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Território, Sociedade e Modernização

Adordagens Interdisciplinares

Governador Valadares, outubro de 2010.


Mantenedora
Fundação Percival Farquhar
Presidente da Fundação
Edvaldo Soares dos Santos

Universidade Vale do Rio Doce

Reitora
Ana Angélica Gonçalves Leão Coelho

Pró-Reitora Acadêmica
Fabíola Alves dos Reis

Pró-Reitor Administrativo
Marle José Ferrari Júnior

Responsável pela Editora


Brian Lopes Honório
Haruf Salmen Espindola
Jean Luiz Neves Abreu
Organizadores

Território, Sociedade e Modernização


Adordagens Interdisciplinares

Governador Valadares, outubro de 2010.


Todos os direitos reservados.
Copyright © 2010 da Editora Univale.

Território, sociedade e modernidade / organizadores: Jean Luiz Neves Abreu,


Haruf Salmen Espindola. – Governador Valadares : Ed. Univale, 2010.
396 p.

ISBN 978-85-89046-28-2

1. Território. 2. Geografia urbana. 3. Governador Valadares – Aspectos


políticos. 4. Governador Valadares – Condições econômicas. I. Abreu, Jean
Luiz Neves. II. Espindola, Haruf Salmen.

CDD 307.76098151

Projeto gráfico
Editora Univale
Editoração eletrônica e capa
Brian Lopes Honório
Revisão
A revisão dos textos são de responsabilidade dos autores
Impressão
Gráfica O Lutador
Ficha catalográfica
Biblioteca Dr. Geraldo Viana Cruz (Univale)

2010
EDITORA UNIVALE
Rua Israel Pinheiro, 2000 - Universitário
Cep.: 35020-220
Governador Valadares - MG
Telefone: (33) 3279-5512
Site: www.editora.univale.br
E-mail: editora@univale.br
Esse livro é o resultado do projeto de pesquisa
“Ocupação e Modernidade: Processos de Territorialização no Vale do Rio Doce”
Edital: 004/07 - Grupos Emergentes de Pesquisa
Sumário

Apresentação.............................................................................................................11

Apropriação de Terras Devolutas e Organização Territorial no Vale do Rio Doce: 1891-1960


Haruf Salmen Espindola, Barbara Parreiras de Aquino, Júlio Cesar Pires Pereira de
Morais, Wallace Ferreira dos Santos, Diego Dantas Amorim, Ana Caroline Gomes
Esteves, Renata Flor Marins . ............................................................................ 19

Sociedade do tempo versus sociedade do espaço: o percurso de dois destinos - Chonim


de Cima (MG) e Toledo (PR)
Patrícia Falco Genovez, José Luiz Cazarotto...........................................................59

Ciência, saúde e território em Minas Gerais (1895-1930)


Jean Luiz Neves Abreu..........................................................................................95

Entre práticas sanitárias e saberes tradicionais: a territorialização do saneamento


no Médio Rio Doce
Patrícia Falco Genovez, Maria Terezinha Bretas Vilarino.......................................119

Controle social e identidade: os casos do Clube Atlético Pastoril e o Esporte Clube Democrata
Eliazar João da Silva, Julieta Soares Alemão Silva................................................. 155

Além do tombamento: a proteção do patrimônio cultural como exercício do direito à cidade


Cristiana Maria de Oliveira Guimarães ...............................................................179

As redes sociais e a configuração do primeiro fluxo emigratório brasileiro: análise compara-


tiva entre Criciúma e Governador Valadares
Sueli Siqueira, Gláucia de Oliveira Assis, Emerson César de Campos.....................197

A representação do imigrante valadarense na mídia impressa local


Juliana Vilela Pinto, Sueli Siqueira...........................................................................241

Impactos da emigração sobre as vivências da mulher do emigrante


Agnes Rocha de Almeida, Carlos Alberto Dias, Emilliane de Oliveira Matos,
Lucas Nápoli dos Santos ......................................................................... 267

Política Linguística no Brasil: para ser o que é


Nádia D. F. Biavati..............................................................................................295
Ensino Superior e EaD: reflexões acerca da formação a distância contextualizada num
pólo educacional emergente
Leonardo Gomes de Sousa, Carlos Alberto Dias...................................................317

Considerações sobre os estudos que abordam o fenômeno da violência: reflexões a partir


do caso de Governador Valadares
Cristina Salles Caetano........................................................................................343

A nova questão social: uma proposta de análise


Rita Cristina de Souza Santos..............................................................................371
Apresentação

Múltiplos olhares sobre um território


Jean Luiz Neves Abreu
Haruf Salmen Espindola

Este livro é resultado de um esforço conjunto de pesquisa rea-


lizado por pesquisadores da UNIVALE e de outras instituições, oriun-
dos de várias áreas de conhecimento. De uma maneira geral, os temas
abordados procuram chamar atenção para os múltiplos elementos que
caracterizam o território de Governador Valadares e região, analisando
sua inserção nos contextos global e regional.
Os trabalhos aqui reunidos demonstram como a compreensão
de Governador Valadares, em suas características políticas, econômicas
e culturais, não pode ser objeto de uma área de saber. Conforme têm
demonstrado os estudos territoriais, o território como campo de análise
é por sua natureza epistemológica interdisciplinar.
Conforme afirma Francisco Ther Rios (2006:107-108) “existe um
entrecruzamento, uma imbricação de áreas disciplinares de conheci-
mento que interpretam o espaço habitado humanamente e construído
através de distintos fluxos históricos”. Sem adentrar nas questões rela-
cionadas ao conceito de território, importa destacar que nessa concep-
ção refletir sobre esse objeto significa pensar sobre um espaço prenhe
de ações humanas.
Atentos ao aspecto multidimensional e às relações de poder
que permeiam o território (RAFFESTIN, 1993), os capítulos seguintes
procuram chamar atenção para o fato de que a cidade de Gover-
nador Valadares e seu entorno se constituiu como desdobramento
de fenômenos mais gerais, mas que adquiriam identidades especí-

1 No original: “existe un entrecruzamiento, una imbricación de áreas disciplinares de conoci-


miento que interpretan el espacio habitado humanamente y construido a través de distintos
flujos históricos”

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 11


ficas no decorrer do tempo, cuja compreensão não pode prescindir
das abordagens históricas. Afinal, como esse território se constituiu;
quais os elementos políticos, econômicos e culturais que influencia-
ram na sua constituição?
Essas questões constituem o foco de análises significativas e que
contribuem para a compreensão da história da região e seu desenvol-
vimento. No capítulo “Apropriação de Terras Devolutas e Organiza-
ção Territorial no Vale do Rio Doce: 1891-1960” procura-se discutir a
formação da estrutura fundiária no vale do rio Doce, a partir da terri-
torialização produzida pela apropriação privada das terras devolutas.
Haruf Salmen Espindola, em conjunto com um grupo de pesquisado-
res, investiga como a conformação agrária da região foi resultado de
fenômenos externos e internos, já que os processos sociais configura-
dores da organização territorial resultaram dos grandes investimentos
de capital por parte do Estado, empresas privadas e interesses estran-
geiros e dos conflitos internos pela posse da terra e recursos naturais.
Ampliando o enfoque sobre a questão do desenvolvimento terri-
torial, Patrícia Falco Genovez e José Luiz Cazarotto, no capítulo “Socie-
dade do tempo versus sociedade do espaço: percurso de dois destinos
– Chonim de Cima (MG) e Toledo (PR)”, a partir de um estudo compa-
rativo discutem as razões pelas quais essas duas comunidades tiveram
destinos diferentes, marcadas por distintos processos de territorializa-
ção. Partindo de conceitos das ciências sociais e de um efetivo trabalho
interdisciplinar, os autores problematizam como ambos os territórios
devem ser concebidos a partir de relações complexas entre os homens
e o meio, intervindo fatores políticos, econômicos e culturais bem como
lógicas diferenciadas de tempo e espaço.
Território específico no Estado de Minas Gerais, a história de Go-
vernador Valadares foi marcada também pelas políticas desiguais de
desenvolvimento. O capítulo de Jean Luiz Neves Abreu sobre o sani-
tarismo em Minas Gerais, “Ciência, saúde e território em Minas Gerais
(1895-1930) procura abordar essa questão a partir de um estudo so-
bre o sanitarismo. Ao analisar os relatórios de saúde, procura-se discutir
como a construção da saúde pública no estado não pode prescindir das
questões territoriais. Ao estudar a organização sanitária no Estado e as
estratégias de saneamento adotadas, evidencia-se a desigualdade dos
recursos destinados à saúde em relação a determinadas regiões. Apesar

