado até a alma nessa briga composta de amor e ódio, tenta destruir o
“inimigo” de todas as formas possíveis, acusando-o de lou­co, impotente
ou homossexual.

Os insultos, visando a impedir que o acusado tenha direito à guarda dos


filhos ou de lhes fazer visitas a esses, não terminam aí. O acusador en-
furecido tem outros nomes para seu atual inimigo: al­coólatra, drogado,
paranóide, incestuoso, irresponsável, pródigo e agressor físico. Já assisti
a tudo, existem outras acusações mais sutis e estranhas, mas as citadas
são as mais divulgadas.

Os juízes, diante das acusações acima descritas, podem pedir ajuda


técnica aos psicólogos e psiquiatras para melhor fundamenta­rem seus
pareceres. Esses profissionais, chamados a opinarem como peritos, são
lançados na disputa, devendo julgar se o suposto “pa­ciente” é, na rea-
lidade, o que a acusação afirma: um louco ou coisa semelhante. Caso o
“defeito” for constatado, o “réu” poderá ficar im­pedido da guarda dos
filhos, de visitá-lo e, até mesmo, de se separar. Recebendo o diagnóstico
psiquiátrico, o cônjuge, ao ser denominado “louco” e, consequentemen-
te, estigmatizado pela sociedade, sofrerá as sanções da lei, inclusive,
dependendo do rótulo recebido, tornar-se ”incapaz de gerir sua pessoa e
seus bens”.

Em virtude das consequências sérias para a vida do “acusado”, torna-se


obrigatório que os psiquiatras e psicólogos esclareçam aos ma­gistrados,
advogados e à opinião pública em geral, sua ignorância e incerteza acer-
ca do comportamento humano e, como consequência, de seus diagnós-
ticos e pareceres feitos com muito amor e dedicação. Só o charlatão, o
inculto e o profissional desonesto afirmam ter certeza acerca dos resulta-
dos de seus exames. O perito sério e competente não pode simular uma
falsa impressão de segurança nos seus achados, pois esta certeza não
existe em nenhuma ciência, nem nas chamadas “exa­tas” – hoje não tão
exatas assim – muito menos na área psicológica.

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O perito chamado deve verificar, com extremo cuidado – para não
piorar o que já se encontra deteriorado – se o examinado tem ou não
capacidade para cuidar do filho ou de se separar.

Ele é chamado para opinar sobre isto. Sua missão fundamental não é
verificar se existe um transtorno e fornecer um rótulo psiquiá­trico para
o magistrado, mas se o problema – se existente – é crônico ou inter-
mitente, sutil ou óbvio, quais estresses existem e quais podem estar
favorecendo o aparecimento do quadro clínico atual, bem como era a
personalidade anterior do examinado. Precisa examinar a exis­tência ou
não de outros fatores tais como: se ele tem ou não a ajuda de parentes ou
amigos, se tem ou não consciência de seus problemas, se ele está seguin-
do algum tratamento e qual o efeito que a doença tem tido, ou poderá
ter, sobre a criança em discussão, se é que possa ter algum. O melhor
guia para um comportamento futuro é o comporta­mento passado do
indiciado.

Ao verificar a existência de sintomas e sinais é necessário exami­nar se


estes são compreensíveis – adequados – ou não, para a situação vivi-
da. Assim, a Classificação Mundial de Doenças Mentais, o CID 10, e a
americana, DSM IV, trazem, como exemplos de grandes estresses, entre
outros, a separação conjugal, o afastamento dos filhos, as perdas finan-
ceiras, os problemas com a justiça e a mudança de domicílio. Como se
vê, todos esses fatores ocorrem, em maior ou em menor grau, durante as
separações conjugais.

Portanto, qualquer exame psiquiátrico realizado durante essa luta,


fatalmente vai detectar sintomas e sinais psicológicos caracte­rísticos de
algumas doenças mentais, que não apareceriam, caso não existissem os
problemas que estão sendo vivenciados no momento pelo indivíduo.

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A Última Lembrança
Eu era ainda criança, quando fui acordado, naquele início de manhã do
dia 18 de novembro, pelo ruído preguiçoso e monótono das gotas de
chuva que, insistentes, tentavam penetrar através dos vidros da janela.
Saí do meu torpor ao perceber que algo de anor­mal acontecia fora do
quarto. Sussurros incompreensíveis alcançaram meus ouvidos. O que es-
taria acontecendo? Amedrontado e curioso saí rápido do leito buscando
uma resposta. Assustei-me! A casa estava cheia de parentes e vizinhos,
alguns chorando, abatidos, conversando entre si.

Sem ainda decifrar o que se passava, conduziram-me rapidamen­te ao


quarto onde ele estava acamado há meses. Meu dever, naquele momen-
to, era dar-lhe o último adeus, o abraço de despedida. Os ou­tros irmãos
já tinham cumprido esse ritual. Confuso, aproximei-me do seu leito e
pude observar sua respiração ofegante através das con­trações desorde-
nadas e custosas dos músculos do tórax e do pescoço que, teimosamen-
te, tentavam levar ao seu debilitado organismo um pouco de oxigênio.
Percebi, com olhos de ternura e pavor, que meu pai estava se acabando.
Ele agonizava.

No quarto escuro, as janelas fechadas, invadido por pessoas desesperan-


çadas, pairava um terrível silêncio. Colocado diante dele, abraçamo-nos
sem nada pronunciarmos. Automaticamente, ele res­pondeu à minha
despedida já com grande dificuldade, colocando seus magros e fracos
braços em torno do meu ombro de menino assustado. Sua respiração
estava acabando.

Meu pai continuou lutando contra a morte até às 15 horas daque­le dia.
Lá fora, a chuvinha miúda e cansativa transformou-se, repenti­namente,
numa violenta tempestade. Ventos fortes e nuvens escuras formaram-se.
O silêncio existente no quarto foi quebrado quando ele se despedia desse

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mundo. Nesse momento, relâmpagos e trovões ex­plodiram no ar. Em
seguida caiu uma pesada chuva, bonita e triste.
Emudecido no meu canto, abafado e sozinho no meio da multi­dão,
assistia, pela primeira vez, à morte de alguém. Imaginei que meu pai
estava viajando, feliz por ter a companhia da tempestade, que ele tanto
amava. A partir daquele momento, minha vida mudaria para sempre
sem a sua presença física.

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Sociedade: Valores e Cultura

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Desespero do Executivo J.S.
Os valores, muitas vezes contraditórios, contidos nas ações e nas ideias
das pessoas que nos são simpáticas — nosso grupo de referência — são
pouco a pouco assimilados e fixados em nos­sa mente, passando a consti-
tuir nosso sistema de crença. Nossa conduta, no dia-a-dia, é uma procu-
ra das metas que satisfazem, a curto ou a longo prazo, valores existentes
nesse sistema. Na ilusão de que nossos valores são os certos, tentamos
convencer nossos semelhantes a segui-los.

Pensando em valores, lembrei-me do meu amigo J. S. e do seu desabafo


quando nos encontramos, numa segunda-feira, na porta do Banco do
Brasil, na Faculdade de Medicina, encontro que durou mais do que eu
esperava.

J. S., hoje com 57 anos, é um homem rico, dono de lojas de tecidos em


BH, aposentado do Banco do Brasil, bem casado e com cinco filhos, que
não lhe dão trabalho. Nascido e criado em Poço dos Perdões, chegou a
BH com 18 anos incompletos, ao receber a advertência de seu pai:

— Está na hora do filho homem largar a família e viver por conta pró-
pria.

Seus primeiros dias aqui foram de penúria, tendo passado até fome:
entregou marmitas, vendeu jornais, lavou carros. E con­ta, rindo:

— Até gigolô já fui, num período pior… mas por pouco tempo…

Pouco a pouco sua sorte foi mudando: entrou como ser­vente do banco,
passou para contínuo, caixa, gerente e assim foi subindo. O que nunca
lhe faltou foi inteligência, persistência e coragem, e esta ele possui até
demais.

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Começou a ganhar dinheiro, economizou, empregou o que guardava
com sabedoria e casou-se com sua colega de trabalho, que também era
poupadora. E tudo foi dando certo.

Esse início de vida, entretanto, não foi tão ruim como pare­ce. J. S. “era
feliz e não sabia”, como me contou:

— Era um homem que sabia o que queria, e, quando tinha dúvidas, estas
eram simples e fáceis de solucionar, tais como: sair ou não sair certa
noite, colocar os filhos num ou noutro colégio, bater ou não neles para
educá-los. É, nessa época eu decidia qua­se tudo sozinho ou, no máximo,
com a colaboração, apenas, de minha mulher.

Ao abrir as primeiras lojas, junto com os filhos, começaram as incerte-


zas e seu desespero atual. A princípio, num tom de voz calmo e seguro,
contou-me que, à medida que foi enriquecendo, conheceu muito mais
pessoas. Participou de encontro de casais e mais tarde coordenou alguns
encontros. Entrou para a Associação Comercial, tornando-se um dos di-
retores. Aceitou, com orgulho, o convite para fazer parte do Lyons Clube
e, mais tarde, do Ro­tary. Tornou-se membro da diretoria da Associação
Atlética do Banco do Brasil, frequentando inúmeras reuniões, clubes e
festas promovidas por seus diversos amigos e colegas. Hoje, J. S. per­
tence a mais de vinte diferentes grupos de associações, estando ligado a
mais de uma centena de pessoas.

Em todos os grupos existem indivíduos que acreditam que certas con-


dutas são corretas e, desse modo, pressionam J. S. a se­gui-las. Convence-
ram-no a vestir certas roupas, antes nunca ima­ginadas, a morar noutro
bairro, a frequentar uma igreja diferente, a ir a certas reuniões e não a
outras.

Quando jovem, J. S. não pedia nem permitia que dessem palpites em


sua vida. Naquela época ele conversava mais consigo mesmo, um pouco

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com os amigos do banco e, ocasionalmente, com a sua mulher. Agora,
envolvido e comprometido com todas essas pessoas de opiniões dife-
rentes, J. S. confundia-se ao tomar as mais simples decisões. As suges-
tões sobre o que fazer, diante de qualquer fato trivial, vindas de todos
os lados, sufocavam-no. Ele, gesticulando, deixou escapar tal irritação,
indicando que algo grave estava acontecendo:

— Eu não sabia mais se podia ou não beber cachaça, ou se devia beber


somente uísque, qual bairro seria apropriado para morar de acordo com
o meu status – eu nem sabia bem qual era meu status – onde deveria
passar as férias. Aconselharam-me a comprar uma casa em Guarapari,
isso faz muitos anos. Depois disseram-me que lá não era um bom lugar
para pessoas do meu porte, e acabei vendendo a de Guarapari e com-
prando uma outra em Cabo Frio. Mais tarde foi a vez de Búzios, e agora
andam falan­do que o chique é passar as férias em Fernando de Noronha
ou na Europa. Não entendo mais nada.

— É, a vida é difícil, – respondi sem saber o que dizer.

— Mudei, para adaptar-me aos grupos, o meu modo de an­dar, de falar,


de comer, de pentear, enfim, de tudo, tudo mesmo! J. S. deu uma respira-
da funda, limpou o suor do rosto com as cos­tas da mão e continuou seu
desabafo:

— Comecei a comer comidas desconhecidas e ruins de gos­to: escargot,


strudel, fondue, tournedos, em lugar de feijão com arroz, bife e batatas
fritas. Aconselharam-me um analista, um fa­moso da zona sul. Uma vez
por semana deito-me num divã e falo para o teto tudo que me vem à
cabeça, todas as minhas intimi­dades, ditas para um homem barbado…
não sei para quê. Critica­do de um lado e do outro, acabei modificando
minhas técnicas sexuais aprendidas na zona boêmia de B H. Ensinaram-
-me novas maneiras, mais modernas, baseadas nas ideias do casal Mas-
ter e Johnson, do Relatório Hite, de Albert Ellis, Alex Confort e muitos
outros, dezenas deles. E agora…

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A respiração de J. S. estava ofegante. Ele não mais controla­va seus pensa-
mentos, que saíam aos borbotões. Pressenti que a sua confissão alcança-
va o clímax. Ele deu um suspiro profundo, pigarreou, limpou, mais uma
vez o suor que escorria pela sua tes­ta e prosseguiu com sua confissão:

— Agora… essa está me enlouquecendo. Sugeriram-me que deixe mi-


nha mulher – não é a amante, não – é minha esposa, a mãe dos meus
filhos, transar com outro homem. Argumentam que isso é avançado e
moderno, que só os machistas vão contra isso, por desejarem ser donos
das mulheres.

J. S., nesse momento, abaixou a cabeça, seus olhos brilhan­tes fixaram um


ponto do chão e assim permaneceu por um longo tempo. Eu, sem saber
o que falar, permanecia quieto no meu can­to, identificando-me com seu
desespero e suas dúvidas, que são as de todos nós. Controlava-me, como
podia, para não dar mais um palpite em sua vida já tão cheia de opini-
ões.

Ele estava aprisionado num mundo de valores desencontra­dos, introdu-


zidos sutil e lentamente. J. S. não conseguia conciliar na sua mente valo-
res tão diversos, alguns oriundos do interior de Minas e outros adquiri-
dos das novelas e dos intelectuais de van­guarda. Eles não se misturavam.

J. S. fitava-me, implorando mais um conselho:

— O que eu vou fazer? Estou sem saída!

Ele olha para mim triste e envergonhado por ter falado tan­to, mais do
que seu normal, de ter sido fraco conforme seu siste­ma de crenças. Sus-
pirando fundo, desabafou, despedindo-se:

— Tenho pensado até no suicídio. Sinto que não sou mais o mesmo.
Não me reconheço. Deixei de ser o J. S. que conhecia e não sou mais

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ninguém. Penso, às vezes, em reconstruir tudo, mas faltam-me forças e
liberdade para isso, pois os amigos, sempre vigilantes, não deixam. Gos-
taria de voltar a ser o que era, largar tudo que criei após minha mocida-
de, pôr fogo no dinheiro maldi­to, abandonar os clubes e as associações,
bem como os políticos, igrejas e amigos.

Assim, teria mais tempo de conversar comigo mesmo, como antigamen-


te, livre de toda essa gente maldita, com seus palpites sobre tudo! Até
logo…

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As Mulheres: O Silêncio das
Inocentes
2.2 Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor;
2.3 Porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a
cabeça da igreja; (…)
2.4 De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim tam-
bém as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos.

São Paulo: Efésios, 5: 22 – 24

Infelizmente o apóstolo Paulo continua tendo muitos seguido­res. Dis-


cursos como os de Paulo encontram-se disseminados nas famí­lias, esco-
las, mídias, religiões, artes e leis. Por isso, aprende-se cedo a discutível
crença da inferioridade da mulher, uma afirmação sem apoio empírico.
Esse tipo de julgamento desvaloriza os papeis, as con­dutas e o próprio
gênero feminino e, uma vez ensinado e aprendido, domina a mente de
todos. A separação dos seres humanos em dois grupos, masculino e
feminino, por ser um fenômeno complexo, uma vez utilizada, contagia
inúmeros aspectos da vida diária. A história do homem tem sido gover-
nada por falsas ideias. As ideologias transfor­mam as pessoas em vítimas
ou escravas das crenças difundidas.
O aprendizado da submissão

A criança, após o nascimento, é domesticada pelos sistemas de crenças


existentes na cultura onde vive. São os pais que, por sua vez, aprenderam
dos seus pais, os transmissores das ideias. Como deposi­tários e difusores
dos fundamentos do raciocínio, entre eles, os não-igualitários acerca do
sexo, os pais tendem a escolher para suas filhas “meigas”, nomes suaves
como Dulce, Cândida ou Felicidade. Para os meninos “rudes”, nomes de
sábios, atletas ou artistas: Homero, Romá­rio ou Fernando.

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Embora na fase pré-verbal a criança ainda não seja capaz de no­mear o
próprio sexo, bem como o dos outros, ela aprende a diferen­ciá-lo, ob-
servando as reações e as comunicações afetivas expressadas pelos pais,
parentes e outros. Ora eles sorriem, ora fazem comentários de aprovação
quando os filhos entram em atividades julgadas adequa­das. Ao contrá-
rio, exibem emoções indicativas de rejeição, quando as atividades são
julgadas impróprias. A atitude dos pais diante dos filhos, sancionando
ou reprovando uma ou outra conduta, indicam e prescrevem as condu-
tas desejadas e, junto com o comportamento, as emoções a ele ligadas,
agradáveis ou desagradáveis, conforme execu­tam uma ou outra ação.
Frases como: “Oh! Há um menino no quarto.”, dita por um pai vendo a
filha chutar bola, serve como uma crítica para a menina, indicando-lhe
não ser aquele um brinquedo adequado.

Outras atividades vão sendo executadas e testadas, gratificadas ou puni-


das, conforme a categorização cultural e as emoções expres­sas durante
sua realização. Iluminados pelo mesmo simbolismo, os quartos são
decorados de forma diversa para um e outro sexo. O me­nino usará calça
azul e a menina vestido rosa. Os cabelos têm também estilos e tamanhos
capazes de distinguir um do outro. Aos poucos, o estereótipo é mate-
rializado através de ações: brinquedos e materiais educacionais diferen-
ciados. Para os meninos, máquinas, veículos, equipamentos de esporte
e para as meninas, bonecas, mamadeiras, itens domésticos e flores. Os
presentes “masculinos” devem orientá-los para futuras profissões, os
“femininos” destinam-se ao aprendiza­do de atividades domésticas. A
agressão fica bem para meninos, não para meninas e milhares de outras
orientações.

Mas a construção da mulher não é tecida apenas por diferenças inocen-


tes. A rotulação usada para separar o masculino do feminino carrega,
disfarçadamente, significados mais profundos com respei­to aos papeis,
profissões e habilidades gerais. Cedo, a criança nota que pertencer a um
gênero criará grandes diferenças e, para piorar, intimamente enraizado

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ao conceito do permitido e do proibido, a cultura quase sempre enaltece
as condutas masculinas e menospreza as femininas.

A construção da submissão

De todos os lados, sem percebermos, somos bombardeados por con-


dutas-modelos – nítidas e frequentes demais – indicativas da ma­neira
“correta” de se comportar conforme nosso gênero. Esse apren­dizado, as-
similado sem digerir, ao modelar a personalidade infantil carrega inter-
namente inúmeros e imperceptíveis apelos à ordem mas­culina/feminina:
hipóteses, afirmações e modos de agir. Nas novelas e nas propagandas
de TV, os estereótipos existentes afloram a todo momento, quase sem-
pre engrandecendo, sem preocupação pedagó­gica, os papeis e valores
tradicionais existentes na cultura do dia-a-dia. Os homens são mos-
trados como dirigentes sérios e importantes, bem ajustados, enérgicos,
habilidosos e ambiciosos. As mulheres são “usadas”, muitas vezes, para
embelezar o ambiente, ou como anfitriãs, apresentadoras, animadoras,
sedutoras e emotivas, sempre cuidando de alguém, ocupando posições
desvalorizadas socialmente, tais como babás, donas de casa e outras.

Junto aos amigos, os estilos de conduta continuam sendo mo­delados e


confirmados. Cada companheiro elogia ou critica o outro ao escolher a
atividade apropriada ou inapropriada segundo o credo. Deve ser lem-
brado que esse grupo não forma um conjunto isolado, pois encontra-se
preso aos pais, à Igreja, professores e, principalmen­te, aos companheiros,
isto é, ao grupo de referência.

As pregações da Igreja têm sido tradicionalmente marcadas por afirma-


ções indicando uma “enorme diferença entre homens e mulhe­res”. Além
da postura antifeminista explícita – condenação de mulhe­res por falhas
à decência, sobretudo em matéria de trajes – a Igreja tem mantido e di-
vulgado, do alto de sua sabedoria e poder, uma visão negativa acerca das
mulheres, da feminilidade e, através dos séculos, tem inculcado, explici-
tamente uma moral dominada por valores pa­triarcais.

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Um último problema: se, por um lado, algumas ações desem­penhadas
pelas mulheres são aparentemente aplaudidas e elogiadas, como o
trabalho de cozinha, a costura, a limpeza, a maternidade, o ensino ou o
secretariado, por outro, mais implicitamente, as mesmas atividades são
depreciadas pela voz popular em geral. Nota-se que, nas entrelinhas,
aparece um sentimento velado, inconsciente, sugerindo “a menor impor-
tância” dessas atividades que são “trabalhos simples” e “pouco significa-
tivos.” Entretanto, boa parte das atividades “mas­culinas” são explicita-
mente elogiadas, valorizadas e cobiçadas pelo povo em geral: executivos,
jogadores, pilotos, banqueiros, gerentes.

Processador cognitivo e categorização

O processador cognitivo de informações da criança vai sendo construí-


do através do armazenamento de ideias e emoções ligadas aos aconteci-
mentos: não só as experiências diretas vividas, mas também as sensações
e observações sentidas acerca das condutas dos pais, amigos, professo-
res, artistas da TV etc. A criança vai aprendendo a ca­tegorizar tanto a
elas próprias, como também aos outros meninos ou meninas, retendo
informações substanciais acerca das peculiaridades e papeis próprios de
cada sexo. A partir dessas informações gerais, básicas, ela extrai orienta-
ções concretas para sua própria conduta e crítica dos outros.

Aos poucos, a criança torna-se apta para deduzir e sentir, atra­vés de suas
auto-observações e autocríticas, sentimentos de prazer e orgulho, ou de
sofrimento e humilhação, por possuir, ou não, esta ou aquela caracterís-
tica. Inexoravelmente ela descobre que os papeis importantes na socie-
dade estão reservados para os homens, pois é fácil notar que eles são os
principais dirigentes políticos, espirituais e financeiros. Além disso, na
sua própria casa, quem manda e quem de­cide, além de ser mais respeita-
do, inclusive por sua mãe, é seu pai.

Grupos Ideológicos
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Os principais grupos ideológicos de nossa sociedade, começan­do com
os familiares, cooperam para o mesmo fim: a pregação, ex­plícita e im-
plícita, da inferioridade da mulher. Em todos os lugares, diariamente, as
crianças são educadas, treinadas e ajustadas para assi­milarem essas cren-
ças delirantes. Os grupos inoculadores de crenças, unidos pelo discurso
pró-masculino, fazem parte de uma forte e po­derosa rede, avaliando
e aprovando as regras da conduta. A obediên­cia à palavra, através dos
tempos, tem sido uma tendência natural do homem, tomando o mapa
pelo território, a palavra pela coisa, a ideia pela realidade. As ideologias,
além de doutrinárias, de explicarem dogmaticamente tudo, também
assimilam os fatos observados e mes­mo experimentados, fazendo-os
desaparecer quando eles poderiam ser úteis para contestar e destruir a
fala utilizada. De outro modo, as ideologias, para sobreviverem, preci-
sam rejeitar os fatos.

As falsas suposições, ao invadirem a mente humana, contami­nam, como


um vírus, todo o modo de pensar e de sentir. Do mesmo modo que,
para respirarmos, precisamos do oxigênio fornecido pelas plantas, para
compreender o ambiente externo e o nosso próprio eu, bem como para
prescrever ações e imaginar seus resultados, preci­samos de símbolos,
ideias e mitos, todos construídos pela cultura. Essa sopa complexa de
conceitos, tanto pode fornecer o oxigênio para criarmos ideias adequa-
das, como também gases tóxicos, tornan­do-nos incapazes de pensar
adequadamente. Nosso espírito acha-se mergulhado nesse caldo espesso.
Selecionamos e extraímos dele os significados para avaliar os “fatos do
mundo” e, entre outros saberes, as conjeturas do que é, e do que não é,
correto e valorizado para as mulheres e homens. Como consequência,
nossas interpretações do meio ambiente, nossas decisões do que fazer,
querendo ou não, bem ou mal, estão assentadas nas crenças semeadas,
aprendidas e culti­vadas, com muita fé, pela cultura onde vivemos. Como
muito bem alguém se expressou: “E impossível compreender algo que
seja exte­rior e contrário ao tecido da interpretação permitida.”

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As noções transmitidas, ligadas aos fatos vivenciados, uma vez impres-
sas e estruturadas passam a controlar o modo de processar in­formações
focalizadas no momento por cada pessoa. É através dessas hipóteses
aprendidas, e não comprovadas, que a mente da mulher julga a si pró-
pria, as outras mulheres, os homens e as relações entre eles. Muitas
vezes, privadas de outros “programas mentais” diferentes do imprimido,
para decifrar o observado, a mulher irá se avaliar – e não poderia ser di-
ferente – conforme regras rígidas e simples armaze­nadas em sua memó-
ria, prontas para serem detonadas: isso é certo, aquilo é errado.

A submissão da mulher torna-se, pela educação e condiciona­mento


continuado, não um ato de escolha consciente e livre, mas sim uma
obediência às pressões exercidas por forçar internas; um poder inscrito
duradouramente sob forma de esquemas de percepções, de disposições,
de como admirar, respeitar, amar etc. Em consequência, automatica-
mente, a pessoa torna-se sensível e reativa, ou insensível e não reativa,
a certos eventos. Ela reage prontamente a um ou outro estímulo e não
reage a outros.

Em qualquer lugar, em qualquer tempo, a mulher – como tam­bém o


homem – pensa e age comandada pela sua memória autobiográ­fica. Para
alguns, sua consciência, nada mais é do que o aprendido, na maioria das
vezes sem o desejar, trilhões de experiências armazenadas e disponíveis
são usadas no momento da avaliação e da ação. É mais fácil reagir ou
escapar de uma ordem externa, do que libertar-se da “pri­são perpétua”,
de uma imposição que vem de dentro. Apesar de não existirem escolhas
livres, pois só podemos pensar com o que temos internamente, muitos
imaginam que agem de uma maneira ou de outra devido à sua “liber-
dade” de escolha. Nada mais enganador, as bases do raciocínio foram
semeadas por mãos alheias apesar de serem per­cebidas como pressões
para agir de um determinado modo. Isso torna extremamente difícil, ou
impossível, lutar contra essas ideias espúrias que, uma vez assimiladas e
incorporadas em nossa mente, passam a fa­zer parte da estrutura mental
do infectado, levando seu portador a não mais saber qual parte pertence

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ao vírus e qual pertence a ele próprio.

O indivíduo contaminado e dominado pelas ideias alheias, passa a


defendê-las, identificando-se com a crença do invasor, mesmo quan­
do os princípios assimilados atuam contra o desenvolvimento de suas
potencialidades. De um modo geral, acostumadas desce cedo a con­viver
com esse sistema assimilador defeituoso, elas tendem a rejeitar possíveis
contestações às crenças que habitam sua mente e que as escravizam, bem
como toda verificação empírico-lógica apresentada externamente.

Entretanto, elas não são totalmente fechadas ao mundo exterior. Têm


necessidade de alimentar-se de verificações e confirmações das crenças
adquiridas, selecionando somente os elementos ou aconte­cimentos que
as confirmam. Para isso, os eventos são filtrados pelo assimilador men-
tal e cuidadosamente submetidos a uma peneirada, retendo apenas os
resíduos possíveis de serem assimilados pelo mapa defeituoso, isto é, os
fatos que confirmam a inferioridade.

Em consequência, o Eu da pessoa que executa as atividades per­cebidas


pelo sistema de pressupostos da cultura como “inferiores” – funções
pouco desejadas e de menor importância social – fatalmente irá se
classificar como membro do grupo dos menos capazes, dos rejeitados e
sem regalias. A maioria das mulheres, sem nem mesmo atinar para esse
aprisionamento claro e visível demais, vasto e dura­douro demais, imagi-
nam tudo naturalmente como fazendo parte do gênero feminino bioló-
gico como a altura, o tamanho dos músculos, a distribuição de pelos, o
tipo de mamas, etc., características físicas sem possibilidade de serem
mudadas. Imersa nesse cipoal de concei­tos restritivos, a mulher ficou
impedida de tentar, ou mesmo imaginar, investir em atividades conside-
radas apropriadas para os homens. Der­rotadas e submissas, muitas vezes
acreditando pouco na sua própria capacidade, assim vive a maioria das
mulheres desse planeta. Muitas, apesar de degradadas pelas afirmações
tendenciosas, continuam de­fendendo e lutando, até à morte, pelas prer-
rogativas masculinas que as dominam e as massacram.

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A ilusão do privilégio masculino

O privilégio masculino não deixa de ser, em parte, enganoso. Os ho-


mens, como as mulheres, também estão dominados pelas crenças
culturais a respeito do próprio sexo e do das mulheres. As regras de
como se comportar pressiona o homem a confirmar, em toda e qual­
quer circunstância, as prescrições embutidas nas normas existentes a
respeito do seu gênero, isto é, de sua virilidade. O “homem verda­deiro”,
o macho, é aquele que comporta-se procurando, a todo custo, honrar
a masculinidade idealizada pelo grupo de referência pois, só assim, ele
alcançará a glória, a distinção entre seus pares e ouvirá o elogio espe-
rado com ansiedade: “este sim, é que é um homem.” A maioria não se
apercebe da representação dominante na qual está in­serido: ser homem
implica uma maneira de andar – como se isso fosse natural – aprumar o
corpo, erguer a cabeça, pisar duro, mostrar uma atitude e uma maneira
de pensar e agir, bem como possuir uma ética e crença adequada ao seu
sexo masculino.

A “estrutura masculina” assimilada funciona como uma pressão que


impele o homem viril para um destino que ele não escolheu. Este impul-
so invisível e astuto, sentido como inevitável, obriga seu possuidor a agir,
sem raciocinar, conforme os cânones impostos e, uma vez acomodada
no ninho propício, transforma-se num ente su­perior incorporado ao
organismo. A ideia-mãe, dando crias, ou seja, formando novas opiniões
correlacionadas, funciona como um desti­no, uma inclinação que deve
ser cumprida a qualquer preço. A identi­dade desejada, inscrita em sua
alma, só será alcançada por aquele que obedecer, cega e fielmente, a or-
dem superior. A submissão à doutrina transforma-se no ideal supremo.
O sistema de exigências, torna-se um hábito, comandando a forma de
viver da pessoa.

Para provar a “masculinidade”, exibir e exercitar o comando interno da


virilidade, inúmeros ritos foram instituídos pelo sistema de crenças,

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convertendo-se em atos, criando corpo: calouradas bem como outras
festividades existentes entre escolares e militares. Estu­pros coletivos –
variante da visita em grupo às casas de prostituição, comuns antigamen-
te, brigas de torcidas, quebra-quebras, pichações em lugares perigosos,
esportes de alto risco, assassinatos em defesa da honra, etc. A demons-
tração de “coragem”, sinalizadora da virilida­de, é exigida em diversos
grupos masculinos: policiais e forças arma­das, principalmente as corpo-
rações de elite, bandos de delinquentes, trabalhadores em diversos gru-
pos, etc. Em todos eles, incentiva-se o enfrentamento do perigo e critica-
-se o uso da prudência. Nesses casos, a bravura e a nobreza somente são
admiradas, caso a pessoa enfrente a possibilidade de sofrer acidentes.

O que mais chama a atenção em todas essas condutas próprias dos


“machos”, é que elas apoiam-se, paradoxalmente, no medo de perder a
autoestima e a estima dos outros, caso não consiga, ou não seja capaz,
de se comportar conforme as normas impostas. O ato de “coragem”
manifesta-se, provocado pelo medo, de ser tachado de covarde, mulher-
zinha, efeminado ou veado, gerando insegurança na mente do acusado.
Portanto, diversas condutas masculinas promovi­das para demonstrar
“coragem”, assentam-se no receio de ir contra a opinião generalizada do
grupo, em ter que agir da forma estabelecida pelo domínio simbólico,
pois só assim provará para os outros e será proclamado viril. Agindo de
forma diferente poderá ser excluído do mundo dos homens fortes, sem
fraquezas, dos chamados de “duros”, como certos assassinos, torturado-
res, alguns patrões e professores.

Ardil para estabilizar a sociedade: Os papéis

Para que haja harmonia social, é preciso nivelar, isto é, condu­zir para
um ponto comum a forma de pensar das pessoas. Para que haja a repro-
dução da força de trabalho há necessidade, não apenas da reprodução
da qualificação profissional, mas também, e ao mesmo tempo, que haja
a reprodução da submissão às regras da ordem esta­belecida. Não have-
ria ordem e harmonia nas ações caso não houves­se um entendimento e

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acordo com respeito à ideologia dominante: é preciso que todos compre-
endem e aceitem, com naturalidade, as informações culturais simples,
entre elas quem deve e pode mandar, quem deve e precisa obedecer.

Da mesma forma, para que haja “harmonia social” entre os sexos “su-
perior” e o “inferior”, torna-se necessário que os símbolos usados pelo
“superior” – manipulador do domínio e da repressão (Estado, Direito
e Polícia) possam ser entendidos pelo “inferior” dominado – povo em
geral – se possível, com simplicidade e orgulho. É preciso que o discurso
não-igualitário, instituído de cima para baixo por um grupo, seja assimi-
lado e entendido pelo outro grupo sem restrições.

Somente se a maioria da população for contaminada pela ideo­logia


dominante, adotando-a como fazendo parte do seu ser, haverá paz e só
assim será possível a convivência pacífica entre os grupos de cima e os
de baixo e vice-versa, fazendo com que cada classe cumpra as tarefas
sociais a ela destinada, “livre e conscientemente”. De um lado, o grupo
dos dominados, de outro, o dos dominadores e auxilia­res do domínio
como os administradores, os sacerdotes da ideologia dominante, os
promulgadores como os funcionários encarregados da propaganda, etc.
Para existir a paz perfeita, todos devem usar, com prazer e naturalidade,
a mesma linguagem, concordar com os pontos básicos, para “o bem das
pessoa, família, povo, nação e tradição”. Além disso, os pontos contradi-
tórios ou injustos devem ser encober­tos e idealizados como benéficos e
justos, pois só assim o governo alcançará sua principal meta: manter a
ordem social.

A ordem social não poderia ser mantida apenas com a divisão simples
de um grupo superior e outro inferior. Haveria sublevação da ordem
pública, caso existisse apenas a afirmação da inferioridade da mulher.
Era preciso criar, além dessa “ordem”, um outro sistema de crenças,
circundando o primeiro, para que as mulheres e outros estigmatizados,
pudessem, não só aceitar pacificamente seu papel, mas também, “valori-
zar” a inferioridade.

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Com esmero e sabedoria, astutamente foram inventados siste­mas de
crenças de níveis logicamente mais elevados – que englobam outros –
estabelecendo a paz entre “superiores” e “inferiores”. Para isso a socieda-
de dominante construiu a valorização espectral, fictí­cia, de atributos e
papéis dos dois sexos. Maquiavelicamente, para que certas profissões ou
ações pudessem ser seguidas sem revolta, até mesmo com certo orgulho
e prazer e, logicamente, não surgisse a baderna, criou-se uma ideia-cha-
ve: um novo mito, um novo domínio simbólico, ramo do sistema geral,
enfatizando, com muita fé, a valori­zação de todo e qualquer trabalho,
seja lá qual for. Essa ideia, inicial­mente absurda, foi sendo divulgada e
defendida pelos dirigentes e ouvidas com certa incredulidade por todos.
Entretanto, aos poucos, a mentira foi se transformando em “verdade”
simbólica, evidente­mente, não real.

Os órgãos superiores unidos, Estado, Igreja, Lei e Escola, de­fenderam


e exaltaram a “verdade” nascida da ficção: “todo trabalho é nobre”. Aos
poucos, o engodo foi crescendo, passando a ter vida própria, dando
troncos, ramos e folhas. Bem firme, a ficção foi se tornando cada vez
mais verdadeira. Todo trabalho passou a ser eleva­do, glorificado, todos
trabalhadores passaram a ser abençoados por Deus e, como consequên-
cia, seu executor passou a sentir orgulho de realizar, para o próprio bem,
e principalmente dos Senhores, todo e qualquer trabalho. Não faz muito
tempo, o trabalho era visto como penoso e até degradante, principal-
mente os chamados “trabalhos braçais”.

Agora, os tempos mudaram, o trabalho submisso, as profissões penosas


e tidas com inferiores, as atividades cansativas e sujas foram adquirindo
status de majestosas, ilustres, quase divinas para as clas­ses “humildes”
e, desse modo, aceitas com grande orgulho por seus executores. Para
atiçar a mente do leitor, repito aqui frases frequen­temente repetidas: “O
trabalho enobrece o espírito”, “Todo trabalho é nobre e digno”, “Não há
diferença entre a atividade do lixeiro e do senador” e diversos outros
slogans do mesmo gênero que hipnotiza­ram todos nós.

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Uma vez inventado, imposto e aceito o novo valor supremo, foi possível
a criação de diversas outras afirmações derivadas da premis­sa inicial,
tais como: “ser um bom escravo é vantajoso”, “é glorioso servir a um
homem importante como o Dr. X”. Ficou fácil, para a maioria das mu-
lheres, ansiosamente buscar, com orgulho, ser uma ótima funcionária de
qualquer expoente, carregar às costas uma série de atividades cansativas,
trabalhar 30 horas por dia para o bem da empresa, em atividades pouco
ou nada valorizadas.

A mente do povo, uma vez invadida por esses conceitos, magica­mente,


por encanto, aquietou-se. A paz reinou nesse mundo de Deus, onde
cada um trabalha em louvor à ideia dominante, não em benefí­cio de seu
próprio e singular bem-estar. Dominados por essa auréola ofuscante,
incapazes de refutá-la, com orgulho repetimos: “Ela largou os estudos e
o emprego para poder amamentar o filho.”

Cada frase desse tipo não só tranquiliza o agente e executor, como tam-
bém lhe fornece, muita vezes, uma alegria e orgulho em realizar tarefas
quase penosas. Acalma o dominado, adoça a boca do servidor servil.

Por outro lado, o dominador, como o pai agressivo, o mau pa­trão, o pro-
fessor intolerante, o governo injusto, o ditador assassino, todos esses, em
lugar de serem agredidos pelos subordinados, rece­bem obediência, hon-
rarias, medalhas e gratidão dos dedicados servos, prontos para servir.
Contaminado por essas ideias, começo a acreditar que alguns nasceram
para mandar e outros para obedecer. Será?

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Duas Classes: Cultos e Incultos
A lei proíbe a segregação racial, entretanto a segre­gação cultural ocorre
em todo o mundo e ninguém reclama contra ela. Poucos a percebem,
ou talvez não desejem vê-la. Assistimos, continuamente, à formação de
grupos se­gregados quanto ao nível e profundidade dos conhecimen­
tos adquiridos. Com este desnível, cada grupo apresenta sensibilidade
diferente quanto aos estímulos e aconteci­mentos do mundo. A divisão
intelectual separa os indi­víduos de forma semelhante à existente com
respeito às posses materiais.

Para indicar melhor a separação entre as castas, certas cerimônias são


usadas pelos diferentes grupos. Alguns reali­zam reuniões ou festivida-
des semanais ou mensais, fazendo uso de roupas especiais, onde apenas
entram os “irmãos”, outros grupos têm sua própria imprensa, jornais
e revistas especializadas, sua linguagem e jargões como a Associação
Médica, a dos Engenheiros, do Banco do Brasil, dos Gays, das Mulheres
Nuas, da Agricultura, etc. Além disso, excur­sões e passeios são organiza-
dos e adaptados para as pesso­as do grupo. Até as praias do país tem sido
divididas confor­me as classes: média, rica, dos artistas e dos farofeiros.

Para aumentar ainda mais a separação, cada gru­po processa, assimila e


expressa as informações do meio através de conhecimentos e raciocínios
diferentes.

De outro modo, as premissas ou suposições básicas com que um grupo


raciocina, bem como as formas de atri­buir causalidade aos acontecimen-
tos, diferem frontalmen­te entre os cultos e incultos.

Um pequeno grupo raciocina seguindo as normas da lógica formal, já


o grande grupo usa e abusa do antro­pomorfismo, do animismo e do
pensamento mágico para compreender e explicar os acontecimentos. O

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resultado prático disso é que os incultos falham mais nas previsões dos
acontecimentos. A “lógica” dos incultos, afastada das regras tradicionais,
extrai conclusões esdrúxulas, liga in­formações que jamais estiveram
associadas, como disse minha faxineira: “Maria é esperta, porque nasceu
em São Paulo”.

No exercício da profissão médica nota-se facilmente essa diferença ao


examinar um paciente de um grupo e outro. A maneira de descrever o
aparecimento da doença, sua evolução, bem como os possíveis fatores
a ela asso­ciados, ou seja, suas possíveis “causas”, são descritas de forma
totalmente diversa pelos dois grupos. O “diálogo”, quando existe, en-
tre essas diferentes “castas”, é quase im­possível, pois um imenso vão os
separa.

Não há projeto para diminuir essa divisão. Tudo indica que, com o pas-
sar do tempo, o espaço entre os dois modos de pensar tende a aumentar.
O prejuízo é imenso para to­dos. Os fatores, econômico e término de
curso “superior”, não são os únicos responsáveis pela diferença. Existem
pessoas ricas, outras formadas no terceiro grau, que estão culturalmente
segregadas, fazendo parte do imenso grupo dos analfabetos ou semia-
nalfabetos.

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As Constituições que Passei na
Vida
Nasci em Itabira de Mato Dentro, sendo o décimo pri­meiro filho de
uma família de doze irmãos. Não participei, por conseguinte, da criação,
elaboração e discussão do que era certo ou errado: a “Carta Magna” de
minha família, a “lei” do permitido e do proibido, do “bom” e do “mau”
– já há muito havia sido promulgada, não tendo contado com a minha
colaboração. Eu devia respeitá-la, cooperando com o poder que emana-
va de meu pai e minha mãe. Por ser criança, sem condição física, inte-
lectual ou cultural, tinha de seguir as normas e, se quisesse ser aceito,
deveria tra­balhar para a manutenção delas.

Assim sendo, aprendi que o partido Republicano de Arthur da Silva


Bernardes era o certo, e todos os políticos e seguidores daquele parti-
do eram homens bons, honestos, de princípios justos e interessados no
bem-estar geral.

Aprendi que devia rezar todas as noites três Ave-Ma­rias e três Padre-
-Nossos e, em momentos de maior perigo, a Salve-Rainha. Devia ir à
missa aos domingos, confessar-me pelo menos uma vez ao ano e rezar
algumas Ave-Ma­rias extras às três horas da tarde da Sexta-Feira Santa,
as quais, uma vez estocadas, seriam de grande valia em momentos de
grande aflição. Diga-se de passagem, eu as venho usando atualmente em
grande quantidade, pois têm sido frequentes os meus apuros. Felizmen-
te, daquele esto­que de preces ainda conto com umas boas reservas.

Aprendi que não devia roubar, mas que furtar frutas no quintal do vizi-
nho, quando houvesse abundância delas, era tolerável.

Não devia maltratar certos animais, mas podia matar galinhas e sapos.

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Devia matar, sem piedade, escorpiões, cobras venenosas, marimbondos
e mosquitos. Abelhas, não, louva-a-deus e andorinha, nunca.

Devia obedecer aos pais, aos professores, assim como ao governo do


partido republicano, mas rebelar-me contra o governo de Vargas ou o de
Benedito Valadares, pois eles eram errados e maus.

Aprendi que, à escola, à missa e ao dentista (não me lembro se ao médi-


co), eu devia ir limpo e calçado. Fora daqueles “templos” eu podia – e até
devia – andar descalço para economizar sapatos e usar roupas velhas e
estraga­das pelos mesmos motivos.

Aprendi que, nas refeições, eu podia comer um ovo, um pedaço peque-


no de frango e, no pão, deveria pôr pou­ca manteiga de um lado só do
pão. Nunca era permitido jogar comida fora, pois outros meninos não
tinham o que comer, logo, isso seria um pecado.

Não devia falar mentiras em hipótese nenhuma. Mas essa regra come-
çou a ser burlada ainda cedo, depois que, no grupo “Barão de Macaú-
bas”, onde estudava, fui obriga­do pela professora de Religião a retirar a
imagem de Cristo da sala de aula, por não ter ido à missa no domingo
e con­fessado contritamente a minha falta. A partir daí descobri que era
menos penoso ir contra o preceito de minha mãe – não mentir – do que
suportar o castigo de d. Mercês – ex­pulsar o Cristo da sala de aula quan-
do não fosse à Missa.

Aprendi que, sendo homem, não podia chorar, fugir a uma briga, assim
como achar outro homem bonito.

Aprendi que eu seria o responsável – e ninguém mais – por decisões


como beber, fumar, sair de casa, “transar”, escolher uma profissão. O que
não podia era ficar sem es­tudar ou trabalhar.

Tornei-me adolescente convivendo intimamente, num time de futebol,

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com quase-favelados (naquela época não havia ainda favelas): sapateiros,
capinadores de rua, “cha­pas”, serventes, carvoeiros, alcoólatras e até as-
saltantes – embora “fichinhas” para a época atual. Seus valores e sua hie-
rarquia – a sua “constituição” – eram-me estranhos, mas interessantes,
pela novidade. Suas leis eram outras: defendiam a supremacia do mais
forte fisicamente sobre o mais fraco, a masculinidade do que conseguisse
tomar mais pinga ou transar com um maior número de prostitu­tas da
rua Guaicurus. Eu era obrigado, às vezes, a fazer algumas concessões às
leis desse grupo, outras vezes, às de minha família. Ao mesmo tempo
tinha de associá-las no meu eu. Não era fácil: quebrei cabeça para con-
ciliar as duas ordens e sobreviver a ambas. Escapuli desta enrasca­da não
sendo mais fiel a uma do que a outra regra. Iniciei assim a formação de
minha individualidade, fruto dessas duas escolas às vezes antagônicas,
mas com muitos pon­tos comuns, como só agora percebo.

Estabeleci para mim uma consciência exigente, disci­plinada e original,


que ia impondo objetivos e promovendo meios de alcançá-los, custas-
se o que custasse. Tinha que chegar aonde minha mente determinava.
Corajosamente, entrei no paraíso selvagem da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal de Minas Gerais.

Nesse ambiente, que nada tinha a ver com as mesas de boteco da zona
boêmia ou com minha casa, utilizavam-se palavras venenosas, porém
adocicadas, ditas na maio­ria das vezes com gentileza hipócrita.

Imperava entre os colegas uma competição doentia, “cada um por si”:


era a lei da selva. As informações sobre textos e questões de prova eram
escondidas a sete chaves por – e para – alguns “iniciados”.

Os parentes e amigos dos “poderosos”, alguns poucos escolhidos, eram


visível e arrogantemente ajudados, pro­tegidos e elogiados.

Nós, participantes da maioria sem poder econômico, de parentesco ou


político, éramos rejeitados. Eu não per­cebia claramente que havia uma

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luta pelo poder e uma tentativa dos seus detentores de não dividi-lo,
mantendo-o limitado ao exercício por uma minoria.

Era ideia minha que, se seguisse as leis do bom Cris­tão de Itabira, eu


seria tratado com respeito e dignida­de na Escola, teria as oportunidades
dos outros e talvez pudesse até ser admirado, já que o hábito de obede-
cer a regras de grupos fazia de mim um aluno cooperativo e ajustado.
Mas ali as leis eram muito diferentes e eu é que não sabia disso.

Achava que estava participando ativamente de movi­mentos compatíveis


com os altos ideais da Faculdade, mas eu apenas podia votar, ora num,
ora noutro candidato, e eram sempre os mesmos relacionados entre a
minoria do­minante, lutando para preservar ou aumentar os poderes
adquiridos.

Sonhava que os meus interesses seriam defendidos nas diretorias, mas


no fundo eles eram ignorados, pois conflitavam com os interesses dos lí-
deres. Como disse, as normas impostas e garantidas pelos detentores do
poder, na Faculdade, diferiam e muito da constituição vigente na família
e das do grupo de companheiros.

Tendo, por fim, entendido isso, penosa e rebeldemen­te passei a receber,


como um golpe na face, as leis dos médicos.

1º – Nunca se emocione com o sofrimento de seu pa­ciente ou da fa-


mília dele, para não atrapalhar seu trabalho ou julgamento.

2º – Trate o cliente como paciente. Saúde-o e conver­se com ele e seus


familiares, mantendo distância, pois é ele quem precisa de você: o poder
está em suas mãos.

3º – Forme seu grupo, faça parte das associações de classe, senão você
estará perdido. Os fortes, além de não o protegerem, poderão destruí-lo.

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4º – Use uma expressão, um andar, um vocabulário típico do médico,
identifique-se com a classe, perca a es­pontaneidade, só assim você será
entendido pelos seus pares e manterá o poder sobre seu cliente, que se
sentirá inferior a você.

5º – Não seja simples: monte um consultório de luxo, em bairro nobre,


de preferência com aparelhos sofistica­dos, mesmo que inúteis, para
impressionar,

6º – Peça vários exames, use o mínimo sua própria cabeça para não
cansá-la e, se possível, faça diagnósticos complicados para valorizar seu
trabalho.

7º – Interne seu paciente psiquiátrico sempre que pu­der, pois isso dará
a você “mais conforto e segurança com menos trabalho”, talvez, até mais
dinheiro e mais poder.

8º – Associe-se a algum grupo teórico, de preferência entre os psica-


nalistas, para com eles se sentir protegido pelo seu poder nos departa-
mentos e diante do público. Através desse grupo, você poderá até rece-
ber clientes dos mais poderosos, quando estes os tiverem de sobra.

Passou-se o tempo, eu não estava mais muito preso às leis da antiga


família itabirana, nem do grupo de esporte e farras, mas também não
conseguia compreender muito bem e introjetar as leis da Faculdade de
Medicina. E não consigo até hoje. Tornei-me um solitário rebelde, mas,
fe­lizmente, sempre tive companheiros que também não co­mungaram
com aquelas diretrizes. Lamentavelmente, um bom número de médicos
seguiu e segue a sério tais leis.

Confuso, inconformado, buscando um sentido, um poder mais pessoal e


não institucional, valores, liberdades individuais e mais espontaneidade,
eu ingressei na Facul­dade de Filosofia. Ali, nova constituição há muito
tinha sido promulgada. Nova reviravolta, tanto nos meus objetivos de

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vida, como nos meios para alcançá-los. Percebi que não há verdades e
certezas eternas: tudo o que havia aprendido antes como certo, eram
mitos, concepções do mundo. Tor­nei-me um doido. Percebi a subjetivi-
dade da objetividade médica, a defesa constante, por uma parte da classe
mé­dica, de valores duvidosos da nossa sociedade, a hipocri­sia frequente
num discurso médico paternal, protetor, mas cuja intenção é manter
seus próprios valores, segundo os quais o paciente deve submeter-se
como animal ou coisa ao seu poder. Em resumo, percebi que, na Facul-
dade de Medicina e na classe médica, uma boa parte de estudantes e
profissionais defendem e preservam o conformismo e não as mudanças
reais que valorizam o indivíduo como ser único.

Você também, prezado leitor, que nasceu na família Silva ou Souza, sabe
o que é bom ou mau. Você também está sujeito a centenas ou milhares
dessas leis, sem tê-las criado.

Elas entraram na sua vida e na sua mente sem serem criticadas ou ana-
lisadas: entraram como transe hipnótico. Comece a analisá-las: veja se
elas o estão ajudando, ou não, a ver melhor. As que o estão prejudican-
do-o, jogue-as fora.

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A Multidão Solitária
Se você não é a favor dessa ideia, lute pela contrária. Assim como os
policiais devem combater os criminosos, alguém deve combater os
policiais. É preciso proteger as árvores, mas é preciso, também, ter mais
empregos e in­dústrias. Os fiscais devem fiscalizar os preços e nós te-
mos que fiscalizar os fiscais. Devemos ir ao teatro e ao futebol. Mas, e o
aborto? Ah! Devemos combatê-lo com rigor, mas precisamos proteger a
liberdade e os direitos das mulheres de terem ou não filhos. Como agir?

Cada um acha que seu problema é o mais importante. O envolvimento


com esses “ideais” fornece ao organismo um bem-estar, pois aumenta
os estoques empobrecidos pelas frustrações de substâncias químicas
como a sero­tonina, dopamina, noradrenalina, oxitocina, endorfinas e
outros neuropéptides mais, todas substâncias importantes para nosso
bem-estar. Devem diminuir os impostos que me atingem e aumentar os
dos outros. Precisamos proteger os animais. Coitado deles! Na primeira
oportunidade o defen­sor dessa ideia esmaga uma formiga trabalhadora
e séria, aniquila um inocente pernilongo-fêmea que necessita de um
pouco de sangue para que sua espécie não desapareça e pisa, sem dó
nem piedade, numa barata que passeia cal­mamente à noite, na cozinha,
em busca de uma paquera ou de um jantar de migalhas abandonadas.
Combate-se com veemência a matança das raposas que comem as ma­
gras galinhas do lavrador faminto. Tudo são valores! O que será melhor:
comer abóboras ou assistir à ópera, manter as florestas ou aumentar
empregos?

Essas tomadas de posição por algo têm uma impor­tante função social.
Precisamos dessas discussões e deve­mos tomar parte nelas. Qualquer
movimento social seja real ou fictício, importante ou não, agradável
ou aversivo, sábio ou idiota, liberta, ainda que por momentos, o indi­
víduo de seu vazio, de sua depressão, ou melhor, de sua desesperança e

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desamparo com esse mundo confuso. É preciso estar envolvido! O povo
procura, fora de si, uma “causa” para ser seguida, por isso são sempre
bem-vindas ações governamentais ou não-governamentais para “dis­
trair o povo”, para promover estoques das benditas subs­tâncias químicas
que nos põem alegres e animados, cheios de esperança com respeito a
qualquer bobagem. Tudo ser­ve para aliviar o povo do seu desengano,
sofrimento e, principalmente, da ausência de objetivos próprios.

Mas para conseguirmos um alívio mais eficaz do té­dio, precisamos ter


companheiros, alguém que tenha a mesma fé, acredite e lute pelos mes-
mos valores. Ligados a uma causa comum, os seres humanos se sentem
sa­tisfeitos, seguros e, quase sempre, entusiasmados com a própria alien-
ação, bem como a dos amigos. Uma multi­dão perdida, uma vez reunida
sob o mesmo guardachuva conceitual, descobre, irmanada, um sentido
imaginário e atraente para participar, de braços dados, de qualquer jor­
nada. Agarrados uns aos outros, como crianças amedron­tadas se pren-
dem à saia da mãe, esses indivíduos realizam seus sonhos e esquecem,
provisoriamente, da miserável e chata vida do dia-a-dia. Amparados em
bandeiras podres, protegidos por venerar os mesmos objetivos duvi-
dosos, excitados e sem refletir, eles planejam, estabelecem e dão sentido
a um programa de vida sem sentido. Passam a ter um “ideal” para lutar,
brigar e até morrer.

Quem ainda não entrou para um grupo desses, não se aflija. Existem
vagas em diversos clubes: entre rápido para o fã Clube de Carmen Mi-
randa, colecione “souvenirs” deixados por James Dean, Michael Jack-
son, participe dos estudos dos Objetos Não-Identificados, frequente o
clube dos machões ou das feministas, compre depressa ingres­sos para o
maravilhoso “show” do cantor X, o curso para “Ser Feliz” do Professor Z.
Na ausência de tudo disso, faça parte do clube dos amigos de qualquer
coisa. O nome não importa. Se este não for seu caso, para o bem de
sua saú­de mental, comece a comprar. Compre qualquer coisa: um lápis
colorido, um Papai Noel, uma boneca, uma cafeteira, uma camisa do
seu time ou uma arca enorme para guardar tudo. É tempo de festa. O

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importante é o entusiasmo por algo e, talvez, quanto mais ridículo e es-
tranho, maior efei­to terá na produção de energia, de prazer e de alegria
de viver. Esse é o mundo sonhado pelo homem moderno que está em
construção. Ou será em desconstrução?

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O que Desejam as Pessoas?
Muitas pessoas desejam não ser obesas, nem cheirar mal, ter filhos
lindos e saudáveis, ter boa saúde, belos dentes e um sorriso bonito. Ter
dinheiro, boas roupas, um carro possante, uma casa sem barulho, segura
e confor­tável. Estar cercadas de amigos e familiares, não serem feias,
amar e serem amadas, possuir coisas valiosas, ter sucesso na profissão
e no casamento. Terem uma autoes­tima alta, não serem passadas para
trás, fazerem viagens maravilhosas e, por fim, terem uma boa velhice e
uma morte digna.

Mas as pessoas não se preocupam se seu desejo, uma vez realizado, será
bom ou não para elas. Nossos desejos estão presos a valores e estes são
transmitidos na infância, aprendidos sem critério do meio social ou sur-
gem como reações ao ambiente. As crenças, desejos e os valo­res passam
de uma pessoa à outra, geralmente na infância e adolescência, através do
contato e aprendizagem com indivíduos “dignos de crédito”.

Cada pessoa, dependendo do seu sistema de valores, de suas premissas


básicas, defende com ardor seus dese­jos. Assim, o “hedonista” valoriza
e quer “levar vantagem em tudo”, busca o prazer e foge do sofrimento.
O prático, adepto da ética utilitária, dá prioridade ao útil. Os seguido­
res da ética social afirmarão seguros: “tudo que melhore as condições
sociais dos homens deve ser procurado em pri­meiro lugar”. Os fiéis da
ética religiosa evitam os pecados e procuram a conduta virtuosa reve-
lada e prescrita pela religião seguida. Para os “naturalistas”, adeptos da
ética do organismo, o bom é ter uma mente sã junto ao corpo forte,
bonito e saudável e, assim, devemos fazer exercícios físicos, comer frutas
e legumes, evitar bebidas alcoólicas, drogas e o fumo. Os relativistas, em
dúvida, pensam: “o critério do que é bom e mau depende do indivíduo e
da situação onde se dá o fato, tudo é relativo”.

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Os artistas, seguidores dos valores estéticos, exal­tam o belo e o sublime e
rejeitam o feio e o ridículo. O justiceiro, defensor incansável dos valores
do que é certo, luta, com as leis ou as armas, pela justiça e punição dos
“culpados”. Os adeptos da política discursam em defesa do poder, do
governo e, por fim, os lógicos lutarão pela verdade, a certeza e abomi-
nam o raciocínio incongruente ou falso. Existem outros valores defendi-
dos com “unhas e dentes” pelos seus partidários. Todo homem valoriza
mais alguma coisa do que outra e pensa que os valores do ou­tro, quando
diferentes dos seus, são mesquinhos, idiotas e absurdos.

Não existem valores objetivos. Não se pode falar que isto é melhor do
que aquilo, ou é “melhor” comer chuchu do que dançar”. Não se pode
comparar uma coisa com a outra, quando não há parâmetro para isso.
Não há nada que seja bom para todos e mau para todos. Os governan­tes
sofrem por isso. Os moradores da rua Maria de Souza acham que a pre-
feitura deveria, prioritariamente, calçá-la, mas a comunidade do Bairro
Esperança pensa ser “absur­do” não existir uma linha de ônibus para
servir a região. Um grupo acha que as árvores devem ser cortadas para a
construção de uma fábrica, pois esta gerará mais empre­gos em Santana
da Misericórdia. Mas outros fazem abaixoassinado contra o corte, pois
este irá perturbar o equilíbrio ecológico.

As nossas instituições sociais não possuem uma ma­neira fácil ou mágica


de tratar os valores antagônicos e múltiplos, como se descreveu acima.
Precisamos de em­pregos e de um bom meio ambiente. As discussões
acerca do melhor, para um ou para todos, continuarão eterna­mente,
para alegria dos defensores de qualquer uma des­sas ideias.

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Dinheiro, Nossa Atual Devoção
“Vivemos num tempo em que nossas únicas necessidades são as coisas
desnecessárias.”

Oscar Wilde

Dinheiro, nossa atual devoçãoÉ preciso gastar menos: estamos numa


“economia de guerra”. Acabaram-se os nossos míseros reais. Nada de
gastos com revistas e livros. Ideias novas são supérfluas, pois já temos as
velhas que nos bastam. O nosso cérebro necessita apenas de glicose para
manter-se vivo sem en­trar em coma, assim ele poderá assistir e apreciar
essa tragicomédia econômica que ora nos apresenta.

Assistimos, impotentes, à ascensão ao poder de um novo grupo de pro-


fissionais, os economistas. Essa nova eli­te, ao tomar consciência do seu
poder, passou a ditar nor­mas acerca de salários, empregos, horários e
tudo mais. Por que não dizer, de nossas vidas?

Os sábios profetas da economia são muitos. Os jornais e as TVs di-


vulgam a todo momento suas profecias e eles, sem nada cobrar, acon-
selham-nos a economizar mais, para o sucesso do modelo capitalista
“trabalho e produção”. Os economistas conhecem melhor do que nós
mesmos o que se deve fazer com o nosso dinheiro, como por exemplo:
onde guardá-lo, quando tirá-lo, em que lugar devemos passar nossas
férias e se devemos ir de avião, ônibus ou a pé a Itabira ou a Tóquio.
Quando devemos nos aposentar ou resgatar o Pis e Pasep, a maneira de
alugar um imóvel, quando vender ou comprar ouro e dólar e até se de-
vemos abandonar a profissão de engenheiro, trocando-a pela de florista.
Ninguém precisa pensar, menos ainda refletir, pois existem “gênios” que
pensam por nós, todos especialistas nisso ou naquilo.

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Vivemos a época de ouro da economia. A cada dia, ou talvez a cada
hora, são entrevistados luminares nessa ciência e estes descrevem, cada
um a seu modo, a situ­ação econômica do País, indicando, de maneira se-
gura, o que deve ser feito para tirar-nos da miséria, da dívida e do caos.

Infelizmente, os ministros, assim como os ex-secre­tários de Estado, só


conhecem as soluções econômicas adequadas para o País quando largam
os cargos, nunca durante o exercício de suas atividades. Economistas
diver­sos, candidatos a cargos no governo, professores, PhDs diversos e
até alguns amadores iniciados no assunto criti­cam a política econômica
com sabedoria.

O dinheiro agora é o nosso rei e talvez o nosso Deus, pois foi promovido
pelos fabricantes da cultura, de “meio” a “fim”. O dinheiro que era um
instrumento utilizado para se alcançar algum objetivo, tornou-se atual
sistema de va­lores sociais, o próprio alvo a ser atingido.

Os subprodutos do dinheiro, como os salários, gastos, etc., comandam


atualmente nossas ações e intenções. Nós nos preocupamos muito com
o prejuízo financeiro de um acidente e pouco, ou quase nada, com o
sofrimento das pessoas envolvidas. Mortes de indivíduos são analisa-
das muitas vezes com respeito ao seguro a ser recebido ou à economia
ocorrida com sua morte. Algumas religiões são fundadas em busca de
dinheiro, filhos matam os pais para receber a herança e alguns se suici-
dam porque suas fortu­nas estão se esvaindo. Assistimos a esse espetácu-
lo com naturalidade, sem espantar-nos, pois estamos julgando os fatos
com os mesmos modelos conceituais dos protagonis­tas das ações.

O valor instrumental do dinheiro está ganhando a luta contra todos


os outros valores humanos. Poucos atualmen­te são capazes de apreciar
outros valores – uma boa bebida ou comida, um passeio, uma visita –
sem imaginar o custo em dinheiro de cada uma dessas ações. Talvez,
pior ainda, a maioria das pessoas não consiga bater um bom papo ou
amar alguém sem contabilizar os gastos ocorridos durante esse tempo e

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que poderiam ser convertidos em produção e dinheiro, como manda o
modelo econômico vigente.
Prezado leitor, como psiquiatra que sou, tenho como obsessão a tendên-
cia a dar conselhos, e aqui aproveito a oportunidade para opinar contra
os conselhos dados por alguns economistas.

1) Ao tomar o seu café sinta o seu paladar, calor e aroma e não pense no
preço do pó, da água, da energia e da mão-de-obra.

2) Ao abraçar e beijar o seu amado, ao acariciar os seus cabelos, sinta as


sensações provenientes do seu rosto, lábios ou das suas mãos e, pelo me-
nos naquele instante, não pense no dinheiro que está sendo gasto com
o batom que desaparece ou com o penteado desfeito, pois, caso tudo dê
certo, o que é o esperado, você terá outros ganhos e prazeres, que são
para alguns poucos seres humanos mais importantes que o dinheiro
guardado no cofre.

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Senhores do Poder
Certas propagandas sedutoras conseguem fazer com que boa parte da
população saia de casa para ver um de­terminado filme, abandone tudo
para assistir a uma no­vela, tome banho com um certo sabonete durante
anos e vista uma calça desconfortável, ou engula um fortifican­te sem
precisar dele. Não é difícil constatar que certas crenças, introduzidas em
nossa mente, comandam o nosso comportamento.

Alguns homens, por diversos motivos, forçam outros a pensarem de


acordo com seus princípios e suas regras. Frequentemente, ideias pro-
postas pelos poderosos se es­palham e são incorporadas por um grande
número de pes­soas, que passam a viver sob o comando dessas crenças,
na ilusão de que não há nada melhor para se fazer.

Acreditamos e copiamos muito as supostas preferên­cias de pessoas


conhecidas, principalmente se são pessoas de prestígio. Assim passamos
a usar uma certa bateria em nosso carro, pois o famoso piloto disse que
ela é a melhor, jogamos na loteria, pois o jogador de futebol nos incen­
tivou a comprar o bilhete, passamos a morar num certo bairro, pois o
grupo com o qual nos identificamos e ao qual almejamos pertencer, ali
reside.

Todos nós já sofremos desenganos por aceitar a cren­ça embutida no


ditado popular “a voz do povo é a voz de Deus”. E sabemos muito bem,
que uma conduta utilizada por muitos não fornece necessariamente
informações cor­retas e garantidas acerca de uma realidade, da mesma
for­ma que um julgamento com o qual a maioria das pessoas está de
acordo, nem sempre é digno de confiança e nem ser aceito sem objeções
ou dúvidas.

Todos nós temos certo receio de pensar de modo di­ferente de nossos

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companheiros e isso nos leva a emitir opiniões quase sempre seme-
lhantes às do nosso grupo. Para complicar nossa submissão às ideias
coletivas, há uma tendência universal em ridicularizar os pontos de vis­ta
divergentes, ou pensamentos singulares, que são consi­derados pilhéria,
sinal de burrice e até indício de loucura.

Uma vez expostas às pressões grupais, as pessoas tendem a pensar e


a dar opiniões de maneira convergente, isto é, iguais à de todos. Num
clima desses torna-se difícil o aparecimento de novas ideias e novas de-
cisões. Assim o grupo tende a ficar em paz, mas estagnado. Com triste­za
lembramos do apoio dado por quase toda a população brasileira ao en-
tão candidato à presidência do país, Jânio Quadros, e outros semelhan-
tes. O famigerado plano cru­zado também foi amplamente louvado e deu
no que deu… e não é difícil para nós lembrarmos situações semelhantes
mais recentes.

Quem controla ou dirige essas oscilações de opiniões dos grupos ou


das populações? Não é difícil perceber, se abrirmos os olhos, que alguns
poucos, usando nomes, dis­farces, truques e slogans sugestivos, são o
sedutores crô­nicos da população. Eles controlam nosso comportamento
e até nosso modo de pensar.

De uns tempos para cá um novo grupo vem ganhando notoriedade e


poder sobre as nossas ações: os tecnocratas. Este grupo é formado por
alguns senhores sisudos, espe­cialistas em técnicas e processos diversos.

Eles falam de um modo diferente do nosso e entram em contato com a


população através de ordens dadas em forma de portarias e pacotes.

Os tecnocratas não bolem apenas na nossa poupan­ça, seu campo é


vasto. Através de investigações sigilo­sas incriminaram alguns banquei-
ros, colocando-nos contra eles. Até aí nada demais. Depois foi a vez de
empresários diversos, logo após atingiram os trabalhadores ligados à
economia informal. Mais tarde viraram-se contra alguns médicos do

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serviço público e agora, numa grande jogada, acionaram suas garras
para atingir milhares de funcioná­rios públicos federais.
Quem será o próximo a ser atingido, ninguém pode adivinhar, mas
suponho que seremos todos nós. Muitos escaparam, mas possivelmente
por pouco tempo. Os tec­nocratas conhecem, mais do que ninguém, o
nosso ponto vulnerável ou pelo menos a nossa intenção muito escon­
dida de, a qualquer momento, fazer uma trapaça contra o honesto
governo. Os tecnocratas são nossos senhores e deles podemos esperar
apenas misericórdia.

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Os Narcisistas Modernos
Conta-nos o mito que quando a ninfa Eco, terrivel­mente apaixonada
por Narciso, correu para junto dele para abraçá-lo, este, repelindo-a, lhe
disse: “Afasta-te, prefiro morrer a te deixar possuir-me”. Narciso, tendo
desprezado todas as ninfas como havia repelido a ninfa Eco, não ama­
va ninguém. Porém, um dia, a deusa da vingança cedeu a um pedido de
uma ninfa mal-amada fazendo com que Narciso se apaixonasse por si
mesmo.

Narciso, uma vez sob o encanto da deusa, foi sedu­zido por sua própria
beleza ao ver sua imagem refletida na água. Enfeitiçado, todas as vezes
que Narciso tentava abraçar e beijar sua própria imagem, esta desapare-
cia na água. A lenda termina com a morte de Narciso consumido pela
sua paixão.

Esta é a história do antigo Narciso. Os narcisistas mo­dernos agem dife-


rentemente. Eles cresceram em número, tanto assim que a Classificação
Internacional de Doenças Mentais (CID 10) reservou um lugar especial
para eles: “Transtorno da Personalidade Narcisista”.

Veja como ele foi descrito no CID 10: “o indivíduo apresenta um sen-
timento grandiloquente de sua própria importância ou do seu caráter
excepcional; preocupação com fantasias de êxito ilimitado; necessidade
exibicionista de atenção e de admiração constantes; respostas caracte­
rísticas às ameaças à sua autoestima; e perturbações no relacionamento
interpessoal, como sentimento de “ter di­reito” a exploração inter-pessoal
e ausência de empatia”.

O leitor atento identificará, entre amigos e inimigos, artistas, atletas,


políticos e outros, os novos narcisistas.

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As realizações dos narcisistas tendem a ser valoriza­das irrealisticamen-
te nas áreas de poder, riqueza, fama e beleza. O narcisista tenta de fato
alcançar tais objetivos, mas isso é feito de modo forçado e destituído de
prazer, com uma ambição que não pode ser satisfeita. No Brasil eles são
encontrados nas favelas, prisões, mansões e, com alguma frequência, nos
palácios. A forma da expressão de orgulho por si mesmo é que varia de
acordo com o grupo social ao qual o narcisista pertence.

A artista de TV narcisista, feia, inculta e burra fala acer­ca de sua beleza,


de seus dotes literários, de suas idéias po­líticas e do seu comportamento
sexual. Recebemos deles, gratuitamente, lições do seu modo particular
de encarar a realidade, que é tida, orgulhosamente, como certa.

O narcisista supõe ser ele capaz de fazer e pensar adequadamente a


respeito de tudo. Se ele foi bom letrista de música, poderá ser um bom
ministro, se foi professor, poderá desempenhar bem o papel de gover-
nante, se é pi­loto, poderá ser bom garoto propaganda, se é político, lo­
gicamente, poderá ser…, sei lá, qualquer coisa!

Na plateia, certo público cativo bate palmas, urra deslumbrado e en-


tusiasmado com as proezas de seu ídolo. Entretanto, outros se irritam,
xingam e jogam pedras ao se sentirem impotentes diante de seu poder.

A maioria, entediada, percebe a fragilidade do narci­sista escondida por


trás de sua máscara arrogante e prepo­tente e, indiferente às suas palavras
vazias, espera, alguns até oram, para que um dia cada narcisista siga o
exemplo do antigo Narciso do mito e acabe consumido pela sua paixão e
não mais tome nosso precioso tempo com suas chatices e gabarolices.

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Os Novos Deuses
O Deus primeiro e único não tem cara fechada, não sorri, não tem iate,
não tem salário, não agride e nem tem voz. Os novos deuses falam, ges-
ticulam, transam, namoram até pessoas do outro sexo, alguns cantam,
outros jogam e outros correm velozmente. Muitos ganham por mês mais
do que um operário ganha em toda sua vida de trabalho.

Todos os deuses são lindos, maravilhosos, ricos e jo­vens, conforme a


avaliação dos seus seguidores. Eles são adorados pelos seus fiéis se-
guidores, intocáveis e respei­tados pela mídia, governo e população em
geral. Os no­vos deuses são, graças a Deus, efêmeros. Somente alguns
permanecem reinando por um tempo mais longo.

Cada um dos deuses tem suas peculiaridades, entre­tanto eles apresen-


tam uma estrutura comum que os iguala e os identifica como produtos
de uma sociedade esquisita. Assim é que eles sempre falam acerca de
contratos novos, do próximo adversário que deve ser respeitado no
campo, sobre os novos lançamentos, as novas representações nos palcos
ou nas TVs, onde a atual é sempre superior às ante­riores e mais adapta-
das à sua personalidade. Outros falam sobre seu novo disco.

Mas há algo mais ainda que os une. Todos, sem ex­ceção, adoram contar
a sua vida. Estas são geralmente lindas, sofridas, cheia de coisas inter-
essantes. Eles todos, diferentes dos outros moradores desse mundo,
alcança­ram a fama através de “muito esforço e trabalho duro”. To­dos,
bondosamente, ensinam o que aprenderam aos seus admiradores.

Expressam seus valores e normas de vida para a po­pulação e sobretudo


sempre com alta sabedoria e segu­rança. Ora o discurso é acerca do seu
casamento exem­plar, ora da melhor maneira de transar e o melhor local
para isso. Nunca faltam instruções minuciosas a respeito de como alcan-

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çar a felicidade, viver uma boa vida, con­quistar amigos, ter fortunas e a
melhor religião a ser se­guida. Em resumo, eles sabem mais do que nós
mesmos o que devemos fazer para sermos felizes.

A maioria da população escuta atentamente cada fra­se de seus deuses,


se compraz e se embriaga na sua sa­bedoria fácil. Os novos deuses não
precisam estudar para conhecer, pois, privilegiados e iluminados que
são, torna­ram-se sábios através de revelações milagrosas.

Eles são procurados, entrevistados, observados e se­guidos continu-


amente. Os adoradores dos deuses sabem tudo acerca deles. Comentam
emocionados a troca da na­morada, que sempre é uma deusa ou deus,
seu novo con­trato, sua doença, seu filho que nasceu e assim por di-
ante. Todas as notícias sobre os deuses são lidas ou escutadas com mais
interesse do que as noticias chatas e conhecidas que ocorrem dentro de
nossa própria família, como o de­semprego do pai, a morte do irmão, a
separação do avô.

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Informação e Linguagem

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“Gays”, Loucos, Ateus e Velhos
O leitor poderá pensar que não há relação entre os conceitos acima
citados. Há sim. Todos são pessoas estigmatizadas pela nossa sociedade.
Poderíamos acrescentar outros: os negros, altos, obesos, paraplégicos,
aidéticos, leprosos, carecas, baixinhos e muitos outros.

Os gregos criaram o termo “estigma” para se referirem a sinais corporais


com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de ex­traordinário ou
de ruim nos seus possuidores. Os sinais mostravam que o portador era
um escravo, um criminoso ou um traidor. Uma vez portador do sinal,
esta pessoa deveria ser evitada, principalmente nos locais públicos, pelos
não-possuidores dos sinais. Hoje as “marcas” dos estigmatizados têm
outros simbolismos.

Os homens sempre classificaram os objetos, os animais ou eles próprios.


Ao categorizar, imaginamos estar reunindo indivíduos ou coisas seme-
lhantes e assim classificamos o cão, o homem, a pedra, a pulga e o pássa-
ro. Para reunirmos tudo num grupo, isolamos uma ou mais característi-
cas dos sujeitos observados – sem valorizar outros – e acreditamos que
as características enfatizadas indicam a semelhança. Assim feito, damos
certos nomes para os membros reunidos e passa­mos a imaginá-los como
semelhantes e os tratamos como tais.

Portanto, estigmatizar nada mais é do que classificar pessoas, selecionar


certas semelhanças entre elas. Entretanto, é diferente das classificações
neutras, ao imaginarmos que os indivíduos seleciona­dos (obesos, care-
cas, idosos, negros, etc.) são piores do que os sele­cionadores. É diferente
das classificações científicas, pois aqui identi­ficamos um atributo que é
imaginado pelo rotulador como negativo.

Os cientistas não desvalorizam uma pedra por ter ou não certa dureza,

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cor ou brilho. Entretanto, os preconceituosos ou estigmati­zadores per-
cebem a gordura em excesso, a cor da pele, a orientação sexual, a idade
ou crença religiosa como negativa, ruim, não-desejada ou não-estimada.
Uma vez inventado o perfil do estigmatizado, o rotu­lador imagina ser
ele, por não possuir o fator depreciado, melhor do que a outra pessoa.
Tudo muito simples.

Existem vários estigmas como os físicos (cegos, surdos, para­plégicos,


etc.), de comportamento (fraco, desonesto, louco, drogado, desempre-
gado, homossexual, político radical) e ainda de raça, nação e religião.
Os estigmatizados, conforme o dogma dos preconceituo­sos, carregam
traços negativos estimuladores de sua atenção. Uma vez elaborada a
classificação, o classificador não mais valoriza, ou não percebe, os outros
atributos da pessoa que iriam invalidar a classifi­cação feita.

Para dar uma falsa credibilidade às ideias tendenciosas, os pre­


conceituosos, demagogicamente, constroem uma teoria ou ideologia
tentando dar suporte ou explicar a “inferioridade” do estigmatizado
e, além disso, alertar as pessoas contra o perigo do contato com estes:
“É um louco. E os loucos são perigosos, pois não sabem o que fazem.
Conheço um que matou seu pai”. “É um negro, eles são preguiçosos por
natureza”. “É ateu. Os que não acreditam em Deus, têm ideias estranhas.
Para eles tudo é normal, pois não temem nada”. Essas pseudoteorias,
passadas de boca em boca, lamentavelmente são aceitas, compartilhadas
e tidas como verdadeiras por uma grande parte da população.

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Televisão e Burrice
Muitos pensam que alguns programas da televisão tornam as pessoas
idiotas. Nada mais errado. A TV jamais conseguiu transformar um cão,
uma pulga, uma pedra ou até mesmo um cavalo num burro. Também
não imbecilizou quem não a vê. Para que um evento como esse acon-
teça, é necessário que certos comportamentos existam nos dois lados.
Sempre há necessidade de um certo compromisso entre as duas partes
envolvidas, para que a consequência ocorra. Em outras palavras, para
que haja o emburreci­mento do telespectador, é necessário que haja
também uma prontidão, talvez um desejo do telespectador para facilitar
a tarefa da TV. Não é possível o poder ser exercido através apenas de um
lado, isto é, da TV.

Por outro lado, também sempre se acreditou que os meios de comuni-


cação, principalmente a TV, têm servido de instrumento de domínio
político. Antigamente acusaram certos livros como perigosos. A idéia
do efeito negativo da TV sobre a mente pressupõe a existência de um
telespec­tador de mente vazia, um folha de papel em branco, à mercê do
poder da TV. Esta ideia é falsa. A “página” que assiste TV já foi marcada
ou rascunhada muito antes.

Alguns falam que a TV difunde opiniões e anúncios enganadores e, por


isso mesmo, gera uma consciência falsa.

Os defensores da mente dos telespectadores acre­ditam que a TV, ao criar


um deslumbramento na pessoa, penetra subtilmente na mente do distra-
ído telespectador e aí coloca o que quiser. Ora, não é bem assim.

Como é sabido, durante a história do homem, os pais, a igreja, os profes-


sores, os companheiros e outros educa­dores difundiram condutas, ideias
e princípios na mente dos educandos, desde o nascimento. Muitos des-

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ses fun­damentos, que são falsos, apesar disso continuam a ser ensinados
como certos. São estes princípios que formam a base da mente que per-
mitem a entrada, a aceitação e a assimilação das informações vindas de
fora, da TV, supos­tamente novas. Sem esta base adquirida geralmente no
meio familiar e dos companheiros, a informação “nociva” fatalmente se-
ria rejeitada. Não é fácil para ninguém se li­vrar de ideias errôneas postas
cedo na vida, mesmo quan­do elas trazem sofrimento para seu possuidor.

A ideia do poder da TV sobre as pessoas utiliza um fundamento equi-


vocado. Acreditou-se que o ser humano é passivo, e não ativo, diante
dos estímulos do meio, e que esses atingem uma mente sem nada. Na
verdade, nossa mente filtra e seleciona nossas percepções. Todos teles­
pectadores, sem exceção, têm uma participação ativa na escolha e na
interpretação do que é transmitido. Em ou­tras palavras, a “vítima”, o
telespectador, antes de ligar o aparelho de TV, já tem sua mente pron-
ta para receber as informações carregadas de mitos, crendices, desejos
e sonhos. Qualquer pessoa tem ideias e especulações mais ou menos
adequadas acerca do início do mundo, do que as pessoas estão fazendo
aqui, do amor, da justiça, das rela­ções entre as pessoas, da honestidade,
etc.

Junto a estas diversas suposições, ajuntam-se outras crenças: dos pode-


res mágicos dos cristais, duendes, gno­mos, santos, espíritos, almas de
outro mundo e outros ha­bitantes fantasmagóricos que estão inculcados
nas mentes confusas.

Numa cabeça assim, previamente bem preparada pela educação, fun-


damentada numa visão de um mundo mágico, não fica difícil, para os
embusteiros e charlatães, introduzir novelas e programas de mau gosto,
discursos políticos idiotas, conselhos enganadores, condutas e tra­
tamentos estranhos ou qualquer outro programa absurda­mente estranho
e grosseiro.

As televisões que mostram essas programações tra­balham de mãos

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dadas com essas cabeças modeladas pe­los pais ou outros educadores. Só
assim elas são capazes de assimilar e apreciar as bobagens ali mostradas.
A TV, portanto, nada mais faz do que manter o que foi plantado antes.
Ela nada acrescenta ou modifica à mente da maioria dos seus usuários.
Seus programas são preparados, para manter como estão, as ideias e
ilusões existentes na men­te do pobre telespectador.

Esses encantamentos são oferecidos não só pelas TVs, mas também


por outros usuários da ingenuidade humana, dos atraídos pelo mágico.
Livros, geralmente os mais ven­didos, relatam métodos fáceis de viver
melhor, horóscopos nos mostram o futuro, talismãs nos protegem,
fórmulas fáceis são oferecidas para tornarem bonitos os feios, tera­pias
espetaculares são oferecidas para esses consumidores de sonhos. Ora, no
meio de tanta fantasia (burrice), fica fácil a TV introduzir seus produtos:
“o sabor que refresca”, “torne sua pele natural” e muito mais…

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A Verdade de Cada Um
A conduta do homem é determinada pelo que ele pen­sa, acredita, repre-
senta e prevê. Através do trabalho cog­nitivo, ele tenta construir para si
um mundo significativo e, para isso, ele classifica e ordena uma multidão
de fatos, de objetos e de pessoas, que julga conhecer em detalhes.

Os acontecimentos estão constantemente ocorrendo em torno de nós e


são ordenados de acordo com diferen­tes concepções ou interpretações.
Somos nós, conforme nosso próprio modelo mental, que organizamos,
em nosso pensamento, certos acontecimentos e não outros, enfati­zando
alguns deles, valorizando uns mais do que os de­mais e criando assim
sentido para fatos não organizados e sem significado. Nunca chegamos a
captar a verdade “verdadeira”, pois ela é realmente criada de acordo com
o momento que estamos vivendo, adequada àquela situação particular.

Com frequência, acreditamos estar de posse da verda­de ao percebermos


certa relação prática e funcional entre os nossos desejos e esperanças e
os resultados aparentes de nossas ações. Ao estabelecermos apenas uma
concepção da realidade caótica, eliminamos várias outras interpretações
possíveis, e ficamos convencidos ser a nossa análise a única aceitável ou
correta. Vejamos alguns exemplos: um garoto residindo na zona rural
criou um modelo de diversão a partir de uma bola, um cão e algumas
brincadeiras existentes em sua cidade. Um dia ele veio passear em BH e
visitou um par­que de diversões. Provavelmente ficou boquiaberto, con-
fuso ao ver tanto brinquedo desconhecido.

Ora, o “deslumbramento” seria o oposto caso o menino estivesse acostu-


mado a visitar a Disney World. Um segun­do exemplo: uma adolescente
de 15 anos conquista o seu primeiro namorado, um imberbe de 16 anos.
Fica encanta­da com suas declarações de amor, com sua técnica eficiente
de abraçá-la e beijá-la. Posteriormente, conhece um rapaz treinado nessa

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arte com esmero. A mocinha passa a ter um novo modelo, uma nova
“verdade” do que seria um “bom” namorado e reformulará o seu julga-
mento inicial.

O amigo leitor poderá lembrar-se de vários exemplos pessoais: suas


preferências culinárias antigas e as de hoje. Suas escolhas passadas e as
atuais quanto a música, pas­seios, política, literatura, programas de TV,
futebol, etc. A sua concepção do mundo, com a idade tornou-se diferen­
te, seu “mapa mental”, ainda que vivendo num “território” muito seme-
lhante ao antigo, não é mais o mesmo. Ago­ra, possuindo novos valores,
você percebe acontecimentos não antes notados, representa fatos ao seu
redor de ma­neira diferente. “Enxerga” o mundo com outros “olhos”.

Muitos se contentam com uma “verdade” única, se agarram a ela e nun-


ca a abandonam, evitando, a qualquer preço, o seu questionamento e,
também, a dúvida e a in­certeza que outras ideias poderiam trazer. Esses
fanáticos querem manter, a todo custo, uma segurança impossível de ser
conseguida nos seres humanos.

As primeiras “verdades” com as quais convivemos não são concepções


nossas, mas sim dos nossos educa­dores: pais, professores, companheiros
e outros. Elas nos são transmitidas, na maioria das vezes, de maneira
sim­ples, ingênua e até mesmo tola.

Uma vez inculcadas essas “verdades”, elas nos darão uma representação
do mundo semelhante à dos nossos educadores. As novas informações
que nos chegam poste­riormente, com frequência vêm fortalecer as ideias
primiti­vas, pois o comum é convivermos com pessoas que pensam
de modo semelhante ao nosso, lermos livros previamente censurados
e assim por diante. Psicologicamente é mais fácil manter as verdades
iniciais, pois assim não temos que re­pensar, jogar por terra crenças
queridas e familiares, o que nos obrigaria a reformular nossa conduta ao
criarmos novos modelos mentais. Não é fácil trocar a verdade “minha
mãe sempre me amou”, por “minha mãe, que frequentemente me odia-

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va” ou “minha namorada só se encontra comigo” pela nova concepção
“minha namorada está me traindo com outro”. Muitas vezes, apesar de
todas as evidências, con­tinuamos a adotar a crença inicial. Quase sem-
pre só com algum sofrimento, até mesmo com algum sentimento de
culpa, é que conseguimos mudar as “verdades” iniciais, principalmente
quando as novas são totalmente diferentes das antigas.

O homem é um inventor de verdades, um concep­tualizador de aconte-


cimentos, um representador de uma realidade que ele nem sabe quanto
de real ela tem. E como se dá essa invenção? Por capricho, raciocínio ou
pressão dos fatos? Ainda não possuo essa verdade, mas gostaria muito
de tê-la.

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Transtorno Médico-Psiquiátrico
ou Ficção?
Numa manhã quente de quarta-feira atendi em meu consultório um
rapaz de quinze anos. Este, segundo seus pais, há cerca de um ano
começou a ficar “esquisito”. Seu comportamento tornou-se diferente do
que era na escola e em casa, não mais conseguindo estudar ou se diver-
tir como antes. Começou a falar coisas desconexas e, às vezes, a fazer
perguntas estranhas, dormindo mal, não terminando o que começava,
tendo ações incompreensíveis como cho­rar e, de repente, muitas vezes,
ficando agitado.

Eu, como psiquiatra, examinei o paciente de acordo com o que aprendi


como médico, ou seja, olhando um as­pecto do universo comportamen-
tal: a conduta diferente das usuais. Examinei-o com minha “luneta”
médica, fo­calizei certas características do comportamento e deixei de
lado milhares de outras. Orientado por pistas que in­tencionalmente pro-
curava – conforme as teorias que me vieram à mente – rotulei o rapaz
de “doente mental”, mais especificamente portador de um transtorno
denominado “esquizofrenia hebefrênica”.

Na entrevista com os pais, esses contaram-me, en­tre outros fatos, que


uma psicóloga lhes disse que o ra­paz era “normal”, que ele nada tinha de
“errado” em sua conduta.

Fica a pergunta: Como eu e a psicóloga “enxerga­mos” e categorizamos


um “mesmo evento” de forma tão diferente?

Uma conduta desajustada pode ser percebida de di­versas formas por


diferentes observadores, inclusive pelo observador possuidor do trans-
torno. Existem várias ma­neiras de classificar um fenômeno psicossocial,

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diferentes modos de perceber as relações entre um fato e outro que
emergem da conduta da pessoa. Cada maneira de simbo­lizar tem seus
seguidores.

A cultura fornece, a cada um dos seus membros, re­ferências variadas


capazes de assimilar o evento dos mais diversos modos. Na maneira
de ver do psiquiatra, isto é, a conduta vista como fenômeno médico, as
variantes do comportamento são analisadas, apoiadas em determina­dos
pressupostos aceitos como “realidades” entre o modo de ver médico:
o indivíduo está sofrendo e está agindo disfuncionalmente, isto é, em
desacordo ao esperado pelo grupo sociocultural do qual faz parte.

Para explicar ou entender qualquer conduta “normal” ou “anormal”,


o “rotulador”, profissional ou amador, terá que utilizar-se de um certo
padrão (esquema ou modelo) que, uma vez ligado ao fenômeno obser-
vado, fornecer-lhe-á um significado ou uma compreensão. Este modelo
forçosamente terá que existir previamente na mente do rotulador, fazer
parte de seu conhecimento, não só estar armazenado na sua memória,
mas, principalmente, estar disponível, consciente no momento, pronto
para ser usa­do. A não existência do conhecimento que servirá de base
para ser checado com o fenômeno, fornecendo-lhe a com­preensão,
também, a não exibição à consciência, impedirá a associação do conhe-
cimento anterior assimilador com o fato que está sendo observado para
ser entendido.

Para que uma pessoa se sinta mais segura com res­peito às suas interpre-
tações é necessário que, pelo me­nos parte de seu grupo de referência,
profissional ou cul­tural, defenda e siga os mesmos pressupostos teóricos,
ou seja, tenha os mesmos conhecimentos assimiladores. Ora, como sou
médico, sigo as ideias compartilhadas pela maioria da comunidade cien-
tífica médica psiquiatra, pois identifico-me com elas.

Voltando ao paciente: foi apoiado nesses meus “ócu­los”, que são os


usados pelo grupo do qual faço parte, que examinei a conduta do rapaz,

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comparando-a, primei­ramente, com a conduta “normal” – um para-
digma vago acerca de um grupo, o dos adolescentes masculinos. Pos­
teriormente confrontei seu próprio comportamento ante­rior, de acordo
com o relato dos pais, com a conduta atual diante de mim e conforme os
relatos. Para o modelo que me esforço para seguir, o médico-psicológico,
este rapaz, aqui denominado de “cliente”, distanciava-se dos padrões
mencionados, não só dos adolescentes, como também de sua própria
conduta anterior.

Uma vez constatada a existência de anomalias na conduta – sintomas


e sinais próprios de um desvio com­portamental – foi procurado, no
subsistema de conheci­mento médico-psiquiátrico, um conceito – aqui
chamado de “diagnóstico”, conforme a classificação internacional de do-
enças mentais – capaz de englobar essas condutas “anormais” do rapaz
de maneira simplificada, fácil de ser comunicada para mim mesmo ou
para outros. Foi então utilizado um símbolo verbal simples, unificador,
uma abs­tração dos fatos concretos observados no paciente ou in­feridos
através dos relatos dos familiares.

A classificação, estabelecida por um grupo de psiquia­tras ilustres de


todo o mundo, serve como orientação para o estabelecimento dos diag-
nósticos psiquiátricos para fins oficiais, de pesquisa e para orientar o
tratamento, inclusive para verificar, conforme a evolução do paciente, se
ele está mais próximo do “certo”, ou do “errado”.

Normalmente o observador que percebe ou examina a conduta, nes-


se caso particular um médico assistindo a um paciente, acredita que o
observado é “real”. Essa cren­ça apoia-se em pressupostos encaixados na
doutrina do realismo filosófico: o que observo com meus órgãos dos
sentidos tem existência fora da minha mente, tal como percebo. Sabe-
mos que esta postura recebe, com muita ra­zão, severas críticas de outras
escolas filosóficas. Todas as nossas percepções são guiadas ou dirigidas
pelas ideias ou premissas que estão armazenadas em nossa mente. Ora,
essas ideias básicas ou princípios são geralmente adquiri­dos muito cedo.

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Uma vez armazenadas, essas idéias bási­cas não são lembradas como
foram adquiridas e também não temos acesso a elas diretamente, como
através da introspecção ou de reflexões.

Sabe-se que uma grande parte de nossos pressu­postos, valores mo-


rais, etc. são adquiridos, para alguns, antes dos três anos, para outros,
os julgamentos morais seriam aprendidos na adolescência. Agimos
automatica­mente usando esses pressupostos- chaves, sem conseguir
criticá-los através de nossos esforços conscientes. Entre­tanto, são dessas
premissas-conceitos não-visíveis que extraímos nossas associações entre
os fatos – funcionam como elos teóricos encarregados de reunir os even-
tos que observo ou que desejo compreender.

Desse modo, o percebido passa a formar um conjunto harmônico e es-


truturado, fornecendo ao observador algum sentido para ele, que é dado
pelo elo dos pressupostos.

Portanto, em resumo: não se podem extrair conclu­sões, sem existirem


premissas. Nosso raciocínio funciona após ter recebido um conjunto
adequado de informações iniciais, ou seja, de princípios. De posse de
certas premis­sas, os “eventos observados” são interpretados – ligados
uns aos outros – sempre através dos pressupostos básicos que utiliza-
mos. Desse modo é formada uma “rede” onde ou­tros dados podem, ou
não, fazer parte. Portanto, a razão é totalmente instrumental – trabalha
através dos fundamen­tos aceitos – ela não nos dá garantia de estarmos
certos ou errados, bem como não indica onde vamos chegar. Podemos
supor que certas experiências perceptivas são diretamente acessíveis a
um observador. Entretanto, as proposições de observações, unindo os
perceptos, nunca são percebidas, elas existem – já foram “plantadas”
em nossa mente antes da observação. Devemos ter consciência de que
percebe­mos as “coisas”, ou os “fatos”, sempre nos apoiando nelas.

Nós, os psiquiatras, na impossibilidade de termos um instrumental mais


sofisticado para observarmos, continua­mos a usar esse expediente para

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fazer nossos diagnósticos clínicos, isto é, a linguagem do dia-a-dia para
os fatos e a classificação das doença mentais.

Não temos outro mais confiável até agora, esses são nossos instrumentos
de observação. Essa ferramenta in­terpretativa, formulada por um grupo
de psiquiatras, cor­rigida de tempos em tempos, parece-me menos defei-
tuosa do que se cada um, em cada momento, usasse sua própria ferra-
menta, carregada de “pré-conceitos” científicos, acre­ditando, com muita
fé, que está tendo “percepções ima­culadas”, crença comum existente no
“realismo ingênuo”. Não temos outra saída.

Para a “luneta” ou observações do psiquiatra, os vá­rios modos de agir


do rapaz são denominados sintomas e sinais, exibidos pelo pacien-
te, e que têm sua origem na psique (cérebro/mente) da pessoa. Nessa
localizam-se os fatores determinantes responsáveis pelas anomalias
com­portamentais percebidas: tipo de conduta observada, pro­cessos
fisiológicos associados e somatizações, mudanças na cognição, na emo-
ção e na conduta simbólica e, além disso, inventamos certos fatores que
chamamos de “tra­ços” como determinantes, desde cedo, por certo tipo
de comportamento.

Entretanto, há observadores não-médicos que usam “óculos” diferentes


dos psiquiatras. Eles têm outras premis­sas básicas, usam outras lentes.
Esses não só observarão condutas diferentes, como também enfatizarão
algumas delas como mais importantes – prioritárias – para manter sua
ideia do mundo ou da sua cosmologia. Fatalmente não darão impor-
tância às outras condutas ou outros fatos que são “valorizados” pelo
psiquiatra. Para alguns psicólogos, certos religiosos e espíritas, o que o
psiquiatra denomina de “transtorno psiquiátrico” pode não ser uma dis-
função mental e não ter nada a ver com o cérebro/mente. Eles entendem
e explicam o transtorno mental descrito por nós conforme as teorias
orientadoras subjacentes existentes em suas mentes. Raciocinarão com
conceitos e teorias bas­tante diferentes das usadas pelos médico acerca
do fato, de sua evolução e, principalmente, das possíveis “causas” de­

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sencadeadoras do fenômeno que está sendo examinado.

Por fim, esses valorizarão a conduta de forma diver­sa do psiquiatra. O


que para esse é uma “doença”, para o espírita ou religioso pode ser, por
exemplo, uma “posses­são”, um “encosto” ou até mesmo uma “revelação”.
Uma psicóloga pode chamar esse quadro de “carência afetiva”, “proble-
mas de adolescente”, “ego fraco” ou outro nome semelhante. Além disso,
não devemos nos esquecer que observamos um “cliente”, ou qualquer
outro nome que se queira dar, num certo momento, diante de um
determina­do observador e, como sabemos, a conduta das pessoas muda
conforme o ambiente, nesse caso em função das informações ou condu-
tas do observador.

As pessoas possuem estruturas psíquicas ou cerebrais que promovem


ações intencionais/racionais. Certos trans­tornos, mudanças ou lesões
nessas estruturas provocarão mudanças nas ações. Em outras palavras,
as modificações nas estruturas físicas/biológicas, causadas por mutações
genéticas, danos no tecido cerebral, distúrbios nas subs­tâncias químicas
que aí circulam (neurotransmissores, hor­mônios e péptides), além das
mudanças internas causadas por problemas externos do meio ambiente,
principalmente o relacionado aos contatos com pessoas, irão se manifes­
tar em mudanças comportamentais da pessoa, que pode caracterizar o
que é chamado de transtorno psiquiátrico. Sua base, essencialmente bio-
lógica, está ancorada na his­tória evolucionária e no genoma das espécies.
Entretanto, o transtorno pode e, geralmente reflete, os efeitos indire­tos
ou indesejáveis do meio ambiente sobre o indivíduo psicossocial. O ser
humano, preso às suas características biológicas, age e reage ao meio
social, promovendo con­tinuadamente sua adaptação aos significados ou
valores desse meio.

Há, portanto, bases sociobiológicas para os trans­tornos psiquiátricos.


A teoria social fornece as influências nascidas da cultura e dos sistemas
sociais que possibilitam o aparecimento, bem como sua forma, dos dife-
rentes ti­pos de transtornos psiquiátricos. Muitas pesquisas nessas áreas

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têm se concentrado na pobreza, na classe social, nos estressores sociais,
no apoio social e diversas outras influências culturais. Todas têm suas
razões.

Um sistema social global é constituído de diversos subsistemas como


o legal/governamental, religioso/moral, familiar/comunal, acadêmico/
médico, crenças/costumes, etc. Existindo diversos modos de examinar a
conduta, esta, uma vez desviada, pode levar os diferentes rotula­dores a
emitir classificações, conceitos e conclusões tam­bém diferentes, depen-
dendo do subsistema utilizado para dar significado ao comportamento.
O psiquiatra, estando ligado primordialmente ao subsistema médico,
usará uma conceituação que a comunidade médica adota. Entretanto,
sendo ele gente como o cliente e outras pessoas, – deve ser lembrado -,
está ligado também a outros subsistemas, muitas vezes mais aprisiona-
dos nesses últimos do que no sistema médico.

Todos esses subsistemas constituem padrões ou es­quemas de referência


para comparar e avaliar a conduta da pessoa a ser examinada. Os di-
versos esquemas de re­ferência de cada subsistema examinarão aspectos
diferen­tes da conduta, usarão conceitos e teorias diversas, valori­zarão
mais certos atributos, isto é, operam em termos de convenções distin-
tivas. Assim é que uma pessoa P pode, num certo meio social, vir a ser
diagnosticada como an­tissocial, informalmente rotulada de diferente,
desviante, infradotada ou doente.

Isto indica que P, a partir de um esquema de referên­cia, recebeu uma


identidade social formal como resultado de sua incorporação num certo
subsistema social adotado por um grupo de pessoas. Este mesmo “clien-
te”, se exa­minado através de um outro padrão ou subsistema, e uma vez
interpretada por ele, poderá ser denominada de crimi­nosa (subsistema
legal/governamental), poderá também ser rotulada de “santa”, “vidente”
ou “médium”, etc. Tudo dependerá das convenções existentes na base
de referên­cia adotada e usada no momento da incorporação, por cada
examinador de conduta. Em resumo, um mesmo indivíduo P poderá ser

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rotulado de criminoso, doente mental, sadio, santo e estranho e outros
rótulos, até de “normal”.

São frequentes os conflitos entre os diversos modos de rotular dos sub-


sistemas. Geralmente um rotulador não conhece o esquema usado pelo
outro para rotular e, por isso, acha que ele está errado. O próprio rotula-
dor geral­mente não conhece as premissas implícitas no seu racio­cínio e
que estão sendo usadas para incorporar um certo indivíduo num sub-
sistema sociocultural. Cada sistema pos­sui não só ontologias diversas,
como também epistemolo­gias variadas conduzindo a ela.

O subsistema médico clássico, como outros subsiste­mas, opera com


pressuposições teóricas subjacentes dife­rentes das dos outros. Assim,
ao examinar uma conduta, poderíamos perguntar: – Que fatores levam
uma pessoa a ter o comportamento que ela está apresentando? Se ela é
rotulada de “doente mental”, estamos raciocinando com hipóteses ou ex-
plicações biológicas e desenvolvimentalis­tas para entender o transtorno.

Para o adepto do subsistema religioso, as explicações emergem de teo-


rias místicas ou mágico-religiosas e, fi­nalmente, o esquema legal/gover-
namental examinará as ações do rotulado que não se enquadram no que
está es­tabelecido pela lei.

A nossa sociedade ou governo, por diversas “razões”, tem priorizado o


esquema de referência científica, neste caso o modelo médico e não os
“alternativos” como o má­gico-religioso. Entretanto, os outros subsiste-
mas contami­nam o pensamento de todos nós, inclusive dos médicos,
psicólogos, juízes, autoridades, etc. O nosso presidente, ao tomar posse,
indicou um médico para ser o Ministro da Saúde. Entretanto, preso a
outros esquemas, usou fitinhas de N. S. do Bonfim no pulso para “prote-
gê-lo” contra maus prognósticos e submeteu-se à acupuntura para suas
dores lombares. Uma mistura de crenças e de paradigmas con­flitantes.