12 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


das autoridades reconhecerem a importância do saneamento do Rio
Doce, as políticas de saúde negligenciaram as cidades da região em
razão de seu baixo desenvolvimento econômico.
A região Governador Valadares só foi objeto de investimentos
econômicos a partir da década de 1940 em razão de interesses do ca-
pital estrangeiro. Nesse sentido, constata-se a presença de projetos para
o saneamento do Vale do Rio Doce pelo Serviço Especial de Saúde Pú-
blica (SESP), mediante acordo entre os governos estadunidense e brasi-
leiro. A partir das intervenções sanitárias, entre as décadas de 1940 e 50
as ações do SESP criaram condições propícias para o desenvolvimento
territorial. No capítulo “Entre práticas sanitárias e saberes tradicionais:
a territorialização do saneamento no Médio Rio Doce”, Patrícia Falco
Genovez e Maria Terezinha Vilarino abordam o processo de territoriali-
zação da saúde e do saneamento nesta região. Além de demonstrarem
o processo de territorialização a partir das políticas de intervenção do
SESP, as autoras também se debruçam sobre as práticas da população
frente às ações de saneamento, enfatizando as diversas concepções de
território e territorialidades existentes naquele contexto sócio-histórico.
Se por um lado, o processo de territorialização foi marcado por resis-
tências e conflitos – expressos muitas vezes na preservação de valores
tradicionais – por outro lado; é relevante situar o significado das práticas
populares que se constituem no espaço urbano.
Nessa perspectiva, no capítulo “Controle social e identidade: os
casos do Clube Atlético Pastoril e o Esporte Clube Democrata” Eliazar
João da Silva e Julieta Soares Alemão desenvolvem uma reflexão so-
bre os significados do futebol em Governador Valadares. Os autores
apontam como a urbanização, a exemplo de outras cidades, impôs um
novo ritmo de trabalho, consumo e lazer. O futebol, enquanto prática
esportiva valorizada como símbolo da nacionalidade, teve significativo
papel na década de 1940 acompanhando o ritmo da industrialização da
cidade, como demonstra o caso do Pastoril. A reconstituição das trajetó-
rias do Clube Atlético Pastoril e do Democrata permite identificar como
o futebol assumiu significados sociais e culturais relevantes para aquela
sociedade. De instrumento de controle social, a prática esportiva se tor-
nou importante elemento de sociabilidade e identidade da região.
Discussões sobre a urbanização e identidade perpassam também
pela questão da preservação e do patrimônio cultural, efetiva ligação

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 13


entre passado e presente. Este é o objeto do texto “Além do tombamen-
to: a proteção do patrimônio cultural como exercício do direito à cida-
de”, de Cristiana Maria de Oliveira Guimarães. Nele, a autora procura
resgatar a discussão sobre a preservação do patrimônio cultural como
elemento de identidade e de direito à cidade, postulando que o patri-
mônio é de usufruto coletivo e sua preservação de interesse de todos.
Ao propor uma reflexão sobre os bens tombados na cidade
pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural, Cristiana Gui-
marães realiza ao mesmo tempo uma crítica sobre os critérios de
tombamento, que privilegiam a valorização de bens imóveis de valor
excepcional, e tece observações relevantes a respeito da ausência de
uma gestão do patrimônio capaz de integrar o projeto urbano. Dessa
forma, enfatiza-se a falta de atenção a determinados elementos do
patrimônio cultural relevantes para a preservação da memória, os
quais devem estar em consonância com a cultura e a paisagem em
prol de uma melhor gestão da cidade.
Os estudos sobre Governador Valadares e a região não podem
deixar de atentar para o fenômeno da migração para os Estados Unidos
e outros países. Dessa forma, há um conjunto de pesquisadores que se
detém sobre desdobramentos e significados do fenômeno. As análises
vão para além da busca dos fatores que levaram centenas de pessoas a
ir buscar melhores condições de vida na América do Norte, em razão do
quadro de estagnação enfrentado pela região após a década de 1960.
Sueli Siqueira, Gláucia de Oliveira Assis e Emerson César de Cam-
pos, especialistas nos estudos sobre a questão, interpretam dados rele-
vantes sobre Governador Valadares (MG) e Criciúma (SC), que mantêm,
desde a década de 1960, conexões com a região de Boston (EUA) – e
nas cidades da grande Boston e New York, onde foram encontrados os
emigrantes que não retornaram.
Dessa forma, os autores no capítulo “As redes sociais e a configu-
ração do primeiro fluxo emigratório brasileiro: análise comparativa en-
tre criciúma e Governador Valadares”, demonstram como migração tem
influenciado a vida cotidiana das cidades na origem e destino. Procuram
compreender os impactos da migração, tanto entre aqueles que ficaram
como as perspectivas daqueles que partiram, e as redes sociais consti-
tuídas em torno dessas pessoas. O estudo aponta como as redes sociais
se configuram como práticas sociais que envolvem diferentes tipos de

14 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


auxílios de ordem material, emocional e simbólica, garantindo condi-
ções para futuros migrantes e seus possíveis retornos. Acompanhando
as posições de Saquet e Mondardo (2008:122), pode-se afirmar que
migrante constituiu várias redes locais e extra-locais, levando à reterri-
torialização “pelo movimento de apropriação e reprodução de relações
sociais que podem ser produzidas por uma conexão em rede”.
O fenômeno da migração internacional na região de Governa-
dor Valadares foi caracterizado também por projeções imaginárias e
utopias. Juliana Vilela, com a contribuição de Sueli Siqueira, faz uma
leitura da representação dos estereótipos sobre os Estados Unidos a
partir da interpretação das tiras publicadas no Diário do Rio Doce, no
texto “A representação do imigrante valadarense na mídia impressa
local”. Nos anos 1990, o jornal lançou um personagem, o “Capitão
Dólar” para homenagear os milhares de compatriotas que deixaram a
terra natal rumo ao país do Tio Sam. Além de representar as concep-
ções recorrentes dos valadarenses sobre os Estados Unidos como terra
prometida e resolução para os problemas econômicos, o personagem
revela a uma identidade fragmentada e desterritorializada, em sua in-
capacidade de se reintegrar à sociedade.
Pensando igualmente a migração não apenas como o campo das
análises políticas e econômicas, mas também lugar do simbólico e dos
valores afetivos, o artigo de Agnes Rocha de Almeida e Carlos Alberto
Dias, que conta com a colaboração de graduandos em psicologia, trata
dos “Impactos da emigração sobre as vivências da mulher do emigran-
te”. Ao longo do capítulo, os autores descrevem os resultados da pes-
quisa realizada, mostrando como processo emigratório teve um efeito
perverso sobre as relações conjugais e familiares, concluindo que os
possíveis ganhos advindos do trabalho no exterior não são capazes de
compensar os prejuízos emocionais.
A migração demonstra o quanto questões de um mundo cada vez
mais globalizado influem na realidade local. É o que aponta o texto “Po-
lítica lingüística no Brasil: para ser o que é”, de Nádia Biavati. Ao proble-
matizar várias questões relativas à política Lingüística do Brasil, a autora
observa que a existência em Governador Valadares e região de filhos
de brasileiros alfabetizados em língua inglesa é um fato que demandou
a criação de disciplina de Português voltada para estrangeiros no curso
de Letras da UNIVALE. A autora indica como a língua é um elemento

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 15


simbólico de constituição do território que influi no contexto local.
Se os problemas relativos à diáspora são centrais para a compreen-
são dos fenômenos que caracterizam a constituição dos processos terri-
toriais nessa sociedade, outros temas também não podem deixar de ser
contemplados, na medida em que estão conectados com a globalização e
as tecnologias de informação. Leonardo Gomes de Souza e Carlos Alber-
to Dias, no artigo “Ensino Superior e EaD: reflexões acerca da formação
a distância contextualizada num pólo educacional emergente” propõem
uma análise acerca do papel da educação à distância na microrregião de
Governador Valadares. Os autores enfatizam a necessidade de elabora-
ção de projetos contextualizados às necessidades regionais como ponto
de partida para maximizar a aplicação de conhecimentos, de modo a
possibilitar a reconstrução de uma nova identidade territorial.
Os dois últimos textos que integram o livro trazem contribuições
relevantes para se pensar sobre questões atuais que atingem a sociedade
valadarense: a violência e a desigualdade social.
Cristina Caetano, em “Considerações sobre os estudos que abor-
dam o fenômeno da violência: reflexões a partir do caso de Governador
Valadares”, após uma análise teórica do conceito de violência, expõe da-
dos que comprovam que as taxas de criminalidade na microrregião na
qual se insere a cidade aumentou entre a década de 1990 e da década
seguinte. Apesar de reconhecer o papel dos estudos estatísticos, a autora
chama atenção para o fato de que apresentam uma visão reducionista da
criminalidade, pois não a contextualiza perdendo de vista aspectos espe-
cíficos. Para uma análise mais contextualizada do problema seria impres-
cindível compreender os aspectos históricos do processo de territorializa-
ção, bem como focalizar a sociedade como um todo para a investigação
da violência, apontando a metodologia qualitativa como capaz de revelar
as dimensões estruturais da violência. O texto de Cristina Caetano ofere-
ce, portanto, questões relevantes e uma perspectiva de análise bastante
promissora para estudos futuros.
No último capítulo, “A nova questão social: uma proposta de análi-
se”, Rita Cristina de Souza Santos traz uma reflexão sobre as relações en-
tre pobreza, vulnerabilidades e desigualdades sociais. A partir de reflexões
teóricas em torno desses conceitos, a autora mostra como são fenômenos
complexos. No caso de Governador Valadares, em particular, Rita Santos
observa que os dados característicos da pobreza e da vulnerabilidade so-