A cultura continua a utilizar-se de premissas, conceitos e teorias das

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doenças e da saúde provenientes de diversas origens, algumas com ideias
opostas. Ao categorizarmos um comportamento desviante, misturamos
ideologias va­riadas acerca das doenças, fatores naturais e sobrenaturais,
considerações morais, socioecológicas, sociossituacionais, como ano-
malias, excentricidades, criminalidade, santida­de, pecado e feitiçaria.
Todas se entrelaçam na mente do indivíduo e não raras vezes nas teorias
complexas do pró­prio médico, formando um todo compacto.

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A testemunha do Ponto de Vista
Psiquiátrico
Nenhuma testemunha, por mais que jure dizer a ver­dade, somente a ver-
dade, o fará, pois sua “verdade” é um conjunto de conceitos, preconcei-
tos, julgamentos, in­ferências, interpretações, percepções e fantasias mal
ou bem elaboradas. Sabe-se que ninguém tem condições de fazer uma
descrição imparcial e objetiva de um fato, mes­mo de evento simples: um
atropelamento por um veículo. Cada uma das testemunhas é diferente
quanto à idade, sexo, inteligência, capacidade de percepção, raciocínio,
julgamento e maior ou menor tendência à fantasia. Conse­quentemente,
cada uma terá uma história, ou melhor, uma versão do acidente.

Assim, se o atropelamento foi cometido por um mo­torista de táxi e a tes-


temunha não gostar deste profissio­nal, ela poderá ter “enxergado” uma
expressão de raiva no rosto do motorista. Um bom observador poderá
perceber no rosto do motorista, por exemplo, a pupila dilatada, os lábios
contraídos, tremores nas mãos, a palidez, a respira­ção e voz entrecorta-
da, mas jamais observará “ódio”, pois esse não é percebido e sim constru-
ído ou imaginado pelo observador, ou seja, o “ódio” será sua interpreta-
ção ou jul­gamento de certos fatos que ele percebeu. Provavelmente todos
os depoimentos são carregados de julgamentos ou interpretações.

Um testemunhará que o motorista estava “voando”, uma outra, simpá-


tica aos taxistas, afirmará que o pedestre não teve o “devido cuidado”
ao atravessar a rua, e acres­centará: ”é muito difícil dirigir no centro da
cidade”.

Há outras hipóteses: uma, ao assistir ao acidente, colocará a culpa no


guarda de trânsito – caso não gos­te deles. Outras ainda poderão culpar
o governo, o calor ou o frio, conforme a temperatura do dia. Portan-

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to, todos irão elaborar hipóteses pessoais para o que acabaram de ver,
escutar e, principalmente, sentir. Assim agem todas as testemunhas: de
casamento, de briga de marido e mulher, de acidente de trânsito ou de
assassinato.

A “descrição” é, de fato, um julgamento intuitivo, au­tomático, interpre-


tações concebidas por cada um de nós após sentirmos emoções diante
do fato presenciado. Nunca é uma descrição dos fatos puros observados.
Isso só acon­tece, em algum grau, com os cientistas nos laboratórios de
pesquisas. A testemunha relata a composição que elabo­rou ou fantasiou,
aproveitando um ou outro fato, deixando de lado diversos outros que
não interessam ao descrito. Em resumo, elas fazem julgamentos do que
sentiram, não do que viram, em harmonia com o que pensam de si e do
mundo. A nossa mente seleciona e retém eventos do mun­do conforme
nossos valores ou atitudes.

Numa pesquisa, meninos de uma escola americana fo­ram separados em


duas classes: uma com preconceitos con­tra o negro, outra formada de
alunos sem preconceitos. Para os dois grupos foi lida uma história rela-
tando fatos favoráveis e desfavoráveis ao negro. Semanas após a leitura
pediu-se aos alunos que relatassem o que lembravam da história.

O primeiro grupo – o que tinha preconceito – lembra­va apenas de fatos


desfavoráveis aos negros.

O segundo grupo, sem preconceitos, lembrou-se tan­to de fatos favorá-


veis quanto desfavoráveis.

Voltando ao acidente de trânsito, o foco de atenção das testemunhas, no


momento anterior ao acidente, pos­sivelmente era, como sempre, dirigi-
do aos seus interesses do momento: um olhava a vitrine, outro refletia
sobre a briga que teve com a esposa, um terceiro lia manchetes na banca
de jornais, uma cuidava de crianças, etc. De repen­te, a paz foi quebrada
por um estrondo ou visão inespera­da. A atenção do pedestre/testemu-

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nha é mudada brusca­mente devido ao estímulo visual ou auditivo.

Mesmo se a pessoa observou a colisão no momento exato em que a


vítima foi atirada ao chão, ela não poderá dar um relato preciso do
fato, pois ela não tem o treinamen­to adequado para observar acidentes,
crimes ou brigas. Um policial habilidoso, ao presenciar um acidente,
poderá ver, possivelmente melhor do que um nervoso passante sem
treino. Mas mesmo este policial terá sua observação limi­tada, posto que
naquele instante verá um acontecimento complexo, com diversos fatos
antecedentes e consequen­tes. Por exemplo, ao presenciar um acidente,
o policial ou a testemunha não sabem se a vítima sentiu um mal súbito,
se queria matar-se ou, até mesmo, a posição do carro nos instantes que
antecederam a colisão. O conjunto de fatores que levou o carro a colidir
não é conhecido.

Nossa mente tende a dar uma organização lógica e compreensível a


qualquer fato. Ora, como falta treino, no caso de observação de aciden-
te, e também conceitos orga­nizadores mais científicos acerca do fato
– menos populares – para obter uma objetividade maior, sabemos que
qualquer indivíduo percebe, organiza e transforma os acontecimen­tos
conforme o modelo mental existente em sua mente.

Desse modo, em lugar de descrever um fato observa­do, a testemunha


relata um fato transformado, encaixan­do-o no seu sistema represen-
tacional já há muito organiza­do pelas experiências e aprendizagens
anteriores. Ele dará pouco valor a fatos que não se enquadram às suas
crenças e ideais básicos, por outro lado acentuará os que refor­çam as
ideias básicas. Se ocorresse o contrário, as pessoas iriam se modificar a
todo momento e isso não ocorre.

Há uma experiência clássica, que realizei por diver­sas vezes na Facul-


dade de Medicina da UFMG. Ela consiste em apresentar a um aluno
um quadro contendo uma cena dentro de um ônibus com vários per-
sonagens. Um deles é um homem de cor branca portando uma navalha

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levantada em direção ao rosto de um homem negro. Pede-se ao alu­no
que está vendo a cena que faça uma descrição da mes­ma para um segun-
do aluno, que vai escutar o relato sem ter visto a imagem. Esse segundo
aluno depois descreve o que “ouviu” para um terceiro aluno, que entra
na sala até alcançar sete alunos. Com frequência, em certo momento do
relato, algum aluno transforma o ouvido: descreve a navalha na mão do
homem negro e não do branco como estava sendo descrita. Assim, o
escutado é transformado pela cognição ou representação pré-existente,
quem ataca é o negro, não o branco.

Em resumo, o mundo que observamos é modificado pelo nosso “assimi-


lador” mental. Os fatos serão sempre percebidos e organizados confor-
me os valores e ideais que cada um tem no momento.

Se a testemunha não gosta de taxistas, nem de cabe­ludo, e por azar o


motorista encaixa-se nessas característi­cas, possivelmente ele será incri-
minado pelo observador.

Um acidente, um crime ou um divórcio são proces­sos dinâmicos, con-


fusos e complexos. Uma testemunha, ao observar ou ouvir, “congela” a
imagem percebida domina­da pela emoção provocada: essa orientará o
relato. Ora, o pequeno segmento do acidente memorizado, ditado pelas
suas intuições e emoções, não dará nunca a ideia do todo.

É atribuída a José Maria de Alkmim a frase “o impor­tante não é o fato,


mas a versão”. Ele sabia o que dizia, pois o fato, a partir do momento se-
guinte ao acontecimen­to, passará a existir apenas na memória dos espec-
tadores, cada um com a sua versão. Após o acidente encerrou-se o fato.
A partir daí nascem as versões e essas passarão a existir nos processos,
nas histórias e na vida das teste­munhas. Se a vítima morre, parte do fato
real é enterrado com ela.

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Quando as Palavras Mentem
Esse autor, com essa frase nos alerta acerca do poder das palavras, da
força que têm esses sons mágicos provo­cadores de ações impulsivas,
carregadas de ódio, alegria, tristeza ou medo. Sabemos, também, que
através de pala­vras adequadas despertamos ou criamos crenças, valores,
fantasias e desejos adormecidos que habitam nossas al­mas. O condutor
de massas, o líder carismático e o grande pregador sempre usaram e
abusaram das “palavras opor­tunas”, no momento certo. Somos, num cer-
to grau, dóceis e fracos, sujeitos às manipulações continuadas dos mais
espertos.

Em todos os tempos um grupo dominou o outro para seu benefício.


Assim é que na maioria das culturas os ho­mens jovens e brancos, sadios,
ricos, saudáveis, inteligen­tes e cultos, exploraram as mulheres, os velhos,
os negros, os pobres, os doentes, os deficientes mentais e os incultos.
Este é o nosso destino: obedecer, sem refletir e sem o de­sejar, à vontade
dos mais sagazes e com maior poder.

Os comerciantes seduzem o cidadão-alvo com pro­messas de férias mara-


vilhosas, juventude e beleza eterna, hálito perfumado, frescor no corpo,
cabelos sedosos e bri­lhantes, alegria irradiante ou tola, lábios sensuais,
bustos e bumbuns belos e firmes.

Para quem? Para uma população sem dinheiro, de idosos, desnutridos,


feios, banguelas, nanicos, carecas, despeitados e desbundados.

Já os políticos, usando as palavras adequadas e como­ventes, seguindo o


padrão da propaganda, oferecem-nos a justiça social, os empregos com
salários altos para todos, a assistência médica de alto padrão, a proteção
à criança abandonada e ao idoso, uma justiça digna para os grupos mar-
ginalizados, uma alimentação abundante e barata.

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Em resumo, tudo o que é desejado por todos nós. Para quem? Para uma
maioria que nunca imaginou poder alcan­çar tais coisas, compostas dos
sem-casa, pivetes, negros e brancos pobres, mulheres desempregadas
ou com subem­pregos, crianças, analfabetos, deficientes mentais, etc., ou
seja, pessoas sem oportunidades e estigmatizadas social­mente. Vivemos,
ainda, sonhando com o paraíso perdido.

Os conhecidos manipuladores do povo, nos seus dis­cursos esforçam-se


como podem para estimular e conser­var as crenças existentes entre a po-
pulação, as normas vigentes, as prescrições de conduta e, por que não, a
ig­norância popular. O poder de uns se assenta, exatamente, às custas de
crenças supersticiosas, na irracionalidade do povo que o impede de sair
do seu estado de indigente de conhecimento e de crítica.

Mesmos os políticos chamados de mais “avançados” ou da esquerda, ce-


gados pela tradição, defendem no pro­grama de governo a melhoria dos
empregos, salários, as­sistência à saúde, etc., mas nunca uma mudança do
modo de pensar mais profundo do operário e do lavrador.

Quando se fala em melhoria do ensino, trata-se ape­nas de melhorar a


capacidade de compreensão da leitura de instruções para que o operário
saiba utilizar melhor o maquinário da empresa, para aumentar a produ-
ção, a lei­tura de revistas e jornais que precisam ser vendidos, de propa-
gandas diversas e, deste modo, haja mais consumo com mais lucro para
as empresas.

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A Mensagem
Anastácio é um dos donos de uma barraca de frutas do mercado muni-
cipal, onde compro bananas. Ao me ver naquele sábado, foi logo dizen-
do, quase gritando:

— Acabei de conhecer uma moça notável. É bonita, inteligente, estudio-


sa, grã-fina e agradável… Com essa eu me caso!

Fiquei pensando acerca do que ouvi, tentando deci­frar o significado


de sua frase. Sabia que Anastácio sempre tirava conclusões apressadas,
quando iniciava um namoro. Nessa hora, misturava os desejos com a
realidade. Não conseguia formar uma ideia da namorada de Anastácio.
Acho que nem ele nem eu, conseguíamos retratar adequa­damente os
atributos que ele julgava ter notado. Não sei como ele chegou a essas
conclusões. Apoiado na sua des­crição, comecei a imaginar como seria
essa mulher… ”ela era notável… o que tem uma moça para ser notável?
Tal­vez muito alta ou gorda, ou muito magra, ou nada disso”.

Continuei a imaginar a namorada de Anastácio. “ele julgou-a bonita:


lembrei-me, quem ama o feio, bonito lhe parece… Como seria seu cor-
po, face, olhos, nariz, cabelos e dentes?”

Enquanto escolhia as bananas, pensava comigo mes­mo. “Vivemos num


mundo simbólico, onde certas coisas representam outras. Assim, dois
pedaços de madeira reu­nidos de uma certa forma, que chamamos de
cruz, podem simbolizar ou representar religiões diversas. Talvez a na­
morada de Anastácio tenha olhos azuis e cabelos louros, sendo a beleza,
para ele, representada por esses traços.

Mas lembrei-me que esse tipo de beleza foi o adquiri­do por mim, ao
assistir a filmes americanos.

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Voltei a refletir: “Frequentemente inferimos certas coisas de outras, isto
é, criamos uma afirmação a respeito de uma situação que nos é desco-
nhecida, a partir de uma conhecida. Ao sentirmos uma dor no peito,
inferimos – de um modo mais simples – imaginamos que estamos tendo
um enfarto. Do mesmo modo, quando a mulher ciumenta encontra uma
mancha de batom na roupa do marido, ela supõe ou infere que ele a
traiu. Quem sabe a namorada de Anastácio teria lido o Pequeno Prínci-
pe, gostasse de poesia e isso o levou a supor ser ela muito inteligente?”
Com to­das essas dúvidas eu continuava a não enxergar a moça.

Prossegui, teimoso que sou, a fazer perguntas ao meu amigo e fui des-
cobrindo fatos acerca de sua namorada. Fi­quei sabendo ter ela 20 anos,
estuda à noite num colégio estadual, cursa a 6ª série e já foi reprovada
por duas ou três vezes. Não entendi bem essa parte. Como já sabia que
Anastácio havia parado de estudar na 3 ª série, após perder o ano diver-
sas vezes, inferi: “Ah! Por isso ele pensa que sua namorada é muito estu-
diosa… Perguntando mais, fiquei sabendo que a namorada de Anastácio
lhe disse que, muitas vezes, ela ficava horas e horas assentada diante dos
livros abertos à sua frente, estudando seguidamen­te. Ele aceitou ao pé da
letra essas afirmações, acreditou no que ela disse ter observado e inferi-
do a respeito de si mesma.

Procurei ir mais a fundo, tentando imaginar como Anastácio chegou às


conclusões acerca da “agradabilida­de” existente em sua namorada. Des-
cobri que nas noites dos fins de semana, ela lhe preparava um deliciosos
min­gau de fubá, quentinho, misturado com pedaços de queijo, igual ao
que fazia sua mãe lá em Divinolância, onde ele nasceu e foi criado antes
de vir para B. H. tentar a sorte. Então era isso: ela era agradável porque
lhe servia mingau de fubá com queijo mineiro.

Restava examinar os motivos que o levaram a inter­pretá-la como grã-


-fina. Isso foi mais difícil. Descobri que ela trabalha como arrumadeira
numa residência na Savas­si, isto mesmo, na zona Sul da cidade. E tem

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mais, usa botas quando sai para passear no Parque Municipal e na
Estação Rodoviária. Sua patroa tem uma loja, o patrão, que é um advo-
gado famoso, possui uma Mercedes. Ela já andou nela quando foram
à fazenda. No ano passado, o casal foi à Europa passear e levar alguns
dólares para depositar na Suíça. Rosária, este é o nome da namorada de
Anastácio, não foi com eles, como era seu desejo. Sen­do de confiança,
teve de ficar tomando conta da casa. Na volta, ela ganhou de presente
dos patrões, uma escova de dentes, por sinal muito linda, um pente, um
dentifrício, e ainda uma marmita arrumadinha, contendo uma deliciosa
comida. Coitados, ficaram enjoados e não comeram nada.

Guardei, enquanto pensava, minhas bananas catur­ras. Paguei a Anas-


tácio o que lhe devia e desejei-lhe, como é de praxe no Mercado, um
bom fim de semana. Caminhei um pouco tonto, desiludido com nossa
conversa incom­preensível. Em nenhum momento consegui formar uma
imagem clara de Rosária, por mais que tentasse. O relato ouvido a seu
respeito, contada pelo namorado apaixonado, não me forneceu nenhum
fato acerca de seu nariz, boca, olhos, corpo em geral. Não conseguia
enxergá-la pois, du­rante o bate-papo havia escutado apenas inferências,
jul­gamentos, comunicados de comunicados e interpretações superficiais.

De repente, ao parar diante do ponto dos abacaxis, ao dar a primeira


dentada num pedaço, descobri, de um estalo, a mensagem que Anas-
tácio tentou transmitir-me em vão e que eu não compreendi devido à
minha burrice nesses assuntos.

Ele procurou comunicar-me, através de sua descrição do namoro com


Rosária, que ele estava apaixonado, nada mais! Eu, tolamente, fiquei
tentando decifrar, de maneira complicada, a mensagem simples contida
em suas pala­vras, em vez de sentir as emoções expressas. Eu sempre faço
isso: procuro um sentido complexo quando existem outros muito mais
simples.

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Videntes: A Prostituição das
Palavras
Ouvi, atentamente, na TV, uma “numeróloga” des­crever as caracterís-
ticas comportamentais exibidas pelas pessoas, conforme o dia do mês
em que nasceram. Pro­curei verificar se os relatos feitos para todos os
indivíduos serviriam para mim. O resultado da “pesquisa” mostrou que
a vidente acertou mais do que eu imaginava. Todas as descrições feitas
para os nascidos em todos os dias do mês deram certas para mim.

Creio que as previsões feitas estão certas, também, para todos os leitores.
Passo para vocês as afirmações da vidente, para que as comparem com
suas próprias previ­sões: “os nascidos entre os dias 1 e 5 são teimosos,
mas flexíveis para os que sabem agir com eles. Os nascidos en­tre os dias
6 e 10 têm um grande amor às crianças mas, às vezes, perdem a paci-
ência com essas. Os nascidos entre os dias 11 e 16 são trabalhadores e
persistentes, quan­do desejam alcançar seus objetivos. Os nascidos entre
os dias 17 e 21 não gastam dinheiro facilmente, somente com pesso-
as ou coisas importantes para eles. Os nascidos en­tre os dias 22 e 25
apaixonam-se rapidamente, mas aban­donam cedo suas paixões, quando
frustrados. Os nascidos entre os dias 26 e 31 são desconfiados e selecio-
nam com cuidado seus amigos”.

Creio que todos os indivíduos encontrarão fatos, na sua história de vida,


capazes de “provar” estas profecias. Mas se se esforçarem um pouco
mais, descobrirão, tam­bém, eventos desconfirmando as previsões.

Há pesquisas mostrando que as pessoas tendem a procurar fatos que


comprovam suas hipóteses e só muito raramente buscam os eventos que
as desconfirmam. As­sim, se não gosto de Maria, a observo, selecionan-
do sua conduta negativa, visando “provar” que tinha razão. Se afirmo

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que os bons vendedores são extrovertidos, selecio­no esses para minha
loja e não experimento os introverti­dos para verificar a possibilidade de
minha hipótese estar errada.

Os políticos, cartomantes, videntes e outros profissio­nais do mesmo


ramo, que advinham com precisão o que ocorrerá no futuro, jamais
cometeram erros ao realizarem suas previsões. As afirmações desses
indivíduos são va­gas, permitindo a entrada dos mais diversos fatos na
inter­pretação para “provar” as previsões.

Quando um comentário sobre qualquer fato é muito geral como: “um


dia vai chover em algum lugar da Ter­ra”, ele não precisaria ser falado,
por ser uma conclusão conhecida por todos. A fala que explica o geral,
ou tudo, não pode ser negada. Quando um adivinho, usando búzios
ou cartas, declara: “No próximo ano morrerá um político influente”,
qualquer político que morrer irá se enquadrar na previsão, pois sem-
pre algum político morre durante o ano e ele é influente para alguém.
Afirmações como: “Ha­verá grandes mudanças no governo brasileiro”,
“Um artista morrerá de AIDS” ou “A economia brasileira sofrerá aba­los”,
situam-se nesse tipo de afirmações desnecessárias. Elas são abrangentes
e, ao examiná-las, automaticamente selecionamos determinados fatos
ocorridos que se encai­xam na previsão.

Ao observarmos as declarações da maioria das pes­soas notamos que


essas nada esclarecem, explicam ou acrescentam ao já sabido ou espera-
do. Falar que: “nos­so sistema de saúde está falido”, “o povo está passando
fome”, “o brasileiro gosta de levar vantagem em tudo” e “o brasileiro
deixa tudo para última hora” afirma algo que sempre ocorre, em algum
lugar, num certo momento, com algumas pessoas. Mas também pode-
ríamos arrumar amos­tragens que “não deixa nada para a última hora”,
“não leva vantagem em nada”, ”tem um sistema de saúde do primei­ro
mundo” e “muitos brasileiros comem exageradamente”. Portanto, essas
afirmações são inúteis.

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As pessoas, ao se expressarem desse modo, não exa­minaram fatos para
extrair conclusões. Elas aprenderam a conclusão pronta, não sabendo
que fatos foram sele­cionados para contribuir para tal afirmação. Tam-
bém não observaram outros aspectos da situação que poderiam ter
importância, como: Qual sistema de saúde encontra-se fa­lido? Seriam
“todos os sistemas de saúde”, inclusive os que atendem as elites? A me-
táfora “falido”, que significado adquirirá junto ao contexto “sistema de
saúde”? Caso a afirmação fosse confirmada, o que seria impossível, ain­
da continuaríamos em dúvida e perguntaríamos: “Quais e quantas foram
as medidas usadas para se chegar a essa conclusão e que tipos de erros
elas podem conter?

Do mesmo modo: Quais brasileiros, quantas crianças e adultos, deixam


tudo para a última hora? As mulheres também? Quais? E o que seria
“última hora”? No dia do vencimento, um dia antes, na última hora,
minuto, etc.?

Mas as dificuldades não terminam aí. As palavras não são simplesmente


símbolos que colocamos em coisas, pessoas ou em fatos para identificá-
-las. Muitos dos vocá­bulos usados só adquirem significados no contexto
onde são usados. Nesse caso, para que possamos decifrar seu significado,
necessariamente devemos examinar sua rela­ção com outros conceitos já
assimilados e entendidos. Es­ses mais antigos na mente do indivíduo ser-
virão de apoio à compreensão. A palavra, uma vez ancorada em outros
conceitos aceitos e compreendidos, poderá nos fornecer um significado
pleno e será assimilada pelo leitor ou ou­vinte.

Entretanto, a maioria das palavras do dia-a-dia, da linguagem popular,


são usadas nos mais diversos contex­tos, ligando-se aos mais diversos te-
mas e, em cada um deles, o termo tem um significado diferente. Por isso
mes­mo falamos que as palavras usadas na linguagem popular são, com
frequência, ambíguas, isto é, apresentam signi­ficados diversos, confor-
me a frase usada. Elas “nasceram” de várias fontes e em cada uma delas
adquiriram signifi­cados múltiplos.

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Consequentemente, afirmações como “levar vanta­gem em tudo”, ou
“deixar tudo para última hora” produ­zem confusões no ouvinte e dis-
cussões sem fim: podem ser “provadas” e “negadas”, dependendo dos
argumen­tos utilizados. Afirmações como essas não explicitaram a ori-
gem das palavras-chaves como “levar”, “vantagens” e “tudo”, bem como
suas ligações a outros conhecimentos aceitos. Só desse modo essas frases
poderiam ter algum sentido preciso.

Examinemos algumas frases contendo a palavra “amor”. Este termo, por


sinal muito repetido, evoca boas e más recordações, adquirindo signifi-
cados distintos con­forme os contextos onde está colocado.

Assim, ouvimos e fingimos entender frases como: “No amor o impor-


tante é a sinceridade”, “Matou por amor”, “A química do amor”, “Ma-
ria é um amor de pessoa”, ‘O amor é sublime”, “As dores do amor”, “Fazer
amor”; Um amor de casa”, “Morreu por amor”, “Os pais devem educar os
filhos com amor”, “É preciso ter mais amor à humani­dade”, “Se tivermos
mais amor, tudo será resolvido”, etc.

Através dessa pequena amostra o leitor poderá ob­servar que a palavra,


ou o signo “amor”, foi usada em diversos contextos, cada um muito dife-
rente do outro. Fi­caríamos confusos caso tentássemos decifrar o signifi-
cado de “amor”, existente na frase “Morreu por amor”, através do signi-
ficado que ela adquiriu na frase “Fazer amor”. Nas ciências sérias, seus
conceitos principais ou “construtos” são definidos com extremo cuidado,
aceitos pelos que os usam, e sempre ligados, direta ou indiretamente, a
fatos existentes no mundo empírico.

Aqui pergunto: Qual ideia teria um leitor que nun­ca tivesse visto a pala-
vra “amor”, ao examinar esta lis­ta de afirmações? Ora, os diversos con-
textos no qual a palavra foi colocada, onde ela está presa, fez com que o
som ou imagem “amor” adquirisse significados totalmente diferentes. Na
maioria das vezes seu sentido é difícil de ser entendido por quem emi-

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tiu ou por quem recebeu a informação. A maioria das palavras de uso
diário caem no mesma dificuldade de entendimento. A palavra “over”
em inglês, tem mais de 90 significados diferentes. Essa com­plexidade de
sentidos facilita a vida do charlatão, do pre­gador desonesto, do vigarista,
de muitas psicoterapias, de advogados diversos e dos políticos.

Esses profissionais da palavra, através de uma ver­borreia algumas vezes


ininteligível, desligada de fatos, usam com mestria, palavras produtoras
de fantasias e emoções, dependendo do ouvinte. Com isso esses falan­
tes conseguem ludibriar os inocentes clientes, o devoto incauto ou o fiel
eleitor e vendem as ilusões desejadas.

Quando o manipulador de pessoas emite os belos sons: “família”, “edu-


cação”, “saúde”, “colégio”, “lazer”, “ri­queza”, “amor”, “democracia”, “liber-
dade”, estas palavras são interpretadas e sentidas pelas pessoas que as
ouvem de acordo com a experiência e os sonhos de cada um. Elas co-
movem os que as ouvem. Mas os que as pronunciam, vivem geralmente
em mundos diferentes dos seus ouvin­tes, compartilhando experiências
diferentes. Cria-se uma comunicação próxima do zero: os vocábulos
trocados são os mesmos, é certo, mas cada um os representa, em sua
mente, ajustados ao seu mundo. Aprendemos, erronea­mente, que para
ser entendido basta falar o mesmo idioma ou as mesmas palavras. Não é
bem assim…

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O Poder do Boato
Na segunda feira, Frederico entrou na seção e, viran­do-se para a colega
Inês, num tom de voz mais baixo que o normal, comentou admirado:

— Você sabe da última? Assaltaram o chefe às 6:30 da manhã de sábado.


Ele estava com Raquel, aquela nova secretária. E acrescentou: – Os dois
juntos numa hora des­sas… só podiam estar vindo de algum motel. Você
não acha?

Estava criado o boato. A ”informação” preenchia to­dos os ingredientes


necessários para seu nascimento e di­vulgação: o tema interessava ao
grupo que o assimilava e transmitia e, além disso, ninguém podia saber
com certeza o que os dois estavam fazendo, isto é, a informação era
ambígua. Também o assunto “sexo” sempre atraiu e exci­tou as pessoas e
uma informação acerca dos dois interes­sava ao grupo: o chefe era anti-
patizado por ser exigente e moralista, enquanto a secretária era invejada
e odiada pela beleza e exuberância de seus dotes físicos e pelas regalias
gozadas no serviço. O boato se caracteriza, quase sempre, por ter uma
afirmação que não pode ser negada, nem confirmada.

Os políticos são vítimas frequentes desse tipo de “informação”. Chegam-


-nos aos nossos ouvidos cochichos como: “Ouvi dizer que Q está tran-
sando, fora de casa, com a M”, “Você sabe que W bate frequentemente
em sua mu­lher”, “O T enxuga feito um gambá, não consegue nem tirar a
roupa do corpo”, “Faz anos que P faz uso de cocaína, só fala em público
sob o efeito do pó”.

A imprensa também costuma criar e divulgar boatos. Algumas revistas


se mantêm quase que exclusivamente divulgando as fofocas sobre a vida
dos artistas.

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Certos temas são mais férteis à geração de boatos. Entre eles podemos
citar os crimes estranhos, bárbaros ou de origem sexual, as curas mila-
grosas, os escândalos sociais, as disputas eleitorais agressivas e as guer-
ras. Uma boa parte das notícias que aparecem nas colunas sociais são
rumores, que dão prazer tanto àqueles “que são notí­cias” como àqueles
que não são.

O boato age, muitas vezes, como estimulante mental como muitas dro-
gas usadas. Tenho uma amiga perita em “acordar” grupos. Presenciei em
uma reunião sua habilidade: a conversa corria morna e lenta, as pausas
alongavam-se. Percebendo o desânimo dos convidados, ela fez uso do
remé­dio milagroso. Com voz baixa e lenta, como manda o figuri­no,
começou a falar, ao mesmo tempo que olhava para um e outro do grupo.
Este, que a conhecia bem, percebeu, através dos gestos teatrais, que algo
de interessante estava pronto para vir à tona. Sônia iniciou, falando
espaçadamente:

— Não sei se vocês conhecem a Terezinha, uma que mora no apar-


tamento 13.001, no meu prédio, casada com aquele homem moreno,
bonitão. Ela tem dois ou três fi­lhos. Ouvi dizer, de fonte fidedigna, que
ela largou o mari­do e já se casou de novo.

Nesse ponto ela interrompeu a narração, observou sorrateiramente a


expressão facial de cada um, decepcio­nados, já que o “furo” não era tão
sensacional. Ela, usando de seu traquejo de excelente transmissora de
boatos, cria­va a frustração propositadamente. Esperou alguns instan­tes e
completou a informação:

— Sabem com quem ela se casou? Não sabem? Com a Ruth, uma loira,
baixa, feiinha, telefonista da firma do ex-marido.

Nesse instante o grupo despertou, o boato começa­va a agir. Todos, exci-


tados, pediam mais detalhes, ou, no mínimo, a repetição do que acaba-
vam de escutar. Sônia continuava a história, calmamente, sabendo que

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estava vitoriosa:

— Isso mesmo, atualmente as duas estão morando juntas, lá em Lagoa


Santa, há dois meses, numa casa de campo… Terezinha sempre gostou
de ecologia. Segundo soube, as duas estão arrependidas de não terem
tomado a decisão há mais tempo. Quem está incontrolável é o Ar­thur,
seu marido.

A partir daí, todos falavam ao mesmo tempo: uns pediam minúcias do


caso, outros tinham algo semelhante para contar. Outros ainda tomavam
partido, defendendo ou atacando a conduta dos envolvidos, quando o
marido era acusado de ser um “banana”, permitindo que sua mulher,
uma sem-vergonha, o largasse com os filhos. Cada um se identificava
rapidamente com os personagens, projetando neles seus recalques, frus-
trações e outras mazelas.

Assisti a tudo sem dizer nada. Tive a sorte de levar Sônia em casa, pois
ela estava sem condução. Rimos jun­tos do efeito de sua fofoca e fiz al-
guns comentários. En­tretanto, para meu espanto, ela me disse que o caso
fora criado na hora. Exultante com o sucesso obtido, contou-me para
finalizar:

— Já inventei várias histórias parecidas: não é difícil. Não existe a mo-


radora do 13.001, nem o apartamento. Os personagens foram descritos
de maneira vaga, que diz tudo e não diz nada. Usei uma linguagem
superficial, com poucos detalhes. Com eles grande parte das pessoas se
identificam.

Esse tema provoca fantasias, emoções e desejos. Despertei na mente de


cada um deles seus próprios bo­atos, mentiras, lendas, mitos e dramas
particulares. Eles excitaram-se, não com minha história, mas sim com
suas histórias particulares. Essa é sempre mais excitante.

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Comportamento

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O Dilema do Gordo: Comer ou
Não Comer?
Comer ou não comer? As mães empanturram os filhos de alimen­tos,
enquanto isso, elas mesmas vão às academias, fazem regimes e cami-
nhadas, compram o último “best-seller” para emagrecer, tomam drogas
e mais drogas para tirar o apetite, para urinar e eliminar uma boa parte
dos alimentos que ingeriram. Essas mesmas mães compram para os
filhos pudins, chocolates, sorvetes e mais uma infinidade de gulosei-
mas. Mas elas mesmas tomam hormônios para acelerar o meta­bolismo,
fumam e tomam café com adoçante, na esperança de ingerir menos
calorias.

Ao lado dessa contradição alimentar familiar, os meios de divul­gação,


tais como TVs, rádios, jornais, revistas, despejam em cima do alerta e
fiel consumidor os mais recentes produtos alimentícios, todos eles atra-
entes, charmosos, deliciosos e de alto teor calórico. Somos, sem querer,
sócios contribuintes das multinacionais, saboreando seus produtos e
pagando-os a preços módicos.

Se a robusta criança tiver uma mãe muito desocupada, de modo que lhe
sobre bastante tempo para cuidar da alimentação do seu queri­do filho,
e se este tiver mais algum tempinho para saborear, degustar, deglutir
e “incorporar” as propagandas das multinacionais, a primeira fase, a
essencial da formação do futuro obeso, acha-se terminada. Seu destino
provavelmente está selado e ele estará “frito”, no mundo ma­ravilhoso dos
alimentos.

Do mesmo modo que Konrad Lorenz descreveu o fenômeno da “im-


pressão” – observado com as crias que ficam “marcadas”, passando a
seguir o animal que estiver ao seu lado durante certos momentos dos

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primeiros dias do desenvolvimento, – também a criança, criada no am-
biente dos alimentos, desenvolverá percepções e valorizações hipertro-
fiadas acerca de alimentos.
Seu ideal passará a ser, fundamentalmente, o alimento.

Nos bate-papos informais, o obeso fatalmente fará incursões so­bre a


“boa mesa”. Seus pensamentos e suas conversas giram sempre em tor-
no de carnes, pudins e sorvetes: “Comi uma lasanha extraor­dinária,
você precisa ira lá. A sobremesa: um sorvete com creme e suspiro. Uma
delícia!” Ele se acha preso, tanto biológica como psico­logicamente, ao
mundo dos alimentos, preferencialmente aqueles em que predominam
os hidratos de carbono e as gorduras. Sabe-se que nosso organismo é
mais atraído por alimentos saborosos e nutritivos. Assim, uma carne
cheirosa e gordurosa nos atrai mais do que belas folhas da alface bem
temperadas.

Costuma-se falar em obesidade quando o peso da pessoa se acha 20%


acima do considerado normal para ela. Entretanto, para alguns, obe­so
é quem acha que é. A obesidade já teve a sua glória e seus cultores, pois
fazia parte dos valores difundidos pelas classes privilegiadas. Hoje, seu
prestígio está em declínio. “Malhada” pelos poderosos, passou a ser mais
comum entre as mulheres de classe sócioeconômica mais baixa, por
causa da alimentação dessas ser rica em hidratos de carbono.

A maioria dos autores concorda que a obesidade é consequência de


diversas causas. Parece ser mais grave quando começa na infância, mas
pode surgir na adolescência, na vida adulta e até após a maturida­de,
quando algumas mulheres se tornam obesas após os 50 anos. Tal fato é
menos frequente entre os homens.

A maior parte dos grandes obesos, uma vez iniciado um regime e ter
emagrecido alguns quilos, sente-se como se estivesse passando fome.
Em outras palavras, quando um obeso se submete ao regime e seu peso
ainda não alcançou o chamado “peso normal”, biologica­mente ele se

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encontra como os indivíduos que estão passando fome.

Alguns autores argumentam que o peso corporal de um dado indivíduo


é autorregulado, alcançando cada pessoa um nível apro­ximadamente
constante, ou seja, um ponto fixo em torno do qual o peso oscila.

Nos obesos este ponto fixo é elevado, acima do peso constante dos “nor-
mais” de desenvolvimento físico semelhante. O obeso tem um maior
acúmulo de gorduras nas células, ou tem maior número des­sas células,
um excesso adquirido geralmente na infância. É comum apresentar os
dois fatores ao mesmo tempo. Em outras palavras, tanto o teor de gor-
dura como o número das células gordurosas alcança, no obeso, valores
superiores aos de um indivíduo não-obeso.

Ao emagrecer sob regime, não haverá redução do número de células,


mas tão somente de teor de gordura celular, o qual, portanto, ficará
abaixo de seu valor normal para aquela pessoa. Consequente­mente, em
condições normais, isto é, sem regime, a gordura celular tende a aumen-
tar até atingir seu ponto fixo, o que ocasionará novo aumento de peso.
Nos obesos há uma alteração entre o “crédito” e o “débito”, de modo que
neles sempre haverá uma “sobra”, se compa­rados à maioria dos indi-
víduos. Segundo esse modelo, um indivíduo normal e que tem o seu
ponto fixo em torno de 60 quilos, tenderá sempre a manter-se em torno
desse peso. Caso ele enfrente situações anormais, internas ou externas,
(por exemplo doenças, alimentação em excesso ou escassa), durante
um certo período seu peso irá di­minuir ou aumentar de acordo com a
situação. Entretanto, tão logo a situação se normalize, o peso voltará a
ficar em torno dos 60 quilos anteriores. O obeso, tendo o seu ponto fixo,
por exemplo, em torno dos 120 quilos, tenderá a manter-se também em
torno desse peso, em condições normais.

A obesidade, como qualquer problema médico, está longe de ser enten-


dida em sua totalidade. Por esse modelo do “ponto fixo”, observações e
experiências realizadas em animais e homens puderam ser compreendi-

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das. Em cativeiro, os animais engordam ao receber uma superalimenta-
ção, no entanto, quando são deixados de lado, li­vres, sem serem forçados
àquela alimentação, retornam ao peso ante­rior à engorda. Diversas
observações semelhantes foram feitas, prin­cipalmente com pessoas que,
por diversas circunstâncias, receberam escassa quantidade de alimentos.

Essas, após o emagrecimento, retornaram ao peso do seu ponto fixo. De


acordo com esse modelo, as drogas comumente usadas para combater
o apetite – os anorexígenos – inicialmente fazem descer o ponto fixo do
indivíduo para um nível mais baixo e só secundariamen­te diminuem o
apetite. Lamentavelmente, após a retirada da droga, o ponto fixo se eleva
novamente, aumentando o apetite e, consequen­temente, o peso aumen-
ta, alcançando o nível de equilíbrio anterior daquele indivíduo.

A atividade física constitui, talvez, a única técnica eficiente para aqueles


indivíduos que, considerados de risco, ou seja, com pon­to fixo corpo-
ral elevado, manterem peso normal. A atividade física queima calorias,
diminui o apetite e, por último, eleva o metabolis­mo basal, não só du-
rante o exercício, mas também horas após este. Portanto, a pessoa ativa
fisicamente está continuamente “gastando” mais calorias do que precisa
para manter as funções fisiológicas do organismo em condições de não-
-exercício. Por outro lado, para azar dos obesos, o regime alimentar nos
indivíduos de vida sedentária baixa o metabolismo, ou seja, “economi-
za” a perda de calorias. Os resultados são óbvios, à medida que o peso
diminui no indivíduo de vida sedentária, a sua taxa de metabolismo cai
também, com conse­quente estabilização do peso.

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Diga NÃO sem se sentir Culpado
Quem diz sim a um pedido de aval, para não magoar o outro, pode
depois amargar o pagamento da dívida. O passageiro que deixa os cen-
tavos com o trocador, com medo de reclamar ou de ser ridi­cularizado,
está deixando algo mais além do dinheiro: pode se sentir um “fraco”, ou
covarde. O consumidor que levou o sapato, por não ter coragem de dizer
não ao vendedor, não o usará com prazer, mas com raiva ou desgosto.
A visita desagradável que chegou sem avisar poderia estragar a tarde de
domingo, em outro momento poderia ser até agradável.

Provavelmente, quem experimentou tais acontecimentos vai reclamar


tanto de si mesmo, como dos outros. Entretanto é provável que nada
faça para modificar sua conduta e influir favoravelmente no curso dos
acontecimentos. Quase sempre esses nem mesmo ten­taram modificar
seu comportamento, visando a atingir objetivos que lhe dariam prazer,
maior autoestima e também um relacionamento mais agradável com o
visitante de horas indesejáveis.

As situações embaraçosas e, às vezes, humilhantes, das quais as pessoas


se queixam, são frequentes e na verdade atingem todos os seres huma-
nos.

O que fazer diante de situações semelhantes àquelas que foram descritas


acima?

Resumidamente existem três maneiras de agir:

1) Aceitar as imposições, lastimar-se e queixar-se da má educa­ção das


pessoas.

2) Brigar, xingar e agredir quem tentou a manipulação.

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3) Ser afirmativo, sem ser agressivo ou queixoso, defender clara e cal-
mamente seus direitos.

Vamos a um exemplo: Aníbal está em uma fila, pacientemente, há vários


minutos quando um homem entra, sem pedir, à sua frente. Conforme o
exposto, Aníbal poderá:

1º – Nada fazer e reclamar para si mesmo ou com o companhei­ro do


lado a respeito do abuso do intruso. Provavelmente Aníbal se sentirá
irritado, envergonhado da sua passividade e com queda da sua autoesti-
ma, por estar sendo enganado.

2º – Aníbal, em altos brados dirige impropérios ao furador de fila,


iniciando uma briga, o que passa a constituir um novo problema a ser
resolvido. Nesse caso, possivelmente, talvez a respiração fique ofegan­te,
o coração bata mais depressa e, pior ainda, a discussão possa cami­nhar
até chegar às “vias de fato”, dependendo da reação do outro.

3º – Num tom de voz firme, mas normal, Aníbal dirá ao intruso que
aquilo é uma fila, que deve ser respeitada e que ele, o furador de fila,
deve sair dali e procurar seu lugar lá atrás. Nesse caso, sua ação foi exclu-
sivamente para dar solução ao problema surgido e não para criar outro.
É possível que Aníbal se sinta ligeiramente emocionado, mas satisfeito
consigo mesmo, ao defender o seu direito. Posterior­mente, ele se sentirá
melhor ainda.

Situação semelhante é a do passageiro que não obtém nem o troco nem


a resposta do trocador, ao passar na roleta do ônibus. O passageiro pode:

1º – Ir embora sem receber o seu troco e ficar deprimido por sua con-
duta apática.

2º – Brigar com o trocador e eventualmente com o motorista, até com

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algum passageiro que ache absurdo ele exigir algumas moedas de troco.

3º – Finalmente exigir uma resposta adequada do trocador, não te-


mendo a pressão dele e de outros que querem passar na roleta.

Para cada uma dessas três condutas, encontra-se subentendida uma


crença ou uma concepção da melhor maneira de se conviver com outras
pessoas.

No primeiro caso, isto é, a passividade como tônica do compor­tamento,


indicará uma suposição de que nunca se deve, em nenhuma situação,
desagradar às pessoas. O foco da conduta está em não criar problemas
no relacionamento com os outros, seja lá quem for.

No segundo caso, quando há briga, o indivíduo percebe a ação do intru-


so como um abuso, uma agressão e, não imaginando outra opção, agride
também. Neste caso, ele criou um segundo problema, sem resolver o
primeiro.

E finalmente, no terceiro caso, quando a pessoa exprime sua opinião


firme e objetiva, sem rodeios, o centro da conduta se situa em si mesma
e não no bem-estar e manutenção da relação. Neste caso o indivíduo
acha natural alguém tentar furar a fila, como também acha adequado ele
defender seu lugar e, por isso, o faz de maneira conve­niente. Como não
tem poder sobre a conduta dos outros, sabe que alguns agem diferente
dele.

Não se pretende aqui defender como correta nenhuma das três posturas
descritas. Não é raro um indivíduo ser afirmativo em um lugar e não o
ser em outro. Uma pessoa pode ser firme e objetiva no seu trabalho, pas-
siva em casa e agressiva no futebol de fim de sema­na. Também pode ser
agressiva em uma ocasião, com uma determi­nada pessoa, e ser passiva,
fraca, em outro momento, com a mesma pessoa.

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Você, leitor, escolhe a melhor conduta para si, em cada momen­to, em
cada lugar e com cada pessoa, de acordo com o seu estilo pessoal. Prova-
velmente, não será conveniente sermos agressivos ou afirmativos quan-
do nos defrontamos com um assaltante, de revólver em punho, exigindo
o nosso dinheiro ou tênis. Neste caso, sejamos passivos e fracos, do
contrário podemos tornar-nos defuntos.

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A Prisão Domiciliar nas Grandes
Cidades
Uma parte da população das grandes cidades encontra-se presa. A cha-
mada classe média talvez nem saiba que ela própria decretou sua prisão
domiciliar. Certas famílias pagaram um pouco mais caro para habitar
prisões de segurança máxima, mais novas e talvez mais bonitas. Uma
vez morando nelas, não podem colocar a cabeça fora ou andar tranqui-
lamente pelas ruas e, em muitos locais, só podem sair de casa através da
fuga. Para escapar do possível assalto, antes de sair de casa, o cidadão
examina, pela câmera ou a fresta do portão, com extremo cuidado para
não ser visto, se há alguém suspeito por perto. Só então ele entra no
automóvel que se encontra na garagem. Estando a rua sem riscos apa-
rentes, o carro bem fechado, o motorista, muito atento, aciona o “con-
trolador da prisão”, abrindo, com ansiedade, o portão que vai expô-lo
aos perigos da rua ameaçadora. O carro sai em disparada, escapa como
pode, antes que seu proprietário seja rouba­do, assaltado ou assassinado.

Algumas famílias mais precavidas e privilegiadas, residentes em casas –


elas são mais perigosas – contratam vigilantes permanentes que esprei-
tam, dia e noite, tanto os possíveis assaltantes, como os movimentos dos
donos da casa: suas idas e vindas, a hora em que chegam e saem de casa
e também do banheiro, que hora dormem e quando acordaram à noite
para fazer pipi. Assim, consegue-se uma segurança e controle quase to-
tal. Troca-se o possível e ocasional assal­to, pela continuada observação e
interpretação da conduta da família pelo vigia. Algumas famílias aprisio-
nam-se em pequenos apartamen­tos cercados por grandes edifícios, onde
o sol só aparece por poucos minutos.

A ideia enfatizada pela sociedade, transmitida como conselho para to-


dos os “detentos” é: “Tenha cuidado ao andar pelas ruas, prin­cipalmente

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parar e caminhar devagar.

Ao sair – a não ser que desejem perder o seu suado dinheiro ou mesmo
a sua preciosa e, às vezes, inútil vida – você deverá, rapi­damente, entrar
numa outra prisão semelhante como cinemas, bar­zinhos, teatros ou lojas
comerciais. Nesses há menos perigo de ser assaltado “.

Uma vez no mundo selvagem das ruas e praças, ficamos frente a frente
com os perseguidores, que são diversos: os temidos pivetes, estuprado-
res, trombadinhas, vendedores, assaltantes, mendigos, ca­melôs, malo-
queiros, perguntadores suspeitos e desconhecidos que desejam contar-
-nos sua vida, veículos em disparada, pregadores reli­giosos, objetos,
cuspe e fezes lançados dos prédios, propagandistas ambulantes, seques-
tradores, vigaristas, etc.

Mas há também, às vezes, perseguidores-fantasmas que habitam nossa


mente, como os assaltantes inexistentes, elevadores que vão cair, bombas
que explodirão, gente nos observando ou livros com ideias estranhas
escritas por pessoas que pensam diferente de nós. As grandes cidades
impõem suas regras, aniquilando o indivíduo, se esse se descuidar. Qua-
se sempre, sem querer, o perseguido colabora com o perseguidor, seja
ele fantasma ou real. Uma boa parte dos habitan­tes não só se submete
à estrutura desumana das metrópoles, como, com frequência, ainda a
aplaude, engrandece e se orgulha de fazer parte dela. É difícil saber se
a nossa posição ou a nossa atitude está nos favorecendo ou se estamos
ajudando o “inimigo” desconhecido. O jogo é extremamente complexo.

Torna-se cada dia mais difícil driblar todos esses obstáculos. Uma boa
parte da população desistiu da luta, não mais a enfrenta, sucum­biu,
presa ao jogo do adversário. Esses não mais sabem onde querem chegar,
para onde vão. Encontram-se sem rumo e, como disse o gato para Alice,
no livro “Alice no País das Maravilhas”: – “Se você não sabe onde quer
chegar, qualquer caminho serve”.

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Passando pela rodoviária, num desses fins de tarde de sexta-feira con-
fusos e irritantes, observei um homem assentado numa das cadei­ras da
sala de embarque.

Vagarosamente ele preparava um cigarro de palha. Ao seu lado, havia


uma mala amarela simples. Ele parecia estar indiferente ao tu­multo à sua
volta. Tive inveja dele. Não pude, na minha correria, dei­xar de fantasiar:
“daqui a pouco ele estará no ônibus que o levará à sua cidadezinha, tal-
vez até seja Santa Maria de Itabira.

Ele terá no ônibus tempo para conversar calmamente consigo mesmo,


de pensar o que quiser, fazer ou não fazer várias coisas que sua mente
mandar. Talvez viva numa cidade calma, vendo, todos os dias, o verde
do campo, observe vacas pastando e possa ouvir uma chuva tranquiliza-
dora. Lá, bem longe daqui, poderá andar e falar com calma. Lá não há
pressa, seu relógio de pulso é um enfeite, seus compromissos não têm
horas rigidamente marcadas, podem ser adiados até para dias ou sema-
nas depois. Na sua casa as portas e as janelas ficam abertas, à tardinha,
ele e sua mulher debruçam-se no peitoril e observam os amigos passan-
do, todos conhecidos, e a todos ele cumprimenta sem discriminar ricos,
pobres, negros, mulheres ou crianças.

De quando em quando, poderá ir até o quintal saborear uma manga e


oferecê-la, de graça, ao vizinho e amigo. Poderá sair à rua sem medo
de fantasmas, parar em qualquer esquina, entrar e sair de onde desejar.
Quando a noite chegar, ele dormirá tranquilo sem pen­sar em ladrões,
sem ser incomodado por algazarras e barulho de frea­das no asfalto.
Ouvirá sonolento em sua cama, de quando em quando, o berro de um
bezerro recém-nascido ou, mais distante, o latido dos cães. Acordará
com a claridade do sol, o cantar dos galos e não com ruídos barulhentos
dos ônibus, caminhões e carros.

Fui despertado do meu devaneio ao presenciar um carro, na avenida


Paraná, jogando um senhor no asfalto. Meu sonho acabou… Eu me

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permiti essas divagações para lembrar-me, e também, quem sabe, ao lei-
tor, que talvez haja alguma maneira diferente de viver. Quis retratar um
contraste. Peço desculpas por ter talvez imaginado um paraíso diante
do inferno onde moramos, mas acredito que devem existir modos mais
humanos para construir a difícil e trabalhosa arte de viver, além da do
cárcere privado.

Parece-me que a massificação impede essa criatividade, forçan­do todos a


serem semelhantes, normais e uniformizadas, de tal forma que a maioria
das famílias, nas grandes cidades, segue um mesmo modelo.

Os mais velhos, coitados, esses quase não mais saem de casa. Suas vidas
restringem-se a comer, dormir, ver TV e, principalmente, tomar de ma-
nhã, à tarde e à noite grandes quantidades de comprimi­dos para as suas
dores diversas, outras para o “coração” e para dor­mir. Os de meiaidade
trabalham incessantemente e, nas folgas que existirem, divertem-se sem
parar após se embriagarem. Os jovens, trabalhando, estudando ou não
fazendo nada, seguem a última moda de qualquer ídolo fabricado e, com
eles se identificando, sentem-se alguém. As crianças obedecem: as de
maior poder aquisitivo estudam nos “melhores” colégios, fazem me-
diocremente ginástica, dançam balé ou tocam algum instrumento. Nas
folgas, assistem aos programas chatos para crianças e outros da mesma
espécie. As de menor poder econômico tentam imitar, sem grande su-
cesso, algumas mazelas das crianças ricas.

Talvez dentro dos cárceres privados viva uma família “feliz”. To­dos estão
cercados por vizinhos, colegas e companheiros que fazem as mesmas
coisas, pensam do mesmo modo e têm os mesmos valores, de acordo
com as classes a que eles julgam pertencer. Passeiam e tiram férias, nos
locais “em voga”, conforme sua posição social. Iso­lados, mas unidos
fisicamente, cada um desses indivíduos, nos seus apartamentos, pobres
ou ricos, ou nas mansões, todos, como autô­matos e sem o saber, fazem
as mesmas coisas: contam as mesmas histórias, cantam a mesma letra
da música, leem os livros mais ven­didos e assistem e discutem, emocio-

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nados, à última novela. Cada um desses espetáculos é mais comentado
e mais vivido do que os fatos de suas próprias vidas, que, possivelmente,
há muito se perderam. Sua consciência, excelente crítico que é, filtra e
censura toda e qualquer ideia estranha que possa fazer desabar a sólida
estrutura mental e ide­ológica construída pelo grupo que o cerca. Os que
pensam, vivem e se comportam diferentemente são discriminados como
tolos, jecas, bregas ou outros termos pejorativos. Assim, o equilíbrio é
mantido.

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Benditas sejam as Queixas
“Que calor terrível”, “Detesto esta cidade”, “Essa seleção é a pior que já
vi”. Frases como essas nós ouvimos a todos os momentos e em todos os
lugares. Entretanto, só raramente ouvimos o seu oposto, como “Gosto
desta cidade” ou o “Brasil vai bem”, e assim por diante.

Queixar-se é um dos grandes passatempos de nossa população. É fácil,


barato, familiar e acessível a qualquer um e, além disso, não exige ne-
nhuma responsabilidade. Ao queixarmo-nos, sentimos pie­dade de nós
mesmos e, quem sabe, talvez possamos ganhar, na outra vida, um lugar
no céu por termos cumprido tão bem essa penitência na Terra.

A função principal da queixa parece ser apenas um hábito para preen-


cher o tempo, apesar de que, à primeira vista, é difícil aceitar essa ideia.
Vou tentar esclarecer: a todo momento encontramo-nos uns com os
outros e temos que falar alguma coisa. A conversa, para não morrer,
precisa ser continuamente inventada, pois não fica bem ficarmos calados
uns diante dos outros.

Esse papo é diferente do que temos quando vamos a um banco, por


exemplo, fazer um depósito ou retirar algum dinheiro. Nesse úl­timo
caso há um objetivo claro, a conversa gira em torno dele e, reti­rado o
dinheiro, encerra-se a comunicação. Uma parte de nossa con­versação
é formulada como no caso do banco, entretanto, mesmos nessas con-
versas, diálogos paralelos são inventados para preencher e sustentar o
assunto principal.

Quando, por acaso, encontramos algum conhecido, não há nada de


objetivo e lógico para ser dito. O assunto fica por conta da criativi­dade
dos envolvidos. A conversa termina quando acaba a imaginação, ou seja,
quando nenhum dos dois descobre mais nada a ser falado.

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É bastante comum, ao encontrarmos o antigo amigo, pergun­tarmos:
“Tudo bem?” e ele responde: “Tudo bem. E você, tudo bem? Nova res-
posta: “Tudo bem.” Se continuar nesse papo furado, a con­versa pode em-
perrar e o encontro ser rapidamente desfeito. Mas po­deríamos prolongar
a conversa, por exemplo: “Tudo bem nada. Hoje cedo ao levantar-me,
senti uma pontada no peito… E as queixas come­çam, a conversa flui,
rica em dados.

O nosso modo de expressar é muito rico em palavras e frases, que


apenas servem para preencher espaços vazios. Possivelmente a maior
parte de nossas conversas encaixam-se nesse tipo. Nessas, de fato, nada
estamos falando no sentido objetivo ou produtivo da lingua­gem, apenas,
prazerosamente, emitindo sons para nosso interlocutor, que faz o mes-
mo, como os meninos que estão começando a falar: eles ficam ouvindo
os sons que eles próprios pronunciam. A sons emitidos pelas crianças e
o papo furado dos adultos podem durar horas, mais ainda se estivermos
num bar tomando uma cerveja.

Ora, nas conversas de todos os dias, cada indivíduo tem várias pala-
vras ou frases disponíveis, prontas para serem usadas, fáceis de sa­írem.
Quanto mais o indivíduo usa essas frases – ou apenas palavras – já arru-
madas, analisadas e sem risco de serem usadas, mais elas estarão prontas
para saírem para o ar, seja qual for a situação vivida. Temos também o
hábito de falarmos muito mais acerca de nossos “pontos de vista” do que
acerca de fatos objetivos. Em lugar de descrever alguns lances do jogo
assistido, o narrador fala:

- O jogo foi ótimo, mas, na verdade, na minha opinião acho que Maria-
no devia ter entrado mais cedo. Esse técnico não presta. Enten­deu? Se
tivesse entrado…

Os termos, “ótimo” e “presta” são julgamentos que formam uma opinião


sobre o jogo ou a conduta de um bom técnico, não é uma des­crição de

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eventos. Assim, quase sempre diante de qualquer aconteci­mento, emi-
timos muito mais a nossa opinião – os achismos – acerca dos fatos, ou
nossa interpretação, e pouco ou nada da nossa percep­ção dos mesmos e
frequentemente a interpretação tem pouco a ver com os fatos ocorridos.

Provavelmente, em um grau maior ou menor, todos nós agimos assim.

Desde cedo nossos educadores, de geração em geração, fizeram queixas


e mais queixas acerca de tudo e de todos, criticaram mais do que elogia-
ram, assim é natural e esperado que os discípulos, apren­dendo a lição,
também passem a agir da mesma maneira automatica­mente. Só muito
raramente espera-se que um pai ou uma mãe fale que a temperatura do
seu filho está normal, ou também que ele está disposto. Mas com certeza
falará que o menino quebrou um copo, que está com uma febre altíssima
ou, ainda, que é um desastrado, pois derramou água na mesa.

Assim, se nosso filho chora, nós o chamamos de “chorão”. Ao classificá-


-lo de “chorão”, formamos uma ideia que pode ficar cristaliza­da acerca
dele e, possivelmente, estamos criando um “mito familiar” e, como todo
mito, esse irá dirigir nossos pensamentos e condutas para o infeliz filho.
A partir daí, ele poderá ser tratado como se fosse sempre chorão e o
imaginamos como agora chorando, mas que antes não estava e, pos-
sivelmente, depois também não estará. Além disso, preso ao “mito do
chorão, não percebemos o choro como um fato natural, decorrente de
acontecimentos que o levaram ao choro.

O termo ou rótulo “chorão”, neste caso, é uma estimativa ética e, por-


tanto, o comportamento é visto como inaceitável. Do mesmo modo os
estigmas tais como “bobo”, “feio”, “gordo” e muitos outros, quase sempre
são usados como juízos de valor e não para descrever fatos. Quando o
modelo de pensamento, como nos exemplos, é a in­terpretação da reali-
dade sobre a forma de queixas, a visão do mundo distorcida e preconcei-
tuosa poderá ser bemvinda pela facilidade de ser expressa, sintonizada,
captada e entendida pelo interlocutor, por ser este um modo usual de

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conceber o mundo. Por tudo isso, viva essa conversa, as queixas, pois são
esses instrumentos que mais “ligam” as pessoas umas às outras.
As situações positivas, por outro lado, para serem percebidas e faladas,
necessitam ser muito importantes, salientes ou acontecerem numa fre-
quência muito grande: passou no concurso onde tinha 1.000 candidatos
por vaga, estuda todos os dias até tarde da noite. As frases de elogios ou
de percepção de fatos positivos, por serem escassamen­te usadas, não
ficam disponíveis em nossa memória, ao contrário das negativas ou as
queixas, que nos são mais familiares.

Os médicos sobrevivem em virtude das queixas dos pacientes. Os advo-


gados, juízes e promotores passam a vida ouvindo queixas de um lado e
outro. Políticos são eleitos prometendo resolver as queixas dos eleitores
e, por fim, nós nos ligamos à maioria das pessoas atra­vés dos elos mági-
cos das queixas. São elas que nos unem. Podemos concluir que uma con-
versa acerca de queixas fluirá com facilidade, todos nós temos estoques
disponíveis delas prontas para entrar em ação. Por tudo isso, bendita seja
a queixa, a principal razão da atual estrutura social.

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O Terapeuta amador
Todas as pessoas acreditam que é bom “ter um amigo em quem se possa
confiar”, para contar os problemas e ouvir algumas palavras de ajuda e
compreensão num momento de dificuldades. É realmente muito bom
quando o ouvinte se limita a ouvir e evita dar palpites, pois conselhos
ruins em momentos decisivos, podem destruir planos, vidas e trazer
sofrimento. É preciso ter algum cuidado com os tera­peutas de botequim.

Assim como nem todas as terapias conduzem ao sucesso, mui­tos con-


selhos são desastrosos, apesar de todas as boas intenções contidas neles.
Grande parte da conversa entre os amigos e respec­tivos conselhos envol-
ve situações de pouca importância. Quando a indecisão se refere a uma
ida ao cinema ou quanto a um restaurante, qualquer que seja o resulta-
do, praticamente não haverá mudança na vida daquela pessoa.

Mas nem sempre é assim. Os conselhos são dados também para situa-
ções de extrema importância para a vida de quem os recebe e, depen-
dendo dos interlocutores, é seguido e pode ser fatal. A se­paração decidi-
da com facilidade numa mesa de bar, sob o efeito liberalizante do álcool,
pode ser catastrófica para a vida de quem se separou e sem nenhum
prejuízo para o conselheiro. Às vezes, até com algum lucro.

Um exemplo de conselho perigoso é o tipo “deixe-o sozinho, quem fala


em suicídio não se suicida”, que é dado com frequência. Nesses casos o
resultado pode ser a morte, já que essa crença popu­lar não corresponde
sempre à realidade. Inúmeros outros conselhos semelhantes são dados
sem avaliação dos resultados, Nesses casos, o conselho dado de graça
fica caro para a pessoa.

É fácil aconselhar alguém a largar o emprego ou o namorado. Afinal, o


outro sempre o fará porque quis e, portanto, sem nenhuma responsabili-

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dade para o conselheiro.

O difícil é conversar com a pessoa, indicando-lhe caminhos para que


possa se ajustar melhor no trabalho, ou encontrar um relaciona­mento
mais produtivo com seu namorado ou esposa. Uma conversa com um
amigo que está disposto a ouvir com simpatia e solidariedade as queixas,
tranquiliza o queixoso na maioria dos casos. O desabafo, por si só, dian-
te de pessoa compreensiva e de confiança, traz alívio para quem fala. Por
outro lado, emitir conselhos que vão mudar a vida do amigo, sem ter
informações completas acerca dos problemas e recursos para resolvê-los,
é uma atitude temerária.

É claro que quem reclama teve alguma participação no fato que o leva a
reclamar. Ninguém é somente vítima. Frequentemente, ao procurar um
conselho, quem reclama busca ouvir o que queria. Um aspecto impor-
tante é o de que, quase sempre, o queixoso procura vários conselheiros
e adota, automaticamente, a orientação mais pa­recida – ou igualzinha
– à sua própria. Eles, nós todos, procuramos um apoio às nossas ideias
e crenças, desse modo, os conselheiros foram, na verdade, seleciona-
dos entre os mais semelhantes ao cliente ama­dor. Assim, o esposo ou a
mocinha desencantada com o companheiro tende a buscar a ajuda da
mãe ou do melhor amigo, reclamando: “É um absurdo o que ele me fez”,
“Ela não podia ter me tratado daquela maneira”, “Ele devia ter-me dito”.
Os terapeutas, quase sem exceção, irão escutar e comentar o ocorrido,
defendendo o queixoso, dando-lhe razão, tudo isso sem examinar o con-
texto e os antecedentes do fato. O consulente sai da “consulta” confiante.
As frases indicam uma crença falsa acerca do poder de nossos desejos
sobre a conduta das pessoa. Isso não existe. A pessoa deseja que o outro
aja de modo dife­rente, mude, sem seus esforços.

Numa família ou numa repartição pública, alguma coisa nos gru­pos


envolvidos determina os que terão o papel de “queixadores” e os de
“terapeutas”. Esses indagam: “As minhas amigas me procuram para
queixarem-se”, “Gosto muito de Cláudia, ela me entende” ou “Marília me

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procura só para lamentar-se”.

Por azar, nem sempre aquilo que deseja a pessoa que busca o conselho, é
o melhor para si.

Em briga de casal, o cônjuge procura a ajuda dos familiares e amigos que


percebem e integram o mesmo sistema de pensamento dele. Geralmen-
te, esses não o modificam, nem tentam melhorar seu relacionamento
conjugal. A queixa principal não é examinada em seus diversos detalhes,
o conselho é fornecido sem avaliar as conse­quências, sem examinar o
papel do queixoso no problema e sem o preparar para adaptar-se ou re-
solver as situações problemáticas exis­tentes. Desse modo, a falsa “ajuda”
perpetua as desavenças.

Por último e isso pode ser grave: quem faz as confidências fica compro-
metido com quem as ouve. Se o cônjuge pretende separar-se da mulher
e fala muito mal dela, fica difícil depois explicar ao conse­lheiro a recon-
ciliação ocorrida mais tarde, como também fazer um comentário favo-
rável à mulher, em presença de quem escutou os im­propérios dirigidos
a ela. Por tudo isso, cuidado com os terapeutas de botequim, com os
amadores.

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A Liberdade dos Jovens
Muito se tem discutido acerca do problema da maior ou menor liberda-
de dos jovens. Quando e como devemos dar-lhes a liberdade e em que
grau essa deve ser concedi­da? O termo emancipação, que se assemelha
à libertação, significa “aquisição da capacidade civil”, ou “libertação do
pátrio poder” ou ainda “conquista de independência”. Ao falarmos deste
tema, forçosamente penetramos num ter­reno difícil e de grande im-
portância para o ser humano, que é sua liberdade e esta tem, como seus
opostos, o determinismo e a coação.

Não discutirei as duas posições extremas e radicais, ou seja, determinis-


mo absoluto ou liberdade total, pois creio que estes não fazem parte da
conduta humana. O homem carrega pré-determinações absolutas: não
pode voar, trocar de sexo e assim por diante, mas pode al­cançar uma
liberdade relativa como trocar de emprego, casar ou descasar, ir ao cine-
ma ou ver TV e fingir trocar de sexo.

A liberdade, ainda que limitada, é conseguida ou conquistada através


da decisão do indivíduo de construir a si mesmo, de acordo com seus
valores. Esta constru­ção surge através da ação. O homem não se torna
livre pensando apenas, precisa agir. Ele encontra-se cercado de grandes
dilemas, um deles é o determinado por duas tendências fundamentais e,
em certo sentido, opostas:

1) a autoafirmação, que corresponde à autonomia in­dividual;

2) a integração, que leva à dependência. Ao mesmo tempo existe em


todos nós – desde o nascimento – uma força ou tendência no sentido de
torná-lo autônomo ou livre. Essa é adquirida, em grande parte, através
da outra tendência humana, a de estar ligado, integrado, a outros seres
humanos, ou seja, estar dependente e não-livre.

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Como escapar ao dilema de buscar a liberdade através da não-liberdade?
O menino aprende a ser livre privando-se de sua liberdade, preso ao
grupo social, geralmente o de sua família e, mais tarde, dos companhei-
ros, cônjuge, membros de igreja, etc.

A estabilidade dos organismos individuais e da socie­dade, assim como


seu bem-estar, dependem basicamente do equilíbrio próprio entre essas
duas tendências conflitan­tes e necessárias ao desenvolvimento. Durante
o estado de “saúde” dos dois sistemas – individual e social – há uma rela-
tiva integração entre eles: uma relativa liberdade in­dividual e, ao mesmo
tempo, um sistema familiar e social integrado, funcional e estável dina-
micamente. Nesse caso, ambos os sistemas estão satisfeitos.

Durante as crises, ocorre o contrário: ambos os sis­temas estão em so-


frimento – “doentes” – por desequilíbrio entre suas tendências básicas.
Neste caso, ou a família hipertrofiou a integração em detrimento do
crescimento da individualidade de seus membros, ou o jovem exagerou
sua autonomia, provocando a quebra da integração fami­liar, num mo-
mento de sua vida no qual a ligação ainda era de vital importância.

O sistema individual do jovem é extremamente fluido, dotado de ainda


poucos recursos, sendo facilmente contro­lado por outros sistemas.

Quando o jovem abandona precocemente o sistema familiar, é comum


ligar-se e “nutrir-se” de outros sistemas ao seu redor, que podem ser me-
lhores ou piores para ele do que o anterior. O jovem poderá ligar-se ao
grupo de escotei­ros ou ao de assaltantes. Em nossa cultura americaniza-
da, propagada pelos filmes de Hollywood e por outras influên­cias, existe
uma pressão para que as pessoas se agreguem em grupos não-familiares,
em detrimento de liberdade in­dividual. Esta “cultura” vai contra a dos
nossos antepassa­dos, na qual a ligação familiar era a buscada e elogiada.
A agregação diminui ou elimina a autonomia individual, a orientação
interna de cada pessoa. Ao mesmo tempo ocorre a hipertrofia da “boa

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relação” com o grupo, ou o “bem-estar grupal”. Culturas diferentes en-
fatizam diferentes posturas: maior ênfase no indivíduo, na sua liberdade
ou maior im­portância aos grupos familiares, políticos ou religiosos.

Os valores e as atitudes transmitidos ao jovem pela própria família


funcionam assentados em regras, moldes ou padrões de conduta que são
aceitos como certos. Ensina-se o que é sério e o que não o é, o que é bom
e o que é mau, a forma apropriada de comer e a inadequada, as formas
corre­tas e incorretas de demonstrar carinho, quais são os amigos e os
que não o são e milhares de modelos semelhantes.

Portanto, nos primeiros anos de vida, a família, que já possui os seus


padrões assimilados, os impõe ao filho. À medida que o menino cresce,
ele vai recebendo outros mo­delos ou padrões: dos amigos, dos colegas,
dos professo­res, da imprensa, dos partidos políticos, da Igreja, etc. Pou­
co a pouco desenvolve-se o padrão do indivíduo, produto da organiza-
ção dada às milhares de experiências vitoriosas e de fracasso, dos vários
modelos recebidos e recriados.

Aparentemente ocorre uma situação de liberdade, quando o jovem es-


colhe uma profissão, um cônjuge ou um grupo de amigos. Mas, de fato,
a “escolha livre” é de­terminada, em grande parte, pelos modelos rece-
bidos e incorporados, principalmente dos familiares e companhei­ros, e
também por experiências transmitidas verbalmente por outras pessoas
e nunca experimentadas. Todas essas informações recebidas, algumas
vivenciadas, outras não, são seguidas com muita fé, quase sem contesta-
ção ou crí­tica. O indivíduo, frequentemente, crê que sua escolha é livre:
que ele se casou com Margarida porque quis, que é médico por vocação,
porque, para ele, a medicina é a me­lhor profissão e é amigo de Paulo,
porque Paulo é muito “boa gente”. Pura ilusão. A nossa representação do
mundo, incluindo os diferentes modelos, é pobre, contém poucos dados
à nossa disposição. Conhecemos superficialmente, ou mesmo nada,
acerca de outras profissões, assim como outros modos de vida e desco-
nhecemos modelos de vida de pessoas estranhas ao nosso convívio.

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Além disso, os modelos pouco conhecidos não pode­riam exercer atra-
ção sobre nós, pois geralmente só va­lorizamos as experiências ditadas
pelo modelo por nós aprendido. O valor que nós imputamos a alguém,
a alguma coisa, ou a alguma atividade, está já constituído e cristali­zado
em torno do fim da adolescência em nossas mentes, pelos nossos “tapa-
-olhos”. Assim, munidos desse “radar”, vamos organizando nossas per-
cepções em torno dos nos­sos padrões, vamos formando a nossa estrutu-
ra mental, “filtrando” aquilo que não corresponde à nossa hierarquia de
valores que foram inoculados em nossa mente.

“Sou advogado, gosto muito daquela moça, mas ela não é do meu nível,
pois é balconista”. Sou branco, estu­dante de medicina, não fica bem para
mim ir à festa com Pedro, que é negro, servente de pedreiro, apesar de
ele ser o melhor do nosso time de futebol”. “Sou professor da Faculdade
de Medicina, não posso frequentar tais lugares e andar com essa genti-
nha sem classe, que nem se vestir sabe”. “Eles são gente simples como
nós”, “Só frequento restaurantes de alto nível, não tolero falta de classe”.

Dificilmente ouvimos uma conversa descontraída ou um papo informal,


onde o preconceito e a visão estreita do mundo não se revelem e possam
ser identificados. Não só assistimos aos preconceitos contra o negro ou
os portu­gueses, mas a respeito das várias classes e papéis sociais, de pro-
fissões, de sexo, de idade e assim por diante. “Ele é muito jovem, nada
sabe”, ou o seu oposto, “Ela está total­mente gagá”.

É extremamente difícil sair disso. Só com uma criação de um modelo


neutro, que permitisse a entrada de toda e qualquer informação, padrão
esse que fornecesse para cada dado recebido um valor que fosse interes-
sante para seu possuidor.

Portanto, para nos tornarmos mais livres, é preciso usar menos os


“filtros” e menos os “radares”. Usar, sim, uma “antena parabólica” para
captar tudo o que puder­mos, dando a cada percepção um valor mais
abrangente, aumentando nossa representação ou o nosso macromode­lo

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do mundo.

Só assim poderíamos ficar um pouco menos presos aos grupos de pres-


sões, passaríamos a ser mais orienta­dos internamente e menos externa-
mente, deixaríamos de ser seduzidos pelos líderes carismáticos e, dessa
forma, quem sabe, poderíamos ser líderes de nós mesmos.

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Bichos ou Seres Humanos?
Ao lidar com os meninos de rua não devemos esque­cer que estamos
lidando com seres humanos, cujo com­portamento resulta das exigências
do seu organismo bioló­gico, de sua aprendizagem durante sua vida, dos
estímulos provenientes de seu meio ambiente num determinado mo­
mento, das pressões provocadas pelos grupos dos quais fazem parte e
conforme os modelos que aprenderam de si e do mundo. Todos estes
fatores funcionam juntos, predo­minando, ora mais um, ora outro.

O que diferencia os “pivetes” não-criminosos dos “pivetes” crimino-


sos são pequenas diferenças existentes em cada um dos fatores acima
relacionados. Assim, um adolescente não-criminoso apresenta uma
concentração de serotonina cerebral – um neurotransmissor existente
no cérebro – mais elevada do que o menino criminoso. Uma criança
“normal”, provavelmente, foi criada num lar mais harmonioso e seus
pais eram mais bondosos e com­preensíveis do que os pais – caso tenha
– do menino de rua. Os pais do adolescente “normal” talvez não tenham
sido alcoólatras ou dependentes de drogas. O cérebro de um recém-
-nascido “normal” não sofreu danos pré, peri, ou pós-natal como pode
ter ocorrido no pivete criminoso. A maioria dos meninos tem uma ideia
do mundo mais realis­ta do que a do menino de rua, principalmente da
conduta das pessoas.

A família e a sociedade em geral vai, pouco a pouco, se acomodando e


assimilando a carreira do “pivete”, que ela, em grande parte, ajudou a
construir. Acostumamo-nos com seus pequenos delitos e sua aprendiza-
gem progressi­va para crimes mais sérios. Aceitamos passivamente, sem
nos alarmar, sua miséria, sua morte precoce nos aciden­tes de trânsito,
nos espancamentos sofridos dos próprios companheiros ou por grupos
de extermínio, suas doenças graves, sua desnutrição, seu tédio prove-
niente de sua vida vazia e sem sentido, sua falta de higiene, o uso de

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drogas, sua submissão a estupros e, por fim, sua exploração conti­nuada
pelos que se utilizam deles para a prática de roubos, de relações sexuais e
até mesmo de campanhas políticas.

Lamentamos histericamente seu sofrimento com pa­lavras semanti-


camente apropriadas para as emoções ne­gativas, mas sem que nosso
coração ou pulmão mude seu ritmo normal. Assistimos nas imagens da
televisão a seu sofrimento de animal abandonado, no instante da notí-
cia. Após a hora marcada para “sofrermos” o problema do pive­te, diante
do noticiário, desligamos a TV e também nosso cérebro e o ligamos no
canal das diversões. Ao exibir essa conduta de preocupação simulada,
expiamos nossa res­ponsabilidade na participação desse problema social
e re­forçamos a nossa imagem de cidadãos bondosos. Com isso mante-
mos um falso equilíbrio e nossa autoestima elevada.

Após o “nosso sofrimento” de hora marcada, saímos com nossa família


saudável e unida para jantar. Passamos pelo teatro para assistirmos a
uma comédia representando o drama humano. Voltamos para casa para
mais um des­canso, agora das diversões do mundo fictício. Deitamo-nos
para dormir numa espaçosa cama limpa, macia e confortá­vel. Recupera-
mos, desse modo, as energias perdidas pelo sofrimento do dia anterior.

Dormimos um sono tranquilo e sem culpa, como bons cristãos que


somos. Enquanto dormimos, neste momento, um pivete pode estar
sendo assassinado, acidentado ou estuprado numa noite fria, indiferente,
sonolenta e serena como nós.

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Guerra, Heróis e Inocência
Os povos sempre produziram bobos, heróis e trapa­ceiros. Talvez preci-
semos deles. Os bobos servem para nos divertir, os heróis nos fornecem
direção e segurança para as dúvidas e os trapaceiros nos fazem acreditar,
por alguns momentos, em dias melhores. Uma distinção precisa entre
eles não é fácil, pois as três características se misturam e se comple-
tam. Todos trabalham com o povo: o herói precisa de um público para
admirá-lo ou adorá-lo, o bobo necessita de risadas da plateia, e o trapa-
ceiro aproveita a ingenuidade e crendice de suas vítimas.

De tempos em tempos, como ocorre agora, os heróis (ou seriam tra-


paceiros?) ocupam os espaços dos jornais. Eles inoculam nas mentes
inocentes, através de discursos virulentos, estimulantes para o tédio do
povo. Sua fala, desprovida de argumentos, inclui, preferencialmente,
sons com forte teor emocional, frases grandiosas, expressas de forma
direta, simples e vaga, escondendo a complexidade dos temas discutidos.

Palavras oportunas, em grande quantidade, são dis­paradas contra a


mente de fanáticos admiradores. Sob o efeito do discurso, cada um em
seu canto, interrompe suas reflexões pessoais sobre as eternas desigual-
dades e injusti­ças sociais, esquece sua insuportável solidão, sua vida sem
atrativos e sem perspectivas de mudança. O discurso do guru, milagro-
samente, lhe revela alguma razão para viver.

O líder, consciente da submissão, fraqueza e aturdi­mento dos lidera-


dos, injeta, pouco a pouco, em suas men­tes macias, a figura do inimigo
fantasma. Revelado o ini­migo comum, mesmo sendo cada um muito
diferente do outro, os desgarrados se unem.

As palavras do líder, lançadas com sabedoria e pre­cisão matemática,


produtos de refinadas pesquisas das agências de propaganda, atingem

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a mente atordoada do guerreiro em potencial, sendo que a provocação
do ódio concentra-se, inicialmente, num nome. É difícil odiar um povo,
pois esse, além de não ter personalidade, não pode ser visto. O comba-
tente virtual só sente e entende o con­creto. Termos usados para expres-
sarmos nossa raiva de todo dia, são utilizados para identificar o inimigo:
demô­nio, bandido, louco, ditador, agora, terrorista. Uma vez se­lecionado
o monstro, estende-se a agressão para o povo da mesma raça.

Doutrinados pelo ódio ao inimigo comum, os conver­tidos se sentem


encantados, aliviados e felizes por esta­rem defendendo uma causa justa e
grandiosa. Extasiados, sentem nascer, no seu íntimo, um vigor e pra-
zer sublime, nunca antes vivido, fruto de sua conversão a um “xiismo”
qualquer. Assim, milhões de fanáticos, ligados por uma ideia comum,
partem para o ritual da guerra. Nesse ponto, os objetivos escusos do
líder passam a ser os mesmos dos seguidores, mais importantes que suas
vidas.

Estranhamente, e como é estranha a mente huma­na!, esses jovens con-


vertidos, antes desorientados, agora se sentem seguros e tranquilos. Suas
intermináveis e dolo­rosas dúvidas: “o que fazer?”, ou “para onde ir?”
terminam com a adesão à guerra. Na mente dos humildes seguidores
despertam sonhos muito antigos de glória e de poder, ina­tingíveis pelos
caminhos normais de sua vida. Entretanto, ao se identificar com os dis-
cursos do líder, o soldado ima­gina-se importante, conhecido e poderoso.

Claro que ele não será famoso como foi John Smith, por exemplo, Mas
ficará famoso por ter morrido como sol­dado do regimento importante,
de um país importante. Ele imagina ser um dia famoso e forte como é
seu guia idola­trado, fantasia dias melhores, paz e felicidade. Começa a
sonhar com seu retorno triunfal, seu nome na imprensa, garotas belas e
carinhosas ao seu redor, numa praia en­solarada, como sempre viu nos
filmes sobre os heróis de guerras anteriores.

Os que já foram enganados outras vezes por diversos governantes,

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esperam mais fatos e menos boatos para se decidirem. Este grupo sabe
que as suas experiências são altamente diferentes das vividas pelos seus
superiores. Os sons que eles pronunciam são os mesmos que todos nós
pronunciamos, mas essas palavras iguais (“guerra”, “inimi­go”, “ditador”,
“terrorista”, “incapaz de governar o povo”, “li­berdade”, “democracia” e
outras), expressam experiências muito diferentes, referem-se a mundos
totalmente diversos. Sadam Hussein foi “Deus” para boa parte do povo
iraquia­no, Bush foi apoiado pela maioria do Congresso e por gran­de
parte do povo americano nas votações. Nós, brasileiros, já elegemos
Jânio, a nossa Câmara já aprovou, sem votos contra, o governo de Costa
e Silva, Médici e outros. Stalin foi herói na Rússia e Hitler, na Alemanha.
Com o passar dos anos, com mais informações e menor número de ver-
sões, a história poderá ser transformada em novas verdades.

Já assistimos a esse “filme” e já conhecemos o per­dedor – o povo dos


dois lados – e os vencedores, os gover­nantes de algumas nações e cer-
tos empresários que, como sempre, aproveitam a situação. Essa é a sua
atividade.

Infelizmente os heróis ou trapaceiros voltaram, dis­cursando como sem-


pre, conduzindo para a guerra, ou para diversos caminhos estranhos aos
nossos, um rebanho de jovens inocentes. Seriam os tolos?

Vidas e vidas continuam sendo eliminadas, sem ao menos perguntar aos


crentes seus valores e objetivos. Im­põem-nos, em troca do nada, expe-
lindo palavras vazias, seus objetivos sórdidos. De tempos em tempos,
uma mul­tidão de ovelhas puras e mansas caminha, antes da hora, para o
outro mundo, conduzida por pastores incapazes, imbecis ou loucos.

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Homem: Animal Contraditório
O homem é um animal “fora de série”, estranho e de­sadaptado. Somos
isolados, mas vivemos altamente liga­dos uns aos outros. Temos uma
parte da mente que pensa, às vezes com alguma lógica, e ao mesmo tem-
po, uma outra parte da cabeça presa ao organismo – glândulas, órgãos,
músculos – reage instintiva e automaticamente aos estí­mulos, portanto,
somos irracionais em diversas ocasiões. Às vezes somos bondosos, ofe-
recemos muito de nós mes­mos em benefício de nosso irmão, em outros,
o assalta­mos, o estupramos ou o matamos. Oscilamos, passando de um
modo de viver cheio de alegria, esperança e fé, para o mais completo
desespero e ódio. Buscamos ansiosamente a ajuda médica por pequenos
problemas de saúde e, mui­tas vezes, menosprezando a própria vida, nos
suicidamos.

Trabalhamos duramente para conseguirmos recur­sos visando obter casa,


comida e segurança. Entretanto, ao atingirmos o desejado, passamos a
comer exagerada­mente, acumulamos dinheiro desnecessário e arrisca-
mos nossa vida em atividades perigosas como lazer. Fazemos guerras,
para conseguirmos a paz. Lutamos contra os po­derosos e quando esta-
mos no poder, quase sempre atu­amos de todas as formas, no sentido de
eliminar os de menor poder. Criticamos violentamente os torturadores
e, na primeira oportunidade, passamos a agir como eles. Buscamos de
todas as formas possíveis uma companhia, e quando a conquistamos, a
achamos aborrecida e vamos atrás de outra.

Censuramos a censura, quando ela é extirpada, cada grupo ideológico


reclama seu retorno. Como equilibrar-se numa “zorra” dessas? Esses
pensamentos me ocorreram ao lembrar-me de Cícero.

Conheço-o há longos anos, acho mesmo que desde criança. O nosso


convívio sempre foi muito íntimo e isso permitiu obter muitas informa-

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ções a seu respeito, como, até mesmo, elaborar algumas teorias acerca de
sua vida. Apesar dessa proximidade, na maior parte das vezes eu não o
en­tendo e, quando suponho compreendê-lo, vejo que falhei.

Cícero é um pesquisador sério da natureza. Lê muito, presta atenção a


tudo e armazenou, ao longo dos anos, vastos conhecimentos científicos
e históricos do mundo e do homem. Entretanto seu “radar” é muito
abrangente e pouco seletivo. Desse modo ele captou também crenças
infundadas, superstições diversas, ideias religiosas emiti­das por qual-
quer seita moderna e, além disso, aceita inú­meras “verdades” do senso
comum. A cabeça do Cícero virou uma verdadeira salada, contendo
informações de­sordenadas, contraditórias e pouco plausíveis. Todas elas
seguidas e defendidas com o mesmo vigor e entusiasmo. O resultado
tem sido drástico. Diante de tantas informações niveladas em termos
de valor, algumas sérias, outras nem tanto, ele foi arrastado para uma
profissão que lhe é im­própria, escolheu amigos inadequados ou incom-
petentes, casou-se com uma mulher que não lhe assentava e criou seus
filhos na falsa esperança que boas intenções são su­ficientes para condu-
zir a uma boa educação.

Mas Cícero é um homem bravo, valente e teimoso. Ele continua con-


fiante no “mapa” desajustado e confuso existente em sua mente e vai em
frente.

É claro que o “território” onde ele está pisando é bas­tante diferente do


“mapa” existente em sua representação mental. Portanto, quando ele está
deitado em sua cama, pensando que tudo vai bem, ao levantar-se e ao
agir, ele é obrigado a perceber que o “mapa” que representa seu mun­do
é um, o mundo real é outro. Assim, meu grande amigo, frequentemente
lamenta-se para si ou para os outros: “Sou um desastrado, um sem sorte,
tudo que tento dá errado”.

O modelo que construiu de si mesmo e do mundo, nesse caso, foi


acrescido de mais uma crendice: “Sou um sem sorte”. Assim Cícero gasta

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parte de seu precioso tem­po lastimando-se, utilizando pouco seus recur-
sos e poten­cialidades. Por tudo isso, ele fracassa em diversas ativi­dades,
perde a oportunidade de obter várias satisfações e exibe ressentimento e
infelicidade.

Cícero não se emenda, pois, por mais que ele transgri­da as leis da na-
tureza e da sociedade, ele não modifica seu modo de pensar e agir, isto
é, não aprende com a experiên­cia vivida. Ele é, como disse, um sujeito
contraditório, em certas ocasiões Cícero só cuida de si. Nessas ocasiões,
ao ser importunado, agride, xinga ou, no mínimo, não ajuda ninguém.
Outras vezes, porém, gasta seu tempo, que é cur­to, ajudando, ouvindo
lamentações aborrecidas dos outros, até mesmo de pessoas que mal co-
nhece ou que sabe que não gostam dele. Durante essa fase, ele empresta
dinheiro, procura emprego e aconselha pacientemente os pedintes.

A maneira de pensar de Cícero também é estranha. Ele é economis-


ta, seu raciocínio é lógico, tanto no serviço como nos aspectos de sua
vida relacionados à sua área de trabalho. Eu diria até que “lá” ele pensa
matematicamen­te. Não há imprecisão ou ideias preconceituosas.

De cada premissa elaborada, sempre bem postada, ele deduz conclusões


com proposições que não contêm ne­nhuma dúvida, exibindo clareza de
pensamento produzido por uma razão lúcida e expresso sem palavras
ambíguas.

Pois bem, o racional Cícero, ao abordar outros pro­blemas humanos fora


do seu domínio estrito, se lambuza todo. Quando abordava os temas do
dia-a-dia, na políti­ca ele é brizolista, em religião, ele abraçou as ideias do
Boff, no amor… bem não posso revelar, e até no futebol, onde sua pai-
xão é o Atlético, ele se torna, de repente, um perfeito animal irracional.
Toda sua bela lógica mental é transformada em palpites, preconceitos,
desejos, fé cega, superstições, incoerências uma após outras, deduções
apressadas, hipóteses duvidosas e não comprovadas e as­sim por diante,
de modo a envergonhar qualquer tratado elementar de lógica. Nesses

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momentos, o Cícero torna-se outro ser, um não humano, carregado
de emoção, impulsi­vo, não sabendo mais argumentar e nem ouvir
argumen­tos de seu opositor. Levanta a voz, enfurece-se, desafia, às vezes
parte até para as “vias de fato”.

Eu, que já conheço essas reações, o perdoo. Mas é comum ele brigar até
comigo, grande amigo seu, quando se torna irracional. Depois, mais tar-
de, arrependido, ele re­torna com a sua outra mente e eu o aceito como
sempre.

Cícero não me surpreende só nesses aspectos. Olho-o com tristeza,


lamentando comigo mesmo como pode uma pessoa que tem uma bela
inteligência, experiência, crítica e cultura ser tão preso às regras, sem
nunca duvidar delas, agindo como um cordeiro às suas imposições.

Levanta-se sempre à mesma hora, vai para o serviço, pelo mesmo cami-
nho, nunca falta a este, chega no mesmo horário, deixa o carro no mes-
mo lugar. Repete no trabalho, maquinal e automaticamente, as mesmas
atividades, os mesmos gestos, sorrisos, expressões e conversas, usando
frases apropriadas para cada pessoa. Nada é criado, nada é diferente.
Parece haver dentro dele um medo à esponta­neidade, um pavor em ser
diferente, um culto à mesmice. Seu “computador mental” é dominado
no serviço, no lazer, em tudo, uma programação repetitiva e monótona.
Mas, já disse que o Cícero espanta-me.

Surpreendo-me com ele, em nossas tertúlias ocasio­nais, principalmente


após alguns cervejas bem geladas, que descem devagar. Nesses momen-
tos aparece um novo programa no seu “computador mental”. Cícero
torna-se um indivíduo prático, criativo e com propósitos individuais.
Critica com sabedoria e elegância todos os modelos huma­nos existentes
que paralisam o ser humano.

Sob o efeito do álcool ele cresce, abandona o auto­matismo, começa a


filosofar, critica as “verdades” que ele, no trabalho, segue sem pensar, de-

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fende a necessidade do crescimento do indivíduo como meta principal
para qual­quer ser humano cuja missão fundamental seria atualizar-se.
Põe em dúvida diversos valores geralmente seguidos inconscientemente
pela multidão solitária e sem rumo. Nesse momento, ele traça planos,
chegando até a executar alguns deles nos dias seguintes.

O novo Cícero defende a necessidade de nos liber­tarmos dos precon-


ceitos e das superstições, de seguirmos objetivos mais humanos e mais
produtivos.

Entusiasmado, acredita que dentro de nós há recur­sos, energia, força e


coragem suficiente para transformar esse mundo injusto e massacrante,
num mundo melhor. Esses arroubos são, porém, rapidamente amorteci-
dos…

Fico confuso: jamais entendi Cícero. Entretanto, após pensar um pouco,


descobri que ele se parece comigo e também com todos vocês, meus
caros leitores, com os seres humanos.

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Como Controlar os Aconteci-
mentos
Enquanto alguns obstinados tentam, a todo custo, controlar o meio re-
belde, outros, mais conformados e plá­cidos, deixam as “águas rolarem” e
uns poucos procuram, propositadamente, confusões e nelas se instalam,
satisfei­tos e confortáveis.

Muitos desejam, alguns imploram ao bondoso Deus: “Que bom seria


se pudesse mudar a cabeça do patrão, para que ele não me demita”, ou
“fazer com que minha namorada não me abandone”, “iluminar a cabeça
do nosso Presidente, para que ele nos deixe dormir em paz.”

A maioria imagina que o controle vem apenas de fora. Esses supõem que
os amigos e parentes, ou mesmo os políticos, deviam ajudá-los a conse-
guir o que eles não alcançaram e, muitas vezes, nem tentaram.

Na velhice descobre-se – é preciso viver muito – a duras custas, que


certos meios são difíceis, outros impos­síveis de serem controlados.
Aprende-se que nada se pode fazer diante de alguns problemas, como
a violência dos outros, não a nossa, a corrupção, a chatura do discurso
político, o trânsito caótico, o acidente, a miséria do povo e a ignorância.

Sabe-se que algumas mudanças podem ser realiza­das e várias delas de-
pendem de nossa ação. Entretanto, nem sempre temos energia e vontade
para lutarmos por essas alterações, assim, posso pretender ser médico,
mas não quero gastar meu tempo estudando.

Em alguns casos pode existir o desejo e a energia, mas pode faltar a


competência necessária: gostaria de ser corredor, mas tenho o pé torto.
Por fim, posso ser compe­tente, ter vontade e energia, mas tenho uma

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autoestima baixa, ou seja, não acredito na minha capacidade. Tudo isso
dificulta “chegar lá”.

Ao nascermos, tomamos as primeiras medidas, por sinal grosseiras, para


controlar o meio ingrato. O recém-nascido, se está com fome, chora, e
alguém pode milagro­samente aparecer para lhe dar o leite. Se está com
frio, chora e novamente o protetor o aquece. Com o choro, o desconfor-
to é controlado e o bem-estar retorna. Muitos adultos continuam usando
essa técnica.

Mais tarde aparecem estratégias mais sofisticadas para controlar o meio


e a si próprio. Se estamos querendo um doce e o pedimos à nossa mãe,
ela pode impor certas condições. A criança deseja brincar com o vizi-
nho, a mãe não concorda, pois está na hora do almoço. Neste nes­se caso
a criança pode chorar, pedir mais, gritar, tentar manipulá-la ou negociar
a ida, em último caso poderá até mesmo fugir de casa e ir morar com o
vizinho.

Na adolescência e na vida adulta, não só o meio en­frentado, mas tam-


bém as técnicas para conseguir o dese­jado, tornam-se mais complexas
e difíceis. O jovem quer ter um bom emprego, por conseguinte, casa e
comida. Mas para isso terá que frequentar, por anos, a escola, estudar
muito e deixar de lado diversões atraentes.

Na velhice, inferiorizado e estigmatizado, não mais acreditando no


choro, sem forças, o idoso só pode implorar para receber ajuda do meio,
já que sua capacidade para modificá-lo é mínima e, para piorar, muitos
estão doentes.

Portanto, durante nossa jornada aqui na Terra os desencontros são


muitos, as frustrações amargas. Mas é preciso seguir em frente até o ato
final. E assim vamos, ora desequilibrados, ora supostamente firmes. Aos
pou­cos, cada um, cambaleando, vai construindo seu caminho parti-
cular, imaginando medidas eficazes para restabelecer o “elo perdido”,

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a segurança sonhada. Mas basta surgir uma peninha de equilíbrio, um
tempinho de calmaria e paz, para novamente esse animal surpreendente
inven­tar novos caminhos, diferentes planos, ações e buscas e, conse-
quentemente, novas desarmonias com o ambiente e consigo próprio.

Assim é o homem: age, ao mesmo tempo evitando as dissonâncias in-


ternas e externas e, ao mesmo tempo, provocando-as. Este é seu destino,
precisa das desordens, do caos. Ele planeja constantemente situações de
risco, o que o amedronta: este é o alimento de sua mente. Muitos imagi-
nam alcançar a felicidade caso consigam a paz cons­tante. Ledo engano.
Precisamos, para crescermos, relacio­narmo-nos com os obstáculos, com
as dificuldades, pois são as incongruências os nossos nutrientes mentais.
São eles que nos fazem crescer. Sem eles seríamos idiotas.

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Crendices

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Computador e Ferradura
O homem pós-moderno deixa a luz feérica dos labo­ratórios de ciberné-
tica, energia nuclear e genética, onde recompõe a vida, e à noite vai
procurar a luz bruxuleante dos templos de pai-de-santo, cartomantes,
gurus, opera­dores de pêndulo, onde humildemente busca forças para
viver e resolver seus conflitos.

A cada monumental templo erigido em nome da ci­ência, surgem deze-


nas de outros dedicados às mais estra­nhas ideias sobrenaturais. Cada um
acha que a sua ideia é a melhor, após, naturalmente, ter experimentado
várias delas. A confusão é tão grande, as pessoas estão tão per­didas em
busca de um mundo mítico e mágico, que em Paris apareceu um feiti-
ceiro africano, que conseguiu reunir os dois mundos numa só idéia:
passou a vender coca-cola benta. O homem pós-moderno é, pois, aquele
que toma coca-cola benta, enquanto opera o seu computador de úl­tima
geração.

Essa confusão mental, digamos assim, ocorre no mundo inteiro. Os


jornais e as listas telefônicas america­nas estampam em suas páginas
milhares de anúncios de cartomantes, videntes e outros autorrevelados,
interpreta­dores desses estranhos sinais de comunicação existentes nas
linhas das mãos, nos olhos, no ar, nas cartas etc., para uma possível co-
municação com o mundo sobrenatural.

Calcula-se que na Inglaterra mais de 10 mil profissio­nais dessa área


trabalham em tempo integral. Na China, os dragões saltam dos livros
vermelhos para a imaginação do povo e terror das crianças.

Conta-se que um jornalista ocidental comentou com um chinês que iria


escrever um artigo sobre dragões. O chinês disse que a revolução havia
acabado com essas ideias.

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— Mas é um dragão de penas brancas.

— Mas todo mundo sabe que os dragões não têm penas.

É isso: todo mundo sabe, e provavelmente tem cer­teza, que sua crença,
religião, seja lá o que for, é a única certa, a que está mais apoiada em
dados e mais, já teve o seu modelo colocado para estudos em um com-
putador não menos maluco.

O mau-olhado é universal: os franceses fazem o si­nal da cruz quando


ouvem falar em “regard méchant”, os italianos têm horror do “mal
ochio”, que deve ser evitado, custe o que custar. Em todas as ilhas
britânicas, inclusive naquela em que mora a rainha, uma ferradura é o
principal instrumento capaz de afastar o mau-olhado. Uma pessoa pode
adoecer, uma planta definhar e o gado morrer devido ao mau-olhado.
Todo mundo sabe disso.

Há uma grande diferença entre as crenças pós-mo­dernas e as líricas que


povoaram nossa mente e tornaram nossa infância mais agradável e rica
em sonhos. Criou-se hoje uma simbologia mística complexa, construída
pelo marketing, utilizando-se da ingenuidade inata ou construí­da pela
propaganda, apoiada no mito do fim do mundo, na busca de momentos
mágicos, de um orgasmo mais exci­tante, de benefícios extraordinários
da alimentação natural ou de um “mundo melhor” com alucinógenos.
Cada grupo organiza-se de acordo com suas atitudes, formando uma
seita que sempre é a correta, pois é uma crença e estas são sempre certas,
com muita fé.

Há uma florescente indústria de “alimentação natu­ral” onde se defende,


com unhas e dentes, a necessidade dos vegetais serem cultivados sem
adubos ou agrotóxicos. Isso é, puros e virgens como deve ser o homem
íntegro. Há também o puro mel obtido de abelhas treinadas que não se
aproximam de flores envenenadas. A “comida na­tural” começa a ser um

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negócio que é olhado com bons olhos pelos banqueiros. Eles nunca se
enganaram. Nunca mesmo.

Misturam-se símbolos de alto e baixo nível numa ba­gunça total: cruci-


fixos, ferraduras, pé-de-coelho, trevo de quatro folhas, amuleto, dentes
e diversos outros, confun­dindo a orientação e a cabeça de qualquer “cri-
oulo doido”. Cada ferramenta ou símbolo “protege” o indivíduo daquilo
que ele teme, dando-lhe uma pseudossegurança e sentido para a vida
sem sentido.

Isso faz lembrar o grande movimento hippie dos anos 60. Cabelos
grandes, jeans, tênis e alguma sujeira era o máximo de contestação ao
“sistema”. A recusa em usar outros tipos de roupas, acreditavam eles, era
uma maneira de protestar contra o desvairado consumo da época. Pois
bem, os hippies mais espertos se aliaram a não menos espertos industri-
ais e hoje temos a moda “jovem” venden­do e muito: ela envolve milhões
de dólares. Figurinistas, cabeleireiros, perfumistas e outros profission-
ais não tarda­ram a entrar no negócio e todos viveram felizes até surgir
uma nova moda, a unissex, que fatura de outra maneira. Dizem até que
a moda unissex foi criada pela conjunção de heterossexuais não muito
convictos e homossexuais ainda não-assumidos.

A eliminação da individualidade e solidão está sendo conseguida através


do uso de roupas, de penteados, de discursos e até de fragrâncias, por
um mesmo grupo, que imagina com isso estar protegido e seguro.

Livros estranhos sobre as mais estranhas ideias têm a mesma tiragem


dos livros sobre computação. Calcula-se que um manual de operação de
pêndulo vendeu mais de 100 mil exemplares em pouco mais de um ano.
Tome-se que a tiragem básica no Brasil é de 10 mil exemplares e cal­cule
o sucesso dos ensinamentos para as ideias místicas.

Revistas místicas de ufologia, comida natural, sexolo­gia e outras coisas


do mesmo gênero são compradas pelo mesmo leitor que leva as de rock,

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programação básica e vídeo. Em alguns países já é possível comprar as
antigas e puras receitas de bruxas em fitas, CDs e DVDs. É o pro­gresso
da ciência.

Os roqueiros gostam principalmente dos conjuntos de “heavy metal”.


Esses são autores e donos de gestos que, em outras épocas, os levariam
diretamente para as foguei­ras. Hoje eles causam o delírio de multidões
de jovens, alegria para os felizes produtores.

Não se sabe realmente o que é mais demoníaco, se os gestos ou a es-


trutura publicitária montada em cima do assunto, criando a necessidade
de pertencer aos grupos.