16 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


cial não se definem apenas pela renda da população, mas pelo acesso à
saúde, serviços de infra-estrutura urbana, como rede de água e esgoto, e
o acesso à educação. Após realizar uma ampla discussão dessas questões,
seu estudo conclui que a discussão sobre o que “o município tem feito em
prol da população pobre e das possibilidades de enfrentamento de suas
vulnerabilidades”, é tarefa não só do poder público, mas de professores
e pesquisadores, ao longo da organização de um programa de Mestrado
em Gestão do Território em solo valadarense.
A conclusão da professora Rita Santos é basilar para os propósitos
do presente livro. Ele é um passo importante para se compreender te-
oricamente os aspectos definidores de um território e fornece subsídios
relevantes para intervenções que contribuam para o desenvolvimento
regional e a superação de seus obstáculos.

Referencias bibliográficas:

RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo, Ática,


1993, pp. 143-185.
SAQUET, Marco Aurélio A. ; MONDARDO, Marcos L. A construção de
territórios na migração por meio de redes de relações sociais.. Revista
NERA (UNESP. Online), v. ANO 11, p. 118-127, 2008.
THER RIOS, Francisco. Complejidad territorial y sustentabilidad: notas
para una epistemológia de los estudios territoriales. Horiz. antropol. [on-
line]. 2006, vol.12, n.25 [cited 2010-05-15], pp. 105-115.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 17


Apropriação de Terras Devolutas e Organização
Territorial no Vale do Rio Doce: 1891-1960.1
Haruf Salmen Espindola2
Barbara Parreiras de Aquino
Júlio Cesar Pires Pereira de Morais
Wallace Ferreira dos Santos
Diego Dantas Amorim
Ana Caroline Gomes Esteves
Renata Flor Marins

N
a década de 1930 se instalou no Brasil um processo de in-
dustrialização que responderá pela transição da sociedade
agrária para a sociedade de base urbano-industrial. Esse
processo foi marcado pela intensa concentração urbana das cida-
des do Rio de Janeiro e São Paulo. A industrialização brasileira, in-
dutora e, ao mesmo tempo, favorecida pela integração do mercado
nacional (crescentes interligações rodoviárias), produziu mudanças
no padrão de acumulação capitalista e, consequentemente, isso
repercutiu negativamente na posição ocupada por Minas Gerais,
numa crescente secundarização frente a São Paulo.
Em Minas Gerais o fenômeno da industrialização ficou restrito à
expansão do setor de mineração e metalurgia. O sentido da atuação
dos governos mineiros foi de reforçar a tendência já existente desde os
governos de Artur Bernardes, quando presidente do Estado de Minas
Gerais (1918-1922) e do Brasil (1822-1926), de aproveitar os recur-
sos naturais de Minas, conforme afirmou Claude-Henry Gorceix (1842-
1919), ao se referir à disseminação da metalurgia em Minas, onde havia
água, minério e matas surgiam fundições de ferro (GORCEIX, 1880).

1 Este trabalho conta com financiamento do CNPq e FAPEMIG.


2 Haruf Salmen Espindola é doutor em História Econômica pela USP, Professor titular da Univer-
sidade Vale do Rio Doce; Bárbara Aquino é bacharel em Ecologia pelo Centro Universitário de
Belo Horizonte (UNI-BH) e estudante de História - 3º período - pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG); Júlio Morais é estudante de Historia da PUC Minas; Wallace Santos é
graduado em História pela Univale e ex-bolsista BIC-FAPEMIG; Diego Amorim é graduado em
Agronomia pela Univale e ex-bolsista BIC-FAPEMIG; Ana Caroline e Renata Flor são estudantes
de Direito da Univale e bolsistas BIC-FAPEMIG.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 19


Foi esse potencial que serviu de suporte para a expansão da siderurgia
e mineração no estado de Minas Gerais. Esse desenvolvimento espe-
cializado dependeu da participação direta do Estado e da presença do
capital estrangeiro, cujos investimentos de capital se concentraram na
zona central, polarizada pela capital Belo Horizonte, e se estendeu na
direção do “Quadrilátero Ferrífero”, no Vale do Rio Doce, onde se con-
centravam os recursos naturais.
Assim, a Zona Metalúrgica vincula a dinâmica de sua indústria
de forma complementar e dependente da dinâmica industrial do
pólo (São Paulo), iniciando um processo de concentração indus-
trial naquela microrregião, que se consolida a partir da segunda
metade da década de 1950 (PAULA, 2002:16).

Portanto, o crescimento da industrial de Minas Gerais se vinculou a


uma posição subordinada de integração ao mercado nacional e inserção
no processo de industrialização brasileiro, que muito incomodava às elites
dirigentes mineiras. A posição relativa de Minas reforçou a tendência de
exploração dos recursos naturais por meio de políticas de favorecimentos
por parte do governo estadual e das negociações frente à União para con-
tar com investimentos do Estado brasileiro e do capital externo.
Nesse contexto, o objetivo é refletir sobre a questão da disputa
pelas terras devolutas do Vale do Rio Doce, ricas dos recursos naturais
mencionados: matas, água e minério de ferro. A orientação seguida fun-
damenta-se na distinção entre frente de expansão demográfica e frente
pioneira, bem como no impacto da regulação da apropriação privada da
terra, especialmente no confronto entre posse e propriedade privada.
O geógrafo alemão Waibel (1955: 404) identificou a constituição
de zonas pioneiras num raio de 500 a 1.000 quilômetros, a partir das
cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro: Oeste de Santa Catarina;
Norte, Sudoeste e Oeste do Paraná; Oeste de São Paulo; Mato Grosso
de Goiás; e Vale do Rio Doce (incluindo os vales dos rios São Mateus e
Mucuri). O que explicaria a formação dessas zonas era a elevação dos
preços dos gêneros alimentícios provocado pela conjuntura externa e
pela urbanização interna.
A produção de feijão, milho e, especialmente, arroz ocupavam uma
posição central na estrutura produtiva das zonas pioneiras. Também apa-
reciam as culturas comerciais do algodão, fumo e café, se as condições de
solo e clima permitissem. A cultura do café deixou de ser básica para a
20 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
expansão das zonas pioneiras, exceto para o norte do Paraná. A partir da
década de 1950 desapareceu a figura do imigrante estrangeiro, substitu-
ído pelo migrante nacional. As novas zonas pioneiras apresentavam um
perfil socioeconômico diferenciado, pela presença marcante da pequena
exploração agrícola e de uma “população tão polimorfa, que mesmo para
as condições do Brasil ficavam além do normal”. A migração interna era
procedente principalmente de Minas Gerais e Nordeste, além daquelas
originadas das zonas cafeeiras decadentes (WAIBEL, 1955: 405).
Essas observações iniciais permitem introduzir a temática propos-
ta nesse estudo sobre o Vale do Rio Doce. Essa zona se localiza a uma
distância de 600 e 1.000 quilômetros das cidades do Rio de Janeiro e
São Paulo, respectivamente. Na década de 1940, nessa zona os interes-
ses minerais (ferro e mica) e siderúrgicos influenciaram diretamente no
processo de abertura da fronteira econômica (frente pioneira). A cida-
de de Governador Valadares, emancipada em 1938, se tornou pólo da
nova dinâmica que se estabeleceu com a entrada dos grandes investi-
mentos de capital. O médico e ex-prefeito Ladislau Sales (1955-1959)
definiu como “babel” o que encontrou, ao chegar à cidade no ano da
emancipação política, tamanha as diferentes procedências nacionais e
estrangeiras dos habitantes. A polimorfia a que se referiu Waibel, na
zona do rio Doce era acrescida pela presença de interesses estrangeiros
diretamente vinculados ao conflito internacional:
Um fato que me chamou a atenção quando cheguei aqui, é que
a Guerra havia começado há poucos meses e já havia uma co-
missão japonesa, adquirindo mica, que era um material precioso
para confecção de avião. E algum tempo depois, veio uma co-
missão americana muito mais poderosa, com o mesmo objetivo,
e trazendo uma quantidade enorme de máquinas. Eu era médico
das duas. Ah! A japonesa era chefiada por um homem que se
chamava Takeo Itiba3.

O Vale do Rio Doce apresentava características comuns às zonas


pioneiras, como apontadas por Waibel: rápido crescimento da popu-
lação e da área cultivada, favorecida pela implantação de sistema de
transporte, especialmente as estradas de rodagem e difusão do cami-

3 Entrevista com Dr. Ladislau Sales, realizada em Belo Horizonte, 14/12/2001. Acervo do
NEHT/Univale.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 21


nhão. A Estrada de Ferro Vitória a Minas – EFVM - corta a região do rio
Doce no sentido Leste-Oeste e a Rodovia BR 116 (Rio-Bahia) no sentido
Norte-Sul, com o cruzamento dos dois eixos viários na cidade de Gover-
nador Valadares. A infra-estrutura introduzida nas quatro primeiras dé-
cadas do século XX atuou para ordenar e condicionar a localização do
capital, de instituições e de pessoas. Os diversos lugares, antes isolados,
foram interligados à ferrovia e rodovia por estradas vicinais; as tropas de
mula foram substituídas por caminhões; e empresas de ônibus regionais
colocaram os povoados em contato com as estações ferroviárias e com os
centros urbanos que ofereciam as linhas de ônibus para a capital mineira
ou as ligações interestaduais. A introdução do caminhão e do Jeep Willys
por empresas e por pessoas com capital suficiente, nas décadas de 1940
e 1950, acelerou o controle dos agentes econômicos sobre o território,
especialmente daqueles ligados à extração de carvão para as grandes si-
derúrgicas, de madeira para as serrarias e de mica para as indústrias de
beneficiamento localizadas em Governador Valadares. Nos locais onde
eram abertos postos de gasolina e mecânicas, ao longo da Rio-Bahia, sur-
giam povoados, que rapidamente evoluíram para vilas e cidades, como
antes ocorrera onde se localizaram as estações da estrada de ferro.
O sistema de transporte rudimentar por tropas de mula e canoas,
até as estações ferroviárias, foi substituído por uma rede de estradas que
se espraiou por todo o território, cortando áreas de floresta desabitadas.
Como as estradas eram de terra, elas obrigavam os viajantes a pernoi-
tarem. O trajeto do Rio de Janeiro à Governador Valadares, hoje feito
de ônibus em nove horas, era de dois dias, com pernoite em Muriaé.
As chuvas interditavam as estradas por longo tempo e obrigavam os ve-
ículos a ficarem por dias parados em postos de gasolinas ou pequenos
povoados. Dessa forma, condutores e passageiros constituíam um mer-
cado que favorecia o desenvolvimento dos núcleos urbanos.
Na década de 1910, a madeira de lei era extraída e exportada
bruta pela ferrovia, ficando as toras maiores, pela impossibilidade de
embarcá-las. Essa extração dos recursos florestais ocorria apenas próxi-
ma as estações da EFVM, e nos lugares mais distantes permanecia intac-
to ou era consumido em pequena quantidade no local, com o restante
consumido pelo fogo. Diferente do passado, o novo sistema de trans-
porte permitiu explorar os recursos florestais (madeira de lei e carvão
vegetal) e minerais (mica, cristais de rocha e pedras coradas). Serrarias
22 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
se multiplicaram nos povoados e vilas existentes ou, elas próprias, da-
vam origem a novos núcleos urbanos. Os acampamentos das turmas en-
carregadas de produção de carvão e lenha para as siderúrgicas evoluíam
para povoados e vilas, com a fixação dos comerciantes que abasteciam
os trabalhadores e com as ligações vicinais que se estabeleciam. As áre-
as, de onde se extraia madeira de lei, e onde se produziam carvão e
lenha, adquiriram valor de mercado. Desta forma, a preexistência de
matas deixou de ser apenas um atrativo para o tradicional posseiro que
abandonava as “terras cansadas” e ia abrir nova clareira na mata, para se
tornar um valor econômico considerável, meio inicial de capitalização
(madeira de lei, dormentes para ferrovia, carvão e lenha) para posseiros,
grandes proprietários, especuladores e investidores dos grandes centros
urbanos. Como observou Waibel (1955: 407): “Empresas madeireiras
e serrarias penetram hoje na mata antes do colono e em muitos casos
facilitam-lhe o árduo trabalho.”
A frente pioneira é característica pela presença de pessoas com
capacidade, influência e poder para constituírem grandes latifúndios.
No Vale do Rio Doce, além dos particulares, também estavam presen-
tes companhias siderúrgicas, especialmente a Belgo-Mineira e a Acesita
(atuais ArcelorMittal), possuidoras de grandes extensões de áreas flores-
tais. As terras das companhias siderúrgicas serviam, em primeiro lugar,
para a produção de carvão vegetal e extração de lenha, porém elas
também mantinham grandes serrarias. A Companhia Siderúrgica Belgo
Mineira, além de serraria, na década de 1950 também era proprietária
de uma grande fábrica de compensados na cidade de Governador Va-
ladares, por meio da sua subsidiária Companhia Agropastoril, cujo pre-
sidente era Júlio Soares, cunhado do governador mineiro e presidente
do Brasil, Juscelino Kubitschek. Com a abertura de estradas nas áreas
florestais, presença de grandes investimentos de capital e valorização
econômica dos recursos naturais, as terras sofrem intensa valorização
monetária, que aumentava conforme a proximidade das rodovias, es-
tações ferroviárias e centros de comércio. Nesse contexto o posseiro
passou a enfrentar a concorrência de fazendeiros e de atores sociais que
se voltam para a terra (especuladores, industriais, comerciantes, profis-
sionais liberais, funcionários do governo estadual, agentes das grandes
companhias e empresas madeireiras, entre outros), instalados nas vilas
e cidades da região. A mercantilização da terra induziu o surgimento

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 23


do fenômeno da grilagem de terra, isto é, por meio de arranjos legais,
influência política, títulos duvidosos ou falsos um indivíduo se apodera
de grandes extensões de terras, independente de a área ser ocupada
por posseiros, por vários anos.
A valorização da terra como mercadoria, a compra e venda da
terra ou do direito de posse e a propriedade privada como condição
para obtenção e manutenção da posse da terra fecha os espaços para
os posseiros e desestrutura as comunidades de vizinhança de lavra-
dores pobres. “A terra passa (...) das mãos dos posseiros às dos que
vinham ocupá-la, e destes às pessoas com capitais suficientes para
comprá-la e garantir a propriedade cercando-a e fazendo-a medir
por agrônomos enviados pelos departamentos competentes...” (CAS-
TALDI, 2008: 243). A legislação de terras de Minas Gerais facilitou
esse processo ao desconsiderar o preceito constitucional que colocava
como condição para a legitimação da posse a obrigação da “morada
habitual” nas terras. A exigência mineira era a comprovação de cultura
ou criação de gado, condição a ser atestada pelo agrimensor respon-
sável pela medição das terras requeridas. “Pior, porém, é que isso se
dá, geralmente, em detrimento do verdadeiro posseiro...” (GARCIA,
1958: 65) A legislação e a prática dos chefes dos distritos de terras
permitiam burlar o direito de posse, isto é, a preferência de compra
dado ao ocupante de fato (posseiro). Os editais dos processos de le-
gitimação de terras eram publicados no diário oficial, folha de maior
circulação e nos locais de costume, todos esses inacessíveis para os
posseiros, “na grande maioria dos casos (podemos dizer, em 95% por
casos), analfabeto” (GARCIA, 1958: 65).
A EFVM foi o fator inicial de colonização, mas a partir dos anos
de 1930 a indústria da madeira, a siderurgia, a extração e beneficia-
mento da mica, a abertura de rodovias, o saneamento e o combate as
endemias foram aceleradores da ocupação para além da estreita fai-
xa próxima do rio e ao leito da ferrovia. Os investimentos de capital
favoreceram o adensamento demográfico e o espraiamento da frente
pioneira. As estradas vicinais foram abertas pelas serrarias, siderúrgicas,
mineradoras da mica e fazendeiros, ligando as propriedades e lugarejos
às rodovias e estações ferroviárias; diversos povoados surgiram em torno
desses empreendimentos capitalistas. No final da década de 1950, na
zona do rio Doce, compreendendo todo o trecho do curso médio do