A pessoa deposita no guru a mesma confiança, ou mais, que a que é


descrita no resultado de sua tomografia computadorizada. Por via das
dúvidas, consulta-se os dois: primeiro o guru, depois o clínico, mer-
gulha-se no mais mo­derno arsenal quimioterápico e, caso escape, sai
dizendo maravilhas acerca do guru.

Isso não é de se espantar. Um arsenal de palavras, sem definição muito


clara, tem sido usada por quase todo o mundo. Mental é uma delas, tem
poderes mágicos e coi­sas do tipo “melhore sua vida mental”, “controle
mental em cinco lições”, “controle sua mente”, são amplamente usadas.
Democracia, comunismo, modelo, maduro, ca­rência afetiva, feminismo,
liberdade são outras palavras mágicas que todos expressam sem saber
realmente qual é o significado delas e cada um, na verdade, cria o seu
entendimento particular. Os embusteiros pós-modernos as usam a toda
hora com os significados que lhes interessam. Oriente é outra palavra
que eletriza as pessoas. De lá po­dem vir chips ou filosofia, tanto faz, há
consumo para as duas coisas.

O mesmo olhar embevecido com que o técnico olha essa maravilha


da ciência que é o chip, mais tarde será utilizado para o guru, dono de
frases que serão vendidas aos milhares em livros distribuídos por todo o

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país. Produ­tor de chips e gurus têm possibilidades iguais de obterem o
mesmo lucro.

Fazer filtros de amor, beber poções mágicas que nos­sos pais-de-santo


carinhosamente chamam de “garra­fadas”, não exclui o uso da técnica, a
vida moderna, a pesquisa científica e o ensino universitário. Na verdade
a ciência também não escapa às superstições. As explicações da ciência
vão até certo ponto, a partir do qual nascem as crenças, metáforas ou
mitos para fornecer a compreensão dos fatos onde nenhuma explicação
plausível é conheci­da – nem possível – como, por exemplo, os conceitos
de “energia mental” da psicanálise, a representação gráfica do átomo, o
vetor como força física e assim por diante.

As religiões e pseudociências, não sendo testáveis e tendo por base


premissas logicamente interligadas, so­mente logicamente, não permitem
contestação na sua composição mística. A tentativa de analisar estes
fatos pelo ponto de vista científico costuma acabar em tragédia: o pes-
quisador pode virar guru.

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Afirmações Duvidosas
A psiquiatria incorporou e se desfez de muitas verda­des, hoje criticadas,
como a caça e queima às bruxas, o mesmerismo, a malarioterapia, o
eletrochoque, a insulino­terapia, a lobotomia e várias psicoterapias não-
-científicas, entre elas a psicanálise.

A lista não termina aqui. Cada um desses modelos teve sua época com o
nascimento, crescimento e esplen­dor, seus seguidores fervorosos, entre
médicos, psicólogos e também entre os clientes e o público. Há pouco
tempo surgiram mais duas novas verdades, como sempre aceitas como
panaceias pelos seus adeptos: a neurolinguística e a psiquiatria biológica.
Daqui a dez ou talvez vinte anos, no máximo, possivelmente acharemos
graça em algumas de suas afirmações. É só esperar o tempo passar.

Durante a minha adolescência ouvi um professor afir­mar, em sala de


aula, que a masturbação causava, entre outros males, a tuberculose,
o reumatismo e a loucura. Mais tarde ouvi na escola de Medicina um
professor afirmar que nós devíamos, ao examinar um paciente, pensar
“si­filiticamente”, pois a sífilis imitava todas as enfermidades possíveis.
Nós todos acreditávamos nessas afirmações.

Os médicos, de tempos em tempos, enunciam supo­sições aceitas como


verdades, tanto entre alguns cientis­tas como também entre a popula-
ção. Muitas dessas de­clarações hipotéticas – anunciadas como verdades
eternas – têm duração efêmera, outras permanecem vigorando por um
período mais longo.

Alguns desses profetas, mais geniais e corajosos, ga­nham notoriedade


nacional, internacional e entre a popu­lação. Esses inovadores, ao ga-
nharem maior poder entre o público e nas academias, entusiasmam-se
passando a emitir julgamentos ou opiniões nos mais diversos campos

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do conhecimento humano, acreditando numa falácia: se são bons num
setor, serão bons também nos outros. Os anunciantes se utilizam muito
dessa generalização, colo­cam na TV uma personalidade famosa sugerin-
do o uso de um produto do qual ela nada entende.

Olhando sob este prisma, o aparecimento desses “gê­nios” tem sido


frequentemente danoso para a humanidade, às vezes uma tragédia para
o conhecimento, pois ficamos presos a conhecimentos errados por anos
e anos, como “A Terra é o centro do Universo”, “O Sol é o centro do
Univer­so”, “Nossa galáxia é o centro do Universo”, “Não existem outras
terras além das da Europa”, “Só podemos estudar as ciências físicas e
biológicas, as psicológicas não, essas nos são reveladas”.

As afirmações morais ou científicas, devido ao prestígio do “inventor”,


ficam difíceis ou impossíveis de serem critica­das: ninguém se atreve a
ir contra as ideias do gênio criador, pois esse é intocável. Por tudo isso,
uma vez lançadas as “profecias” do sábio, o conhecimento naquela área
é obscu­recido, penetra-se numa era negra da história do pensamen­to
humano, devido ao poder da barreira simbólica intrans­ponível, que im-
pede o nascimento de novas e produtivas ideias. Um exemplo ainda vivo
é o das ideias freudianas.

Essas dominaram mentes diversas, por anos, impedin­do o crescimento


do conhecimento acerca do ser humano.

Morre hoje “sem foguetes e sem bilhetes”, não deixa sementes capazes de
produzir nada útil para o crescimen­to da psicologia. As hipóteses ou te-
orias equivocadas dos sábios só desaparecerão com a morte dos autores
delas e, principalmente, de seus fiéis seguidores.

No início do século XIX, ganhou notoriedade nos Es­tados Unidos um


professor de Psiquiatria, Benjamin Rush. Usando de seu poder, passou
a ditar normas morais para a população americana. Sua principal pre-
gação foi a respeito da masturbação. Para o Dr. Rush, pai da psiquiatria

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ame­ricana, a masturbação, por ser um mal terrível, devia ser combatida
a qualquer preço.
Seu prestígio reuniu seguidores. Teses foram escritas condenando o
terrível mal, tratamentos estranhos foram recomendados: vários clitóris
foram decepados, algumas mãos amarradas para proteger e impedir as
vítimas de caírem na tentação e tornarem-se “doentes”.

Esse professor afirmou durante suas conferências e artigos: “a mastur-


bação provoca fraqueza do sêmen, im­potência, disúria, ataxia motora,
fraqueza pulmonar, dis­pepsia, redução da visão, vertigem, epilepsia,
hipocondria, perda de memória, imbecilidade e morte”. Pinel, o grande
psiquiatra, não ficou para atrás, tendo afirmado acerca do mesmo assun-
to: “A masturbação leva à ninfomania”.

Esquirol, outro famoso médico, completou: “A mas­turbação é reconheci-


da em todos os países como sendo uma causa comum de insanidade”.

Em 1854 foi publicado um editorial no New Orleans Medical Surgi-


cal Journal que dizia, entre outras coisas: “Em minha opinião, nem a
peste, nem a guerra, nem a varíola, nem uma multidão de males seme-
lhantes foram mais de­sastrosos para a humanidade do que o hábito da
masturba­ção: é o elemento destrutivo da sociedade civilizada”.

Encontrei em minha biblioteca com relíquias de livros selecionados por


meu pai um discurso proferido em 1927 por um famoso professor da
medicina brasileira. Em res­peito a ele, deixo de citar seu nome. Esse tra-
balho foi im­presso e distribuído pelo governo brasileiro aos colégios “em
virtude do seu alto valor educacional”, recomendado para ser lido em
sala de aula. Eis alguns trechos do famo­so discurso: “O álcool é o maior
agente de degeneração da raça; a todos ataca e a todos degenera; é a
família alcoólica dos beberrões, com os seus epilépticos, imbecis, loucos,
deformados e monstros. A beberronia dos pais pro­longa-se nos filhos
através do óvulo: pais bêbados, filhos beberrazes, netos criminosos…
nem ao menos é um tóxi­co elegante, só ao alcance das bolsas fortes dos

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ricos; ao contrário, é o vício deselegante propiciado ao pobre pelo seu
ínfimo preço”.
Não estou aqui fazendo críticas à inteligência desses senhores, ao seu
pioneirismo e coragem. Nós devemos muito a eles e sem sombra de
dúvida todos foram perso­nalidades marcantes, líderes em suas áreas e
altamente capazes. Humildemente, com todo o respeito, quero dizer que
creio que eles foram longe demais ao afirmar a respei­to de valores e as
escolhas de cada um. Suponho que cada cidadão tem o direito de esco-
lher seu caminho, desde que respeite os outros.

Os que apreciam a bebida e os masturbadores não foram respeitados por


esses insignes mestres.

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A Loucura: Fabricação da
Normalidade
Em 1509 Erasmo de Rotterdam publicou o livro “Elo­gio à Loucura”. Suas
ideias, muitas delas ainda atuais, constituem críticas ao chamado bom
senso, ao comporta­mento racional, à sisudez do indivíduo “quadrado”
e bem adaptado, em oposição à “loucura” que seria a esponta­neidade,
a liberdade de expressão e ação e das emoções. Para ele a loucura seria
inata, enquanto que o “normal” seria imposto e não humano.

Os chamados “loucos”, até o século XV viviam de ma­neira harmoniosa


com a população de “sadios”. Estes cul­tivavam a tolerância e as peculiari-
dades ou idiossincrasias de cada cidadão, que eram aceitas e respeitadas
como adequadas à sua natureza singular. Esse relacionamento harmo-
nioso entre os chamados “normais” e os “não-nor­mais” ocorre ainda,
com frequência, nas pequenas cida­des do interior do Brasil.

O conceito de loucura, condição própria de cada pes­soa, a partir do fim


do feudalismo - início de burguesia - começou a ser modificado quando
apareceu um novo modelo daquilo que seria aceito como sendo a na-
tureza humana. Esse novo padrão teórico acerca do homem era, não só
mais restritivo - menos tolerante com as diferenças individuais - como,
também, mais prescritivo. As pessoas, para não serem taxadas de loucas,
deveriam se compor­tar, talvez até pensar de acordo com o novo padrão
“insti­tuído e correto” de conduta.

A recém-criada “natureza humana”, fabricada pela sabedoria burguesa,


enfatizava as qualidades da virtude, contenção, parcimônia e razão, que
eram exigidas a todo e qualquer preço. A partir da nova tese defendida,
a lou­cura foi encurralada e criticada conforme o novo padrão de norma-
lidade das pessoas.

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As sociedades começaram a estreitar os seus limi­tes de normalidade,
passando a rotular o “louco” e “não-louco”, o “são” e o “patológico”, o
“normal” e o “anormal”, como extremos intocáveis de uma escala de
medida do certo e do errado, onde um comportamento era valoriza­do, o
outro não.

A partir dessa constituição, novas regras de conduta passaram a ser


exigidas, somente algumas aceitas como corretas. Em lugar de trabalhar
para viver, o indivíduo passou a viver para trabalhar. A definição do
normal, que antes se apoiava muito na maneira de ser do indivíduo sin-
gular a ser avaliado, passou a ser estabelecido, utili­zando-se um modelo
supraindividual, criado não mais das necessidades ou interesses de cada
uma pessoa, mas sim das necessidades do conjunto abstrato: economia e
traba­lho colocado a serviço da produção.

Esse novo critério decretou o fim do singular, ao ge­neralizar o indivíduo.


Tornou-se errado ou anormal ser particular. Só o geral seria normal e
o que sair do padrão será considerado “doente mental”. Mas nem todos
concor­daram com essas regras, alguns se rebelaram, surgindo um novo
problema: “Como conter os insubordinados em um estado que se dizia
liberal e cheio de humanismo”? Anteriormente os revoltados e rebeldes
eram lançados à fogueira, mas essa prática não é mais tolerada.

Na nova sociedade nós, os bondosos, racionais e vir­tuosos deveríamos


ser capazes de compreender e tratar os “loucos”. Nasceram assim as ins-
tituições encarregadas de cuidar deles, ou seja, de coletar o lixo humano
produ­zido e rejeitado pela sociedade burguesa. Nasce então a figura
ilustre do psiquiatra, juntamente com a criação dos hospitais destinados
a proteger os “normais” do perigoso contágio dos loucos.

Esse modelo do homem moderno, criado em torno do séc. XV, forçou


a eliminação de um sentimento sempre existente na mente de grande
parte dos homens dessa época, ou seja, a permissão da liberdade in-

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dividual. Para a nova ideologia implantada, a liberdade individual é
in­compatível com a subordinação a uma atividade, seja de trabalho ou
seja de lazer, altamente vigiada, lógica, ditada de fora. Essa coação, até
aquela época, só existia nas pri­sões. O novo conceito de natureza huma-
na, estranhamen­te, construiu o corolário: somos “livres” ao nos subordi­
narmos às ideias do Estado, dos empregadores, religiosos ou de qualquer
outro grupo poderoso.

Foram criadas para manter a ordem estabelecida, visando o normal, leis


que exigiam a obediência às nor­mas, cujo objetivo era proteger as classes
dominantes. Os mendigos, vagabundos, os ociosos e “loucos” de qual­
quer espécie passaram a ser tratados como eram antes o marginais: bani-
dos da sociedade. As instituições, frutos dessas ideias - casas de correção
e de trabalho, hospitais em geral - teriam como função principal limpar
as cidades da “sujeira” desses desajustados.

Os “hospitais” foram destinados a receberem os gru­pos de “marginais”


da sociedade sadia – os diferentes – um lugar onde, na maioria das ve-
zes, não pisavam os médicos, só iam para visitas ocasionais.

A direção dos hospitais, entregue às irmãs de ca­ridade, tratava coerciva-


mente os enfermos através das orações, penitências e práticas adaptadas
ao ensinado. A medicina daquela época precisava construir ou mesmo
inventar explicações para suas ações irracionais, que se diziam alicer-
çadas em bases lógicas e humanísticas. Foi criada então a “psiquiatria
científica”. Esta “descobriu” si­nais e sintomas nas pessoas, indicadores
de doença men­tal. Esses, na maioria das vezes, eram preconceitos ou
delírios dos psiquiatras da época, tendo como “pano de fundo” a moral
vigente. Eis alguns exemplos dessa “psi­quiatria científica”: “A loucura
está localizada nos vasos sanguíneos”, “A oposição à revolução america-
na é uma forma de doença mental e o apoio uma forma de terapia”, “Sa-
nidade mental é a aptidão para julgar as coisas como os demais julgam e
possuir hábitos regulares e insanidade é um distanciamento com relação
a isso”, “Conformismo social equivale à saúde mental e inconformismo

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corres­ponde à doença”.

A maneira de pensar e de agir em desacordo com a forma tradicional


passou a ser a principal característica da nova doença mental, sendo
diagnosticada através de vá­rios dispositivos que mediam a maneira nor-
mal e coletiva de se comportar, necessária à manutenção e crescimento
da burguesia e da harmonia social.

Portanto, os primeiros psiquiatras eram muito mais “reformadores so-


ciais evangélicos”, pregadores de uma ética puritana para todos, do que
médicos, preocupados com o bem-estar de seus pacientes.

A cura ocorria quando o paciente aceitava e se com­portava de acordo


com as normas sociais pregadas pelo médico assistente.

Infelizmente, esses comportamentos “moralistas e normalistas” ainda


são vistos com alguma frequência em nosso meio.

Os clientes, muitas vezes, são julgados, inicialmen­te pelos familiares,


posteriormente pelo psiquiatra, como possuidor de uma conduta nor-
mal ou anormal, conforme os padrões e valores percebidos e usados
pele grupo dos examinadores num certo momento. O cliente pode ser
re­preendido, tratado sem o desejar, ou “preso” no hospital, por não to-
lerar ou não conseguir conviver numa sociedade que tem como valores
fundamentais o trabalho, a produ­ção e o consumo.

Curvando-se à pressão externa que exigia mão-de-obra barata, trabalha-


dores braçais foram usados, em pro­fusão, para atender às necessidades
dos sub-empregos oferecidos: a psiquiatria, atenta às necessidades dos
em­pregadores, procurou acelerar os processos de “cura”, vi­sando o retor-
no ao trabalho dos candidatos o mais rápido possível.

O psiquiatra, ingenuamente, passou a ser agente da “normalização”


quando a sociedade lhe outorgou o poder de examinar, julgar condutas e

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impor um tratamento após seu veredicto, em nome de um suposto bem-
-estar geral e social da coletividade e da manutenção da ordem pública
estabelecida.

Nasceu assim a relação não-recíproca com a tutela regulamentada


conforme a crença: o tutor é o competen­te, o tutelado é o incapaz e
irresponsável. Os tratamentos prescritos em grande parte tinham como
objetivo principal a integração e o conformismo social. A implemen-
tação da psiquiatria preventiva, como ocorre com outros campos de
saúde, tornou possível a ação dos especialistas antes do aparecimento da
“doença mental”, ao descobrir sintomas e sinais nos suspeitos.

Desse modo, como é sabido, em certos locais e oca­siões, os “sãos” passa-


ram a examinar populações inteiras, tendo à mão o mandado de “busca
e apreensão” para os “anormais” detectados.

Felizmente, nos últimos anos, um grande número de psiquiatras vem


questionando, duvidando e desmitificando milhares de afirmações e
dezenas de teorias criadas por alguns “gênios” da psiquiatria, baseadas,
muito mais, em verdades reveladas ou em pressões sociais, do que em
ob­servações científicas bem sistematizadas e críticas.

Uma por uma, essas “verdades” vêm sendo discuti­das, não substituídas
por “novas verdades” dogmáticas, mas analisadas, através da dúvida
constante e equilibrada. O novo caminho traçado é o abandono definiti-
vo de cren­ças eternas, baseadas na autoridade iluminada, no seu prestí-
gio, na sua sabedoria acima de qualquer suspeita.

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AIDS: O Pânico está Solto
O medo da AIDS tem-se tornado, talvez, uma doença mais grave que a
própria AIDS. Um novo tipo de pacientes começa a ser identificado nas
salas de espera dos clínicos e dos psiquiatras: aquele que busca desespe-
radamente uma ajuda, acreditando estar contaminado pela AIDS. Nesse
padrão se enquadra o que limita sua atividade sexual com medo de
apanhar a doença e o que não limita. Ambos, em pânico, procuram os
médicos e se dispõem a submeterem-se a exames.

Um paciente de 45 anos imaginava suicidar-se de­pois de ter mantido


relações sexuais com uma amiga. Esse paciente, casado, perfeitamente
ajustado até então, co­meçou a fazer exames médicos e, como nenhum
era real­mente conclusivo, foi fazendo outros, até se ver numa ci­randa
sem fim. Ele não pertencia a nenhum grupo de risco, nem sua amiga,
uma recatada e pura funcionária pública. A cada exame, que respondia
negativamente aos seus te­mores, ele exigia outros mais sofisticados.
Enquanto isso, incomodava-o uma persistente diarreia – o início de seu
medo. Era uma diarreia de origem emocional, como mais tarde ficou
demonstrado.

No Brasil, entre outros, foi registrado um caso doloro­so: um homem


suspeitando – apenas suspeitando – de que estivesse com AIDS, matou a
mulher, os filhos e suicidou-se. A autopsia mostrou que não passava de
um medo in­fundado. Ele não tinha a doença.

O medo de uma doença e outros estados emocionais atingem, primaria-


mente, o espírito e, secundariamente, o corpo e as relações sociais.

A literatura médica é repleta de casos de pessoas que morreram por


medo do câncer ou da solidão. Entre os ca­sais unidos há anos, não é raro
um cônjuge morrer pouco depois da morte do primeiro.

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O leigo “explica” fácil e rapidamente a realidade, lon­ge dos fatos: “A diar-
reia foi devida a uma laranja chupa­da”, “A loucura dele é castigo divino”.
A tuberculose, que em épocas passadas não era bem conhecida quanto à
cau­sa, teve o seu período mítico áureo. As mais diversas “teo­rias” foram
elaboradas, sendo cada uma fruto dos desejos, crenças, experiências e
dramas de seus criadores. À me­dida que se conheceu melhor essa do-
ença, os novos fatos impiedosamente jogaram por terra, destruindo as
belas fantasias de seus autores.

A AIDS ainda está no apogeu, ainda recebe hipóteses variadas, a maioria


repleta de fantasias. Sendo pouco co­nhecida, ela dá margem à criati-
vidade de cada um de seus explicadores. O discurso de cada um tem
pretendido co­nhecer a realidade, organizá-la, impor normas de conduta,
segregar pessoas, proteger, etc. As lacunas do desconheci­do, muito fre-
quentes, são preenchidas “com os delírios” e propósitos de cada um ou
de cada grupo, conforme a con­cepção de mundo do indivíduo que vai
explicá-lo. É possível ouvir, ditas com seriedade, frases do tipo: “AIDS é
obra da engenharia genética”, “É um castigo para a liberdade sexual exa-
gerada” e “Os portadores de AIDS devem ser esteriliza­dos e, ao mesmo
tempo, eliminar a sua potência sexual”.

O fruto de todas essas fantasias, mitos e histórias mal contadas é o pâni-


co diante do pouco conhecido, assim como foi a tuberculose, a lepra e a
peste negra.

Possivelmente, à medida que os fatos se forem tor­nando conhecidos,


ficará o medo sensato e objetivo da doença, não mais o horror que está
tomando conta dos amantes, até de alguns médicos e profissionais liga-
dos à área de saúde.

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Fé: Um Poderoso Medicamento
Uma visão retrospectiva na história da medicina nos conduz a uma
constatação no mínimo estranha ou insólita: grande parte dos pacientes
que consultaram os médicos, em épocas passadas, foi ludibriada.

Isso ocorreu não por má-fé dos seus clínicos, mas sim em virtude de
que os procedimentos físicos e medica­mentos usados em grande parte
dos casos não possuíam qualquer efeito farmacológico esperado sobre a
condição que era tratada. Posso afirmar, sem muito medo de errar, que
a grande maioria dos médicos do passado ajudaram os clientes muito
mais através de técnicas psicológicas intuiti­vas, do que em virtude dos
chás, poções, ervas, sangrias, incisões, xaropes, catárticos, sacrifícios em
animais e em seres humanos, fumigações, enemas, vomitórios, penitên­
cias e outras técnicas largamente utilizadas no passado.

As “causas” das doenças para a medicina pré-cien­tífica eram bem mais


simples do que as atuais. Às vezes a “doença” era causada por um distúr-
bio ocorrido com os elementos básicos da natureza e, logicamente, do
orga­nismo – terra, água, fogo e ar – esses, teriam que ser restaurados.
Outras vezes, a doença era proveniente de uma possessão demoníaca
e o tratamento indicado era o exorcismo do malfeitor. A possessão era
combatida, e ain­da o é, com bons resultados, através de orações e rezas,
danças e cânticos, numa variedade de rituais. Quando o demônio era
poderoso, a técnica era a de passá-lo para uma outra pessoa.

Outras doenças surgiam devido ao “mau- olhado” ou eram colocadas”


por pessoas poderosas e más.

Assistimos atualmente a uma descrença na medici­na tradicional, ao


mesmo tempo um retorno às medicinas chamadas alternativas e às téc-
nicas antigas. Essas têm, como sempre tiveram, a sua clientela fiel, agora

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em cresci­mento. Uma boa parte dos dirigentes dessas “clínicas” são
leigos mas, a cada dia mais, médicos formados por escolas tradicionais
engrossam a fileira dos “curadores mágicos”.

Cada grupo dá sua explicação “científica” do meca­nismo das doenças,


sua etiopatogenia – assim como das causas – sua etiologia e explicam
a lógica e a razão dos tratamentos instituídos. Todos têm algum suces-
so. Para alguns a leitura das mãos permitirá um perfeito diagnósti­co e
prognóstico da doença e do doente, ou até revelará a doença ainda não
ocorrida mas que acontecerá – é a me­dicina palmar preventiva. Para
uma outra “medicina”, toda e qualquer doença é mostrada, apenas para
mentes espe­ciais, através dos globos oculares. Os olhos, sendo o “es­pelho
da alma”, fornecem indícios evidentes e insofismá­veis das doenças or-
gânicas e mentais. Alguns “consultam” através das cartas ou dos búzios,
outros pelos horóscopos – até por correspondência – e outros ainda,
simplesmente adivinham o que o paciente apresenta através do seu po­
der de vidente, como os sensitivos e os paranormais.

Todos esses grupos, junto aos médicos, exercem a ajuda aos doentes, ne-
cessitados e carentes, cada um acre­ditando mais e mais em suas próprias
técnicas e pouco ou nada nas dos adversários.

Eu, com a minha medicinazinha simples e acanhada, com pouco, ou


melhor, sem nenhuma certeza, fico perple­xo com tanta fé e verdades
ditas com tanta empolgação e segurança. Sei, assim como você, leitor,
que todas elas “curam”. Uma boa parte dos pacientes volta à normalida­de
após qualquer um tratamento. Cada grupo de clientes, convicto da capa-
cidade do seu “curador”, seja ele médico ou não, defende, elogia, prova e
preconiza para os seus amigos, o tratamento usado. A situação é seme-
lhante à dos pacientes que se submetem por muitos anos ao tra­tamento
psicoanalítico e que percebem o seu terapeuta como o mais capaz, sábio,
mais eficiente e inteligente.

Da minha parte, particularmente, sou um tanto São Tomé, “ver, para

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crer” é uma de minhas regras favoritas. Tanto assim que em minhas
aulas na Faculdade de Medi­cina da UFMG já fiz comparecer umban-
distas, espíritas, cartomantes, professores de I Ching e diversos outros
profissionais da saúde física e mental que expõem suas ideias, as quais
são debatidas com os estudantes. Julgo estar aprendendo muito.

Nesse ponto desejo lhes contar uma experiência pes­soal e que era aqui
guardada sigilosamente. Há anos pas­sava férias em Santa Maria de Itabi-
ra, com duas filhas, uma delas com 16 anos naquela época e que sofrera
um corte, em uma das mãos, produzido por um caco de vidro de uma
garrafa quebrada acidentalmente. Já havia me­ses que o fato ocorrera e
ela se queixava de que a dor na mão não passava e que além disso tinha
dificuldades para executar movimentos normais. A outra, com 8 anos,
apre­sentava uma inflamação palpebral, rebelde a tratamentos normais,
aos quais já havíamos recorrido.

Seu oftalmologista informou-me que o melhor seria lancetar e limpar o


tumor e, por ser uma região delica­da, seria prudente dar-lhe anestesia
geral. Por precaução, adiei a pequena cirurgia.

Em uma tarde, quando trafegava na cidade em meu jeep, combinamos


fazer uma entrevista com um famoso “curandeiro” local, autor de várias
curas fabulosas. Munido com a minha filmadora nos dirigimos para a
entrevista. A gravação foi permitida pelo curandeiro, ficando marca-
da para uma hora mais tarde, pois ele desejava, antes, to­mar um bom
banho e se aprontar. A entrevista, que durou cerca de uma hora e meia,
está ainda gravada e recen­temente revi o tape. Correu tudo a contento,
com várias explicações e demonstrações orais do meu companheiro de
atividade – ouvir e ajudar pessoas que estão sofrendo. No final pedi ao
renomado profissional que fizesse algo de prático e real para ajudar as
minhas filhas que, um pouco espantadas, mas seriamente, assistiam a
toda a explana­ção. Prontamente ele atendeu meu pedido, gastando não
mais do que três minutos para realizar a cura solicitada, utilizando-se de
algumas rezas desconexas, às vezes inau­díveis, tendo sempre à mão o seu

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terço, feito de contas de “lágrimas de Nossa Senhora”. Inicialmente seu
alvo foi a mão esquerda da filha mais velha e, logo após, acres­centando
algumas rezas a mais, dirigiu sua intervenção ao olho direito da mais
nova.

Pois bem, ficamos mais uma semana em Santa Maria. Após cinco dias,
no máximo, as duas estavam curadas e não tiveram recidivas. É evidente
que a ocorrência me fez pensar. Lembrei-me de Hipócrates: “as nossas
naturezas são os médicos de nossas doenças”.

Lembrei-me também de um professor, quando cur­sava a Faculdade. Em


suas inteligentes aulas repetia, fre­quentemente, que uma grande parte
das doenças são autocuráveis, isto é, nosso organismo, com sua miste-
riosa sabedoria e defesa elimina o mal e a disfunção sem ajuda externa.
Falava sempre acerca da expressão “ilusão tera­pêutica”, o caso de uma
cura espontânea e que se supõe ser devida a qualquer prática exercida ou
medicamento usado. Lembro-me de seus exemplos: os diferentes remé­
dios são receitados como eficientes na cura de gastrites ou de úlceras.
Entretanto sabe-se que essas doenças me­lhoram ou desaparecem, e tam-
bém voltam, em virtude de diversos fatores. Muitas vezes, o pesquisador
menos avi­sado atribui ao seu remédio milagroso a responsabilidade pelo
êxito.

Você, prezado leitor, que acredita na cura pela fé, perdoe-me por racio-
cinar da maneira acima descrita, dian­te de tanta evidência. Ao andar
buscando construir meu caminho, talvez tenha traçado um caminho
diverso do seu, mas nunca antagônico, talvez com mais semelhança do
que se possa imaginar.

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A Santa que Fala Português
Uma antiga história, de origem provavelmente hindu, conta que um
cego perguntou a um sábio o significado de “branco”.

— Branco é uma cor, como por exemplo, a neve, que é branca, disse-lhe
o homem.

— Eu compreendo, disse o cego. Ela é fria e úmida.

— Não! Não! Ela não tem que ser úmida e fria. Ela é semelhante à pele
do rato albino.

— Então macia, uma cor coberta de penugens? Per­gunta o cego.

— Não! Não necessita ser macia: porcelana é branca também.

— Talvez o branco seja uma cor dura e lisa, comple­tou o cego.

O homem, nesse ponto, perdeu a paciência e desistiu de dar explicações.

Esta história ilustra a dificuldade, ou impossibilidade, de comunicação


entre duas pessoas que não tiveram ex­periências comuns. Talvez este
seja um dos grandes pro­blemas do nosso tempo.

Assisti certa vez a uma mesa redonda, reunindo jor­nalistas e juízes,


quando se discutiu o poder judiciário visto pelos jornalistas. A discussão
era principalmente sobre a dificuldade existente entre as linguagens dos
juízes e a dos jornalistas. Segundo deduzi, um grupo não compreende o
outro. De parte a parte surgiram argumentos acalorados, mas tudo den-
tro do mais alto nível. Durante as discussões um dos presentes argumen-
tou: “Não vejo necessidade de modificar a linguagem de ninguém: todos

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nós falamos por­tuguês”.

Nada mais errado. Talvez seja mais fácil um juiz ale­mão entender um
juiz brasileiro, mesmo que ele nunca tenha falado nossa língua, desde
que tenha à mão um bom dicionário, do que um brasileiro comum en-
tender a lingua­gem dos magistrados. O exemplo pode ser estendido para
todas as áreas do conhecimento humano. O vocabulário de qualquer
área é especializado. Os fatos e acontecimentos são codificados dentro
de cada área e organizados de uma certa maneira, onde cada signo tem
uma enorme riqueza de informações, conforme o estudo e observações
dos pe­ritos da área. Os mesmos sons, ou códigos, nada signifi­cam para
os não-versados.

Todos sabemos ligar uma aparelho de TV, entretan­to um técnico em


consertos saberá mais alguma coisa, já que seu modelo do aparelho é
mais rico, mais abrangente e melhor coordenado em sua mente. Mas
o engenheiro, projetor de aparelhos de TV, terá um mapa ainda mais
detalhado, organizado e rico sobre uma televisão, do que o técnico em
consertos. Nas outras atividades o mesmo ocorre.

As palavras têm um significado especial para nós, por­que tivemos expe-


riências melhores ou piores, mais simples ou mais complexas com elas.
Ao olharmos o dicionário, vamos encontrar apenas outras palavras, que
significam coisas semelhantes, mas jamais a vivência ou experiência.
Esta é crucial para o entendimento. Para obtermos expe­riência preci-
samos de tempo, talvez a vida toda, além da posse de algum talento na
área onde investimos.

Podemos, dessas reflexões, questionar, ao ler nos jornais notícias de que


um lavrador, um empresário, uma beata, estão recebendo mensagens de
Nossa Senhora ou de um ET.

Como será que ela comunicou-se com eles? Como o cego? Será que a
Santa aprendeu português e conseguiu captar nossas experiências cultu-

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rais e sociais deste final do século XX?

Imagino que ela ficará bastante confusa ao ouvir as mensagens carrega-


das de problemas atuais do nosso mun­do, diferentes das vividas por ela
numa época X ou Y de sua história e, além de tudo, formulada em outra
língua. Mas, de qualquer modo, sempre há leitores interessados nesse
assunto fantástico, extraordinário. Quem não tem?

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Doenças e Doentes

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Câncer: O Paciente, a Família e o
Médico
O câncer é enfrentado, na maioria das vezes, com grande coragem pelo
paciente, a família e seu médico. O oncologista é um profissional que
sofre intensamente – às vezes até com reflexo em sua vida familiar – ao
tentar curar, melhorar a qualidade de vida do paciente ou até mesmo
ao acompanhá-lo em seu leito de morte. Além disso, o médico ainda
suporta as tensões geradas pelas exigências de uma cura rápida, que nem
sempre está ao seu alcance. No caso do câncer o médico, a família e o
paciente têm suas vidas entrelaçadas até o final.

O paciente com câncer produz no médico uma atitude de responsabili-


dade e reflexão, não somente pela gravidade da doença, como também
pela sua evolução. O câncer, uma vez diagnosticado, vai exigir do do-
ente constantes readaptações em sua vida, as quais são difíceis de serem
executadas porque a própria doença, debilitando em muito as energias
orgânicas, dificulta sobremaneira um retorno ao equilíbrio anterior.
Também a busca deste novo equilíbrio será realizada em ambiente novo
e estranho (médicos, enfermeiras, hospitais), exigindo maior flexibi-
lidade e recursos por parte do enfermo. O corpo médico, conquanto
estranho ao doente, tem a vida do paciente em suas mãos. Esse não tem
nenhum modo de avaliar a capacidade da equipe médica, exatamente
no momento em que a competência torna-se o fator decisivo de vida ou
de morte, sendo natural pois, que se apresente dependente, medroso,
desconfiado e irritado pela nova maneira de viver em que se encon-
tra. Assim, a primeira dificuldade é a decisão sobre marcar consulta.
Esta é marcada quando o enfermo percebe que seus próprios recursos
“médicos e psicológicos” para explicar e tratar a anormalidade que lhe
ocorreu falharam. Sente-se perdido e busca por ajuda. Alguns, logo aos
primeiros sinais ou sintomas, resolvem ir ao médico, enquanto outros,

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tarde demais. Possivelmente ele próprio já tem seu diagnóstico. Todo ser
humano tenta qualificar e explicar qualquer fato diferente que lhe ocor-
re. Este pode ser bastante acertado ou bastante errado, muito realístico
ou muito ilusório e emocional. Essas informações iniciais fornecem ao
médico as primeiras hipóteses acerca de que tipo de indivíduo encontra-
-se à sua frente e suas possíveis reações futuras. Essas impressões iniciais
vão mobilizar no médico técnicas de conduta mais adequada para lidar
com aquele cliente em particular, que atitudes devem ser combatidas, as
que devem ser cultivadas ou mesmo introduzidas para que o tratamento
possa ser conduzido satisfatoriamente.

Holland acredita que 20% dos enfermos hospitalizados com câncer apre-
sentam distúrbios emocionais significativos, exigindo maiores cuidados.
Uma seleção precoce dos que provavelmente não vão cooperar com o
tratamento é muito importante, já que esses podem ser identificados
rapidamente por terem tido dificuldades anteriores ao lidar com crises
em suas vidas.

Há uma tentativa do ser humano para reagir de forma padronizada às


várias exigências de sua vida. Alguns respondem aos grandes proble-
mas de forma realística e adequada com pouca ansiedade e depressão.
Outros se entregam totalmente a um estado de completa dependência e
incapacidade, permanecendo com grande dificuldade de lutar para uma
nova readaptação. Esses tendem a ver como enormes quaisquer dificul-
dades surgidas em suas vidas. Outros simplesmente negam a doença e
não procuram o tratamento ou o iniciam para, em seguida, abandoná-
-lo. Para estes é difícil modificar e admitir modificação na sua imagem
anterior de saúde.

Se um indivíduo consulta um oncologista, de sua parte ou da parte de


sua família, existe uma suspeita de que ele está com câncer. Também a
atitude do médico durante o exame, suas perguntas, seu exame físico,
seu pedido de exames laboratoriais, são pistas que fatalmente vão levar
o cliente a pensar em câncer. Ao lado disso, a imprensa leiga constante-

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mente publica artigos sérios ou menos sérios, alarmantes ou tranquili-
zantes, sobre o câncer que grande parte da população tem acesso. Toda
essa mística acerca do câncer, somada à estrutura psíquica de cada indi-
víduo, leva o paciente a uma postura típica diante do médico. De ma-
neira geral a palavra câncer provoca, por si mesma, a ameaça de morte
antecipada e com sofrimento. Todos os seres humanos se projetam e pla-
nejam constantemente para o futuro, sua ação presente depende do que
se pretende alcançar. Ora, a suspeita, a fantasia, ou o próprio diagnóstico
do câncer destróem o planejamento futuro. O homem, no momento
em que se percebe com câncer, fica sem futuro, pois surgiu-lhe um fato
novo, que ele não conhece bem e não tem nenhum controle. O conheci-
mento de estar com câncer desestrutura-lhe a personalidade e parte do
seus valores. A idéia “tenho câncer” é quase sempre um estresse violento
pelas transformações que vão exigir para assimilação da nova idéia e
prosseguir na sua trajetória pela vida que, a partir daquele instante, terá
de ser reformulada constantemente em função da evolução da doença,
suas consequências e sequelas.

O câncer muitas vezes é visto pelo paciente como parte do seu destino,
como um azar em sua vida ou até mesmo como castigo. Todas as outras
pessoas, as que não têm câncer, passam a ser profundamente invejadas,
inclusive o próprio médico e as que dele cuidam. O aparecimento do
câncer exigirá uma readaptação ao novo tipo de vida muito semelhante
ao que ocorre quando perdermos um ente querido e temos que viver
sem ele com uma nova forma de vida.

Geralmente as grandes preocupações com o câncer são a ameaça de per-


der o relacionamento com outras pessoas, medo de perder a indepen-
dência, emprego e carreira, a integridade do corpo e suas funções e, por
fim, relacionando a todos estes medos, o de morrer. Assim, o diagnós-
tico do câncer leva à confrontação com a possibilidade de separação da
família e de amigos, perda de controle de vários papéis sociais, a modi-
ficações permanentes na aparência ou nas funções corporais e agressões
na auto-percepção e na auto-estima. Essa confrontação está associada

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com uma irreparável consciência da morte. Em alguns casos, o terror de
morrer exercerá um efeito de desesperança, uma reação tão intensa, que
pode ter um efeito mortal mais poderoso do que a própria doença.

A abordagem para a criança deve ser diversa da do adulto. O modo de


comunicação da criança é diferente. Esta tem dificuldade de discutir
seus sentimentos. O médico deve ter cuidado de não tratar a criança
como coisa, deixando-a de lado na sua comunicação. Os rigores do
tratamento médico, o tipo de hospital onde é internado, as melhoras ou
pioras no seu estado e o sempre presente medo da morte exigem rea-
daptações psicológicas difíceis e penosas por parte da criança e de sua
família.

O aparecimento do câncer em um dos membros do sistema familiar


vai gerar inevitavelmente desequilíbrio ou desarmonia no mesmo. Este
distúrbio será tanto maior quanto maiores os canais de comunicações
ou ligações que o membro doente tiver com o resto do sistema. Concre-
tamente falando, um pai de família que adoece com câncer pode afetar
pouco o sistema familiar se for elemento pouco importante na vida e
função do sistema. Assim, se este pai tiver como função quase que so-
mente suprir as necessidades financeiras do grupo, e se após sua doença
o sistema familiar tiver dinheiro suficiente para prover suas necessidades
normais exigidas pelo sistema, este pouco se alterará. Por outro lado,
suponha-se um câncer que surge em um garoto de três anos, que com
sua graça, sorrisos, brincadeiras, desenvolvimento etc. tem sido a grande
fonte de prazer, de contato, de comunicações diversas, como do relato de
suas proezas, de sua inteligência, de seu sucesso, do orgulho familiar e
de contato com outros parentes e vizinhos. Neste caso o sistema poderá
sofrer desequilíbrio brutal, dificílimo de se readaptar, sujeito muitas ve-
zes à cisão total e desmoronamento, onde o médico ficará com grandes
dificuldades para trabalhar. Portanto, é necessário que o oncologista per-
ceba o poder e a influência que o membro acometido da doença tem no
seu sistema familiar, quais são as regras básicas desse sistema, que tipo
de desequilíbrio ocorre nas várias fases de sua doença. De posse desses

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dados o médico pensará melhor quais técnicas utilizará para tentar res-
taurar o equilíbrio do sistema, ou mesmo, se há necessidade de ensinar
a família uma nova forma de vida, às vezes bem diferente da anterior,
mas adaptada à realidade atual, agora modificada pela doença de um dos
membros do sistema.

O outro fator que fatalmente afetará o equilíbrio do sistema, além da


doença de um dos seus membros, é a presença do próprio médico, como
também dos seus auxiliares, do hospital, das enfermeiras, etc. O médico
deve perceber que sua presença na vida do paciente é fator importante
no sistema de vida e, como já foi dito, vai alterá-lo em grau maior ou
menor. Todo médico experimentado já percebeu este fato, por centenas
de vezes, quando a família luta e busca manter-se ou tenta equilíbrio
através das técnicas e condutas antigas, que não mais funcionam, pois a
situação agora é diversa. O médico, dependendo de sua personalidade
e carisma, poderá ter influência extremamente feliz, sábia, ordenadora
e produtiva no sistema familiar, como também pode romper, desequi-
librar e arruiná-lo por não fornecer aos membros aflitos, inseguros,
desconfiados, nenhuma forma de vida adaptada ao novo estresse.

O jovem médico começa o seu trabalho cheio de esperança, muitas


ambições terapêuticas e assim se lança na luta contra o câncer. Na sua
prática diária se vê confrontado com ampla gama de situações emo-
cionais muito intensas, que lhe exige muito correta e imediata posição
conceitual. Esta posição nem sempre é explícita e ainda que seja, nem
sempre o é em toda dimensão e profundidade que a tarefa exige. Esta
atitude mental, à frente de sua árdua tarefa, pode ser considerada como
a essência de sua adaptação à mesma.

Sem critérios claros, nem orientação explícita, deixados muitas vezes à


sua própria sorte, ora mal, ora bem motivados vocacionalmente e quase
sempre sem poder falar de tudo isto, os médicos oncologistas têm-se
posicionado como têm podido. Alguns têm feito boa adaptação que não
comprometem psicologicamente nem suas condutas, nem seus critérios

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médicos, assim como sua saúde ou vida familiar; outros, entretanto, em
graus diversos e em diferentes proporções, em virtude da pesada carga
que suportam, têm desenvolvido condutas pouco adaptadas, com gran-
de sofrimento de sua parte, que podem chegar a comprometer diversas
áreas de sua vida, de sua tarefa e de sua família. O sistema do paciente-
-família pode facilitar, animar o médico na sua luta; também pode
desanimá-lo.

O doente derrotado, com sua família sem esperança, exercerá sobre


o médico força negativa. Neste caso, o médico busca somente em si
mesmo a força para o combate da doença. A força do médico é limitada
frente a doença e a morte. Ora, se necessários, deve ser acertada uma
conversa calma, honesta, entre médico e doente. Se o médico não discu-
tir, o paciente estará discutindo consigo mesmo através de informações,
não raro, errôneas ou parcialmente verdadeiras que ele adquiriu de
jornais, amigos e fábulas. Ninguém mais capacitado do que seu médico
para remover as informações errôneas, tranquilizá-lo ao mostrar-lhe
as possíveis saídas para o seu problema, como também conseguir a sua
cooperação no processo terapêutico.

Muitos autores comentam a inocência do médico ao negar informação


ao canceroso. A mensagem verbalizada não é a única informação en-
tre pessoas. Frequentemente, uma comunicação analógica atua como
mensagem poderosa que não se comunica verbalmente. Muitas vezes a
mensagem pode conter duas afirmações contraditórias: “Você tem um
tumor benigno, mas vai ser necessária uma cirurgia grande por precau-
ção, seguida de radioterapia e de uma castração”. Neste caso houve co-
municação paradoxal pois a importância dada ao tratamento contradiz
a benignidade do diagnóstico. Comunicações como essas correm o risco
de fazer surgir uma ruptura das comunicações médico-paciente em mo-
mento em que o paciente mais precisa ter alguém para falar e ouvi-lo.

O médico naturalmente fará o possível e o impossível para curar o


doente, e para isso deverá ter como aliado a família do paciente na sua

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luta contra a morte, por uma melhor qualidade de vida e conforto para
quem está sofrendo. Se o médico perceber que o sistema familiar traba-
lha no sentido de desanimá-lo, cabe-lhe, após a identificação, atuar no
sistema familiar, se possível, ou buscar dentro de si mesmo outras fontes
de energia, como, por exemplo, vendo o caso como um desafio, estudar
outras técnicas, discutir com colegas etc.

O oncologista deve ser, para o bom desempenho de sua função, capaz


de sentir adequadamente as emoções positivas e negativas que lhe são
comunicadas, julgá-las para avaliar os melhores meios de intervenção
assim como suas consequências. Todos aqueles que trabalham com can-
cerosos e respectivas famílias, como médicos, enfermeiras, assistentes
sociais, atendentes, deveriam ter treino em psicologia relacionada a esta
área, desde que já existe grande quantidade de conhecimento em cance-
rologia psiquiátrica possível de ser aplicado e disseminado.

Idéias falsas acerca do câncer, como o mito generalizado até entre


muitos clínicos e estudantes de medicina, da sua incurabilidade devem
ser contestadas. Na verdade, o câncer faz surgir, para muitos, um medo
maior do que de muitas doenças que são tão graves ou mesmo de prog-
nóstico pior. Outras idéias necessitam ser reexaminadas como acentuam
certos autores como a de que a sociedade determinou que a vida deve
ser salva a todo custo e o hábil cirurgião é doutrinado para este fim.
Tem sido mostrado que já é tempo de observar mais de perto o preço
e aqueles que o suportam. A ênfase deve ser colocada na qualidade de
vida existente que deve ou não ser salva. O problema de o que dizer e
como dizer ao canceroso provavelmente tem tantas respostas como tem
o número de oncologistas. Cada médico utiliza um método conforme
seu próprio sentimento ou falta dele acerca do problema.

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Obsessivos e Compulsivos
Milton é uma pessoa estranha. Ele nunca pisa nos frisos que cos­tumam
separar os lances dos passeios. Se entra por uma porta em uma loja, de
forma alguma sai pela mesma porta. Convidei-o para lanchar comigo.
Ele lavou as mãos e sem enxugá-las na toalha, balançou-as no ar, excla-
mando sem graça:

- Economizo a toalha.

E olhando para as mãos, balbuciou:

- Está ventando. Elas secam depressa.

Milton tinha medo de toalhas alheias. Após o café, bebemos um vinho.


Como se sabe, este propicia o escoamento, sem violência, das fantasias
que encobrem os caprichos secretos dos homens. Suave­mente seus pen-
samentos e imagens esquisitas desabrocharam, mos­trando uma mistura
confusa de valores contraditórios, na luta pelo do­mínio das ações. Me-
drosamente, as fantasias singulares abandonaram o esconderijo seguro,
para fluírem deslocadas, leves, modificadas, algumas até belas, através de
sua voz abafada e nervosa. Sem êxito, procurava as palavras capazes de
descrever as situações incomuns do seu mundo:

- É… guardo pensamentos estranhos. De uns tempos para cá passei a


achar que estou sujo. É um sujo diferente, que não sai com água e sabão,
nem é um sujo moral. Não sei lhe explicar direito.

Milton, angustiado, procurava os termos. Os conceitos usados nas ex-


periências do dia-a-dia não descrevem com precisão as imagens carre-
gadas de emoções. Ele buscou as metáforas. Também essas são pobres
para expressar as fantasias, emoções e ideias extravagantes do nosso

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mundo íntimo. Talvez precisássemos inventar palavras espe­ciais para
essas descrições. Milton, tossindo nervosamente, os olhos lacrimejando,
prosseguia:

- Após imaginar-me sujo, achei que meu corpo sujaria tudo o que tocas-
se. Assim parei de ir à missa e fugi de todos os frequentadores da igreja.

Ah!… Nos domingos aumenta meu sofrimento. Moro perto da igreja,


observo, de minha janela, as pessoas entrando e saindo da mis­sa. Sei
que é doideira minha, mas enxergo claramente um pó feito de resíduos
de hóstias, finíssimo e brilhante sob o sol, dançando ao sabor do vento
quente, saindo da roupa dos fiéis. Essa maldita poeira sobe e, lentamen-
te, invade todo meu corpo. Sinto-me, nesse encontro, como se fosse
uma lesma repugnante, andando, roçando, penetrando e su­jando o
corpo sagrado de Cristo. Envolvido pelo pó sagrado, não sei o que fazer.
Impotente e desesperado, corro para o chuveiro, numa tentativa tola e
vã de limpar-me. O contato da água deslizando mor­na no meu corpo
trêmulo, por mais de uma hora, acalma-me, mas o sujo permanece preso
por longo tempo. Debaixo do chuveiro, sou atormentado pela obrigação
de contar, minuciosamente, as juntas dos azulejos. Já fiz isso milhares de
vezes.

Consolei-o como pude, enquanto procurava inspiração no vinho. Disse-


-lhe que ele apresentava uma ideia obsessiva, isto é, uma ideia intrusa,
que invade a nossa consciência sem que a gente a deseje. O seu ato,
evitando pisar nos frisos do passeio, é uma compulsão: a pes­soa sente-se
obrigada a realizar um ritual tolo, sem objetivo definido. Expliquei-lhe
que esse comportamento é normal, quando ocorre num grau moderado.
Para alegrá-lo, comentei que esse sintoma aparece com mais frequência
nas pessoas de nível intelectual e cultural mais elevado. Sabia que dar
um nome para o seu relato era pouco. Milton sentiu-se mais seguro. É
curioso constatar que as pessoas se julgam protegidas com conceitos,
mesmo quando eles não representam uma entidade. Ele prosseguiu:

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- Quase todos os meus irmãos são assim. Uma das irmãs assiste a várias
missas aos domingos, por julgar que não se manteve suficiente­mente
atenta nas missas anteriores. A missa, segundo ela, só é válida se assisti-
da sem nenhuma distração. À noite, cansada e culpada, cami­nha encur-
vada pelas ruas retornando para casa amargurada, lamentan­do o pecado
cometido. Tenho um irmão que lava as mãos sem parar; isso acabou
ferindo suas mãos de tanto serem lavadas.