24 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


rio, as terras ao longo das rodovias e ferrovia apresentam áreas de matas
devastadas e troncos carbonizados, mas no geral foram limpas após a
destruição da cobertura florestal. As terras estavam ocupadas por gran-
des fazendas especializadas nas “invernadas” (engorda de gado bovino),
com grande importância para o abastecimento de Belo Horizonte e Rio
de Janeiro (STRAUCH, 1958: 120). A extração e beneficiamento da ma-
deira representavam a principal atividade de todo o médio Rio Doce,
porém crescia a distância entre os locais de extração e de beneficiamen-
to. A cidade de Governador Valadares concentrava 12 grandes serrarias
e uma importante fábrica de compensados (subsidiária da Companhia
Siderúrgica Belgo-Mineira); no geral as pequenas cidades possuíam mais
de uma serraria. O principal problema enfrentado por essa indústria era
a baixa oferta de energia, que se agravou, nos anos de 1950, por causa
do crescimento da demanda dos núcleos urbanos.4
Num raio de 60 quilômetros em torno das cidades de Governa-
dor Valadares, Teófilo Otoni e Caratinga constituíram dezenas de po-
voados, vilas e cidades; a maioria localizada ao longo da EFVM e das
rodovias. Todos esses núcleos se transformaram em importantes praças
comerciais, com o movimento dependente da economia rural do en-
torno (agropecuária e extrativismo vegetal/mineral). O aspecto urbano
era dominado por construções baixas de pequenos cômodos, porém
com a especificidade de serem de alvenaria, apesar da abundância de
madeira, e de usarem telhado de cerâmica; o telhado de tábuas (ta-
buinha) era mais comum no meio rural. O acabamento da maioria das
construções era rudimentar e estavam ausentes as instalações sanitárias,
até mesmo as fossas sépticas. Esse quadro perdurou por muito tempo,
inclusive depois da entrada do Serviço Especial de Saúde Pública – SESP
e da criação dos serviços de água e Esgoto. O esforço desses serviços
foi para que, pelo menos, a fossa séptica fosse instalada nas residências
e estabelecimentos comerciais e industriais fora das áreas centrais das
maiores cidades e nos núcleos urbanos menores.5

4 Waibel classifica de estágio “post-pioneiro” quando a terra já foi ocupada e a mata pratica-
mente desapareceu. Nessa fase ainda os sinais da ocupação recente aparecem nos troncos
carbonizados e árvores derrubadas nos pastos, além da presença de serrarias e da produção
agrícola (WAIBEL, 1955: 408)
5 VILARINO, Maria Terezinha B. Entre lagoas e florestas. Atuação do Serviço Especial de Saúde
Pública (SESP) no saneamento do Médio Rio Doce: 1942-1960. Belo Horizonte, UFMG, 2008.
(Dissertação de Mestrado).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 25


Para Waibel o ciclo “post-pioneiro” se completa entre 10 e 20
anos. Isso é constatado no Vale do Rio Doce, pois a década de 1960
é marcada pela mudança no aspecto urbano, caracterizado por cons-
truções de melhor qualidade, com os cômodos de tamanho normal
(padrão), calçamento das ruas, construção e/ou extensão das redes de
abastecimento de água e canalização do esgoto, estabilização do for-
necimento de energia, ampliação do serviço de telefonia, entre outros.
No Vale do Rio Doce, para as localidades ligadas diretamente a reforma
da EFVM para transporte de minério de ferro em grande escala e às
operações da Companhia Vale do Rio Doce, criada em 1942, a par-
tir dos Acordos de Washington, o saneamento e infra-estrutura urbana
coincidiu com a fase pioneira.6 No geral, as décadas de 1960 e 1970
marcaram a transição mencionada por Waibel. Entretanto, a superação
do estágio pioneiro não foi igual para todas as localidades. Enquanto
algumas cidades tiveram as tradicionais serrarias e beneficiadoras de
arroz e milho substituídas por diferentes empreendimentos resultantes
da maior divisão do trabalho, a grande maioria simplesmente entrou
em decadência com o fim das atividades da fase pioneira, sem que en-
contrassem alternativas, exceto a emigração de sua população (êxodo
rural e deslocamento para cidades de porte médio da região, capitais ou
outras frentes pioneiras).
A ideologia da “marcha para o oeste”, desencadeada em 1943
com a Expedição Roncador-Xingu, não corresponde à realidade do Vale
do Rio Doce, que se encontra a Leste do centro mais desenvolvido de Mi-
nas Gerais, a uma distância média de 600 quilômetros da capital federal.
Na verdade a constituição da frente pioneira no leste mineiro confirma a
proposição de Waibel, de que as novas zonas pioneiras eram “áreas insu-
ladas de mata” formadas por correntes de penetração vindas de todos os
quatros pontos cardeais. A vinculação que se estabeleceu do Vale do Rio
Doce com o Rio de Janeiro (Capital Federal) corrobora a tese de que o
deslocamento humano se dava a partir da “esfera de influência das duas
cidades, São Paulo e Rio de Janeiro” (WAIBEL, 1955: 412). A zona de Go-
vernador Valadares pode ser considerada como o ponto mais avançado
da influência direta do Rio de Janeiro, pelo menos até o final dos anos de

6 Com financiamento dos EUA e do governo brasileiro o Serviço Especial de Saúde Pública –
SESP atuou no saneamento e na criação dos Serviços Autônomos de Água e Esgoto – SAAE.

26 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


1960, quando a ligação rodoviária com Belo Horizonte é asfaltada e o si-
nal de televisão deixa de ser proveniente do Rio de Janeiro. Nessa mesma
época, os estudantes também mudam o seu destino, preferindo as escolas
de ensino médio e superior da capital mineira.
A fragilidade da frente de expansão
Os dados das sinopses estatísticas de 1890 e 1900 indicam a
presença de uma incipiente frente de povoamento nos vales dos rios
Doce, Mucuri e São Mateus. Pela Sinopse do recenseamento de 31 de
dezembro de 1890 (BRASIL, 1890) a população dos municípios, cujos
territórios abrangiam a zona formada pelos referidos vales, totalizavam
147.727 habitantes, correspondendo a 4,6% da população de Minas
Gerais (3.184.099 hab.). Esse número incluía antigas zonas de povo-
amento de Minas Gerais, formadas pelos municípios de Itabira, Gua-
nhães, Peçanha e Ponte Nova. Se considerarmos apenas a região de
Governador Valadares (Distrito de Figueira) a população era de 1.045
habitantes, inexpressiva diante da população do município (Peçanha),
de 33.830 habitantes. A população de outros distritos na área de flores-
ta eram maiores, mas ainda pouco expressiva: Filadélfia (Teófilo Otoni)
com 9.952; N. S. do Patrocínio do Serro (Virginópolis), com 9.401; Ma-
nhuaçu com 19.075; e Caratinga com 12.297 habitantes. Em 1900 a
situação não modificou significativamente, com a população atingindo
4,8% do total do estado (BRASIL, 1900).
O Censo de 1920 apresenta uma realidade bastante diferente,
indicando o impacto causado pelas ferrovias Bahia-Minas (Vale do Mu-
curi) e Vitória a Minas (Vale do Rio Doce), iniciadas em 1881 e 1903,
respectivamente, e concluídas em 1942. A população regional cresceu
de 467% em relação a 1900, passando a representar 13,87% da popu-
lação total do estado. Se excluirmos os municípios antigos, teremos a
população de 437.372 habitantes, em 1920, aumentada para 577.685
(1940); 835.952 (1950) e 1.070.082 habitantes (1960), (BRASIL, 1920;
1940; 1950 e 1960). Os dados do crescimento populacional indicam
uma diminuição significativa da taxa de expansão populacional entre
as décadas de 1920 e 1940 (32%) e um novo incremento nas duas
décadas seguintes (144%). Isso indica o impacto da construção da rodo-
via Rio-Bahia, iniciada em 1937 e concluída em 1944, especialmente
se considerarmos que os principais municípios ficaram sob a influência

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 27


direta da nova estrada. Em 1960 os municípios destacados atingiram
16,58% da população total do estado de Minas Gerais.
A ocupação demográfica das terras do médio rio Doce, produ-
zida pelas frentes de expansão do povoamento (migração interna) ca-
racteriza-se pelo processo de apossamento de terras devolutas para uso
particular. As frentes de ocupação são provenientes das antigas áreas de
povoamento das Minas Gerais (Serro/Guanhães/Peçanha; Mariana/Pon-
te Nova/São Domigos do Prata; Caeté/Antônio Dias/Itabira); da Zona
da Mata Mineira e Norte do Rio de Janeiro; do Espírito Santo; e do Vale
do Jequitinhonha/Bahia, entre outros. O apossamento era individual,
porém promovido por indivíduos reunidos por laços de parentesco e
compadrio. A configuração natural do relevo favorecia o estabelecimen-
to dos posseiros junto aos cursos d’água (córregos), cuja extensão da
ocupação era determinada pela vertente.

Figura: Comunidade do Córrego do Batata. Pelo desenho construído pe-


los próprios moradores da comunidade, percebe-se que a ocupação se
estabeleceu nas vertentes dos cursos d’água (córregos) que compõem
uma microbacia.
Fonte: ESPINDOLA, H. S. et. al. Relatório do Diagnóstico socioeconô-
mico e zoneamento ambiental do município de Governador Valadares.
Projeto realizado por convênio UNIVALE/PMGV/CAT/UFV, com apoio
financeiro do CNPq. 2002.

28 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


A frente de expansão abre terras para o excedente demográfico
que não encontra meios de subsistência na origem. Formava-se a comu-
nidade de vizinhança, cuja vida econômica não era estruturada a partir
da produção para o mercado. Isolados na mata, a cooperação entre os
vizinhos era fundamental para enfrentar as dificuldades do meio.
Antes as casas eram feitas de taquara e sapé, pois não existiam
telhas e materiais de alvenaria. A pobreza da comunidade antiga-
mente era muito grande. Existiam muitos males como anemia, fe-
bre amarela, amarelão, paludismo, mazela, bico de coruja, latia,
lázaro e muitos tumores. As pessoas usavam remédios alternativos
como tomar cachaça para o tumor estourar. Já morreu muita gen-
te de sarampo, catapora, cachumba, e doenças transmitidas por
piolhos e percevejos. As pessoas que morriam eram enterradas
no pé do cruzeiro.7

Os ocupantes apropriavam das terras e se tornavam posseiros de


terras devolutas. A produção era destinada a subsistência, porém era pre-
ciso garantir um excedente para ser vendido no “comércio” mais próximo.
Não era a terra que possuía valor de troca, mas esse excedente que era
levado ao mercado e permitia ao posseiro completar suas necessidades.
Há uns 80 anos atrás era plantado milho, feijão e outros para a pró-
pria subsistência. Já foi colhido muitos sacos de arroz, de feijão que
eram vendidos para atravessadores que levavam para cidade.8
A agricultura era muito forte. Plantava de tudo na comunidade e
tudo produzia muito bem. As melhores terras eram ocupadas com
lavoura branca, especialmente nas baixas era plantado o arroz. Nas
plantações não se usavam adubos, era tudo natural e o trabalho
todo manual. Já se plantou também muita cana para fazer cachaça
e rapadura. Antes a mão de obra era muito barata. Era usado o
método de trocar dia... Antigamente, ao se produzir, guardavam as
sementes para refazer o plantio no ano seguinte. As sementes eram
todas selecionadas e não era necessário comprar, e produzia-se
muito. O milho era vendido debulhado ou na palha.9

7 Depoimento de morador do Córrego de São Gabriel, no norte do município de Governador


Valadares. ESPINDOLA, H. S. et. al. Relatório do Diagnóstico socioeconômico e zoneamento
ambiental do município de Governador Valadares. Projeto realizado por convênio UNIVALE/
PMGV/CAT/UFV, com apoio financeiro do CNPq. 2002.
8 Depoimento de morador do Córrego São Silvestre, no leste do município de Governador Va-
ladares. Ibdem.
9 Depoimento de morador dos córregos do Angico e da Peroba, no noroeste do município de
Governador Valadares. Idem.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 29


Existe uma inter-relação entre terras de mata, técnica de explora-
ção e sistema de cooperação de vizinhança que favorece o avanço da
frente de expansão. Essa se integrava à economia de mercado ao absorver
excedentes demográficos de outras zonas e ao produzir excedentes que
eram comercializados. O que a caracteriza é o uso privado das terras
devolutas, num contexto que essas não são regidas por valor de mercado
(MARTINS, 1974: 45-46). O posseiro praticava o sistema da queimada e
rotação de terras, com a roça dentro da mata, tendo como instrumento
de trabalho a enxada e como cultivo o arroz, feijão, milho, abóbora, além
de engordar porcos. Os aspectos técnicos da agricultura rústica dos pos-
seiros, baseada na abertura da clareira na mata e queimada, associado à
forma de ocupação das vertentes, favorecia o desperdício das proprieda-
des geoecológicas do terreno e dos seus recursos naturais.
Na época da ocupação da área para a agricultura não existia mui-
ta preocupação com o desmatamento, e o uso do fogo para lim-
peza das áreas era prática comum. Não eram realizados aceiros, e
a maior parte da matas foi sendo destruídas por queimadas.10
Para fazerem as plantações, os agricultores cortavam as madeiras
e queimavam no local mesmo. Não faziam aceiros e acabavam
queimando muito mais área do que precisavam para plantar. Para
plantar 10 litros de milho e feijão era queimada uma área que ca-
bia 100 litros ou mais. Muita madeira foi queimada no chão. Hoje
têm dificuldades de conseguirem madeiras para fazerem cercas.11
O plantio de arroz e feijão diminuiu muito. Esses produtos estão
sendo comprados de fora, para o consumo das famílias. A produ-
ção diminuiu devido o enfraquecimento das terras.12

Esse sistema de agricultura rústica, que obrigava o posseiro a abrir


outra clareira depois de três anos de cultivo, longe de ser transitório
era uma situação permanente que se sustentava com novas derrubadas
na floresta. A ocupação dos posseiros era sempre precária e itinerante,
ocorrendo em locais isolados ou de acessos difíceis. Essa ocupação era
viabilizada porque era feita pelo conjunto de famílias vinculadas entre si
e num sistema de dependência mútua (CASTALDI, 2008: 333).

10 Depoimento de morador dos córregos do Angico e da Peroba, no noroeste do município de


Governador Valadares. Ibidem.
11 Depoimento de morador do Córrego do Bernardo, no noroeste do município de Governador
Valadares. Ibdem.
12 Depoimento de morador do Córrego do Sabiá, no noroeste do município de Governador
Valadares. Ibdem.

30 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Essa precariedade estrutural se intensificava com a penetração da
frente pioneira, isto é, a entrada do interesse econômico capitalista no
mercado de terras, por meio de empresas imobiliárias, ferroviárias, comer-
ciais, industriais, bancárias etc. (MARTINS, 1975: 47). A valorização da
terra como mercadoria, a compra e venda e a propriedade privada como
condição para obtenção e manutenção da posse da terra fecha os espaços
para os posseiros e desestrutura suas comunidades de vizinhança.
A publicação, em 1957, de um estudo de Castaldi (2008) tem a
vantagem de trazer para o primeiro plano o caso concreto de um grupo
de posseiros estabelecido no local conhecido como Catulé, no vale o
rio Urupuca, ao norte de Governador Valadares. O que levou ao estudo
de caso foi o fato que se tornou destaque na imprensa: assassinato de
quatro crianças, supostamente possuídas pelo demônio, ocorrido em
1955. Ao dar voz aos envolvidos na tragédia, revela-se a situação de
precariedade e itinerância dos posseiros, até que, sem mais poder se
estabelecer, se vêem obrigados a se vincular a um fazendeiro.
O primeiro indício de que a propriedade privada atingira o grupo
estudado por Castaldi (2008) remontava à década de 1940, quando Abrão,
um dos entrevistados, foi obrigado a “vender” a terra, cedendo à prepotên-
cia do fazendeiro. Como lhe disse um dos habitantes: “Quando eu era me-
nino só havia duas fazendas, o resto do terreno era mata e cada um tinha
uma posse. Agora é tudo fazenda grande” (CASTALDI, 2008: 341).
A fase mais violenta desse processo concluiu-se, pelo menos para o
nosso grupo, por volta de 1948, época em que Manuel S., depois
de ter em vão e por duas vezes tentado ‘tirar uma posse’ (em vão
porque não conseguiu defendê-la do ataque dos vizinhos) chegou
à conclusão de que “lugar para mim é bestagem” e começou a
“morar de favor” na qualidade de agregado nas terras que J. A. de
Q. possuía à beira do rio Urupuca. (CASTALDI, 2008: 344)

A expressão “morar de favor” é comum no meio rural para se


referir a condição de agregado a uma propriedade de fazendeiro
(terra alheia) e, principalmente, para indicar que alguém foi reduzido
a uma relação de subordinação, pois era o proprietário que determi-
nava as condições do “favor”. A expressão descreve com agudeza a
nova situação dos ex-posseiros, no momento em que a terra passou
a ter dono (proprietário privado). Na nova condição o ex-posseiro
ficava privado da realização do excedente econômico, o que Martins