Uma tia, para sair de casa, obriga-se a realizar um ritual esquisito: veste
roupas diferentes por quatro vezes, calça e tira três vezes os sa­patos
velhos, coloca duas vezes os brincos e, por fim, lava as mãos. Só assim
ela sente-se aliviada. Minha mãe não dorme sem antes verificar se o
gás está desligado ou se a porta está trancada. Antes de se deitar faz um
teste para verificar se realmente ela está trancada, mas logo que se deita,
imagina que, sem querer, pode ter destrancado a porta ao examiná-la.
Assim a inspeção continua noite adentro, parece-me que não dorme.

Contei-lhe, para ser empático, casos de clientes. Uma se sentia obrigada


a contar as letras da primeira página do jornal. Terminando, imaginava
que o número achado podia estar errado e assim novas contagens eram
feitas. Um cliente, ao chegar no portão de sua casa, marcava um car-
ro que se aproximava e corria para chegar no topo da escada antes do
carro passar em frente da moradia. Outro, ao conver­sar informalmente
com pessoas que considerava importantes, enxer­gava imagens de cenas
sexuais estranhas e sujas com o interlocutor. Milton não ouviu o que lhe
contei. Prosseguia sua narração com a voz arrastada de semiembriagado:

- Se estou num cinema, imagino-me gritando ou xingando algum


palavrão. Num enterro, vejo-me dando gargalhadas, fico suando de
de­sespero. Tenho um sobrinho que adoro, vislumbro-me degolando-
-o. Com frequência enxergo-me jogando minha avó, que está paralítica,
pela escada abaixo. Ao sair de casa, imagino-me sem roupa em plena
rua. Outras vezes obrigo-me a fazer somas, subtrações, multiplicações
ou divisões com os algarismos das placas dos automóveis. Rapidamen­te,

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seja lá que algarismo for, faço as contas necessárias para encontrar o nú-
mero mágico 24, e, instintivamente, xingo-me: “veado, veado”. Eu nunca
fui ou desejei ser ”gay “.

A noite estava longe, os carros não mais faziam barulho, um ven­to frio
de maio exigia mais agasalhos. Milton continuava excitado pelo efeito
do vinho e das recordações que saíam agora mais fáceis. Suas repre-
sentações mentais, presas no porão, fabricadas com esmero, desfilavam
livremente.

Indiferente ao frio, Milton falava. Enquanto isso seus dedos cur­tos, de


pontas achatadas, reuniam os farelos de pão caídos na mesa em montí-
culos, para, em seguida, desmanchá-los num ritual inútil.

O dia amanhecia, era mais um domingo triste para o meu ami­go. Pensei
na hóstia, na poeira, no sofrimento criado pelas figuras distorcidas. Des-
pediu-se com um sorriso cansado e envergonhado. Estendeu com asco
sua mão em direção à minha. Desceu as escadas, batendo as pontas dos
dedos nos canos que cercam o corrimão da escada. Deitei-me, pensan-
do: “Será que fechei a porta da geladeira?”. Levantei-me para verificar.

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A Triste História dos Deprimidos
“Ando cansado… às vezes penso até que o melhor seria morrer. Não
tenho fome, a comida é sem gosto. Já emagreci 6 quilos neste mês. Acor-
do muitas vezes durante a noite e a partir das 4 horas não durmo mais.
Como é difícil sair da cama… aliás, tudo está difícil, como tomar banho e
fazer a barba. Não acho graça em nada… olho para meus filhos e choro.
Morro de dó deles, por terem de enfrentar este mundo horrível. Não tem
nada bom, tudo é chato. Não tenho mais forças. Se pego um jornal para
ler, ou se olho uma novela na TV, não entendo nada e nem sei contar o
que foi que eu vi… nem o que foi que eu li… Não cuidei direito da minha
família. Falhei em tudo. Sou um fracassado. O que eu sinto, não gostaria
que o meu pior inimigo sentisse. Cometi muitos erros na minha vida…
eu me arrependo mui­to deles. Acho que não vou conseguir sair dessa…
só tenho vontade de ficar deitado, de não fazer nada. De ficar sozinho. É
horrível.”

Sua voz é fraca e penosamente lenta. Há um grande intervalo entre cada


som que ele pronuncia. Suas roupas estão mal cuidadas, largas, deslei-
xadas, até sujas. Falta-lhe um botão na camisa e existe um abotoado
no lugar errado. Seus ombros curvados para frente tentam esconder o
rosto fino. A barba grisalha está por fazer. A face é de tris­teza, pálida,
com grandes sulcos laterais. Duas olheiras sustentam um olhar sem
expressão. Os cabelos, também grisalhos, mal penteados, mal cuidados e
grandes para a sua pequena testa. Os óculos têm um dos vidros partidos
e um das hastes amarradas com uma linha que um dia foi branca. Nas
pontas dos dedos finos, unhas grandes, sujas e amareladas pelos cigar-
ros constantemente acesos. Apesar do calor, nota-se, por baixo de sua
camisa, uma camiseta de malha e, por cima daquela, um paletó roto e
largo. Seus dentes talvez há muito não sejam escovados e no bigode ralo
acha-se o que restou da última refeição.

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Pouco fala e, quando o faz, parece aborrecido e cansado de estar ali,
defronte a mim, para relatar suas misérias. Às vezes seus olhos se ume-
decem, lágrimas lentamente começam a escorrer, mas ele discretamente
passa o punho do paletó sobre os olhos e os en­xuga, engolindo, através
de sua garganta seca, alguma lágrima que desceu. Tudo é vagaroso e
penoso. O paciente transmite dor e so­lidão. Seu desespero, tão profundo
quanto sua amargura e tristeza, contamina a minha mente, também às
vezes triste e confusa por conviver, há anos, dia-a-dia, com o absurdo e
incompreensível sofri­mento humano.

Eis aí, em resumo, uma tagarelice acerca de um dos meus pacien­tes.


Tagarelice, sim, pois nós não conseguimos captar os sofrimentos de
ninguém: apenas os imaginamos, lembrando os nossos próprios sofri-
mentos. Assim também a minha vivência com esses pacientes é minha
propriedade, aprisionada em minha mente e impossível de ser transmi-
tida ao leitor de um modo adequado. Quando se trata de expe­riências
emocionais, com pouca, ou melhor, com nenhuma lógica, a comunica-
ção torna-se realmente impossível.

Todos nós já convivemos com a nossa depressão, seja por ho­ras, dias,
meses ou anos. A maior parte de nós tanto entramos, como saímos da
depressão, com relativa facilidade, utilizando os nossos recursos pró-
prios, quase sempre de maneira automática. Assim, va­mos supor uma
moça que perde o namorado e, compreensivelmente, fica deprimida. Ela
poderia arranjar um outro namorado e esquecer o anterior, ou buscar
outras atividades para substituir a ausência dele. Poderá criticar o ex-
-namorado, taxando-o de estúpido e ignorante, e com isso sentir até um
certo alívio pelo rompimento, ou usar várias outras técnicas disponíveis
para cada um de nós. Rapidamente a nos­sa amiga estará bem e suas
emoções normalizadas.

Vamos supor, agora, em outro extremo, uma pessoa que não utilizou
seus recursos para combater a depressão. Nesse caso, a nossa amiga, ao
perder o namorado, vai, pouco a pouco ou rapidamente, caminhando

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para aquele estado e várias partes dos seus sistemas aca­bam sendo atin-
gidos, contaminados.
Ela pode, por exemplo, faltar ao serviço, perder o sono, alimen­tar-se
mal, passar a não se cuidar, agredir as pessoas ao seu redor afastando-as
do seu convívio, etc. Desse modo, diversas atividades saudáveis vão dei-
xando de ser fonte de alegria, transformando-se em problemas difíceis
de resolver, ou em processos dolorosos. Cada novo problema que apare-
ce, ou cada disfunção ocorrida, necessariamente aumenta a impotência
de nossa amiga, vai-lhe criando uma imagem cada vez mais negativa de
si mesma e, simultaneamente, uma fantasia altamente pessimista acerca
do mundo ao seu redor e dos meios de abordá-lo. Formou-se uma ca-
deia cada vez mais difícil de ser quebra­da. Poucos são os aspectos posi-
tivos em sua vida e estes vão inexora­velmente sendo minados e transfor-
mados também em sofrimento e problemas. Nesse ponto a nossa amiga
encontra-se já mergulhada em sua depressão, totalmente dependente de
outras pessoas e não mais dos seus próprios recursos.

Para o deprimido, o mundo é mau, e ele, não tendo meios para enfrentá-
-lo, acha-se sem saída. Com essa convicção, surgem fre­quentemente as
ideias ou a ação de suicidar-se. A obsessão é escapar do sofrimento, ain-
da que seja necessário sacrificar a própria vida. Po­dem surgir na mente
do deprimido fantasias que o levam a querer exterminar toda a família,
para livrá-la do mundo de desgraças em que vive. Também não é inco-
mum o suicídio indireto, causado pela provocação da própria morte por
outra pessoa ou por um acidente fatal. Nessa fase é ainda frequente o
uso exagerado de bebidas ou cal­mantes que têm a mesma função, isto é,
tornar as próprias desgraças e as de seu mundo mais toleráveis.

O deprimido é, portanto, uma pessoa que perdeu a capacidade de man-


ter uma adaptação biopsicossocial equilibrada dentro da nor­malidade,
ao enfrentar os múltiplos fatores ou miniacontecimentos de seu coti-
diano (fracassos, perdas, doenças, desapontamentos, etc.). Seu sistema
individual não retorna ao equilíbrio anterior, com a con­sequente norma-
lização, após cada problema.

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A depressão é um transtorno emocional ou do afeto, como o próprio
nome indica, mas que pode ter repercussões graves e sérias no relacio-
namento social, acarretando perturbações cognitivas, psi­comotoras,
psicofisiológicas e ainda facilita a instalação da maioria, senão de todas
as doenças orgânicas, pela diminuição das defesas imunitárias.

A esta altura, convém lembrar que algumas depressões parecem origi-


nar-se primariamente de distúrbios bioquímicos, enquanto em outras as
causas iniciais são transtornos psicológicos e sociais, ocor­rendo, poste-
riormente, as modificações bioquímicas.

Uma vez mergulhado na depressão, o paciente não crê que possa esca-
par dela. Entretanto, ao receber tratamento adequado, suas chances de
recuperação são grandes. Alguns poucos casos evoluem para a depres-
são crônica, apesar dos tratamentos. Para alguns, o ata­que de pânico, o
alcoolismo, a dependência às drogas, as dores crôni­cas e outras formas
de conduta desadaptada dos jovens seriam equiva­lentes de uma crise
depressiva. Para terminar, a depressão é a doença mais frequente no
consultório psiquiátrico: atinge cerca de 50% dos pacientes que nos pro-
curam. A maioria dos que dela padece, não vai ao médico.

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Tome seu Tranquilizante e Viva
Feliz
Diga adeus à ansiedade. Os grandes laboratórios farmacêuticos interes-
sados no faturamento construíram a crença de que podemos e devemos
viver sem ansiedade. Esta falsa ideia foi assimilada por alguns médicos e
pelo público em geral, promovendo a ida dos ansiosos aos consultórios,
em busca do remédio milagroso. Entretanto a ansiedade pode ser uma
emoção saudável e necessária a uma boa adaptação do indivíduo ao
meio, sendo, muitas vezes, um aviso do organismo, indi­cando que algo
precisa ser feito para modificar a vida.

Os tranquilizantes têm sido usados há milênios. O primeiro de­les, e


que continua a ser consumido, é o álcool. Atualmente, cada dia mais,
diversos outros calmantes são lançados no mercado para alegria dos
consumidores aflitos. Uma estatística da Organização Mundial de Saúde,
publicada há alguns anos, mostrou um consumo anual de 500 milhões
de psicotrópicos no Brasil. Desses, 70% eram ansiolíticos, ou seja, medi-
camentos para diminuir a ansiedade, apreensão, tensão ou medo. Muitas
pessoas só dormem após tomarem seu sedativo prefe­rido e, para supor-
tar o dia desagradável que virá, ingerem mais outro calmante diurno.
Alguns usam os tranquilizantes para viajar de avião, dançar, namorar,
transar, dar aulas, casar, isto é, as atividades que podem acarretar um
certo grau de intranquilidade.

Os ansiolíticos são ingeridos puros ou misturados com bebidas, usados


junto a moderadores de apetite, as drogas anticolinérgicas (os chamados
antidistônicos). Alguns estão embutidos nos medicamen­tos antide-
pressivos, fortificantes, vitaminas, diuréticos, etc. As bulas acerca dos
calmantes geralmente são mentirosas, descrevem muito mais os “bons”
resultados do que os “maus”. Muitas não relatam a dependência após um

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curto período de uso, a diminuição da capaci­dade psicomotora, o au-
menta do cansaço, a diminuição da memória, a piora dos sintomas após
a sua interrupção (ansiedade rebote) e o risco de seu uso nos idosos e
crianças. Uma curiosidade: os que têm menos conhecimentos acerca de
seus “excelentes efeitos terapêuti­cos”, como os pacientes mais humildes
dos ambulatórios, beneficiam-se pouco com seu uso.

Como a população brasileira tem estado intranquila com res­peito ao


futuro do país, conclamo o governo a distribuir essas drogas milagrosas
para todos nós, em lugar de gastar dinheiro com alimen­tos, moradias,
empregos e assistência médica. Com o povo calmo, os governantes po-
deriam usufruir o encantamento do poder. Cada cida­dão teria direito de
uma a três doses diárias, conforme sua ansiedade. Este, uma vez embria-
gado com o efeito do calmante, não mais faria greve, não mais amolaria
o pobre governo com reclamações tolas e injustas. Ingerindo sua dose
diária de ansiolíticos as pessoas viveriam e morreriam calmas, talvez,
quem sabe, até felizes.

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Sono, Insônia E Pílulas
Das 8.760 horas de um ano, o homem dedica perto de 3.000 ao sono e
dorme aproximadamente 24 anos de sua existência. Você, que está lendo
esse artigo, já teve vários sonhos, pesadelos e algumas vezes falou en-
quanto dormia. Quando criança, ou mesmo depois de adulto, urinou na
cama e pode ter perambulado pela casa durante seu sono. Alguns dias
deitou-se e demorou a adormecer; diversas vezes acordou durante a noi-
te ou cedo demais, sem desejar, e durante al­guns dias de sua existência,
você trabalhou sonolento. Talvez use, ou já usou, medicamentos, na falsa
esperança de que eles o ajudariam a dormir. Você sabe o que é o sono?

Cerca de 12 a 15 por cento da população dos países industria­lizados tem


sérios distúrbios do sono, outros 20 a 25 por cento da população apre-
sentam distúrbios ocasionais de insônia.

A partir das ondas cerebrais, que são detectadas quando um eletroence-


falograma (EEG) é registrado durante o sono, verifica-se o aparecimento
de ondas sincronizadas (sono NREM), também denomi­nado de sono
ortodoxo, e de ondas não-sincronizadas (sono REM), ou sono parado-
xal. O termo “REM” decorre do inglês (“rapid eye move­ments”), indi-
cando que nesse sono ocorrem movimentos rápidos dos olhos.

O sono NREM (sem movimentos rápidos dos olhos), compreen­de três


fases: 1, 2 e 3 (delta). Nosso sono inicia-se com um sono mais leve e
prossegue até alcançar a etapa mais profunda. Ao adormecer, surgem
as fases do sono, nas sequências 1-2- 3 (delta) e novamente 2, que são
entremeadas pela fase REM (fase dos sonhos). A fase 1 é o período de
transição da vigília ao sono.

O sono delta - sono profundo - é o período do comportamento extrava-


gante, quando as pessoas falam dormindo, se sentam e come­çam a ter

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longas conversas consigo mesmo e os sonâmbulos levantam-se e passam
a andar pela casa. É também o período da noite em que as crianças, às
vezes, urinam na cama, ou apresentam o estranho proble­ma chamado
terror noturno (por exemplo, gritar enquanto dorme).

Ao começar o sono REM, o corpo se acha totalmente relaxado. Se


alguém arrastar a pessoa para fora da cama e tentar colocá-la de pé,
ela cairá. O corpo não se move absolutamente, percebendo-se apenas a
oscilação ocular. Caso se trate de um homem, ele tem uma ereção pe-
niana automática, caso se trate de mulher, os tecidos vaginais en­chem-se
de sangue. No interior do corpo, os batimentos cardíacos e a pressão
arterial sobem, a respiração torna-se irregular, e poderosos hormônios
invadem a corrente sanguínea, liberados de certos órgãos, tais como das
glândulas suprarrenais. Todos os tipos de cenas e ima­gens fantásticas
passam pela mente da pessoa, pois é nesse período que se tem a maioria
dos sonhos e pesadelos.

Cada ciclo completo de sono NREM, somado ao REM, tem uma dura-
ção aproximada de 90 minutos cada. Durante uma noite inteira de sono,
ocorrem 4 e 5 ciclos, de cerca de 90 minutos cada. Nos ciclos posterio-
res, no fim da noite, quase não se observa mais a fase delta.

Nos idosos, a fase 1 do sono NREM, que é o sono mais superficial,


cresce muito, em detrimento do sono delta ou sono profundo. Nessa
faixa etária também, diminui geralmente o número de horas realmen­te
dormidas, que cai para 5 a 6 horas por noite. Em outras palavras, o idoso
normal dorme menos tempo, sonha menos e seu sono é mais su­perficial
e, além disso, frequentemente apresenta sonolência diurna.

As necessidades de horas de sono, além de variar com a idade, variam de


pessoa para pessoa. Assim alguns necessitam de 10 a 12 horas, outros,
de 3 a 4, alguns poucos, de apenas 1 hora de sono por noite. Uma pessoa
apresenta insônia se sua dificuldade para dormir interfere cronicamente
com uma eficiente função durante o dia, inde­pendente do número de

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horas dormidas. Portanto, o que caracteriza a insônia é o malestar ou
sonolência diurna e não o número de horas dormidas durante a noite.
Cada indivíduo deve estabelecer as suas necessidades diárias de sono, a
partir de suas próprias experiências com diferentes números de horas de
sono.

Alguns clientes se queixam do oposto da insônia, ou seja, da hipersô-


nia - sono exagerado. Quando essa ocorre, é possível que a pessoa esteja
dormindo um número de horas inferior à sua real ne­cessidade, mas
também podem estar ocorrendo certos problemas médicos tais como
o do hipotireoidismo, transtornos psiquiátricos (depressão), ou ainda
perturbações específicas próprias do sono (ap­neia do sono, narcolépsia).
Esses transtornos levam a pessoa a não dormir normalmente, ainda que
eles achem que dormiram satisfato­riamente.

O que às vezes torna-se intrigante são as insônias de causas com­


portamentais ou situacionais. Algumas são bastante óbvias. Sabe-se, por
exemplo, que o primeiro sono da noite em local estranho é, em geral, in-
satisfatório. As pessoas que moram perto de aeroportos, ou de estradas
e ruas muito movimentadas, talvez não durmam tão bem como quem
vive numa tranquila localidade do campo, ou num bair­ro silencioso.
Vários estudos revelam que, embora as pessoas que partilham da mesma
cama e tenham, em geral, uma boa vida sexual, muitas vezes dormiriam
melhor se estivessem em camas separadas, particularmente se uma delas
tem sono agitado. Partilhar a cama com alguém pode significar tam-
bém partilhar a insônia. Finalmente, a pes­soa pode, ocasionalmente, ser
vítima do que é conhecido como “Insô­nia da Noite de Domingo”. Esta
resulta em geral da alteração na escala horária dos fins de semana, quan-
do se vai para a cama e se levanta mais tarde. Algumas pessoas, mesmo
adormecidas, permanecem pen­sando intensamente, dando a impressão
de estarem acordadas, mes­mo quando, objetivamente, através do eletro-
encefalograma, se per­ceba que estejam no sono NREM. Também pode
ocorrer que certos insones apresentam tempo excessivo de sono na fase
1, isto é, na fase superficial, dando-lhes a impressão de estarem dormin-

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do pouco.

As mais diversas e curiosas particularidades acerca da melhor maneira


de dormir, para uma dada pessoa, são encontradas. Alguns necessitam
silêncio absoluto, enquanto que para outros o sono é me­lhor quando ou-
vem uma música, ou quando a TV estiver ligada. Para alguns o melhor
sonífero é um certo tipo de leitura.

Certas pessoas só dormem com as janelas abertas. Muitos, ao se dirigi-


rem para a cama, imaginam que não vão dormir e acabam não dormin-
do. O exercício físico realizado no fim da tarde ou início da noite, parece
influenciar o sono: há aumento de ondas deltas - en­quanto que realizado
em excesso, pouco antes de se deitar, prejudica o sono. É mais fácil acor-
dar uma pessoa quando esta se encontra na fase 1 do que na fase 2, ou
no sono REM, e há ainda mais dificuldade de despertá-la na fase delta.

Uns preferem a cama dura, outros, a macia. Não se dorme bem nas
temperaturas muito baixas ou muito altas. Dorme-se mal acima de 24
graus, nessa temperatura a pessoa acorda e movimenta-se mais vezes à
noite e há um decréscimo do sono REM e do delta. Tudo in­dica que o
sono melhora, se a pessoa alimentar-se com uma refeição leve à noite.

Alguns médicos decidem o que fazer diante de uma queixa de insônia


dos seus clientes em cinco minutos, prescrevendo-lhes um comprimido
para dormir. Isto é grave, pois parte dos pacientes que se queixam de
insônia não a têm, quando se lhes faz exame mais minu­cioso. Outros
que realmente têm insônia, podem estar apresentando distúrbios psi-
quiátricos ou médicos não tratáveis com hipnóticos ou ansiolíticos. A
negligência em relação às drogas ingeridas diariamen­te pode também
afetar o sono, caso a pessoa não perceba que está abusando delas. A
cafeína existente no café, alguns chás e em vários refrigerantes, é prova-
velmente uma das mais ignoradas causas de in­sônias e, no que se refere
ao sono, seus efeitos são, sem dúvida, pou­co lembrados. Dependendo da
sensibilidade ao efeito excitante dessa droga, uma xícara de café é capaz

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de estimular o cérebro até sete horas de­pois de ingerida.

Se você fuma muito, isto é, dois maços, ou mais, de cigarros por dia, tal-
vez o vício da nicotina o esteja mantendo acordado à noite. Os pesquisa-
dores descobriram que alguns fumantes, após dormirem cer­ca de quatro
horas, passam por uma necessidade de nicotina tão forte que acordam
ansiosos por um cigarro.

Outra droga que perturba o sono é o álcool. Um pequeno “drinque”,


ingerido para “chamar o sono”, perde pouco a pouco o seu efeito, e é pre-
ciso beber cada vez mais para conseguir o mesmo resultado. Em grande
quantidade - após uma ver­dadeira bebedeira, ou no caso extremo de um
alcoólatra - o álcool é capaz de arruinar o sono normal durante dias ou
semanas. Em qual­quer quantidade, o álcool anula os períodos REM do
sono, conduzin­do, assim, a descanso pouco profundo. Quando se deixa
de beber, todo o sono REM reprimido volta, trazendo consigo um acú-
mulos de sonhos e pesadelos.

Os comprimidos para dormir são capazes de transformar uma insônia


comum, banal, diária, num verdadeiro monstro. A razão é que essas pí-
lulas talvez provoquem, exatamente, o problema que estão destinadas a
curar. Tomadas todas as noites funcionam apenas por al­gum tempo, em
geral duas semanas. Tomando-se pílulas durante mui­to tempo, a insônia
e a qualidade do pouco sono existente se tornará pior do que no tempo
em que não se tomava comprimido algum.

Como nação de sofredores, possuímos o que equivale a uma fé religio-


sa no poder das drágeas. Tomamos comprimidos e cápsulas para tudo,
desde ansiedade, dores nas costas, resfriados, depressão, fadiga, ressaca,
azia, dores de estômago, etc., até, naturalmente, para a insônia. Se uma
pílula não funciona, não perdemos a fé e a trocamos por outra. O poder
de tal confiança é extraordinário e permanece muito misterioso. O grau
de eficácia de um remédio depende, em parte, do seu conteúdo químico.
A droga tem que ter o seu atrati­vo para a pessoa. É preciso que o pacien-

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te acredite nela, razão pela qual algumas das medicações de efeitos mais
mortais são envoltas em alegres cápsulas de gelatina vermelha, amarela e
verde, lembrando saborosas balas.

Drágea alguma proporciona uma noite de sono inteiramente nor­mal.


Todas as vendidas com ou sem receita médica são depressoras do siste-
ma nervoso central, maneira médica de dizer que funcionam indo direto
ao cérebro e deixando semiconsciente a pessoa. Reduzem os batimentos
cardíacos, a pressão arterial, o ritmo respiratório, os reflexos e o tono
muscular, inibindo também parte do sono, em geral o ciclo REM.

De alguns anos para cá os estudiosos do sono têm “receitado” para a


insônia uma substância chamada triptofano. Trata-se de uma proteína
natural encontrada em diversos alimentos, desde a manteiga de amen-
doim até o bife. Triptofano, ou L-triptofano, conforme é às vezes chama-
do, fornece a matéria-prima do elemento químico cere­bral, a serotonina,
que conforme os pesquisadores, é um dos ingre­dientes mais necessários
à ativação dos centros do sono. Você, leitor, poderá economizar seu
dinheiro indo direto à fonte para obter uma dose de triptofano. Entre os
comestíveis com alto teor de proteínas figuram: atum, fígado, carne, cos-
telas de porco, galinha, peru, amen­doim, feijão e laticínios, como queijo,
requeijão e aquele antigo remé­dio caseiro para a insônia, muito usado
pelas nossas mães, um copo de leite morno. Todos são encontrados, não
nas farmácias, mas nos supermercados.

Se você não estiver com fome, pode tentar outro recurso: bas­ta procurar
no seu armarinho de remédios: a aspirina e a dipirona devem estar lá.
Alguns insones descobriram que elas têm o efeito de um suave compri-
mido para dormir. Não force seu sono, a raiva é um poderoso desper-
tador interno. Para dormir, é necessário não pensar em dormir. Para
terminar, Bom Sono e Bons Sonhos.

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O Casamento do Neurótico
Há uma aceitação geral de se fazer um exame pré-nupcial para verifi-
car a saúde física dos cônjuges, entretanto jamais ouvimos falar que os
namorados se submeteram a um exame psicológico para veri­ficarem
suas capacidades ou competências para viverem juntos com alguém ou
serem pais. Observações acerca do casamento fracassado mostram que
uma piora na conduta em um dos cônjuges, piora o comportamento do
outro, que por sua vez piora o primeiro e assim sucessivamente, e numa
espiral, vai perturbando os dois e aumentan­do os distúrbios conjugais.
A sociedade ainda não assimilou o uso do exame mental para os futuros
cônjuges.

Uma pesquisa feita nos USA mostrou fatos interessantes e úteis para
os que estão desejosos de se casarem ou de morarem juntos. Inde­
pendente do sexo dos entrevistados, através das escalas, foi mostrado
que a qualidade do casamento estava influenciada negativamente pelo
neuroticismo dos cônjuges. Resumidamente, as pessoas apresentan­do o
traço “Neuroticismo”, também chamado de “Emoção Negativa”, que será
descrito a seguir, tinham mais dificuldades no casamento.

1) Ansiedade (propensão ao medo, tensão, preocupação, nervo­sismo);

2) Depressão (alto nível de tristeza, solidão e desesperança);

3) Raiva (propensão a episódios de irritabilidade e frustração);

4) Autoconsciência aumentada (mais sujeito a ficar envergonha­do,


desajeitado e com sentimentos de inferioridade);

5) Culpa (experiência frequente de culpa, autocensura devido a falhas


ou erros);

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6) Super-sensibilidade (sensitivo às críticas e ao ridículo);

7) Insatisfeito consigo (vê a si próprio como cheio de defeitos);

8) Super-reatividade aos estresses (facilmente sofre com aconte­


cimento próximo do normal);

8) Labilidade Emocional (experimenta, repentinamente, mudan­ças


marcadas de humor);

9) Avaliação Negativa (tende a ver os acontecimentos como ameaça-


dores e problemáticos);

10) Queixas Somáticas (apresentam sintomas corporais pertur­


badores).

Outros estudos mostram que o psicotismo (pessoas mais fecha­das,


desconfiadas, isoladas, estranhas, delirantes) contribui mais ainda para
o mau casamento. Alguns estudos enfatizam o fator impulsivida­de – de
um ou dos dois cônjuges – como um importante fator do mau casamen-
to. Essa característica aparece principalmente nos indivíduos com trans-
torno de personalidade antissocial (egocêntrico, explora­dor, desonesto,
insensível).

Uma pesquisa focalizou, como fator de prognóstico do mau ca­samento,


dois tipos do “lugar de controle dos cônjuges”. Um tipo apresenta o
controle interno, isto é, uma tendência a examinar seu próprio compor-
tamento como causador de seu bem ou malestar. Um segundo tipo tem
o lugar de controle externo, isto é, explica e coloca nas outras pessoas
ou nas condições do ambiente as razões dos seus problemas, fracassos e
dissabores. De acordo com essas ideias, os com lugar de controle interno
são mais propensos a serem melhores cônjuges do que os com lugar de
controle externo. Você, caro leitor, com essas ideias, examinará seu na-

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morado e, se tiver um tempinho, você mesmo, para decidir o que fazer,
caso avalie o seu mundo atra­vés do “controle interno”.

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PEDÓFILO: O Monstro de Duas
Faces
A imprensa, equivocadamente, traçou o perfil dos pedófilos através do
modelo dos criminosos da Bélgica. Esses nada mais são do que cri-
minosos comuns que entraram nessa área, como poderiam estar em
qualquer outra, para explorar pessoas. As famílias que imagi­nam os
pedófilos, efebófilos e hebófilos (abusadores sexuais de crian­ças, púberes
e adolescentes), conforme as informações da imprensa, fracassarão na
proteção de seus filhos. Os pedófilos, bem como os efebófilos e hebófilos
examinados e descritos pelos psiquiatras, são diferentes. Na maioria das
vezes nem matam, nem ferem sua vítima, como rotineiramente fazem
os estupradores. São homens medrosos, incapazes de raptar, estuprar ou
usar força física. Sua técnica é outra: exploram a impotência, a ingenui-
dade das crianças e dos pais, ou a curiosidade dos adolescentes, prontos
para buscarem ações de risco e novidade. Sendo fraco e incapaz de cons-
truir ligações afetivas madu­ras com adultos, aproveita-se dos inocentes.
Muitos foram abusados sexualmente quando crianças. A maioria não
tem orgasmo quando abraça e acaricia suas vítimas. Alguns masturbam-
-se após o contato físico. O pedófilo age muitas vezes na residência da
vítima, na frente de todos que supõem tratar-se de carinhos ou brin-
cadeiras. Muitos desses “apreciadores e amantes das crianças” são tios,
primos, cunha­dos, vizinhos ou amigos da vítima ou dos seus familiares.
Pode ser o entusiasmado professor do colégio, o técnico de futebol, bas-
quete ou voleibol juvenil ou infantil, o pediatra ou dentista de crianças,
o pipoqueiro da esquina, ou ainda o padre ou o pastor do bairro. Não
se assustem, muitos são os próprios pais da vítima. O pedófilo aprecia
abraçar demorada e apertadamente o corpo da vítima, acariciar com
falsa ternura seu corpo, olhá-la com cupidez, conversar animadamen­
te sobre sexo, mostrar filmes pornôs, tomar banho junto e frequentar
praias de nudismo.

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Durante minha prática psiquiátrica, examinei não mais do que uma
dezena deles. Esses foram à consulta, forçados pela lei ou por fa­miliares,
quando descobertos. Entre esses, um rapaz visitante frequen­te nas
portas dos colégios em busca de púberes masculinos. Para seu azar, ele
usou um radiotransmissor para conversar com suas presas, sendo preso.
Um comerciante pedófilo pedia às meninas que passa­vam diante de sua
loja, para apanhar um objeto colocado previamente numa prateleira alta.
Seu truque era segurar a criança por trás para levantá-la e fazê-la roçar
no seu corpo. No dia da consulta parou seu carro numa rua e, olhando
para uma criança que brincava no passeio, masturbou-se. Um professor
de educação física do interior, devido à sua “honradez e dedicação”, era
encarregado pelos pais de “proteger” os filhos nas viagens a BH para
consultas médicas ou passar férias. Um executivo foi pego por sua se-
gunda esposa, quando acariciava o frágil corpo de sua enteada de cinco
anos. Excitava-se, observando crianças banharem-se nas piscinas, vendo
revistas contendo modelos infantis, assistindo programas para crianças
na TV e filmes de Walt Disney. Um dos seus prazeres preferidos era dar
banho na filha de um ano. Possi­velmente todos estes clientes, se ainda
vivos, continuam praticando essas ações, pois trata-se de um padrão de
conduta difícil ou impossí­vel de ser extinta.

Apenas os homens têm sido acusados de pedófilos, mas existem mulhe-


res pedófilas. A conduta de mães brincando com os filhos foi observada
por peritos. 10% das mães estimulavam de forma impró­pria as crianças:
agarramentos e esfregões nos órgãos genitais. Os pais viam isso como
demonstração de amor.

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Suicídio pela Provocação de seu
Assassinato
Tenho lidado com um tipo de paciente muito especial e pouco conhe-
cido da literatura psiquiátrica: o que, desejando morrer, procurou o
suicídio, provocando seu próprio assassinato, ou seja, sem coragem de
usar uma arma contra si próprio, provocou outras pessoas para ser agre-
dido ou morto. Em 588 homicídios estudados por M.E. Wolfgang, nos
Estados Unidos, 26 por cento deles, ou seja, 150, foram de vítimas que
provocaram sua própria morte. Outras formas de agressões, pro­vocadas
por pessoas que procuram ser vítimas, são bastante comuns, como faca-
das, porretadas, pedradas, estiletadas e brigas de trânsito.

Nos 150 casos de auto-homicídio estudados, todas as vítimas co­


meçaram a agressão, geralmente portando uma arma letal e assim, teori-
camente, deveriam correr menos risco de vida que o adversário, mas fo-
ram mortas, o que era provavelmente o objetivo inicial delas. Não pagar
uma dívida, trair o cônjuge e deixar pistas evidentes, uti­lizar palavrões
em briga de trânsito e de bar, principalmente com pessoas mais fortes ou
ostensivamente agressivas ou armadas, são os caminhos das pessoas que
procuram o auto-homicídio.

As mulheres casadas que procuram o auto-homicídio, às vezes o fazem


através de traições sucessivas, deixando pistas cada vez mais evidentes.
N.F., de 40 anos, com curso superior, após vários encon­tros com diferen-
tes homens, sem nenhum cuidado para escondê-los, acabou por contar
tudo ao marido durante uma briga, quando agrediu-o, afirmando: “Seu
corno, você não me manda, eu saio com outros ho­mens, nas suas bar-
bas”. Neste momento ele sacou uma arma e atirou, mas felizmente não a
matou. Durante uma entrevista psiquiátrica foi constatado que ela não
tinha prazer sexual, a não ser com o marido.

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Os maridos podem buscar o mesmo tipo de morte, agredindo suas espo-
sas, como o caso de homens que chegam em casa bêbados, espancam as
mulheres com muita violência, quebram os móveis e de­pois vão tran-
quilamente dormir. Alguns conseguem realmente mor­rer. Os alcoólatras
formam um grupo de alto risco de suicídio, logo atrás da depressão
grave.

Parentes destes pacientes se sentem perplexos por não enten­der por que
o “Joãozinho gosta de uma briga”, ou o “Joaquim chega quase todo dia
todo machucado”. Geralmente este tipo de problema não leva ninguém
ao médico. T.J., carpinteiro de 29 anos, solteiro, após receber alta de um
hospital, onde quase morreu após tentativa de suicídio, contou-me que
no dia em que resolveu morrer procurou em seu bairro, na periferia da
cidade, uma pessoa reconhecidamente agressiva, brigona e que usual-
mente andava armada. Fez tudo para brigar com esse cavalheiro. “Como
não consegui”, relatou ele, “fui para casa e tomei uma mão cheia de com-
primidos para morrer”.

A crônica policial está repleta de mortes sem justificativa apa­rente. Os


advogados lidam com esse problema até com certa dificul­dade para
explicar ao juiz os motivos de um assassinato com essas características.
Desconhecendo o passado dessas vítimas, eles têm de criar defesas do
tipo “legítima defesa da honra”, “matou por amor”, “assassinato cometido
sob grande e incontrolável tensão”. Talvez nem mesmo as pessoas envol-
vidas possam compreender e explicar corre­tamente o que aconteceu.

Há alguns anos atrás, elaborou-se uma taxonomia psicológica de cau-


sas de óbito, ao criticar as quatro formas clássicas da morte, que são o
acidente, o suicídio, o homicídio e a morte natural. No primeiro caso,
acidente, uma pessoa pode morrer sem que exista nenhuma ação cons-
ciente ou voluntária sua, como no assassinato e acidentes ortodoxos, ou
por uma doença onde o paciente em nada participou.

No segundo caso – suicídio – que nos interessa neste artigo, o in­divíduo

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que morreu, colaborou para que sua morte ocorresse. Neste grupo
podem ser incluídos também as mortes em que o indivíduo não toma
os remédios indicados; continua fumando após o infarto; para de comer
até morrer, arrisca-se em demasia em qualquer atividade perigosa, como
dirigir em alta velocidade ou nadar em locais de alto risco e desconheci-
dos.

Ora, se utilizarmos o mesmo modelo de raciocínio e em lugar de pen-


sarmos em causas de morte, pensarmos em causas de danos, de lesões
corporais, vários incidentes e acidentes incompreensíveis passarão a ser
melhor compreendidos por serem com frequência au­toprovocados, mes-
mo que a agressão parta de outra pessoa. Assim como existe o suicídio
externamente, existe também o acidente, em que a vítima provoca uma
pessoa para agredi-la. Em outras palavras, toda ação individual em um
par ou conjunto de pessoas nunca é isola­da, sendo dependente e dirigida
ao outro, em resposta a um maior ou menor estímulo de outra parte.

Se definirmos um problema como um tipo de comportamento que é


parte de uma sequência de atos entre duas ou várias pessoas, perce-
bemos que lesões corporais provocadas por surras ou outros tipos de
agressões, como facadas e tiros – assim como o “auto-homi­cídio”, – são
rótulos para uma sequência ou cristalização dessas numa organização
social.

Constitui um novo modo de pensar em direito imaginar que um fato


ou sistema pode ser um “contrato” – automático e inconsciente – entre
pessoas, consequentemente adaptativos para as suas relações em um
sistema disfuncional. Como por exemplo, um indivíduo que provoca e
responde ao outro, sua resposta pode ser uma provocação e, em círculo,
um iria provocando o outro até o infinito, caso não ocorresse o crime.

É claro que, em muitos casos, a provocação está mais acentuada em um


dos membros, basta nos lembrarmos de qualquer briga no trânsito, ou
crimes comumente ocorridos em bares.

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Se o crime – mesmo cometido de repente e no calor de uma bri­ga – é o
ponto culminante de séries de acontecimentos, para analisá-lo é preciso
conhecer os fatos que compõem a cadeia psicológica dos eventos, que
são muito diferentes do assassinato ou das lesões corpo­rais ortodoxos.
Mesmo que o réu e a vítima se tenham encontrado pela primeira vez, é
possível que ambos tenham um passado psicológico semelhante. Segun-
do alguns teóricos, a vítima busca provocar muitas pessoas, na caça ao
seu algoz. Certo dia, ela o acha justamente naquele que se encaixa no seu
desejo, ou seja, o complementar, matando-o.

Para exemplificar, uma mulher fraca é surrada por seu marido cor-
pulento e agressivo. O que esta mulher andou fazendo para per­mitir,
precipitar ou desencadear a agressão deste brutamontes? Nada? Pode
ocorrer, mas é pouco provável. Esta mulher deve ter participado, num
grau maior ou menor, na agressividade sofrida. Não a defenda an­tes de
seguir o raciocínio abaixo. Em primeiro lugar ela geralmente é também
ativa, pois casou-se com ele – ou passou a namorá-lo – quan­do esse,
provavelmente, já demonstrara esta conduta em outras oca­siões. Desde
o início não se defendeu adequadamente de agressões passadas e, prova-
velmente, se julga inferior ao homem por não ter músculos fortes. Além
disso, deve-o ter criticado por palavras e ges­tos perigosos para aquele
agressor em potencial. Necessita queixar-se aos filhos ou aos amigos de
“que é uma vítima”, ou de outro modo, precisa sofrer, para acusar seu
marido. Sua vida, naturalmente, está ruim, sem motivações e prazeres,
portanto, qualquer situação exci­tante – apanhar – é menos ruim do que
nada. Várias outras “razões” poderiam ser pensadas para compreender
as agressões àquela pessoa em particular, não para justificá-las.

Se admitirmos que uma família é um sistema devemos aceitar a premis-


sa de que o comportamento se repetirá. Assim, sempre que uma pessoa
casada apresenta um sintoma grave – agressão – esse sinto­ma tem uma
função no casamento e se o sintoma desaparecer, ocor­rerão consequên-
cias neste. De acordo com este modelo psicológi­co – não jurídico – não

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existe réu e vítima. Ambos são vítimas, com funções diferentes. Infeliz-
mente se complementam de uma maneira desastrada e com alto grau de
sofrimento para ambos.

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Médico X Cliente
A imprensa noticia, novamente, reclamações de pa­cientes ou dos seus
familiares acerca do mau atendimento médico. As disputas se restrin-
gem, quase sempre, ao que ocorre no último elo de uma cadeia que se
iniciou há anos, já que a enfermidade, exibida no momento da consulta,
espelha um conjunto de fatos ocorridos na história de cada paciente,
os quais, em geral, não tiveram a participação do médico que o assiste
naquele instante.

São milhares os acontecimentos responsáveis pelo atual sofrimento do


cliente: alguns devido ao acaso, ou­tros facilitados pela conduta do pró-
prio doente, como, por exemplo, o uso que fez de bebidas alcoólicas, de
cigar­ros e medicamentos, seus hábitos alimentares, seu tipo de trabalho
e de lazer, outras doenças sofridas, tratamentos impropriamente reali-
zados anteriores à consulta presente. Mas não fica só nisso, há outros
aspectos importantes: o mundo poluído de bactérias, vírus, fungos,
monóxido de carbono, a estrutura biológica frágil do cliente, sua carga
genética peculiar. Tudo isso, ao longo dos anos, facilitou ou desencadeou
a eclosão da doença atual.

Em resumo, nas reclamações não são levados em con­ta os diversos as-


pectos que antecederam a atual consulta geradora da discórdia. Possivel-
mente todos nós mantemos ideias irracionais a respeito da nossa vida e
do mundo em que vivemos e carregamos ilusões acerca de possuir uma
saúde física e mental eterna. Em outras palavras, fantasia­mos para nós a
imortalidade. Também alimentamos sonhos com referência às uniões ou
vínculos com os outros ho­mens e imaginamos que essas ligações nos da-
rão proteção contra os problemas do dia-a-dia. Por último, acreditamos
que, ao criarmos explicações científicas, filosóficas ou reli­giosas para o
mundo caótico em que vivemos, estaremos a salvo de sofrimentos, já
que pela teoria estabelecida pode­remos encontrar as causas do nosso

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sofrimento, que, por sua vez, nos levarão a maneiras seguras de eliminá-
-las.
Mas de fato, ao enfrentar uma realidade confusa, sem leis, ou seja, viven-
do num mundo que não pactua com as nossas fantasias, o homem tenta,
a todo custo, encontrar algumas regras para sistematizar e assim admi-
nistrar da melhor maneira possível a sua vida. Entretanto, quase sem­pre,
o modelo da realidade ao qual ele se apega é inexato.

Se sua vida flui normalmente, sem tropeços, o indi­víduo não chega a


perceber que o seu “mapa” da realida­de não está representado correta-
mente, nem retrata com precisão o “território” onde sua vida se desenro-
la. Nos mo­mentos críticos, porém, como no caso de uma doença gra­ve
ou de morte, de repente a pessoa se defronta com um mundo diferente
daquele que havia criado em sua mente. Surgem, geralmente, nestes
instantes, o pânico e o deses­pero, pois os planos e técnicas existentes
para solucionar os problemas se mostraram ineficientes. Nesses momen­
tos, tentando se defender de qualquer maneira, o homem lança mão das
soluções mágicas ou das ideias ilusórias que havia elaborado. Busca a tá-
bua da salvação: o médico e a sua ciência, que se enquadram muito bem
naquele falso modelo de mundo. Não são raros os médicos que fingem
ser o Salvador para todas desgraças e sofrimentos…

Quase sempre as ciências médicas possuem teorias um pouco melhores


acerca das doenças e dos seus tra­tamentos do que o paciente. Muitos
clientes imaginam o médico como o “prestidigitador” que eles procu-
ram, um ser capaz de rapidamente descobrir as “causas” da doen­ça, dar
explicações para esta e encontrar maneiras fáceis e simples de extermi-
ná-la.

E é nesses momentos agudos que os médicos – al­guns mais bem dota-


dos, preparados e equipados, outros menos – são chamados para exa-
minar o paciente. O cliente em desespero agarra-se ao salvador, acredi-
tando convic­tamente possuir ele poderes divinos para tirá-lo da crise e
afastá-lo da morte. Todos nós sabemos, porém, que a melhor medicina

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do mundo, equipada com os aparelhos mais sofisticados, contando com
os médicos da melhor es­tirpe intelectual e científica, erra, falha e tem
dúvidas ao receber pacientes graves com certas enfermidades. Assim é
natural que muitos deles morram.

Aqui, como alhures, as moléstias costumam ser obs­curas, difíceis e


muitas vezes impossíveis de serem diag­nosticadas e tratadas, como gos-
taríamos que fossem. Pouca ou nenhuma certeza temos acerca da teoria
das do­enças, de sua evolução, de suas causas e tratamentos. Possuímos,
na maioria das vezes, hipóteses, trabalhamos com elas, constantemente
incertos e inseguros quanto aos diagnósticos e tratamentos. Aprende-
mos muito com nos­sas tentativas e acertos e também com nossos erros.
O co­nhecimento de boa percentagem das doenças ainda é uma incóg-
nita para os pesquisadores sérios, não o sendo para os mal informados,
os limitados, os que só enxergam a pe­riferia da realidade, julgando tudo
muito simples e fácil.

As doenças fazem parte de nossas vidas: vida e morte andam juntas.


Toda a decepção com a crueldade e indife­rença do mundo, percebida
pelo cliente ou pelos familiares diante da doença, volta-se frequente-
mente com violên­cia contra o médico, que encarna, por alguns momen-
tos durante a enfermidade, a figura mágica do Salvador. Nos momentos
de desespero e dor, o médico representa para o paciente o próprio Deus,
o que, como sabemos, lamen­tavelmente não é verdade.

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Confissões de uma Médica
Há dias, no meu consultório, atendi uma médica recém-formada.
Soluçando, contou-me sua “tragédia” pela qual me interessei. Com seu
consentimento, publico o relato.

“Formei-me em medicina! Alegria geral! Agora pre­ciso ganhar o pão de


cada dia com meu suor, se possível sem lágrimas. Mas onde e como?

Comecei a clinicar. Chegam os pacientes, despejados de todos os can-


tos, a maioria escorre das favelas. Na ma­drugada fria, enfileirados, eles
imploram, piedosamente, a bendita consulta. Esta, uma vez conseguida,
é realizada, muitas vezes de modo superficial e apressado. Todos en­tram
no templo encantado dominados por uma imensa fé e sonham com os
milagres da fantástica medicina moderna.

Chega o momento do exame, agora eles são enca­minhados para o altar


onde será iniciado o interrogatório. Conforme determina o ritual, ini-
cialmente é preciso que o doente se mostre humilde diante da divindade:
venere o sacerdote vaidoso e compenetrado que o espera. Após obedecer
a esse mandamento, ele será considerado mere­cedor de ajuda futura.
Cabe ao paciente executar o deter­minado. Não lhe será permitido ques-
tionar, pois perguntas aborrecem, tomam tempo, indicam desconfiança
e mago­am o sensível médico. Ali imperam leis veladas: o clínico ordena,
o cliente não pode opinar, ele deve submeter-se à vontade do protetor.
Sem entender o padrão rígido exis­tente e a linguagem usada, os clientes
procuram, muitas vezes sem serem ouvidos, explicar seus males.

Começa a consulta: encurvado, enrolado em farrapos, submisso, o pa-


ciente contempla o chão. Sua face magra e pálida mostra sinais de feri-
das não cicatrizadas. Do fundo de sua garganta apertada ecoam, penosa-
mente, cânticos melancólicos que descrevem sofrimentos. Defronto-me

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com seres humanos envelhecidos pela dor. Imagino, com pesar e difi-
culdade, que um dia eles foram crianças sau­dáveis e alegres e sonharam
ser alguém. Hoje, derrotados e excluídos, jamais alcançarão a profissão,
as relações so­ciais e o respeito valorizado pela nossa cultura. No consul­
tório médico e em outros campos sagrados, essas sombras são tratadas
como animais sem dono, ervas daninhas que só incomodam. Miseravel-
mente sozinhos, sem proteção, eles ainda teimam em viver e implorar.

Esse encontro bate e fere minha face jovem. Tento mostrar uma fortale-
za que não possuo. Assentada no meu trono, sou a soberana e represento
a farsa da assistência médica ao indigente, papel que forçaram-me a
interpre­tar com uma sabedoria e um poder fingido. Contenho-me para
não gritar por socorro, dizer-lhes que também preciso de “médicos”
para ajudar-me a suportar as incertezas, as perdas, a juventude que se
vai, a responsabilidade que caiu pesada demais sobre mim e, pior ainda,
possuir a consciência de tudo isso.

Não inventei a doença, nem a pobreza, muito menos a discriminação


social ou a morte. Portanto, não posso ser responsável por essas mazelas.
Não teci o estranho cami­nho desenhado pela natureza – ou sei lá o quê
– que cons­truiu de modo tão desigual e injusto cada um de nós, bem
como a nossa posição na sociedade.

Sei que enquanto estou provisoriamente do lado de cá, atuo como um


pararraios, sempre aberto, tentando consertar os desencontros dessas
vidas. Ouço súplicas, esbarro na penúria extrema, sinto o cheiro nause-
abundo de feridas incuráveis, sou jogada e me perco no labirin­to sem
saída do cliente. Despreparada para conviver com esse caos, obrigada
a representar este papel, tenho que extrair de minha mente inocente e
conturbada, receitas milagrosas para aliviar todos e tudo. Não possuo
essas drogas como muitos fantasiam.

Mas, na verdade, sinto-me confortável nesse encon­tro venerável. Gosto


de fingir de deusa, mesmo sendo uma deusinha mixuruca. Sei que é

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pecado pensar assim. Encanta-me fingir que sou o ente poderoso e so-
brenatural criado pela mente da sociedade. No delírio compartilhado, eu
sou o ser superior que extermina o sofrimento. Esta­mos, eu e o paciente,
aprisionados na mesma estrutura, somos enganados e enganamos, mas
necessitamos, para viver, conservar essa quimera. Isso é um direito nos-
so, tal­vez nossa única liberdade: sonhar, sonhar, sonhar…”

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A Propósito de uma Gripe
Todos nós já tivemos uma gripe. Conforme a gravi­dade dela faltamos
ao serviço, ou deixamos de fazer uma viagem que havíamos planejado.
Cada pessoa avalia sua gripe à sua maneira quanto à gravidade, esco-
lhendo os melhores meios de tratá-la. Uns buscam a orientação da mãe,
outros, do amigo, alguns vão à procura do médico.

Após ouvirmos nossos conselheiros, tomamos chás, medicamentos,


repousamos e, às vezes, até mudamos al­guns dos nossos hábitos. O que
ocorreu nesse indivíduo que aqui chamaremos de Marta? Inicialmente,
no sistema ou organismo de Marta originou-se uma ação de uma ma­
téria - ou energia por sua interação com o meio em que vive ou, em
outras palavras, adquiriu um vírus que, ao pe­netrar no seu organismo,
que se encontrava em estado de equilíbrio com seu meio, tirou-o de sua
estabilidade, ou de sua saúde, e colocou-o em um modo de viver disfun-
cional, ou seja, doente. Entretanto, Marta é um sistema individua­lizado,
formado por vários subsistemas e fazendo parte de um sistema mais
amplo formado por seu meio ambiente.

Além disso, Marta é um sistema aberto que troca, isto é, recebe e for-
nece energia com sistemas vizinhos como a sua família, seus amigos e
seu meio social. Além disso, cada subsistema do organismo de Marta, o
respiratório, cardíaco, mental, nervoso, etc., está em constante inte­ração,
através de trocas que causam alterações diversas, dentro de um estado
dinâmico de equilíbrio.

O vírus da gripe, ao penetrar no sistema corporal de Marta, desencadeia


uma série de disfunções, desequilíbrios ou “doenças”.

No caso de Marta, o vírus atingiu inicialmente o seu subsistema respi-


ratório na sua parte celular. Ela sente dor na laringe e falta de ar. Pouco

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a pouco os subsistemas vão-se afetando mutuamente. Marta começa a
sentir náu­seas, dores nas pernas, taquicardia, visão ruim, a cabeça con-
fusa, sua pele fica avermelhada e assim por diante, atingindo, em grau
maior ou menor todo o sistema, isto é, todo o organismo da coitada.
Nesse caso falamos que Marta adoeceu.

Diante de um problema clínico como esse, o médico tenta agir no


sistema paciente-meio, buscando produzir uma transição de um estado
de doença para um estado de saúde, quase sempre com uma série de
estados interme­diários que, com frequência, são para o paciente piores
do que os sintomas da própria doença, como, por exemplo, realizar uma
cirurgia para extirpar um tumor indolor. Po­rém o azar de Marta não
acaba aí. A potência do vírus da gripe, por si só, é geralmente pequena.
Mas ele provocou o funcionamento de uma série de outros sistemas que
pas­saram a causar enormes danos.

Analogicamente, assim como um sinal luminoso que possui baixa quan-


tidade de energia, ao tornar-se verde faz fluir dezenas ou centenas de
veículos no trânsito (uma alta quantidade de energia). O vírus também
pode pro­vocar distúrbios de alta proporção. Marta encontrava-se gripa-
da exatamente no dia de uma prova final. Não se saiu bem nos exames,
pois sua cabeça não funcionou adequa­damente e, por isso, ela perdeu o
ano.

A gripe modificou sua atuação no sistema escola/so­cial, causando-lhe


enormes perdas neste sistema.

Marta não vive sozinha, ela tem família, colegas, vi­zinhos e mora em
uma cidade. Marta, como sistema aber­to que é, não só tem todas as
partes do seu organismo interligadas e interrelacionadas, mas também
todas elas funcionam em harmonia com sua estrutura, de acordo com
seus objetivos. Ela interage igualmente com os sistemas vizinhos, tais
como o sistema-familiar, o sistema-colégio e outros mais à sua volta,
recebendo e enviando agentes de mudanças ou, em outras palavras, tro-

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cando matéria-energia.

Marta, além de ser um ser biológico, é também um ser psicossocial. Da


mesma maneira que sua estrutura bio­lógica conduz seu organismo a
ter certas funções e não outras, seu sistema mental, adquirido através
de educa­ção, aprendizagens diversas, cultura, valores, se organiza num
todo, que estabelece sua estrutura mental peculiar e esta, de maneira
harmoniosa, busca a sua preservação, assim como procura atingir os
objetivos ditados por ela. O sistema mental de Marta desenvolveu-se
pouco a pouco, criando assim uma ideia de si mesma. Como ser diferen­
ciado dos outros, constantemente ela luta para que seu sistema mental
não se misture exageradamente com os sistemas vizinhos. Se acontecer,
ela poderá desaparecer ou dissolver-se como sistema individualizado,
esvaindo-se nos outros.

Ao mesmo tempo que o modelo de si e do mundo vai se formando no


indivíduo, servindo-lhe de guia para suas ações, a pessoa necessita dos
outros para manter-se em equilíbrio consigo e com o meio, ao receber
conhecimento, reconhecimento, proteção, crítica, etc.

Comumente a ideia ou “mapa” que uma pessoa tem a seu respeito e do


mundo é muito diferente da idéia ou “mapa” que os outros fazem dela e
de sua realidade. Mar­ta criou um “mapa” de si como se estivesse muito
doente, ela tanto imaginou, tanto representou para si a ideia de doença
grave, que essa influenciou e transformou o sis­tema mental até mesmo
do médico que a atendeu. Ele passou a achá-la bastante doente, tanto
assim que deci­diu interná-la num hospital, dada a “gravidade do caso”.
Portanto, houve um equilíbrio no sistema Marta-médico, os dois pas-
saram a ter a mesma ideia. Marta, de acordo com sua estrutura mental
ou seus propósitos, “necessita­va” ficar doente, o médico “necessitava” de
pacientes para representar o papel de médico.

A doença de Marta, inicialmente orgânica, agora já o é também psico-


lógica e social. Marta, do consultório vai submeter-se a exames labo-

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ratoriais, RX e, finalmente, é internada. No hospital, Marta se descom-
pensou, pois foi-lhe muito difícil adaptar-se nesse sistema estranho e às
vezes sinistro, exatamente num momento difícil de sua vida. Ela, que já
estava doente, adoeceu ainda mais.

Além disso, seu ponto de apoio, que era a família, teve seu contato
diminuído e muito, para que o sistema hospitalar pudesse funcionar a
contento, em detrimento do primeiro, ou seja, da família. Diante desses
problemas a mais, Marta piorou. À medida que ia se desequilibrando,
o sistema-Marta equilibrava o sistema-hospitalar, pois este último só
existe em função do paciente.

Esta maneira de conceituar a “doença” mostra a com­plexidade que é um


ser humano doente, não somente com respeito a uma descrição dos vá-
rios sistemas orgânicos en­volvidos, mas também com respeito à maneira
e à execução do tratamento e mesmo onde irá ser feito, quais os riscos
para os diversos sistemas do indivíduo (psicológico e social).

O sistema Marta agora coloca em funcionamento vários outros sistemas


à sua volta e com eles interage. Transforma e é transformada por eles.
Uma doença maior e mais complicada começa a aparecer. Era uma sim-
ples gripe, aos poucos atinge outras áreas, passando a ser um distúrbio
complexo, abrangendo os sistemas orgânico-psi­cológico-social interrela-
cionados. Todos eles foram atin­gidos e se desequilibraram. O tratamento
não consistirá mais em curar uma gripe, mas, sim, fazer com que todos
os sistemas comprometidos voltem ao equilíbrio anterior.

O distúrbio inicial pequeno pode gerar, em outros sis­temas, distúrbios


de muito maior gravidade e intensidade. A doença inicial de Marta, gri-
pe, poderá provocar em sua mãe uma reação emocional intensa, provo-
cando-lhe insô­nia, diarreia, ansiedade. Este distúrbio, por sua vez, pode­
rá atuar na avó de Marta e esta poderá ter um infarte. A cadeia pode-se
estender para outras pessoas e, uma vez formada, tende a permanecer,
ou seja, encapsular, resistir às mudanças. Quando as transformações

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permanecem por um tempo longo, elas ficam incorporadas ao sistema,
man­tendo um equilíbrio disfuncional (doentio). Daí a dificuldade en-
contrada pelos médicos frente ao paciente crônico.

Portanto, uma “doencinha” à-toa, pode tornar-se, com a participação


de outros sistemas, uma doença inca­pacitante. São comuns afirmações
como “depois daquele tombo não fui mais o mesmo homem” ou, “eu
virei outra mulher após a ligadura das trompas”.

A ação do médico, algumas vezes de proteção para com o paciente, pode


protelar, ou mesmo impedir a cura, de acordo com esta teoria. A liga-
ção do sistema médico-paciente pode se tornar tão forte para o cliente,
que ela se torna o objetivo primordial da pessoa. O indivíduo passa a se
considerar um doente, acostuma-se com essa ideia e a partir de então
fica aprisionado no sistema de saúde, como doente. Os clínicos de maior
experiência sabem que, com alguns pacientes, para ajudá-los ou curá-
-los, têm que abandoná-los. Em outras palavras, para permitir que uma
paciente possa retornar a um nível satisfatório de vida, é necessário que
o médico corte a ligação médico-paciente, anteriormente necessária
para a recuperação da mesma, agora prejudicial, isto é, está lhe causan-
do uma outra do­ença, num outro sistema. Qualquer pessoa que estiver
muito presa a um sistema, terá dificuldades em se envol­ver ou buscar
outras opções no seu mundo.

Lamentavelmente, para alguns, “ser-doente no mun­do” passou a cons-


tituir o objetivo supremo do viver, o ato mais significativo de uma vida
insignificante. Para esses, é menos ruim ser doente do que não ser nada.

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Duas vertentes
Duas revistas americanas, a “New York”, há vários anos, dezembro de 89,
e a “Newsweek”, março de 1990, estamparam na capa fotos e desenhos
de um novo anti­depressivo, o cloridrato de fluoxetina, lançado no Brasil
também há bastante tempo, bem como nos Estados Uni­dos. Ambas as
revistas discutem, em suas reportagens, a batalha que se trava entre os
chamados psicoterapeutas e os psiquiatras referente à prescrição de dro-
gas para seus pacientes. O que se nota, através das reportagens, é uma
modificação nos hábitos e na maneira de pensar dos psico­terapeutas.
Baseados na crença de que as prescrições para os clientes teriam um
efeito simbólico negativo sobre a psicoterapia, eles não receitavam medi-
camentos para seus pacientes. Agora passaram a recomendá-los.

A luta, que é antiga, se acirrou a partir do livro publi­cado pelos profes-


sores americanos Paul Wender e Donald Klein, em 1981, com o título
“Mind, Mood and Medicine”. Nele é descrito o caso de uma cliente que,
após ser tratada durante vários anos através de diferentes formas de psi­
coterapias, e não tendo conseguido os resultados espera­dos, melhorou
consideravelmente ao usar antidepressivos. A paciente apresentava a
síndrome do pânico. Estava lan­çada para o mundo uma ideia revolu-
cionária da possibili­dade de se tratarem certos distúrbios emocionais
através de medicações. Até então a única forma de tratamento utilizada
para esses casos era a psicoterapia.

A descoberta de novas medicações e a divulgação e o uso de novas técni-


cas psicoterápicas destruíram o domínio exercido, durante décadas, pela
psicanálise.

Esta forma de tratamento, ou melhor, esta técnica psi­coterápica tornou-


-se tão divulgada entre a população que ela passou a ser sinônimo, para
muitos, de psicoterapia. Atualmente existem catalogadas mais de mil

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teorias psico­terápicas diferentes. Algumas são, há muito, empregadas no
Brasil, como a Psicoterapia Centrada no Cliente, Terapia Transacional,
Terapia Comportamental, Terapia Jungiana, Gestalt, Neurolinguística,
Terapia Racional Emotiva, Tera­pia Cognitiva Comportamental e outras.

A poeira ainda não baixou nos Estados Unidos, mas começou a levan-
tar-se aqui no Brasil. Durante muitos anos a psicoterapia de base analí-
tica dominou os departamen­tos das escolas médicas, de psicologia, de
sociologia e de antropologia e também uma grande parte das revistas
so­bre o comportamento humano. A psicanálise sutilmente penetrou e
dominou a imprensa leiga, assim como as ar­tes e a literatura, determi-
nando a formação de uma opi­nião pública altamente favorável a ela. Nos
departamentos das universidades, onde a psicanálise dominava, os que
ousaram duvidar de suas suposições, ou eram afastados de suas funções,
quando as tinham, ou nunca alcançavam cargos de direção. A psicaná-
lise tornou-se, para muitos dos seus antigos seguidores, algo semelhan-
te a uma reli­gião. As suas premissas não podiam ser contestadas, mas
tão-somente discutidas, para serem compreendidas pelos iniciados nas
“verdades” reveladas e não observadas.

Alguns curiosos discordavam publicamente da teoria psicanalítica, entre


eles Sir Peter Medawar, prêmio Nobel de Medicina, que declarou: “Con-
siderada em sua totalida­de, a psicanálise não funciona, ela é um produto
acabado, é como um dinossauro ou um Zepelin; nenhuma teoria melhor
poderá ser erigida sobre suas ruínas, as quais per­manecerão para sempre
como uma das mais tristes e es­tranhas marcas na história do pensamen-
to do século XX”.

Existe atualmente o perigo de caminharmos para o outro extremo, o ris-


co desses entusiasmados neuroquími­cos passarem a tratar todos os seus
pacientes de modo se­melhante ao do internista que trata uma úlcera, ou
de um fanático psicoterapeuta ao imaginar que a teoria por ele seguida é
a única certa e verdadeira e, desse modo, cair na mesma crença sustenta-
da pelos psicanalistas de ontem.

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Os psicólogos americanos que, aqui como lá, não po­dem receitar, lutam
para conseguir esse privilégio restrito a médicos e dentistas. Parece
que a luta entre os gru­pos vai durar muito tempo. Quem perde com
a disputa é a própria psiquiatria, pelo radicalismo, sempre perigoso,
principalmente na área científica, e também os clientes, que ao se filia-
rem a um grupo ou a outro, perdem muitas vezes a oportunidade de se
beneficiar com os tratamentos do grupo adversário. De qualquer modo,
pouco a pouco os psiquiatras aceitam o inevitável, isto é, surgimento
de di­ferentes técnicas psicoterápicas adequadas para diferentes tipos de
pacientes e de terapeutas, e o uso de medicamen­tos para curar algumas
vezes ou, pelo menos, junto com as psicoterapias, ajudar a curar diversas
doenças mentais e emocionais.

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Placebo, a Pílula Dourada
Certos médicos gostam muito de receitar drogas no­vas, a última novida-
de ou descoberta do laboratório. Eles tem plena razão, pois no meio mé-
dico circula uma afirma­ção: “deve-se tratar o maior número de pacientes
com as novas drogas, enquanto elas ainda têm o poder de curar”. Sabe-se
que, após algum tempo de uso, várias dessas drogas espetaculares foram
desmitificadas e tornaram-se somente placebos, ou seja, substâncias sem
a ação farma­cológica.

Para verificar se uma droga tem ou não propriedades farmacológicas, os


pesquisadores testam-na, comparando-a com um falso tratamento, isto
é, com um placebo. Este é preparado preenchendo todas as caracterís-
ticas externas da droga a ser testada. Também o grupo de pacientes que
recebem a droga e os que recebem apenas o placebo deve ser semelhante
tanto em idade, como quanto à ”doença”, à cultura, etc. Os pacientes, as
enfermeiras e os médicos que aplicam as duas “drogas” não sabem qual é
a inerte e qual é a droga a ser testada. Apenas o coordenador da pesquisa
conhece esses dados.

Tem sido verificado que os placebos tendem a ser mais eficazes, se cus-
tam mais caro, se muitos amigos e conhecidos já o usaram com “suces-
so”, se são amargos ou se, em algum sentido, apresentam dificuldade de
se­rem usados. As injeções inertes têm mais efeito do que os comprimi-
dos sem ação.

Pois bem, normalmente os sintomas da maioria das doenças são favora-


velmente afetados também pelos pla­cebos, isto é, pelo não-remédio.

Eles são altamente eficientes para melhorar as an­siedades, depressões,


dores, enjoos, insônias, psicoses, neuroses, alergias diversas, artrites, dis-
túrbios gastroin­testinais, doenças da menopausa, verrugas, impotência,

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acne, obesidade e muitos outros problemas médicos. Não fique muito
entusiasmado com essa “panaceia”. Ela é mui­to eficiente para curar os
sintomas e não a reversão ou suspensão de condições degenerativas.

Os remédios receitados pelos curandeiros e pelos médicos até o século


XIX eram certamente placebos, já que mesmo aqueles medicamentos,
com propriedades far­macológicas hoje bem conhecidas e comprova-
das, eram utilizados em doses inadequadas ou para vários males em
que a sua ação terapêutica era nula. Os antigos médi­cos e curandeiros
indicaram e realizaram, entre outros, os seguintes tratamentos: panos
quentes aplicados à pele, varas magnéticas, elixir de longa vida e, para
curar impo­tência, bebidas contendo o sangue dos fortes, perfurações da
pele com agulhas especiais, inalações de vapores ou de fumaças, etc. As
poções, os unguentos e as cápsulas preparadas pelos curadores podiam
conter quase tudo: fezes ou urinas humanas ou de outros animais,
metais diversos como o cobre (usado também para ser colocado em
contato com a pele), pós de besouro e de serpentes, gorduras de eunucos
e de porcos não castrados, testí­culos e diversas ervas. Todos esses trata-
mentos tiveram algum sucesso, em certos épocas, realizados por algum
terapeuta.

Os doentes mentais se submetiam a alguns trata­mentos mais bárbaros:


odores desagradáveis, sons altís­simos, exposição a situações de perigo
(cova das serpen­tes), aplicação de vesicatórios na cabeça, camisa de for-
ça, duchas frias, segregação social, coma insulínico, eletro­choque e, mais
recentemente, a lobotomia.

Os clientes e seus familiares eram explorados pelos diversos “sábios”


da época, que cobravam às vezes fortu­nas pelos tratamentos efetuados.
Esses eram feitos, mui­tas vezes, com remédios não revelados, fabrica-
dos secre­tamente pelo curador, exigindo um grande tempo de uso, bem
como muitos recursos e esforços do paciente, além de serem perigosos,
desagradáveis e até mesmo sinistros. Ora, como a maioria dos trata-
mentos que ocorreram na medicina pré-científica – ainda muito usados

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– não apre­sentava o menor efeito orgânico direto sobre a condição a ser
tratada, conclui-se que grande parte das curas foi alcançada com o uso
de placebos.

O placebo continua com sua ação poderosa na me­dicina moderna.


Podemos afirmar que toda ação terapêu­tica medicamentosa, psicoterá-
pica ou mesmo cirúrgica, envolve, em maior ou menor grau, efeitos de
placebo que dependerá do carisma do médico, da fé do cliente e como o
ritual mítico foi encenado. O médico, querendo ou não, sabendo ou não,
fará uso de efeitos placebos em seus tratamentos.

Entre as diversas pressões sofridas pelos médicos no seu dia-a-dia,


principalmente se trabalha em instituições onde o número de clientes é
enorme e o tempo curto, é a exercida pela indústria farmacêutica quanto
à promoção de seus produtos.

As estratégias são várias, indo desde a propaganda cara a cara, passando


por promoção de encontros, revistas especializadas muito bem impres-
sas, até o financiamento de congressos, ajuda material e financeira para
pesquisa dos medicamentos da firma e distribuição de amostras.

Essa indústria, de parceria com o ensino médico, criou o conceito de


que tratar de alguém é dar-lhe algum medicamento. Essa ideia contami-
na a população, que hoje pensa do mesmo modo. Criou-se com isso, ao
lado do mé­dico, do paciente e da indústria farmacêutica, uma redução
no campo de visão da doença, com percepção apenas dos seus aspectos
biológicos, e pouca ou nenhuma preocupa­ção com os ângulos psicológi-
cos, sociais e culturais.

A indústria farmacêutica, seguindo os outros merca­dos de produção e


consumo, lança periodicamente novi­dades em medicamentos, com a
ideia, para o consumidor e alguns médicos, de um suposto progresso ou
avanço de medicina. Os novos medicamentos são avidamente recei­tados
e consumidos pelas mentes confusas, assim como se usa a nova cueca,

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o novo sabão em pó ou o novo perfu­me. O bom médico, na avaliação
de alguns, deve estar em dia com as novas e maravilhosas drogas que
acabaram de sair do forno. Como toda moda, as propriedades extraor­
dinárias da nova droga quase sempre desaparecem com o tempo. O
cliente, esquecendo que foi ludibriado ao ser tra­tado possivelmente
por um placebo, curado pela fé retorna ao seu médico, caçador da mais
moderna descoberta, e consome feliz, novamente, o último lançamento,
a última panaceia, o placebo dourado, num ritual hipocondríaco.

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Festas populares; Lazeres

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O Natal de Jésus
Momentos antes de ser preso e algemado, Jésus ajoelhou, após tirar toda
a roupa do seu corpo magro, rezando piedosamente diante do imenso
presépio construído na frente da igreja. Retirou com extremo cuidado a
imagem do menino Jesus, do tamanho de um homem, colocada no leito
simples da manjedoura e transportou-a, sem estragá-la, para o lugar
onde ele sempre dormira, sob a marquise da prefeitura. Em seguida aco-
modou-se no lugar onde se encontrava a imagem do menino Jesus. Seu
ato inocente escandalizou o povo religioso, sério e ordeiro da cidade.

As autoridades discutiram as razões da detenção: “psicose, acompa-


nhada de delírios e alucinações”, segundo o psiquiatra; para o delegado,
“perturbação da ordem social” e, conforme o padre, “profanação de
rituais sacros”. Jésus sem nada entender do que foi dito a respeito de seu
ato, foi detido assim mesmo.

Após ter sido arrancado do leito do presépio onde se acomodara,Jésus


foi conduzido ao hospital psiquiátrico. Então, os bondosos e caridosos
cidadãos da cidade puderam retornar à tranquilidade habitual.

Nessa bela noite de confraternização dos povos, enquanto as famílias


ricas se reuniam, trocando presentes caros, bebendo vinho e champa-
nhe, comendo peru, lombo e frios, brindando e cantando alegremente
lindas e ternas canções em nome da igualdade, do amor ao próximo e da
caridade, Jésus morria, agredido dentro do hospital, onde fora interna-
do, por um outro interno, que lhe confundiu com um espírito mau.

A morte foi rápida. O companheiro de infortúnio, munido de uma velha


lata contendo restos endurecidos de cimento, jogada no pátio, abriu a
porta do quarto onde ele estava; bastaram duas pancadas fortes e secas
na sua cabeça frágil, para esfacelar o crânio, enquanto ele jazia no chão

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frio. Não foi preciso fazer muito esforço para por fim à triste vida de
Jésus.
Conduzido à sala silenciosa do necrotério, o corpo de Jésus atraves-
sou a noite sozinho. Na vizinhança, grupos soltavam fogos, gritavam e
cantavam comemorando o Natal festivo. O que restou dele, uma cabeça
decepada costurada num corpo, foram enviados à seção de anatomia
da Faculdade de Medicina, Os órgãos, uma vez limpos e desinfetados,
guardados no formol, até bonitos, foram aproveitados para futuras aulas
de Medicina Legal.

Nas aulas, através do corpo inerte de Jésus, professores orgulhosos


mostraram conhecimentos: compararam a lesão existente em seu crânio
com outros contendo fraturas provocadas por porretes, pedras e tiros.
Enquanto isso, os alunos debruçavam-se sobre os ossos e o examinavam
interessados. Uma parte do seu magro e pálido corpo, foi esquartejado
nas aulas de anatomia, servindo para que os calouros pudessem dissecá-
-lo e identificar músculos, artérias, veias, tendões e outros órgãos. Cons-
tataram, após exames minuciosos, que tudo estava no lugar certo.

A uma hora dessa, Jésus, provavelmente no céu, deve estar feliz e orgu-
lhoso por ter servido e interessado aos ocupadosjovens ricos e brinca-
lhões. Eles examinaram e pegaram, por diversas vezes, as várias partes
das peças anatômicas que um dia formaram o corpo vivo de Jésus. Ele,
apesar de ter tido uma vida inútil, agora, depois de morto, despertou a
curiosidade e interesse de pessoas caridosas. Ao se transformar de ho-
mem em órgãos, Jésus ensinou algo de importante ao mundo, através de
seu corpo mudo, nu e sem cabeça.

Estranhamente, nenhum aluno, por curiosidade ou qualquer outra coisa,


perguntou e, talvez, nem pensou, quem fora aquele homem. Ninguém
quis saber nada acerca de sua alma, de sua história ou seus dramas.
Também, para quê? Jésus tomou tempo demais dos outros; morreu num
dia impróprio para isso e, além disso, ele era um inútil; agora, apenas um
ex-homem.

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Por um Natal Diferente
O Natal está chegando. As vitrines estão mais coloridas, algumas ruas
mais claras. A TV mostra o mundo encantado de objetos outrora não
imaginados, hoje imprescindíveis. A algazarra e a abundância de es-
tímulos sedutores produz o “Espírito de Natal”. Imagens e símbolos,
caprichosamente inventados, estimulam a imaginação para sugerir
fe­licidade e fraternidade entre as pessoas. Mas, por trás dessas represen­
tações – não muito bem escondidas – há um incitamento para comprar
compulsiva e desnecessariamente.

Nas ruas molhadas e sujas rastejam seres cansados, comandados por


ordens invisíveis, debaixo de máscaras de robô e disfarçando as faces
amargas e derrotadas. Como um pelotão bem treinado e obe­diente,
homens conquistados carregam pacotes coloridos contendo sofrimento,
submissão e busca de significado para a vida.

Oro para que o Natal se torne diferente: menos compras, mais reflexão.
Também imagino mudá-lo para um outro dia: 14 de dezem­bro ou 9 de
novembro. Um dia comum, sem significado para maio­ria das pessoas,
sem recordações dolorosas, nem lembranças alegres, que jamais se repe-
tirão.

Preciso atravessar mais esse Natal. Não tenho saída. Lá longe, muito
longe, quando tudo em volta era majestoso para meus olhos amedron-
tados, assimilei algumas ideias e valores. Ensinaram-me a adotar os
ensinamentos e a participar dos rituais religiosos que co­memoram o
nascimento de Cristo. O menino de Itabira acreditou, sono­lento, no
propagado: igualdade entre as pessoas, justiça social e liberdade para
escolher. A criança perdida continua acorrentada nesses ensinamen­tos,
talvez antiquados. Ele ainda acredita em tudo que Cristo pregou há dois
milênios. O menino não acordou, nem sei se um dia acordará.

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A reunião familiar vai encenar a peça que vai ser representada. As
faces estampam preocupação com o bom desempenho. Cada figuran-
te, treinado com esmero, interpretará o papel a ele conferido no velho
“script”. Bem condicionados, um será o personagem prin­cipal, o outro,
ator coadjuvante. Papeis rígidos, impressos cedo, ga­rantem a boa ordem
e organização da família conforme os padrões e os dogmas existentes.
Encarcerados, ignorando a prisão, cada ator lutará, com naturalidade e
alegria, para não sair do determinado, nem desapontar os assistentes vi-
gilantes. Se ele se desvencilhar, por mo­mentos, dos laços que o prendem,
prontamente será forçado a reassu­mir o papel a ele destinado.

A ceia, preparada e comentada dias antes, chega farta. Pratos va­riados,


vistosos, coloridos como os presentes: sedutores, na realidade frios e
desbotados. Sinto saudade da couve, do bife com batatas fritas, do arroz
fumegante e viçoso.

Observo a cena. Observo o observador que analisa. Critico, de­sesperado,


meus pensamentos doentios: preferir a comida simples à sofisticada,
gostar de uma terça-feira comum ou da conversa sosse­gada. Por que
não sou igual a todos? Como deve ser bom tolerar, ou melhor, gostar, do
Natal atual. Que desgraça carrego na alma!

“Senhor todo poderoso, Jesus, filho de Deus, nesse dia em que come-
moramos Seu nascimento, ajude-me. Permita-me pensar como meus
irmãos. Amarre-me para sempre junto ao rebanho ordeiro. Só assim
poderei viver em paz com todos. Liberte-me da loucura de cri­ticar os
sadios, os tranquilos e felizes. Almejo transformar-me numa cópia, sem
retoques, dos que me rodeiam. Senhor, auxilie-me. Sonho em poder
enxergar o céu azul e não cinzento, achar o Natal feliz e não um dia de
sofrimentos. Já procurei ajuda terrena: psiquiatra, pai de santo, padre e
pastor. Nenhum me compreendeu! Todos pensam da mesma forma! O
que me fez ficar assim?”

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Imagino que outros, como eu, devam existir. Mas como e onde encon-
trá-los? Por serem malucos, diferem também de mim. Os lou­cos, ou
os “anormais”, não formam um grupo coeso, são estranhos uns com os
outros, cada um com sua mania, uma colcha de retalhos ou um bando
de desagregados.

Finalizo o desabafo, sabendo que ele foi tecido num dia inade­quado.
Essa é a minha sina: expresso o que penso na hora errada, o manifestado
é impróprio para os ouvintes e para o tema. Peço descul­pas por carregar
esse vício maligno. Assim fui construído. Mas, para escapar de ser inter-
nado num hospício, no alegre e festivo dia de Na­tal, fazendo um esforço
sobrenatural, desejo a vocês, leitores amigos, bondosos e tolerantes: Feliz
Natal e Próspero Ano Novo.

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No Embalo das Últimas Férias
Tempo de férias. Uma boa parte da população sai do seu canto e se diri-
ge para os mais diversos locais. A escolha dependerá de diver­sos fatores:
do tempo, do dinheiro disponível, do hábito e gosto de cada um e até da
moda atual. Assim, uns vão para a Europa ou Ásia, e outros para Baldim
ou Betim.

As praias são locais frequentemente procurados. Conforme a época


escolhe-se uma, em outro momento será outra, a anterior já não mais
agrada. Guarapari teve o seu período áureo e também Bú­zios, Cabo Frio,
Marataízes, Porto Seguro e outras tiveram boas co­tações no mercado de
consumo. Até Copacabana já foi considerada a praia ideal para as férias.
Alguns preferem acampar, outros visitar cidades do interior ou estações
de água, alguns viajar para o nordeste ou para o sul do País.

De qualquer forma é preciso “tirar férias”. Essa é a regra e quase todos


aceitam essa prescrição. Não conheço leis, portanto não sei quando
e por que elas passaram a ser exigidas legalmente. Não sei também a
justificativa dessa exigência. À primeira vista, a resposta é óbvia: “todos
precisam descansar após um ano de trabalho.”

Deveria essa resposta ser aceita tranquilamente? Em tempos não muitos


remotos, as férias não eram respeitadas com tanta intransigên­cia, a não
ser nas escolas. Em minhas andanças pelo interior, tenho verificado que
muitos dos que ali vivem nunca tiraram férias e nem pensam, ou sabem,
que há necessidade delas.

Por outro lado, aqui na capital, o respeito às férias é sagrado. As pessoas,


na sua maioria, invariavelmente gozam suas férias no mínimo uma vez
por ano. No meu entender, salvo engano, esse período acaba se tornando
uma época de tensão e sofrimento, não de descanso e paz como deveria

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ser. Numa linguagem mais atual, um estresse para todos. Uma de mi-
nhas clientes, dona-de-casa, disse-me que suas férias nada mais são do
que “uma mudança de residência” e, conforme suas palavras, “de uma
casa confortável para uma sem conforto”.

Uma outra cliente contou-me que é um período difícil, já que nas férias
ela fica em contato permanente com o seu marido e como os dois não
têm muitos assuntos para manter “o bate-papo” o dia in­teiro, terminam
por se sentir tensos. Tal fato não ocorre nos períodos de trabalho, pois
neste os encontros entre os cônjuges são menos fre­quentes e a conversa
do dia-a-dia flui normalmente, como os relatos acerca das notas dos fi-
lhos ou da nova empregada contratada. Alguns casais já resolveram esse
problema. O marido fica trabalhando e visita a família em férias nos fins
de semana. Assim, tudo corre bem…

Um amigo meu, Arnaldo, ganhando pouco, como a maioria da popu-


lação, sempre acreditou que ele e sua família precisam desse merecido
“descanso”, custe o que custar. Nesse fim de ano, contou-me as suas
últimas férias. Ele possui um fusca, uma mulher e três “diabinhos”. Em
novembro – as férias são tiradas em janeiro em Nova Almeida – ele
começou a se preparar e a falar acerca do grande acon­tecimento com os
amigos e os familiares, sobre o que faria na praia, o que ia levar, o que
iria comer e beber. Era seu único assunto.

Para começar, antes da viagem Arnaldo gastou o seu décimo ter­ceiro


salário com a revisão do fusca, embalagens térmicas, calções, esteiras,
maiôs, anzóis, óleos para bronzear, filtros para se proteger do sol e o
aluguel do apartamento. Tudo passou a ser feito com um enor­me entu-
siasmo. Afinal, depois de longa espera, chegou o dia da saída.

Aperta dali, empurra daqui, troca-se de lugar, até empanturrar o velho


fusca, que parte buzinando rumo ao litoral. Na viagem, a patru­lha o
cerca e interrompe a viagem por “excesso de bagagem”. Após muita con-
versa, com muito custo, após desembolsar uma propina para o guarda,

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Arnaldo pôde continuar a viagem. Um pneu furou e sua mulher e um
dos filhos enjoaram e vomitaram para todos os lados. Mas tudo isso foi
suportado com alegria, pois Arnaldo e sua família estavam de férias.

O apartamento, pouco maior do que o fusca, estava mal cheiro­so, seus


móveis quebrados e velhos. Ao chegar, ele teve de esperar por algumas
horas a saída do inquilino anterior, que ainda não havia deixado o apar-
tamento. Mas tudo bem, alegria geral, pois é tempo de férias.

A família arrumou como pôde o apartamento para torná-lo ha­bitável


por quinze dias. A alimentação foi sacrificada pelo preço alto, pois
estava tudo caro e ninguém queria gastar tempo cozinhando. Afinal de
contas, era preciso aproveitar mais as férias, pois ninguém é de ferro.

O sol quente cozinhou no primeiro dia a pele branca e gorduro­sa do


meu amigo, o que impossibilitou Arnaldo de tomar sol por três dias e de
dormir satisfatoriamente devido às dores do corpo. A mistura do sol e a
dieta de peixe – peixe na praia fica mais em conta – provocou uma erup-
ção alérgica na mulher de Arnaldo, aumentando seu nervo­sismo cons-
tante e por isso atrapalhou o merecido descanso de todos. Mas a gente
acostuma-se com tudo e ele e sua família, não fugindo à regra, pouco a
pouco e com algumas dificuldades, adaptaram-se para poder “curtir” as
esperadas férias.

Mas quando isso ocorreu, já estava na hora de voltar. Nova via­gem,


com os mesmos problemas da ida. Afinal, felizmente, ele e sua família
respiram aliviados pois chegaram vivos a Belo Horizonte. Feliz­mente,
sim, pois na estrada tiveram que contornar três corpos presos no meio
das ferragens, barracas e panelas espalhadas e, como se sabe, isso pode
acontecer a qualquer um.

Mas Arnaldo continua otimista, está satisfeito e já fala, não tão entusias-
mado como em novembro, nas próximas férias que passará em Nova
Almeida. Para ele, o apogeu da satisfação ocorre quando, ao voltar ao

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banco onde trabalha, encontra sua colega Lindalva, que lhe pergunta
com um sorriso de inveja:

- Arnaldo, que cor linda! Você está queimadinho, onde você andou?

E ele, enchendo o peito, cheio de orgulho e felicidade, responde:

- Estava curtindo uma praia.

Retomo meu pensamento acerca das pessoas que não tiram fé­rias, nem
sentem necessidade de tirá-las. Perguntei a uma pessoa que nunca tirou
férias, o que ela pensava delas e há quanto tempo não as tirava. A res-
posta foi rápida:

- Nunca! E não tenho vontade de ir nem ao Rio, nem a São Paulo e nem
mesmo aos Estados Unidos.

Assustei-me e tentei decifrar os motivos dessa grande diferença de


atitudes. De um lado, aqueles que, como Arnaldo, adoram e consi­deram
indispensáveis as férias, do outro, os que nunca pensam nelas, ainda
quando têm poder para tirá-las quando bem entenderem. Nossa mente
não suporta divergências, daí minha tentativa de procurar con­ciliar essas
duas opiniões contrárias.

Pensei, quem sabe, Zé Estácio, o morador do interior, tenha em seu tra-


balho uma grande fonte de prazer, de criatividade e de reali­zação, assim
como um contato global e frequente com o universo ao seu redor. Tudo
isso lhe permite prescindir das férias, já que sua atividade é agradável e
revigorante. Por outro lado, a atividade de Arnaldo é monótona – caixa
de banco – estafante, exigindo-lhe uma atenção constante. Além disso,
os horários são rígidos e o contato com o mundo ao seu redor é limita-
díssimo, tornando seu trabalho alienante e estático.

Parece-me que Arnaldo precisa sempre tirar férias, de qualquer tipo, em

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qualquer lugar, talvez até num hospital psiquiátrico, o que não é inco-
mum entre os bancários devido ao estresse continuado. Só através das
férias ele conseguirá retornar e interagir com um uni­verso mais natural.
Zé Estácio, porém, vive no campo, em contato constante com a natureza
plena e real. Lá não há pressa, nem nossos horários rígidos. Ele pode
perceber e sentir os acontecimentos que o rodeiam, desfrutar com calma
cada cena do seu amplo mundo, indo desde o nascer até o pôr do sol.
Poderá assistir ao vivo – participando dela – a uma tempestade brutal
ou uma chuva mansa, um animal que nasce e um passarinho iniciando
o seu primeiro voo. Zé Estácio não almeja férias, pois ele, talvez, já viva
nelas permanentemente. Você, leitor, crie outras hipóteses, pois a minha
pode estar errada, mas é a que tenho no momento.

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A Boa Terapia do Carnaval
O carnaval chegou mais uma vez. Parece-me estranho que al­guém possa
esperá-lo e desejá-lo com ansiedade. De qualquer modo o carnaval ain-
da tem o seu público, cultores e admiradores.

Há diversos carnavais para os mais diferentes públicos, pois existem até


para aqueles que desejam ignorá-lo e para os que o de­testam. Para este
grupo, o carnaval será época de viajar para algum lugar onde esse não
exista, ou a oportunidade de colocar em dia o que estava atrasado. Para
outros, nesse período, nada se faz e, se sobrar um tempinho, bebe-se.

Um dos grupos carnavalescos que tem crescido é dos “voyeurs”, isto é,


daqueles que se deliciam apenas com as imagens do carnaval, ou me-
lhor, dos carnavalescos, nas ruas ou nas televisões. Entre esses, há os que
assistem e gravam os desfiles das escolas de sambas, os que veem, excita-
dos, as imagens dos bailes de carnaval, apesar de que, muitas vezes, cri-
ticam a pouca vergonha dos exibicionistas. Para o grupo dos “voyeurs”, a
dança propriamente dita tem pouca importân­cia, assim como as fanta-
sias, letras e músicas. Tudo isso constitui o cenário onde a cena principal
ocorrerá. As câmaras de TVs mostram supostas cenas de sexo implícito
ou, às vezes, explícito. Os protago­nistas dessas pseudo-orgias quase sem-
pre são mulheres, fazendo uso de alguns ingredientes básicos e neces-
sários: a maioria de meia-idade, de pé num palanque, mesa ou cadeira,
requebram, imitando certas expressões faciais estudadas e típicas de
cenas de sexo, tendo, fre­quentemente, os seios à mostra.

Todas elas, com pouquíssimas exceções, fazem os mesmos ges­tos, dão os


mesmos sorrisos e “dançam” do mesmo modo e até as “fantasias” são al-
tamente semelhantes: coxas bronzeadas, revestidas com meias rendadas
que seguram as gorduras já em excesso, e não mais firmes, minúsculas
calcinhas coloridas, plumas e lantejoulas.

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Começa então a farsa: o repórter, com a câmara de TV, aproxi­ma-se da
dançarina, que percebe sua presença.

A “atriz”, nesse instante, inicia ou exagera a representação, fin­gindo não


estar percebendo a filmagem. Do outro lado, em casa, o atento e incau-
to telespectador assiste ao espetáculo, esperando ver e deliciar-se com
cenas eróticas que supostamente vão se desenvolver. Entretanto, inter-
namente, todos juntos, repórter, foliona e telespecta­dor, sabem que nada
vai, ou pode acontecer, ali do anunciado pelos gestos ou insinuações.
A dançarina, a figura central da cena, repete com alguma arte a mesma
dança, construída de gestos inúteis, re­petitivos, mas necessários à repre-
sentação do que se propõe: fingir o sexo. O telespectador, cansado da re-
alidade, não estando fazendo sexo, talvez nem desejando fazê-lo, assiste,
sonolento, às três horas da manhã, na sua cadeira preferida, à simbologia
sexual, isto é, ao sexo falso. Toda a arrumação é construída para deixar
claro que no salão – também na avenida – o reproduzido será somente a
fantasia e não a realidade. O irreal ou a fantasia é mostrada como falsa,
mas, para que os telespectadores e o público da rua possam desfrutar do
espetáculo, é necessário que a cena pareça verdadeira.

Sabemos que as cenas “eróticas dos bailes” e os desfiles das es­colas de


samba necessitam dos “voyeurs” para aplaudir e vibrar com o ilusionis-
mo, seja do sexo nunca realizado, seja da “riqueza dos reis”, dos “mara-
jás” e dos “mestres-salas”, das escolas que, de fato, escon­dem sua miséria
social e econômica.

Eventualmente, alguma atriz menos profissionalizada e menos treinada,


esquece que está representando cenas de sexo e decide não mais mitifi-
cá-lo, mas sim torná-lo real, isto é, reviver o significante em seu sentido
pleno ao abandonar a forma. Quando isso ocorre, a ingê­nua dançarina
é rapidamente impedida de realizar o seu objetivo: sair do mito e entrar
na realidade proibida. Esses casos são raros, pois qua­se todos os parti-
cipantes desse jogo mítico sabem como se comportar dentro das regras

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estabelecidas e aceitas sem discussões.

As fantasias tradicionais do carnaval de rua (as do presidente ou do pre-


feito, as gatinhas, os pierrots, homens vestidos de mulher), as das escolas
de samba (divindades, reis, baianas, índios, escravos, artis­tas diversos),
todas escondem uma história que se transforma em uma outra, sempre
presa à anterior.

De outra forma, a história mostrada elimina a lembrança pri­mitiva da


história, mas não uma existência, mantendo um sentido já estabelecido.
Por exemplo, a partir da vida de Lamartine Babo, já fa­lecido, é criada
uma outra história atual a seu respeito. Alguns fatos são preservados
mas, propositadamente, inventam-se outros, dando nascimento então a
um Lamartine mítico, não mais real e antigo. Um novo Lamartine Babo,
adaptado às exigências atuais do tempo, espa­ço, outros mitos, etc.

Algumas vezes, o ídolo mitificado, ainda se encontra vivo du­rante o


desfile. É o caso de Sílvio Santos e outros, mas, mesmo nesses casos, o
que foi representado na narrativa do enredo foi um novo personagem,
um Sílvio Santos idealizado por certos autores, diferente do real, mas
construído a partir do real, ou seja, encaixado dentro do contexto, das
crenças e das ideologias da escola que o representa.

O público emociona-se principalmente com a história mitológi­ca, re-


criada e apresentada a partir da original. A história real, geral­mente já
conhecida, sendo estática e comum, semelhante à história de todos nós,
é por isso mesmo sem graça, enfadonha. Por outro lado, a nova histó-
ria, a sobre-humana, é carregada de afetividade, cheia de simbolismos
verbais – samba-enredo, fantasias, alegorias – o que, no seu conjunto,
transmite uma inesperada totalidade razoavelmente in­terpretada pelo
telespectador, previamente treinado e acostumado a assimilar informa-
ções semimíticas, isto é, não racionais.

A comunicação e a apreensão de seu significado são alcançadas pelo pú-

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blico sem a presença do raciocínio, sem que a mensagem seja decifrada.
Mas ela é sentida e isso é que importa. Ele foi ali para isso. A maior ou
menor aproximação com a realidade descrita não tem importância. O
importante é o despertar de uma emoção positiva no público. Não estou
falando aqui acerca da comissão julgadora, que atua, geralmente, usando
critérios mais lógicos. A “galera” faz seu jul­gamento intuitiva e imediata-
mente, apropriando-se apenas do concre­to, daquilo que lhe entra pelos
olhos e que, devido à sua passividade, acaba invadindo parte de seu
cérebro, não a cognição.

O carnaval é a hora de “brincar” e toda uma técnica é colocada à dispo-


sição das pessoas, para que elas troquem a realidade natural por uma
“realidade” artificial, mais excitante e mais alegre que aquela que nos
é dada pela natureza. As escolas de samba fornecem um espetácu­lo de
beleza, poder e riqueza que, provavelmente por ser falso, é mais atraente
do que os acontecimentos possíveis de serem alcançados no nosso dia-a-
-dia. Desse modo, as dançarinas quarentonas dos bailes de carnaval nos
dão a ilusão do sexo, que pode ser mais agradável e ex­citante do que o
próprio.

Exclamamos que buscamos a verdade. Não sei! Sei que no car­naval cul-
tivamos e realizamos a falsidade. A natureza humana real é abandonada,
deixamos de lado o modo real de se fazer sexo, deixa­mos de produzir,
para nos consumirmos, passivamente, numa ficção. Os mitos e rituais
do carnaval, como os ingredientes citados, são inu­meráveis, oferecidos
à nossa vontade e a granel, nas ruas e nos diver­sos meios de divulgação:
músicas barulhentas que nos impedem de pensar, danças comunitá-
rias estafantes, bebidas, lançaperfume, bailes gay, onde alguns homens
transformam-se, na superfície, em belas mu­lheres, fantasias de todos os
tipos. Todos e tudo têm a mesma função: viver o falso, vestir a fantasia
para encobrir a dura nudez real e, prin­cipalmente, alimentar os consu-
mistas necessitados.

É madrugada. Em casa ou na rua, o “voyeur”, inocentemente, sem

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decifrar o simbolismo do rito mítico, consome o conjunto de imagens
artísticas dos símbolos apresentados, não percebendo a in­tenção do rito.
Muitas vezes espera horas e horas o fim do ritual para retornar à cena
erótica propriamente dita, que havia sido incorporada e desaparecido na
dança do carnaval. Mas esta não chega nunca…

Como é bom e terapêutico o carnaval.

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Personalidade e Neurose

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Disque 145 para amar
Eu ainda não procurei a ajuda do serviço da empresa telefônica no “dis-
que amizade” para aliviar-me da solidão. Mas resolvi inteirar-me desse
recurso fácil, barato e cômodo, pois não sei, como ninguém sabe, o dia
de amanhã. Assim pensando, decidi investigar algo acerca dessa agência
de encontros; o que descobri transfiro ao leitor.

Durante algum tempo, em horas diferentes, entrei em contato com o


“disque amizade”, onde fiz diversos contatos, anotei conversas, gravei
outras tantas e entrevistei pessoalmente ou por telefone alguns de seus
usuários.

Tendo pouca experiência nessa área, é possível que certas observações


descritas estejam incorretas, sendo apenas um produto de minha imagi-
nação. Anotei quatro grupos de usuários, em função do horário usado,
bem como do conteúdo do diálogo.

O primeiro grupo, que dialoga animadamente nas tardes dos fins de


semana, é formado por adolescentes de ambos os sexos. Nas suas con-
versas alegres e barulhentas, onde todos falam ao mesmo tempo, eles
discutem a festa programada para o fim de semana, o novo namorado
arranjado, onde se toma o melhor sorvete e os problemas familiares.
Parece-me que o objetivo principal desses telefonemas é comunicar para
comunicar.

O segundo grupo, o que telefona à noite nos dias de semana, é constituí-


do de estudantes, bancários, comerciários, domésticas e até profissionais
liberais. Estes jovens, que têm como objetivo principal arrumar uma
companhia para namorar ou transar, exibem uma conversa mais caute-
losa e nervosa, em virtude da dificuldade e incerteza de suas cantadas.
Após o “alô alô” usual e das apresentações de sempre, eles se queixam da

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solidão, exaltam a importância da companhia e relatam, timidamente, as
suas qualidades físicas, intelectuais, econômicas e sociais.

— “Qual a sua idade, você é bonita?”

— “É… tenho vinte anos…sou vistosa, arrumada, fico até bonita.”

As perguntas são padronizadas: nome, idade, atividade, residência,


barzinho frequentado e se tem namorado. As respostas fornecem nome,
idade, locais de trabalho e residência falsos. Em resumo, o anônimo, do
outro lado da linha, permanece encoberto, ou seja, o telefonema não
consegue, num primeiro momento, revelar a intimidade do indivíduo.
Após os diálogos iniciais, forma-se um casal no grupo e, geralmente, o
homem pede a mulher o número do telefone, para que os dois possam
ter uma conversa reservada. Dependendo de diversos fatores, mas, prin-
cipalmente, de suposições, julgamentos favoráveis para o interlocutor, o
número do telefone é dado. Essas conversas, aparentemente mal elabo-
radas para um neófito no assunto, geram frequentes encontros, pois o
grupo sabe, muito bem, decifrar as mensagens trocadas, com eficiência.

Os encontros realizados são, na maioria das vezes, de curta, ou melhor,


de curtíssima duração. A realidade de cada um dos amantes é quase
sempre, diferente para pior do que a idealidade. Parece que o encontro
físico produz uma decepção nos envolvidos no jogo. A voz amiga, sexy,
suave e protetoraexistente do outro lado da linha era mais interessante,
agradável e excitante do que a agregada a um corpo. A percepção do
outro, nas maior parte das vezes, destrói a fantasia do príncipe ou da
princesa encantada existente na mente dos solitários.

As ilusões acerca de um parceiro ideal não terminam com algumas


frustrações amorosas, pois novos encontros são marcados, geralmente
com novas decepções. Uma de minhas amigas revelou-me que já havia
encontrado trinta e sete namorados através do “disque amizade”. Ela não
perdia a fé, continuava a ligar todas as noites, imaginando que, um dia,

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encontraria o seu amado, custasse o que custasse.

O terceiro grupo é formado por aqueles que telefonam aos sábados e


domingos à noite. Aqui se encontram dois subgrupos bem distintos. De
um lado estão homens diversos, vigias, telefonistas, enfermos presos ao
leito, plantonistas etc., exibindo uma linguagem desajeitada e “cantadas”
mais diretas e, talvez, mais simplórias. Esses, com tempo de sobra e sem
poder abandonar seu posto, divertem-se telefonando. Do outro lado da
linha, encontram-se mulheres solitárias, casadas ou não, vivendo situ-
ações semelhantes, isto é, presas em casa, sem o que fazer, sem amigos
e sem idéias; necessitando, a todo custo, “encher” as longas noites dos
fins de semana. Parece-me que esses diálogos tão diferentes promovem
poucos ou, possivelmente, nenhum encontro.

O último grupo é o formando por aqueles que telefonam a partir das


vinte e três horas. Este é mais voltado para o sexo puro e cru. As con-
versas são geralmente diretas: “Alô; você já se deitou? De que cor é a sua
calcinha?” Provavelmente, esse grupo obtém o prazer sexual, em parte,
através de telefonemas. O anonimato é a regra, sendo pouco, ou nada,
revelado, a não ser o essencial para que o jogo sexual possa ser exercido
com eficiência. Para isso, os diversos afrodisíacos verbais são utilizados
por esse grupo desinibido, que se excita pelas palavras, ou seja, através
do sexo-verbal. Entrevistei dois dos amantes da “pornolalia”; deram-
-me a impressão de tímidos e desconfiados. Relataram-me que poucos
encontros são marcados a partir dessas conversas, todos para fins car-
nais: após esses o sentimento de vazio e de solidão anterior permanece
inalterado, às vezes, aumentado. De qualquer modo a Telemig fatura, ao
mesmo tempo, distrai boa parte da população.