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 31


(1975: 45) denomina de economia de excedente, “cujos participan-
tes dedicam à própria subsistência”, porém levam para o mercado
os produtos que excedem suas necessidades e, desta forma, podiam
estabelecer trocas que lhes permitiam o acesso a diversos itens de
consumo obtidos nos núcleos urbanos.
A denominação pela população rural de “comércio” para esses
núcleos urbanos é indicativa da função que eles exercem nesse tipo
de economia. “A comercialização dos produtos era difícil, sendo trans-
portados em lombo de animais e demorava-se três dias para chegar
a Valadares (numa distância de 60 quilômetros)13. A nova realidade
colocada pela propriedade privada e o “morar de favor” deixavam os
posseiros sem alguns dos recursos que anteriormente possuíam, apesar
de na nova situação aumentar sua dependência para com o mercado:
“a gente precisa de dinheiro para comprar no comércio café, banha,
sal, os trens pra trabalhar, fazenda etc.” (CASTALDI, 2008:344). Assim,
a relação que o posseiro mantinha com o mercado, ainda que limita-
da, deixa de existir, porque desaparece a produção de excedente ou
esse é apropriado pelo fazendeiro. A economia rústica do posseiro
encontrou seu limite na valorização monetária da terra, isto é, na mer-
cantilização das terras devolutas.
A formação da propriedade privada promove uma dissolução das
comunidades e do sistema de vizinhança (troca de trabalho, mutirão,
compadrio, solidariedade nas dificuldades e cooperação nos eventos es-
peciais, como nascimento e casamento). Isso inviabiliza a permanência
no local e empurra as famílias para terras afastadas, que ainda permane-
ciam devolutas e longe dos interesses mercantis. No contexto da frente
pioneira, no entanto, essa solução é passageira, pois dura até que uma es-
trada coloque a nova localidade em contado com as rodovias ou ferrovia.
Sem excedente, os lavradores entram num processo de empobrecimento
contínuo, que os leva a abandonar a terra ou se empregar como traba-
lhadores assalariados ou temporários. A facilidade da rodovia e transporte
por linhas de ônibus interestaduais, por um determinado tempo, propi-
cia condição para o lavrador adotar uma modalidade de trabalho sazo-
nal, empregando-se como temporários em grandes lavouras do interior

13 Depoimento de morador do Córrego do Bernardo, no sudoeste do município de Governador


Valadares. Ibidem.

32 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


de São Paulo, como ocorreu com alguns dos envolvidos no episódio de
1955, estudado por Castaldi (2008:330, 331, 348, 349, 354).
Os fazendeiros empregam uma parte dos ex-posseiros como assa-
lariados permanentes ou temporários e uma parte menor é incorporada
como agregados no sistema de parceria. O excedente demográfico toma
a direção das cidades médias, com uma parcela significativa se dire-
cionando para os centros industriais ou para outras fronteiras agrícolas.
Para não caracterizar direito de posse, os fazendeiros proíbem culturas
permanentes ou de árvores frutíferas e apenas permitem construir mo-
radias precárias. A limitação do mercado de trabalho local e a pobreza
crescente forçam grande parte da população das pequenas cidades e vi-
las a tomarem a mesma direção dos contingentes de lavradores pobres:
migrarem para os centros urbanos intermediários, para a capital, para os
pólos industriais ou para novas fronteiras agrícolas, em outros estados.
Os que conseguem se estabelecer como pequenos proprietários vêem
o excedente diminuir na proporção que as matas e capoeiras desapare-
cem e as terras se tornam “cansadas”, i.e., apresentam queda significati-
va de produtividade e, assim, as culturas agrícolas deixam de ser viáveis.
“O tempo foi passando e as pessoas que moravam nos córregos foram
embora, devido às terras terem ficando fracas.”14
Em 1965 podemos identificar a fase final do que Waibel chamou
de estágio “post-pioneiro”, nas zonas do Mucuri e médio Rio Doce,
com o predomínio generalizado da pecuária de corte extensiva, excetos
pontos localizados de agricultura de subsistência. A pecuária de corte
era caracterizada pela cria e engorda de gado bovino, sendo a cria e
o leite atividades secundárias. O rebanho era dos maiores de Minas
Gerais, perfazendo cerca de dois milhões de cabeças. A criação bovina
era feita em latifúndios e propriedades médias e a agricultura era típi-
ca de minifúndios. O regime de exploração era marcado pelo número
insignificante de arrendatários frente ao de assalariados permanentes e
temporários (75,7%) e parceiros (20,3). Existiam 13 núcleos urbanos de
importância, com um total de 435 mil habitantes. A cidade de Gover-
nador Valadares ocupava a posição de pólo regional, tendo as cidades
de Caratinga, Teófilo Otoni e Nanuque pólos secundários. As cidades

14 Depoimento de morador do Córrego São Silvestre, no leste do município de Governador Va-


ladares. Ibdem.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 33


de Ipatinga, Timóteo e Coronel Fabriciano, onde se localizaram as ati-
vidades siderúrgicas da Acesita e da Usiminas, apresentavam expressivo
crescimento urbano. (MINAS GERAIS, 1970/1973).
O ano de 1942 foi decisivo para a entrada da frente pioneira. Nes-
se ano a região foi elevada à posição de destaque para os interesses na-
cionais e internacionais, em função do minério de ferro e da mica. Pouco
antes, no mesmo ano que Getúlio Vargas deu o golpe e implantou o Esta-
do Novo (1937), teve início a abertura da rodovia Rio-Bahia (antiga BR-4,
atual BR 116). No ano do ataque japonês a Pearl Harbor foram assinados
os Acordos de Washington. O Governo Vargas criou a Companhia Vale do
Rio Doce – CVRD e lhe atribuiu a responsabilidade de promover o desen-
volvimento da região, apesar de somente em 1955 terem sido destinados
recursos para esse fim (MEDEIROS, 1969). A CVRD iniciou a reforma da
EFVM para transporte de minério em grande escala. Pelos acordos o go-
verno brasileiro recebeu recursos dos EUA para o saneamento da região,
por meio do Serviço Especial de Saúde Pública – SESP.
A rodovia Rio-Bahia (eixo norte-sul), concluída em 1944, quan-
do ficou pronta a ponte sobre o Rio Doce, em Governador Valadares,
cortou a Estrada de Ferro Vitória a Minas – EFVM (eixo leste-oeste),
inaugurando um novo ciclo de expansão econômica (STRAUCH, 1958:
120). A cidade se destacou rapidamente pelas funções que passou a as-
sumir de centro de beneficiamento de produtos regionais: mica, pedras
semipreciosas, madeiras, couros, cereais etc., bem como pelo papel de
mercado consumidor e distribuidor dos produtos da região e, ao mesmo
tempo, de fornecedor de produtos manufaturados nacionais e impor-
tados, por meio de diversificadas casas comerciais. A cidade cumpriu
também uma terceira função, determinada pela sua localização, ao se
tornar ponto intermediário e de apoio aos movimentos migratórios.
O traçado da rodovia favoreceu a incorporação de vasta zona de
floresta dos vales dos rios Doce e Mucuri ao grande mercado do Rio de
Janeiro e, ao mesmo tempo, colocou-os em contato direto com regiões
densamente povoadas (Zona da Mata mineira e Nordeste brasileiro).
Essa imensa reserva florestal próxima ao Rio de Janeiro, tinha as terras,
na sua maior parte, como devolutas. Segundo Strauch (1958:109.), a
instalação da indústria madeireira abriu caminho para uma mudança
do perfil da ocupação agrícola, inclusive permitindo uma capitalização
inicial para a formação das fazendas para invernada.

34 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Para Borges (1988: 209), nas primeiras décadas do século XX a
fronteira tinha se mostrado interessante basicamente para os agentes
da economia “camponesa”, porém o quadro modificou-se em meados
da década de 1930, quando os vales dos rios Doce e Mucuri foram
abertos para a penetração capitalista. A ferrovia Vitória a Minas e a
rodovia Rio-Bahia favoreceram diretamente os novos interesses que
se fizeram presentes; ao longo da ferrovia se estabeleceram interesses
madeireiros e siderúrgicos e no eixo rodoviário se expandiu a indús-
tria da madeira e a pecuária. Nas décadas de 1940 e 1950 o traço
comum era o caráter de pioneirismo da ocupação, acompanhado do
fenômeno do crescimento acelerado da população e aparecimento de
povoados, vilas e cidades. Na primeira década, para um crescimento
de 22,8% da população da parte mineira da bacia hidrográfica do rio
Doce, os novos municípios compreendidos na área pioneira repre-
sentaram 90% deste aumento. As zonas de moderado crescimento
demográfico tiveram um média de aproximadamente 80%, mas al-
guns municípios ultrapassaram 200%. Esse processo foi marcado pela
aceleração da ocupação de terras devolutas e pela instabilidade social
(STRAUCH, 1958:110; BORGES, 1988: 212).
O índice de crescimento da população para o período 1950/60
foi mais intenso na região de Governador Valadares (17 municípios),
com taxa a.a de 5,7% a.a., para uma média do estado de 3%. A área
de ocupação mais antiga, formada por 29 municípios polarizados por
Guanhães e por 18 municípios do vale do rio Manhuaçu, apresentou
taxas inexpressivas, abaixo da média estadual (1,5% e 1,3%, respecti-
vamente). Discriminar os índices de crescimento da população urba-
na e rural é ainda mais significativo para mostrar o esvaziamento em
curso nas áreas de ocupação antiga e a constituição da zona pioneira.
O município de Valadares apresentou um índice do crescimento da
população urbana de área 12,5% a.a e de crescimento da população
rural superiores ao do estado (3,2% a.a). Em contrapartida as zonas do
vale do rio Manhuaçu e de Guanhães apresentavam taxas de cresci-
mento da população rural de apenas 0,5% e 0,9% a.a, respectivamen-
te. (MINAS GERAIS, 1970/1973). Esses índices indicam vigor da zona
pioneira, marcada pela intensificação da urbanização que acompa-
nham a entrada dos interesses capitalistas, em contraste com as zonas
antigas em processo de esvaziamento.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 35