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Diante de uma Provocação
Todos nós enfrentamos, com alguma frequência, provocações produ-
zidas por nossos inimigos, amigos e até por pessoas indiferen­tes a nós.
As provocações são expressas das mais variadas formas: críticas diretas
e indiretas, insultos com ou sem palavrões, ameaças fí­sicas ou verbais,
ironias, zombarias diversas, demonstrações de força ou de poder e ou-
tras variedades de agressões.

O insultante tem como objetivo essencial provocar uma respos­ta ne-


gativa na pessoa-alvo, caracterizada por medo, raiva, desaponta­mento,
sentimento de inferioridade ou de revide. Em outras palavras, o agressor
espera uma resposta padronizada, ditada pelo modelo so­cial, semelhante
à manifestada por ele, o provocador.

Fico perplexo, em meu consultório, ao ouvir queixas dos meus clientes


quanto às mais diferentes formas de se revidar uma agressão. Quase
todos os agredidos - pasmem, caros leitores – dão exatamen­te as respos-
tas desejadas pelo autor da ação. Respondem ao insulto com uma carga
emocional negativa, com grande sofrimento físico e mesmo com algu-
ma confusão mental. Na realidade, o agredido faz exatamente o “jogo”
desejado pelo agressor.

Não sei explicar precisamente por que isso ocorre. Acredito que essa
rigidez de resposta, essa falta de jogo de cintura tem origem cul­tural:
foi aprendida como um valor a ser seguido. Costumo sugerir aos meus
clientes revidarem à agressão com respostas diferentes das usuais e pre-
sumidas, recorrendo a “lances” inesperados, como sor­rir para o agressor,
olhá-lo sem nada dizer. Percebo, então, da parte deles, uma reação de
quase indignação, pois, ao agir deste modo, de acordo com seus valores,
estariam fazendo um papel de idiotas. A regra seguida é: “se sou agredi-
do, devo ou preciso reagir da mesma maneira”. Quase nunca passa pelas

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mente das pessoas que é exata­mente isso que o provocador deseja de
nós: sentirmos raiva, como ele provavelmente está sentindo, ficarmos
frustrados, enfim, sofrermos como nosso incitador.

O indivíduo pensa frequentemente que perderá seu amor pró­prio caso


não reaja ao insulto, atacando o provocador através das mes­mas técnicas
utilizadas por ele. Ora, na verdade, se quisermos agra­dar ao nosso agres-
sor, nada mais correto do que agir dessa maneira, pois assim o estamos
recompensando. Porém, se o nosso desejo for o oposto, isto é, não entrar
no seu “jogo”, o mais indicado será fazer exatamente o contrário do
desejado e habitual.

Imaginemos uma cena comum de rua, onde o nosso carro é “fechado”


e recebemos de lambuja alguns palavrões da nossa sexu­alidade ou de
nossa progenitora. O que deseja o prezado motorista desafiador? Nada
mais, nada menos, do que uma resposta à altura, expressada com os
mesmos gestos, os mesmos tons de voz e até com os mesmos nomes
feios. Imaginemos então um agredido não “ligado” na arte de brigar no
trânsito, muito mais ativo do que reativo e mais dirigido por si mesmo
do que pelos estranhos, ou seja, com respos­tas próprias e não controla-
das pelas pessoas que encontra. Ao dar uma resposta totalmente diversa
da aguardada, nosso amigo colocará o brigão totalmente confuso. A pes-
soa pode, em lugar de revidar à agressão, apenas sorrir (ou não mudar a
fisionomia), observar as no­táveis contrações faciais do agressor, seguir
o seu caminho sem nada dizer, ou até mesmo pedir-lhe desculpas, num
tom de voz doce, por ter impedido o brigador de obter a primazia dese-
jada. Existem ou­tras respostas semelhantes. Tais respostas, diferentes das
comumente aguardadas, quebrarão certamente a segurança do agressor,
já que ele não esperava por aquela conduta e ao se deparar com o novo
“lance”, não saberá como dar continuidade ao jogo.

Em resumo, aprenda a se livrar de antiquadas maneiras de agir usadas


apenas por serem familiares e socialmente valorizadas, mas que são, na
verdade, improdutivas, dolorosas e perigosas, levando a pessoa a ser,

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no momento da querela, dirigida pelo agressor, pelo in­divíduo do qual
gostaria de estar bem distante, talvez até vê-lo morto.

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Os Agitados e os Sossegados
Maria ama seu sossego, seu lar e, às vezes, até sua solidão. João ama a
vida agitada, a rua, os botecos, as festas, as novas conquistas e, principal-
mente, as novidades. Maria não se arrisca, evita novas ami­zades, cumpre
o que promete, é medrosa, séria, minuciosa e pontu­al. João é boêmio,
irresponsável, teatral, alegre, impulsivo, agitado, otimista, simpático e
adora o perigo. Maria odeia brigas e discussões. João adora polêmicas
e confusões. Maria não bebe e detesta cigarros. João fuma, gosta de um
trago e, às vezes, experimenta um “baseado” ou cheira o “pó”.

Maria, que era virgem, conheceu João e nunca mais amou nin­guém.
João, que começou sua vida sexual aos treze anos, amou e ama várias
Marias ao mesmo tempo. Maria, cheia de incertezas, pensou muito antes
de se casar. João, seguro e despreocupado, casou com Maria sem pes-
tanejar. Todos imaginaram que o casamento não dura­ria. Mas, após 23
anos de casados, eles continuam juntos e se comple­tam na sua relação
assimétrica, pois Maria é dependente, tolerante e presa às suas convic-
ções. Ela conserva, custe o que custar, o casamen­to que João nunca levou
a sério.

João é sociável, irascível, ativo, inconstante, dominante, extra­vagante,


desordenado, assertivo, desinibido, gastador e aventureiro. Maria é fria,
reflexiva, rígida, inibida, ordenada, cautelosa, tensa, leal, não-empática,
envergonhada, preocupada crônica, detesta novidades e sofre sem recla-
mar.

Afirmamos que João e Maria são diferentes com respeito ao “óti­mo nível
de excitação”. Todos os animais, incluindo o homem, têm um certo nível
de estimulação interna que os faz sentir bem, ou seja, “estar numa boa”.
Quando o indivíduo afasta-se desse nível ótimo, por estar sendo pouco
ou estar demasiadamente estimulado, ele sente-se mal e instintivamente

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busca, através de ações, aumentar ou diminuir sua estimulação, visando
a restaurar o seu bem-estar anterior.
Entre os modelos explicativos para esses comportamentos en­contram-
se os do psiquiatra Eysenk (extroversão, introversão), o de Zuckerman
(busca de sensações) e o de Cloninger (procura de novi­dade e fuga do
dano).

Alguns se autoestimulam tocando campainhas, chutando latas, gritan-


do e brigando, fazendo os pneus “cantarem”, sem medo ou an­siedade,
ou seja, prazerosamente. Tornam-se ansiosos nas situações rotineiras
da vida, nas sem risco. Esses indivíduos praticam a “roleta russa”, voam
em asadelta, mostram os bumbuns publicamente, as­saltam, queimam
mendigos, matam garçons e índios. Através dessas ações recebem seu
“suprimento de energia”, aumentam seu baixo nível de excitação interna.
Ligam-se aos partidos políticos radicais da direita ou da esquerda e, nas
religiões, são fanáticos. Agridem e ma­tam em defesa de seu deus.

O outro grupo, o da Maria, foge das novidades, das grandes emo­ções,


dos sofrimentos e problemas. Para se sentirem bem, precisam trabalhar
num ambiente calmo e sem barulho. Seu cérebro está con­tinuamente
estimulado, excitado. Na escola são sérios e honestos, até demais, evi-
tam as bagunças e a “cola”, não perdem o ano e têm poucos amigos. São
cautelosos na política, “ficam em cima do muro” e seguem um modelo
mais tradicional de conduta religiosa. Mas não se assuste, caro leitor, nós
somos semelhantes à maioria das pessoas, uma mistura dos dois estilos
descritos, podendo ter mais caracterís­ticas de um ou de outro modelo.
Faço votos para que não seja um extremista.

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Solitários mas Não Isolados
A literatura popular tem defendido a ideia de que morar com outras pes-
soas é benéfico para a saúde. Muitos psicólogos endossa­ram essa afirma-
ção, acrescentando que os indivíduos isolados teriam mais transtornos
da personalidade e, muitas vezes, precisariam de tratamentos. É comum
entre as pessoas interpretarem o isolamento social, ou falta de ligações
com outros, como sendo um “problema”, ou mesmo loucura do indiví-
duo. Certas pesquisas têm afirmado que o isolamento conduz à solidão,
e que os isolados apresentam uma auto­estima mais baixa, avaliam a vida
negativamente, morrem mais cedo de doenças como infarto, ateroscle-
rose, etc. e também têm taxas mais elevadas de alcoolismo e suicídios.
Portanto, a crença existente e de­fendida por muitos é que morar com
alguém faz bem à saúde, servin­do de profilático ou antídoto contra os
sofrimentos.

Felizmente, para o bem de todos, sempre há os que pensam diferente.


Assim, outras pesquisas negam as crenças acima. Muitos podem, inten-
cionalmente, cultivar a privacidade, desejar ou abraçar a liberdade que
só o isolado pode ter. Essas pessoas podem estar sós, mas não solitárias.
O contrário pode acontecer, muitos casados estão mais solitários do que
muitos solteiros e separados. Os casamentos, muitas vezes, dificultam as
relações fora das familiares. Para esse mo­delo, viver lado a lado com al-
guém não significa maior proteção à saúde e o contato mais restrito com
outros pode significar escolha, não doença ou defeito da personalidade.

Todos nós, constantemente, efetuamos comparações entre o que espera-


mos, ou desejamos, e o que está acontecendo de fato. Ao com­pararmos,
automática e inconscientemente, examinamos se o número e a qualidade
das relações que possuímos nos satisfazem ou não.

De outro modo, se elas estão ou não conforme nossos projetos, se há

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acordo entre o desejado e o realizado, isto é, entre o plano e o ocorrido,
tornamo-nos tranquilos e satisfeitos, caso contrário há dese­quilíbrio e
insatisfação. Assim, a desarmonia surge quando os contatos existentes
ou são poucos ou exagerados, conforme o idealizado pelo indivíduo,
ou ainda, quando eles são de “má qualidade”. Havendo di­vergência
entre o esperado e o acontecido, manifesta-se o sofrimento, o malestar
emocional e intelectual. Uma vez alertados por essas bús­solas internas,
buscamos soluções para reverter a descompensação existente e, caso
tenhamos sucesso, voltamos ao ponto de equilíbrio imaginado e experi-
mentado pelo organismo como agradável.

Em resumo: podemos tomar medidas, tanto para aumentar, como para


diminuir nossos contatos e também para melhorar sua qualidade. Na es-
fera biológica, um fenômeno chamado de homeosta­se corporal, funcio-
nando automaticamente, promove adaptações fre­quentes dos desequilí-
brios internos do organismo. Procuramos beber água quando perdemos
líquidos devido à transpiração excessiva ou vômitos, por exemplo. Na
área das relações humanas, os transtornos, como são mais complexos
que a sede, necessitam de estratégias mais sofisticadas. Primeiro, pre-
cisamos focalizar com clareza nossos pro­jetos. Isso é difícil e por vezes
não somos capazes de precisá-los. Se­gundo, avaliamos o meio ambiente
para detectar nele a possibilidade, ou não, de fornecer-nos o planejado,
como, por exemplo, o desejo de conviver com uma pessoa, mas esta
pode nada querer conosco. Ter­ceiro, orientados pelo projeto, seleciona-
mos, dentre várias possibili­dades e estratégias, uma capaz de levar-nos
onde desejamos chegar. Quarto, ao atuarmos no meio ambiente escolhi-
do e ao examinarmos com o nosso mapa avaliador interno, os resultados
obtidos nos serão revelados conforme a qualidade das emoções sentidas
– agradáveis e desagradáveis – e da adequação ao plano. Se tudo correr
bem, a pessoa mantém as relações como estão fluindo.

Portanto, o que determina o bem-estar e a satisfação da pessoa, ou seu


sofrimento e insatisfação, é o acordo ou o desacordo entre o contato
desejado e o existente. Concluindo: muitos se sentem isola­dos, mesmo

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tendo muitas ligações.

Outros se julgam ligados, com poucos contatos. O critério é sub­jetivo e


não depende apenas do número real de ligações.

Alguns autores classificaram em quatro grupos as pessoas quan­to à satis-


fação, ou não, com respeito aos contatos existentes:

1 – Ligado Satisfeito”; nesse caso o número de contatos é o de­sejado;

2 – “Ligado Insatisfeito”, o número existente de contatos é obje­


tivamente alto, mas não corresponde ao padrão esperado e planejado
pelo indivíduo;

3 – “Solitário Satisfeito”, o número de contatos é reduzido ob­


jetivamente, mas corresponde aos ideais da pessoa, ou seja, está de
acordo com seu desejo;

4 – “Solitário Insatisfeito”, o número de contatos é pequeno e as pesso-


as desejam mais.

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O Chantagista Emocional
Todos nós já convivemos com pessoas que chegamos a amar e, possivel-
mente, hoje odiamos. Relacionamo-nos com um tipo de indi­víduo que
num primeiro encontro mostrou-se agradável, simpático, e deu-nos a
impressão de estar interessado por nossos problemas e de ser honesto.
Com o passar do tempo, o percebemos como o oposto do que sua “más-
cara de saúde” aparentava. Os psiquiatras classificam esses indivíduos
como possuidores de um “transtorno da personalida­de antissocial”.

São figuras humanas interessantes, constituindo 70% dos habitan­tes


das penitenciárias, portanto, muitos deles estão soltos. É preciso muito
cuidado com eles, pois podem infernizar nossa vida. Aparecem mais
frequentemente entre os homens, embora muitas mulheres sejam an-
tissociais. Alguns autores afirmam que 4% da população apresenta essa
conduta, para outros, a proporção é maior. O direito denomina es­sas
pessoas de “criminosos”, “estelionatários” e outros termos. O povo avalia
negativamente esses indivíduos, chamando-os de “cara-de-pau”, “margi-
nais”, “sem-caráter”, “sem-vergonha”, “safados”, “desonestos”.

Falantes e animados, dão a impressão de pessoas felizes e bem-ajustadas.


São artistas, exibindo uma falsa autenticidade, segurança e ótima saúde
mental que, de fato, não possuem. Atenciosos e sem inibições, cativam
rapidamente a todos, principalmente às mulheres, que se apaixonam
com frequência por eles e muitas vezes passam a dedicar-lhes suas vidas.

É atraído por ações perigosas e detesta ambientes tranquilos. Ele agride


as pessoas quando frustrado, age apressadamente diante de situações
problemáticas, pois não tolera refletir ou adiar ações. O antissocial é
indisciplinado e geralmente incapaz de seguir objetivos a longo prazo,
bons ou maus, isso não importa.

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Nas suas conquistas, pode ocorrer que já num primeiro en­contro o an-
tissocial declare todo seu amor e paixão à ingênua mo­cinha.

Propõe-lhe um casamento ou uma vida a dois maravilhosa, pois está


“caído” por ela. Em seguida, pede-lhe um empréstimo, pois terá de viajar
na manhã seguinte para realizar um grande negócio, mas, como foi
assaltado há poucos instantes, ficou sem dinheiro e tam­bém sem seus
preciosos talões de cheques.

Às vezes o “golpe” é mais lento. Há um início de namoro, com grande


intimidade com sua parceira e familiares dela. Fica amigo de todos,
conversa muito, conta casos interessantes e alegres, mostra-se prestativo,
frequenta a casa da namorada, passa a almoçar, jantar e até dormir lá.
Para justificar o seu modo de vida, histórias fantás­ticas são relatadas à
família. Essas, à medida que se descobre sua falsidade, são trocadas por
outras mais fantásticas ainda.

Ele não está trabalhando porque tirou férias de uma grande empresa,
onde é diretor-presidente. Terminadas as suas “férias”, ele está planejan-
do um vultoso negócio para a companhia e por isso foi dispensado de ir
trabalhar. Que pena! De repente, fizeram-lhe uma injustiça: ele foi demi-
tido. Mas não foi nada, pois ganhará uma gran­de indenização e antes de
largar o trabalho, já terá sido contratado para novo emprego, por sinal
muito melhor do que o anterior. Sem endereço nem telefone, sua família
é uma incógnita, até seu nome costuma ser falso.

Enganando a namorada, ele pode chegar ao casamento. Após este se


consumar, surgem as brigas, as agressões físicas, as exigên­cias de dinhei-
ro e, com frequência, a infidelidade conjugal aberta: leva mulheres para
dentro de casa, “transa” com a vizinha, com a cunhada ou com a melhor
amiga do casal.

Não mostra nenhum senso de responsabilidade conjugal. O ca­samento


quase sempre dura pouco, acabando com o abandono da mulher e dos

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filhos. Nosso “herói” desaparece, arruma uma nova par­ceira para explo-
rar. De quando em quando, retorna à antiga mulher, fazendo proposta
de reconciliação, num tom de voz aparentemente emocionado, com
olhos cheios de lágrimas. Nesses momentos, apa­rentando sinceridade,
jura seu amor e arrependimento por tê-la aban­donado. Afirma que nun-
ca mais vai ocorrer o que aconteceu.

Entretanto, as promessas duram pouco: só até à primeira frustra­ção ou à


primeira sedução fora de casa.

Em sua mente nunca há culpa, ele nunca aprende com seus com­
portamentos inapropriados, pois não sofre com isso. Não é leal a nin­
guém, nem com nenhum grupo ou ideias. Não consegue julgar adequa­
damente nenhum de seus atos, nem os dos outros, pois não é atingido
pelo sofrimento alheio. Explica, com sua lógica deturpada, toda e qual­
quer conduta sua, mesmo a mais imoral. Agressivo e impulsivo, não
tolera ser frustrado. É um indivíduo geralmente incapaz de seguir qual­
quer objetivo a longo prazo, bom ou mau, isso não importa.

Alguns estudiosos desses “doentes” afirmam que eles buscam, durante


suas vidas, um caminho capaz de transformá-las em fracasso. Assim, se
cometem uma falta ou um crime, arriscam-se, comentam, enfim, forne-
cem pistas para serem descobertos. (evidentemente, eles não são “bons”
criminosos.)

Ele não é um “louco” no sentido literal da palavra, mas é capaz de, após
matar os pais para conseguir dinheiro para suas farras, pedir ao júri
clemência por ser órfão. Após conseguir donativos para um asilo inexis-
tente, afirmar que sua atitude ajudou àqueles que deram esmolas, pois os
doadores ficaram aliviados e felizes por estarem aju­dando os velhinhos
pobres.

À primeira vista eles parecem brilhantes, com inteligência su­perior, seja


no trabalho, seja no estudo ou nas relações sociais. Mas, inevitavelmen-

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te, mais cedo ou mais tarde fracassarão, serão demitidos do emprego,
afastados dos amigos e perderão tudo aquilo que, para os “normais”, é
caro.

Os antissociais estão em todas as partes: são encontrados nas favelas,


nos bairros pobres, nas cidades do interior, nas grandes ca­pitais, nos
palacetes e até nos palácios governamentais. Diga-se de passagem, não
são raros também entre os políticos. Alguns são presos por dar cheques
sem fundos, roubar, montar firmas ou clínicas fantas­mas, ludibriar seus
clientes e assim por diante. Outros aprendem – às vezes bem – a utilizar-
-se de um vocabulário altamente sofisticado e eloquente, para manipular
os outros em seu benefício.

Utilizam também com esmero recursos histriônicos para co­municar


sentimentos falsos. Esses, os mais socializados, escapam do cerco po-
licial, chegando a ser vereadores, médicos, psicólogos, advo­gados,
deputados, pastores, padres ou até mesmo governadores e pre­sidentes
da república. Sua conversa fácil e sua crença em inverdades, ditas com
entusiasmo, seduzem o incauto que o procura ou o elege, projetando
nele o seu Deus.

Diante do leigo, ou mesmo do psiquiatra, ele parece normal. Durante a


entrevista, nada revela de loucura, incapacidade ou defici­ência mental.
É sua história de vida, examinada e contada pelos acom­panhantes, que
fornecerá as pistas para percebermos que estamos diante de um indiví-
duo com perturbação da personalidade do tipo antissocial: um “doente”
na sociedade.

Entre as quadrilhas mais sofisticadas, as com um grau mínimo de


organização, os antissociais não são aceitos, pois lhes falta, não só a
disciplina, com também alguma ligação afetiva com o grupo de crime
necessária ao êxito do empreendimento. A maioria deles não comete
crimes suficientemente grandes para serem presos por longos perío­dos.
Portanto, até com respeito ao crime, eles não são sérios.

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A carreira do antissocial geralmente começa cedo, ao roubar as meren-
das dos colegas ou faltar às aulas, agredir companheiros ou pro­fessores,
ou ainda fugir de casa. Inicia relações sexuais precocemen­te. Bebe, ainda
na infância, com grande prazer. Não se liga a grupos por muito tempo.
Maltrata ou mata pequenos animais, agride sem piedade ou motivo os
companheiros mais fracos, explora-os como pode. Mas sempre acha que
tem razão.

Com o aumento de seu poder, ao crescer apodera-se do carro do pai,


estraga-o, faz farras e, quando recriminado, justifica-se, aparen­tando
total sinceridade. Representando arrependimento, jura que vai mudar
sua conduta, garante que aquilo nunca mais vai acontecer. Na primeira
oportunidade, porém, ele retorna ao mesmo comportamen­to e novo
juramento é feito, sempre do mesmo jeito, demonstrando as mesmas
emoções falsas de antes.

Mente a propósito de tudo, em qualquer lugar, com qualquer pessoa,


e muitas vezes sem nenhuma razão. Se apanhado na mentira dará sua
“palavra” de honra” de que não mais faltará com a verdade e firmará,
nesse sentido, um “pacto de cavalheiro”. Entretanto, para nosso azar,
os castigos, as críticas, as prisões e os internamentos geral­mente não
produzem efeito a longo prazo. Sua escalada continua: uso de bebidas,
drogas, acidentes graves, roubos, abandono de emprego, brigas, cheques
sem fundo, mentiras e mais mentiras.

Os pais, desesperados, tentam ajudá-lo, montando um comér­cio, que é


“depenado” em pouco tempo. Mandam-no para a fazenda do tio e lá ele
planta maconha. Internam-no na casa de saúde e ali ele vende suas rou-
pas, compra drogas, suborna o guarda e foge. Pedem a sua prisão. Nesta,
ele se mostra como um cordeiro, e ao ganhar con­fiança, na primeira
oportunidade burla a própria polícia. Nunca pensa a longo prazo, sendo
total seu imediatismo.

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Não se pode contar com o antissocial, pois ele engana, rouba, falsifica,
adultera e mente. Cultiva um grande desprezo pelas normas da socie-
dade, pelas dificuldades dos outros, sejam elas emocionais, financeiras,
físicas ou sociais. Não se envergonha do que fez ou faz. Sua vida é cheia
de proezas, que levariam a maioria dos homens à depressão ou mesmo
ao suicídio. Entretanto, no antissocial não se exterioriza nenhum ato que
possa indicar remorso ou humilhação. Nele não foram introjetados os
nossos valores, sejam morais, sejam estéticos.

Os mais espertos aprendem o desejado pelas pessoas. Conse­guem trans-


mitir ao povo a sua máscara de saudável honestidade e honradez através
de um discurso contendo tudo aquilo que o povo deseja ouvir e alcançar.
Depois, sozinhos ou com seus companheiros do mesmo caráter, toman-
do seu uísque escocês, riem e zombam da­queles que, inocentemente,
depositaram confiança neles. Cuidado! Eles estão em toda parte!

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O Vasto Mundo das Drogas
Vivemos em um mundo de drogas. Drogas para todas as idades e para
todos os gostos. Algumas são chamadas lícitas e outras ilícitas. Algumas
são proibidas; seu uso e porte são qualificadas de contraversão. Outras
são permitidas e difundidas até pelos pais e pelos meios de comunica-
ção. Seu uso é, muitas vezes, valorizado. Por sua vez, certas drogas são
conceituadas e permitidas pelos médicos e Conselhos de Medicina.

Algumas drogas, como as colas e os solventes, são usadas preferencial-


mente pelas crianças desamparadas, os pivetes; outras são mais comuns
entre os jovens de condição econômica variada – xaropes, maconha
e cogumelos. Algumas são usadas principalmente pelas mulheres da
classe média e alta com objetivo de perder alguns quilinhos, como os
anorexígenos. Certas drogas são mais consumidas pelos adultos jovens,
de poder econômico alto – cocaína, LSD, heroína. Algumas toneladas
de drogas são largamente utilizadas por adultos e idosos pertencentes às
mais diversas classes sociais, para permitir-lhes dormir ou suportar este
mundo confuso: tranquilizantes, soníferos e analgésicos. Finalmente, as
drogas mais difundidas e consumidas, possivelmente mais “democra-
tizadas”, já que são usadas universalmente por todos: cafeína, álcool e
tabaco ; ninguém escapa de pelo menos inalar a fumaça do cigarro do
vizinho, beber um cafezinho ou um copo de cerveja ou licor.

Não sei; duvido que alguém saiba, as razões de preferências tão diversas,
das diferentes posições e atitudes da sociedade a favor de uma e contra
outras.

Para tentar aclarar minha mente recorri a certos conceitos básicos: os de


abuso e dependência da substância, e aqueles relacionados como conse-
quência: tolerância e síndrome de abstinência. Antecipadamente, con-
fesso ao leitor que os resultados não foram animadores, pois continuei

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sem entender este comportamento humano, ou seja, o uso de drogas
diferentes por diferentes indivíduos, a permissão de umas e a proibição
de outras, e o consumo universal de muitos. Encontrei em um manual
de diagnóstico em psiquiatria a definição procurada, que foi a seguinte:

Abuso de drogas:
“Uso habitual de agentes químicos apesar das consequências danosas,
que dependem das propriedades farmacológicas e toxicológicas das dro-
gas, da personalidade do usuário, das necessidades nas quais ele vive, e
do grau no qual ele negligencia sua saúde individual e bem-estar através
da diferença e perda econômica”.

Existe abuso da droga quando seu uso ultrapassa os 30 dias e existe tole-
rância quando se necessita de mais droga para obter-se os efeitos deseja-
dos: daí o aumento das dosagens e a instalação dos quadros tóxicos. Por
último, ocorre a síndrome de abstinência quando ao reduzir-se a droga
ou quando ocorre a sua interrupção, seguem-se distúrbios fisiológicos e
psicológicos, geralmente transitórios.

Ora, a maioria das drogas proibidas, assim como as permitidas – cafeí-


na, nicotina, álcool, sedativos, etc . – aí se enquadram, o que nos leva a
pensar que esse não é o motivo da classificação usada, assim como das
proibições e permissões legais, de exigência de um ou de outro recei-
tuário médico, ou de incentivo familiar para se beber café ou cerveja e
fumar, pois todas elas são semelhantes. Deve haver algo mais.

Alguns teóricos combatem certas drogas simplesmente afirmando que


elas “causam prazer”, e os indivíduos consumidores delas abandona-
riam outras atividades caso elas fossem liberadas. Ora, isso é uma forma
muito simplista de explicar um comportamento tão complexo. O cigar-
ro, as bebidas, o café e mesmo os tranquilizantes – todos nós temos um
médico amigo ou parente que fornece gratuitamente as receitas – são
facilmente adquiridos e, nem por isso são consumidos exageradamente
por todos; apenas uma minoria é prejudicada. Se utilizarmos o conceito

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de prazer deveremos proibir os alimentos saborosos e a torcida do Atlé-
tico, impedir o jogador de jogar cartas ou futebol e abolir até mesmo as
relações sexuais, pois tudo isso causa prazer e também dependência pelo
menos psíquica, talvez física.

Vamos a um outro argumento. Parece que certos indivíduos, por mo-


tivos biológicos – genéticos – são mais propensos do que outros a ficar
“presos”, dependentes da droga, a levarem ao exagero um modo de vida
em detrimento de outro. Seriam os indivíduos de “alto risco”, os pro-
váveis toxicômanos. Mas acredito que esses seriam, também, os mais
sujeitos a se tornar viciados em café, comida, jogos, cigarros, sexo ou até
mesmo no trabalho sem pausa nem sentido. Deveríamos condená-los,
por causa de um “defeito biológico”?

No outro extremo do biológico vêm as “explicações sociais”. A própria


sociedade induz o através de vários meios: de um lado, a propaganda ge-
neralizada, de outro, a incapacidade para abolir, várias de suas doenças
e para dirimir conflitos, injustiças e preconceitos. Anuncia-se um belo
carro, uma bela “gata”, mas não se fornecem ao consumidor os meios da
sua aquisição e conquista. Costuma-se, com frequência, considerar o
“outro, o vizinho ou o parente, como o responsável por induzir os mais
jovens ao uso da droga.

Uma outra explicação é a da psicologia. O indivíduo usa café, álcool,


tabaco, maconha, doce, cocaína, cerveja, heroína, até sexo , para ficar
“diferente” de seu estado “normal”. Com isso, a pessoa se sente mais ani-
mada, agressiva, expansiva e extrovertida ou introvertida. Em resumo, a
droga seria usada como auto-medicação.

Todas essas explicações contém, provavelmente, algo de verdade e, tam-


bém, de mito. Não estou, neste artigo, defendendo o uso das chamadas
drogas proibidas ou exortando ao uso delas, nem também, indo ao outro
extremo de combatê-las ferozmente; assim como não defendo o abuso
de tabaco, café, cerveja e comida e nem combato, como se fosse a pior

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coisa do mundo, o seu uso. Acredito que qualquer pessoa que esteja bem
consigo mesma e que tenha algum propósito de “nível mais elevado”, isto
é, objetivos individuais claramente definidos, nunca será presa e depen-
dente das drogas, seja das lícitas, seja das ilícitas.

O mundo contraditório e confuso das drogas permite a produção, de um


lado, dos defensores ferozes das chamadas drogas proibidas, quase sem-
pre com objetivos pecuniários; de outro lado, a de combatentes impiedo-
sos, que disso se utilizam para criar liderança e poder. Esses últimos, ao
combatê-las, fazem disso sua “droga” e aliviam sua ira ao sentenciar os
“errados” e “marginais” enquanto eles, os acusadores, se sentem como os
anjos puros, habitantes diferenciados deste paraíso chamado Terra.

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Artistas e Arte

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O Amor nas Canções Populares
As letras das canções dos índios Sirono da Bolívia, um grupo nô­made
que vivia faminto, não descreviam o amor. Seus cantos, assen­tados nos
seus sonhos e pensamentos, representam principalmente os alimentos.
No Brasil, apesar da fome, as letras das canções popu­lares ainda relatam,
em sua maioria, as paixões, ou mais corretamen­te, as dores da separa-
ção. O mundo do amor descrito pelos poetas, não representa a relação
amorosa concreta, dura e crua, vivida por todos nós. Focaliza, preferen-
cialmente, um amor idealizado, ou seja, uma relação amorosa lírica e
fantástica, algumas vezes, adocicada e piegas.

Muitos ouvintes das canções populares não diferenciam a re­presentação


particular, criada pelo autor, da realidade do mundo frio e indiferen-
te em que vive. Do mesmo modo que certos telespecta­dores às vezes
agridem um ator, confundindo-o com o personagem representado por
ele transitoriamente, alguns ouvintes das canções passam a se comportar
conforme a descrição do letrista, misturando o amor construído pelo
poeta, com o amor real do dia-a-dia. Nesse caso, os fãs dessas canções
podem terminar seus dias “cantando suas mágoas” e “carpindo suas
dores sozinhos”.

O público, que desde criança ouviu e gostou de canções po­pulares, pode


automaticamente assimilar e agir conforme o modelo lírico de amor
descrito nas canções. Estes ouvintes, propensos a dei­xar de lado o dolo-
roso mundo real, facilmente passam a habitar, por instantes ou por toda
a vida, o paraíso perdido do devaneio, da nos­talgia sonhadora preparado
cuidadosamente segundo certos clichês sentimentais fabricados com
esmero.

Os símbolos poéticos encerrados nas letras tendem a produ­zir emoções,


ou já vividas, ou algumas nunca experimentadas. Nes­se último caso as

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letras poderão servir de orientação para que seus adeptos tornem-se
mais bem – ou mal – preparados para enfrentar situações futuras.
Por outro lado, os símbolos podem também reorganizar expe­riências já
vividas, tornando a pessoa mais consciente delas. Ora, quando as repre-
sentações simbólicas nos fornecem uma informação errônea da vida,
como é frequente nas canções de amor, o dominado e empolgado por
elas ficará mal preparado para enfrentar situações semelhantes ao usar
um modelo inadequado da realidade.

Sabemos que a maioria das frustrações – talvez todas – e dos sofrimen-


tos que enfrentamos, provêm do uso de falsas expectativas assentadas
em concepções irrealísticas. Isto não significa, é claro, que as idealiza-
ções são nocivas por si mesmas. Elas constituem um produto inevitável
e necessário dos processos cognitivos e compor­tamentais humanos de
abstração e simbolização e sem estas seríamos reduzidos a meros ani-
mais irracionais. Entretanto devemos notar que existe uma diferença
grande entre os efeitos possíveis do uso dos símbolos ideais “possíveis” e
dos “impossíveis”. Os ideais amorosos, representados em muitas can-
ções populares são, geralmente, aspira­ções de relações “impossíveis”.
Várias letras desenterram sonhos de amores irreais, inculcados muito
cedo através de histórias infantis como a do príncipe que se apaixona e
se casa com a moça pobre e desleixada. Isto, como sabemos, parece só
ocorrer na ficção. Além disso, certos símbolos contidos nas letras podem
introduzir, nos mais distraídos, emoções desagradáveis e paralisantes,
algumas tolas e açucaradas demais.

As considerações acima discutidas surgiram através do exame de diver-


sas letras de canções populares brasileiras, contidas no livro “Saudades
Seresteiras”, catalogadas por Alexandre Júlio Coutinho Pimenta. O livro
contém aproximadamente 350 letras de músicas populares típicas. Exa-
minei, para exemplificar minha composição, apenas músicas populares
muito divulgadas e de grande aceitação entre o público eclético.

Algumas canções populares sugerem a existência de pessoas possuidoras

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de poderes extraordinários para o amante apaixonado:

“Você é isso/uma beleza imensa/Toda a recompensa/De um amor sem


fim…”

“Teu amor na treva é um astro, no silêncio, uma canção./É brisa nas


calmarias, é abrigo no tufão”.

“Alguém como tu/Assim como tu/Eu preciso encontrar./De olhar


como o teu/ que me faça sonhar”.

“Sonhei com esse alguém noites e noites sem cessar/ Encontrei esse
alguém como tanto eu queria”.

“Minha vida era um palco iluminado/Eu vivia vestido de doirado”.

No simbolismo das canções, o mundo mágico do amor é con­quistado


facilmente. Basta o enamorado exibir encantamento certo, existente no
seu desejo de dedicar sua vida – muitas vezes rotineira e vazia – ao ser
amado, para alcançar o relacionamento desejado, in­dependente de ou-
tros importantes fatores. Assim, dentro do descri­to, para ser amado não
é preciso ter nada, nem nada oferecer, basta “amar”, isto é, agir, a qual-
quer preço, acreditando no conceito mági­co idealizado de que o “amor,
como a fé, rompe todas as barreiras e conquista tudo”.

Essa descrição singela do amor fácil não mostra que, uma vez en­
contrado o rapaz ou a moça idealizada, a pessoa está apenas iniciando
um caminho difícil e penoso, onde diversas adaptações e readapta­ções
serão necessárias para se ter um êxito próximo do esperado, nos raros
casos onde este ocorre. Afirma-se nas canções o contrário: esco­lhido e
encontrado o ideal, todos os problemas estarão resolvidos:

“No calor do teu carinho/Sou menino passarinho/Com vontade de


voar”.

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“Ah! se tu soubesses/Como eu sou tão carinhoso/E o muito e mui-
to/que te quero/…Vem sentir o calor/Dos lábios meus/À procura dos
teus/…E só assim, então/ Serei feliz, bem feliz”.

“Eu sei que vou-te amar/por toda a minha vida eu vou-te amar”.

“Moça, moça eu te prometo/Eu me viro do avesso, só pra te agradar”.

“Ó linda imagem de mulher que me seduz/Ah! se eu pudesse tu es-


tarias num altar/És a rainha dos meus sonhos, és a luz/És malandri­nha
não precisas trabalhar”.

“Eu sem você/sou só desamor/Um barco sem mar/um campo sem


flor/…Sem você, meu amor, eu não sou ninguém”.

Lamentavelmente, apesar do encantamento e do esforço de am­bos para


viverem no paraíso, nem tudo são flores: o amante confiou demais na
honradez e fidelidade da amada e, tristemente, descobre que foi traído,
dando origem ao desengano e ao protesto amargo:

“Mentira, foi tudo mentira/você não me amou”.

“Nada tu ouviste/E logo partiste/Para os braços de outro amor/Eu


fiquei chorando/Minha mágoa cantando/Sou a estátua perenal da dor…”

“E em nome de Jesus/ Um grande amor você jurou/Jurou, mas não


cumpriu/Fingiu e me enganou”.

“Elvira, escuta os meus gemidos/que aos teus ouvidos irão che­gar/não


sejas traidora tem dó de mim”

“Você sabe o que é ter um amor,/Meu senhor?…/Ter loucura por uma


mulher/E depois encontrar esse amor/meu senhor?…/Ao lado de um

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tipo qualquer”.

O apaixonado, através do amor patético, tentou, por todos os meios,


encobrir seus complicados problemas existenciais. Ocultando as misé-
rias de sua vida, ele sonhou ter alcançado o Éden, entretanto foi cair no
inferno. O mundo belo e feliz do amor apaixonado se des­pedaçou sob
o impacto de alguns fatos singelos, feios e normais da vida. O sonhador
apaixonado se desespera e percebe, “com o coração amargurado”, que “o
sonho se findou”:

“Tornei-me um ébrio, na bebida, busco esquecer/Aquela ingrata que


eu amava, e que me abandonou”.

“Não falem dessa mulher perto de mim/Não falem pra não lem­brar
minha dor”.

“Balada triste que me faz lembrar alguém/Alguém que existe e que


outrora foi meu bem… não há mais nada! foi um sonho que findou”.

“Porém nesse abandono interminável/No espinho de tão negra soli-


dão”.

“No rancho fundo/Bem pra lá do fim do mundo/Nunca mais houve


alegria/Nem de noite nem de dia”.

“No alto do campanário uma cruz simboliza o passado/ De um amor


que já morreu, deixando um coração amargurado”.

“A saudade mata a gente, morena/A saudade é dor pungente morena”.

Entretanto, apesar dos desenganos, o amante teimoso tenta des­viver o


passado e reacende sua esperança. Lamentando e chorando seu destino
ingrato, relembra a figura idolatrada do seu amor, espe­rando seu retor-
no:

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“Pise machucando com jeitinho/Este coração que ainda é seu”.

“Começaria tudo outra vez/Se preciso fosse, meu amor”.

“Que eu voltei pra me humilhar/Ai, mas não faz mal”.

“Hoje eu vivo tão sozinho, ao relento, sem carinho/Na esperan­ça mais


atroz,/De que cantando em noite linda/Esta ingrata, volte ain­da, escu-
tando a minha voz”.

“Boneca eu te quero, com todos os vícios/Com todo pecado, com tudo


afinal”.

“Eu sei que vou sofrer/A eterna desventura de viver/ À espera de viver
ao lado teu/Por toda a minha vida”.

“Volta! dá lenitivo à minha dor”.

“Aceito os teus erros, pecados e vícios/Porque na minha vida meu


vício é você”.

“Você bem que podia me aparecer /Nesses mesmos lugares/ Na noite,


nos bares/Onde anda você”.

“Sorris da minha dor, mas eu te quero ainda/Escravo eterno teu farei o


que quiseres”.

Mas seu esforço foi em vão, “tudo foi um sonho”, apenas um desejo, a
amada ficou mesmo nos braços do outro, que era um “tipo qualquer”. A
partir daí, condoído de si, o amante enterra-se na au­topiedade, na auto-
depreciação e esforça-se para esquecer a amada ingrata:

“Sem você, meu amor, eu não sou ninguém”.

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“Neste mundo eu choro a dor/Por uma paixão sem fim/…Esta dor
que me consome/Não posso viver/Quero morrer/Vou partir para bem
longe daqui/Já que a sorte não quis/ Me fazer feliz “.

“Esta saudade, este vazio/Esta vontade de chorar…/ Ai, se eu pudesse


esqueceria”.

O amante construiu uma ligação amorosa em termos idealís­ticos, sem


as barreiras impostas dolorosamente pela realidade dos fatos. Apesar de
sua crença forte, “o mundo caiu” e o sofrimento au­mentou, dando ori-
gem à loucura. A amada que não lhe sai da mente, não retorna, por mais
que ele suplique ajoelhado não altar dos flage­lados. O mundo real des-
cortinado torna-se insuportável. Resta-lhe, como salvação, o caminho da
fantasia. O enamorado desesperado embarca na nave suprassimbólica,
realizando uma viagem ao mundo da loucura. Lá visualiza fantasias
substitutas ocupando o lugar das inacessíveis. As suas alucinações e
delírios florescem livremente, pois inexistem obstáculos formados pela
realidade indiferente e podero­sa. Pouco a pouco, suas percepções mistu-
ram-se com as fantasias, costuradas no tecido fino da teia fabricada por
esperanças e sonhos. Surge uma nova composição, nasce um novo ser,
semelhante à ama­da idealizada, mas dotado de poderes sobrenaturais:

“Cansado de tanto amar/Eu quis um dia criar/Na minha imagina­ção/


Uma mulher diferente”.

“Bom dia tristeza/Se chegue tristeza/Se sente comigo/Beba do meu


copo”.

“Eu vi uma vitrine de cristal/Uma boneca encantadora/No bazar das


ilusões, no reino das fascinações/…../Como se fossem de verdade/Mãos
ideais os braços divinais/O corpo algo sem par/Uma perfeita Vênus”.

“A vida para mim não vale nada/Desde o dia em que a malvada/O co-

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ração me estraçalhou/Às vezes pela estrada enluarada/Julgo ouvir uma
toada/Que ela cantava para mim”.

“Eu amanheço pensando em ti/Eu anoiteço pensando em ti, nos ci-


garros que eu fumo/Te vejo nas espirais/Nos livros que eu tento ler/Em
cada frase tu estás”.

Esta parece-me ser a representação a respeito da relação amo­rosa trans-


mitida por várias canções populares. Mas esse modelo não foi o que
encontrei nos meus encontros amorosos. Provavelmente, porém, para
serem aceitas e se tornarem populares não apenas no nome, elas preci-
sam ser irrealistas e devem trabalhar com o falso.

Os poetas, sabiamente, atentos à nossa miséria, percebendo nos­sa sofri-


da convivência diária com a incômoda realidade privada dos encantos
do mundo imaginário, para nosso deleite, criaram esse “leni­tivo para
nossas dores”, pois, como sabemos, ninguém é de ferro…

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A Pintura dos Esquizofrênicos
O interesse médico pela produção artística dos doentes mentais, prin-
cipalmente dos esquizofrênicos, começou no século passado e adquiriu
maior interesse após o aparecimento da obra clássica do psi­quiatra Prin-
zhorn. A partir daí, vários autores passaram a analisar e a interpretar o
conteúdo e a forma daquelas obras.

A maioria dos doentes mentais não possui aptidões para a pin­tura ou


qualquer outro tipo de arte, pois é sabido que a esquizofrenia deteriora a
capacidade do indivíduo. Raros esquizofrênicos desenha­ram ou pinta-
ram antes de adoecerem, embora, muitos deles, em suas casas ou nos
hospitais, passem uma boa parte do tempo desenhando ou escrevendo.
Entretanto, poucos desenvolvem algum trabalho dig­no de receber o
nome de artístico, pois suas “obras” não passam, na maioria das vezes,
de simples rabiscos ou desenhos esquemáticos sem nenhum sentido
estético.

Não se pode falar de arte psicopatológica propriamente dita, quando um


artista já consagrado adoece, sem, entretanto, alterar a essência de sua
produção. Por outro lado, quando um pintor se torna esquizofrênico e
os seus dons artísticos são afetados, ele pode conti­nuar a produzir após
a instalação da doença mas, nesse caso, suas pro­duções empobrecem.
O aparecimento de ideias delirantes e alucina­ções, que caracterizam
a esquizofrenia num determinado indivíduo, nada tem a ver com o
nascimento de um dom artístico. Nenhuma doença mental produz uma
capacidade criadora no homem, pois essa depende do talento indivi-
dual. Durante muito tempo falou-se acerca da relação do gênio com a
loucura. Não existe tal relação. Não se constrói um gênio, enlouque-
cendo um homem normal, mas, sim, se destrói um gênio, tornando-o
louco. Apenas em raríssimos casos a doença mental pode servir como
fator desencadeante e desinibidor para despertar uma aptidão até então

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adormecida.

No esquizofrênico encontram-se alterados, entre outros, os se­guintes


aspectos do indivíduo: o conteúdo e a forma do pensamento, a per-
cepção, daí o aparecimento de várias alucinações, a afetividade, que se
torna muitas vezes embotada, apagada ou inadequada, certa dificuldade
ou estranheza ao lidar com o próprio Eu, muita dificuldade em tomar
qualquer iniciativa, uma tendência para isolar-se do mundo exterior
e, por último, uma perturbação do comportamento psicomo­tor, com a
diminuição da reatividade ao meio ambiente e redução dos movimentos
espontâneos. Todo esse quadro conduz, inevitavelmente, a uma dimi-
nuição da compreensão e da interpretação da realidade.

A pintura do esquizofrênico, tanto no que diz respeito ao seu conteúdo,


quanto à sua forma, não se acha ligada a normas ou regras coletivas de
nenhuma espécie. Como ele, normalmente, não se comu­nica de maneira
convencional, sua arte pode ser considerada, em um grau elevado, um
murmúrio consigo mesmo. Em alguns poucos casos, suas mensagens
comoventes são dirigidas aos mortos, a Deus, a Jesus Cristo ou ao seu
médico assistente. A sua produção artística misteriosa pode chegar mes-
mo a uma total confusão, convertendo-se numa lin­guagem indecifrável.
Sua arte é, frequentemente, um grito dirigido a ninguém, ou um monó-
logo estridente lançado num vazio trágico.

Os quadros desses pacientes mostram, ao lado de alucinações pavoro-


sas, motivos plácidos, inexpressivos ou até mesmo alegres. Enquanto
que a “pintura primitiva” e o desenho infantil constituem, na maioria
dos casos, um produto de elaboração do ambiente, a arte dos esquizo-
frênicos reproduz, não uma natureza externa, mas apenas percepções
distorcidas de vivências sombrias e sofridas, que é o seu mundo interno,
onde se guardam diversas alucinações e delírios, que pouco ou nada têm
a ver com a realidade dos “normais”. Sua pintura deforma e simplifica a
anatomia. Os espaços vazios da tela são pre­enchidos compulsivamente
com pontos, roscas, figuras geométricas, letras ou números.

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A pintura dos esquizofrênicos, não tendo um público determina­do, é di-
rigida a uma plateia imaginária, diferente, portanto, da pintura do artista
sadio, ou mesmo da arte dos chamados “povos primitivos”, onde o desti-
natário é uma comunidade humana real. Os que passa­ram a pintar após
adoecerem são, no sentido exato da palavra, auto­didatas. Por habitar um
mundo estranho, impenetrável e particular, bastante diferente do “geral”,
os seus diversos símbolos permanecem geralmente obscuros e incom-
preensíveis para todos nós.

Dentro do seu “autismo” expressam a sua arte, mediante o lápis ou o


pincel, de uma forma inteiramente espontânea e livre, sem pre­conceitos
e sem seguir regras acadêmicas de nenhuma espécie. Es­sas pinturas
possuem, exatamente pelo fato de estarem desligadas de todo o modelo
convencional e de todo o preconceito de estilo, uma intensidade emo-
cional diferente, pura, simples e bela, muitas vezes com uma grandeza de
forma que as eleva a um nível artístico superior. O seu aspecto é recriado
livremente e neste não existe perspectiva linear. Para ele não há profun-
didade, os corpos não são desenhados mostrando a ilusão do volume
real. Eles, na sua pintura, não represen­tam as sombras produzidas pelos
corpos, ao contrário de uma repre­sentação naturalística que não pode
prescindir delas pois, sem estas, os objetos parecem flutuar. Na verdade,
nas nossas representações interiores, ou seja, quando visualizamos uma
paisagem, previamente sabemos se o objeto está pousado na terra ou flu-
tuando no espaço, portanto, na nossa imaginação, não existem sombras
determinadas pela luz. O esquizofrênico não reproduz o que vê fora de
si, mas, sim, o que percebe dentro. Ele não se preocupa em criar a ilusão
da maté­ria e nem se preocupa com a precisão de detalhes.

As cores usadas não têm correspondência com as existentes na realidade


externa. Quando ele as usa, estas servem mais como um meio de dese-
nhar e não para retratar as cores naturais existentes no “mundo real”, que
não são respeitadas por ele. As cores, utilizadas com ampla liberdade,
são aplicadas geralmente de forma pura ou pouco misturadas. Como sua

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produção é rápida, ela serve para dar vazão às ideias que lhe ocorrem
em abundância. O esquizofrênico não dispõe de tempo para preparar as
cores das aquarelas, do óleo ou misturá-las.

A escolha destas, de preferência as fortes, é ditada principalmen­te pelo


seu valor afetivo, isto é, daquela que ele mais gosta no momen­to da cria-
ção, e só em segundo lugar, pelo objeto a ser representado.

Os desenhos dos esquizofrênicos, simplificados, deformados e repletos


de formas repetidas, são estáticos e mesmo petrificados e raramente
mostram movimentos. Além disso, as diversas figuras estão aglutinadas
ou condensadas, contendo os vários elementos incoeren­tes reunidos em
uma só imagem. O contorno linear, muito ressaltado, torna as superfí-
cies bem delimitadas pelo traço, geralmente feito sem retoques ou corre-
ções. O símbolo adquire, na pintura do esquizo­frênico, o valor da coisa
significada. Nota-se, portanto, que a pintura do esquizofrênico se opõe
às exigências do naturalismo, no que diz respeito à ilusão do espaço, do
volume e da matéria, assim quanto à precisão do desenho, à exatidão da
anatomia e à cor do objeto.

Apesar de ter perdido todo o caráter anatômico ou naturalista, a forma


criada pelo esquizofrênico expressa um conteúdo singular e atraente e
com frequência emociona os não doentes por sua beleza diferente. A
sua pintura permite, através de uma expressão artística altamente es-
pontânea, a exibição de valores eternos do homem. A mensagem poé-
tica e mágica contida nas suas pinturas torna possível o difícil e amargo
encontro entre os “sãos” e os “doentes”. Provavel­mente, as imagens que
habitam o “porão” dos indivíduos sadios e dos doentes mentais são as
mesmas. Essa semelhança de símbolos, que não aparece claramente
quando olhamos através dos andares mais al­tos, permite a comunicação
dos doentes com os sadios. Desse modo, a pintura dos esquizofrênicos
consegue tocar e transmitir, a todos que a contemplam sem preconcei-
tos, as mais diversas e profundas emoções que residem no âmago de
nossas almas. Por tudo isso, elas merecem ser vistas.

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Fim

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