Apropriação privada e regulação
Os aspectos técnicos da agricultura rústica dos posseiros, fundada
na derrubada da mata e rodízio de terra, associados às mudanças eco-
nômicas produzidas pela entrada da frente pioneira, tiveram no arca-
bouço legal o corolário para consagrar a propriedade privada e, deste
modo, determinar o fim da economia rústica assentada na comunidade
de posseiros. No Vale do Rio Doce o processo de territorialização do
capital e constituição da propriedade privada da terra foi marcado por
fortes tensões sociais. O conflito produzido pelo choque entre a frente
de ocupação e a frente pioneira ocorreu num contexto determinado
pela atuação do Estado de Minas Gerais na regulação da apropriação
privada das terras devolutas, a partir da Constituição de 1891. As ten-
sões chegaram ao auge no início da década de 1960, como se constata
na Proposta de Resolução PRC-39/1964, de 02 de março de 1964, do
Deputado Federal do PSD, Cunha Bueno, que cria uma Comissão Par-
lamentar de Inquérito. A iniciativa arquiva pela mesa da Câmara dos
Deputados, pretendia investigar ‘in loco’ as origens, natureza e profun-
didade da agitação reinante no meio rural, especificando nominalmente
a região de Governador Valadares, em Minas Gerais.15
Conforme Martins (1975:46-47), diferente da frente de expansão,
na qual as condições de vida são reguladas pelo grau de fartura e não
pelo grau de riqueza, a frente pioneira tem as relações sociais determi-
nadas pela produção de mercadorias, num quadro em que a apropria-
ção da terra (condição de trabalho) passa a ser regulada pela compra e
venda. Sem as normas jurídicas adequadas não seria possível ocorrer
essa passagem. Portanto, o “ponto-chave da implantação da frente pio-
neira é a propriedade privada da terra. Na frente pioneira a terra não é
ocupada, é comprada.” (MARTINS, 1975: 47).
Na década 1930 a produção de carvão para as companhias side-
rúrgicas instaladas na zona da EFVM tornou-se outro fator de capitaliza-
ção para a formação das fazendas e expansão da pecuária. Em 1925 co-
meçou a funcionar a primeira usina siderúrgica integrada da América do
Sul - Belgo-Mineira, em Sabará. Em 1926 foi inaugurada a Companhia

15 A informação encontra-se no site da Câmara dos Deputados. Projetos de Lei e Outras Proposi-
ções. Disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=235391. Acessado
em 18 de junho de 2009.

36 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Brasileira de Usinas Metalúrgicas (Barão de Cocais). Em 1927 Euvaldo
Lodi e José da Silva Brandão construíram a Usina Gorceix, em Caeté. Na
mesma cidade, a siderúrgica Ferro Brasileiro foi instalada em 1931. Em
1931 começa a funcionar a Metalúrgica Santo Antônio, em Rio Acima.
Em 1937 a Belgo-Mineira, em Monlevade, inaugurou a sua segunda
usina: a maior a carvão vegetal do mundo, introduzindo também o re-
florestamento à base de eucaliptos. Em 1944 é fundada a Companhia
Aços Especiais Itabira – Acesita, pelos sócios Amyntas Jacques de Mo-
raes, Percival Farqhuar e Athos de Lemos Rache. A indústria do carvão
vegetal teve um importante papel na ocupação e devastação da zona
florestada. (STRAUCH, 1955 e 1958; ROCHA, 1957; PAULA, 1983;
GOMES, 1983; GUERRA, 1993; SILVA, 1997). O volume de madeira
destinado às serrarias representou uma parte pequena (3% da madeira
extraída), comparado com o que era utilizado para produzir carvão e
lenha (ROCHE, s/d, p.80). No Espírito Santo, a parte da madeira para
fins industriais, construção e marcenaria, correspondia a apenas 9,74%
do volume total em metros cúbicos (STRAUCH, 1955, p. 98).
A intensificação do povoamento e da dinâmica econômica tam-
bém está ligada à indústria da mica muscovita. Este mineral, popu-
larmente denominado de malacacheta, foi importante até o final da
década de cinqüenta na economia regional e, particularmente contri-
buiu para Governador Valadares transformar-se no pólo regional, su-
perando a função exercida por Teófilo Otoni. A produção era exporta-
da quase que exclusivamente para os Estados Unidos, atendendo aos
seus interesses estratégicos durante e depois da II Guerra Mundial. Ao
lado do minério de ferro, a extração e beneficiamento da mica foi o
motivo do financiamento americano para o saneamento e erradicação
da malária – Projeto Rio Doce e Projeto Mica.16
Diante de um contexto de expansão mercantil provocado pela
frente pioneira, durante as décadas de 1930 e 1950, houve uma enorme
demanda pela aquisição de terras no Vale do Rio Doce. Concomitante-
mente, cresceu a prática de irregularidades envolvendo requerentes e
funcionários do próprio governo estadual, a fim de se obter o direito de
preferência sobre a compra de terras devolutas e, em seguida, obten-

16 A instalação e manutenção de serviços urbanos básicos ficaram a cargo de um órgão fede-


ral, fugindo à soberania dos governos locais. (FONTENELLE, 1959; SIMAN, 1988; VILARINO,
2008).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 37


ção do título legítimo da mesma. As disputas pelos recursos da floresta,
pelos minérios (mica e pedras preciosas), pelo comércio (contrabando)
de madeira e pela posse das terras “devolutas” se tornaram intensos em
toda a região, desencadeando fortes conflitos sociais até 1964 (MARCÍ-
LIO, 1961; BORGES, 1988; SIMAN, 1988, MARTINS, 1981).
A questão da legitimação da posse de terras devolutas nos reporta
a Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, que ficou conhecida como Lei
de Terras. Essa foi a primeira legislação agrária brasileira, substitutiva da
legislação sesmarial, abolida em 1822.17 Ao caracterizar terra devoluta
em seu artigo terceiro, promoveu-se uma distinção clara entre o domí-
nio particular e o público18. Do ponto de vista jurídico a Lei de Terras é
vista como marco definidor da propriedade privada e instrumento para
promover o mercado de terras. Para historiadores, como SMITH (1990)
e COSTA (2007), essa lei foi fundamental para o avanço do capitalismo
no Brasil, principalmente a partir do fim da escravidão.
A Lei nº 601 buscava impedir o acesso às terras devolutas por
outros meios que não fosse a compra. Também determinava a regulari-
zação da posse ou ocupação não legitimada por título, até aquela data.
O Decreto nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854, ao regulamentar a Lei
de Terras determinou os procedimentos de medição e demarcação das
terras públicas e de domínio privado; a identificação das terras possuí-
das19; e a proteção e venda das terras devolutas. José Murilo de Carva-
lho (2003) fez uma descrição dos principais problemas de execução da
lei, indicando que na prática ela não promoveu a venda de terras devo-
lutas nem foi capaz de impedir a continuidade das ocupações, apesar

17 Para uma análise da legislação sesmarial e da Lei de Terras, consultar: (LIMA, 1935; GARCIA,
1958)
18 Art. 3º - São terras devolutas:
§ 1° - As que não se acharem aplicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou municipal.
§ 2° - As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem
havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em
comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.
§ 3° - As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apezar
de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei.
§ 4° - As que não se acharem ocupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em título legal,
forem legitimadas por esta Lei. (Lei de Terras de 1850 apud GARCIA, 1958. p.209-210).
19 Os registros das terras possuídas ou Registros Paroquiais de terras como também eram conhe-
cidos serviam como mecanismo de identificação das terras devolutas. Pela lógica da lei, ao
identificar as terras ocupadas ter-se-ia em contra partida, identificado as terras devolutas.

38 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


dessas terem caído na ilegalidade. A centralização na Repartição Geral
das Terras Públicas, subordinada ao Ministro e Secretário dos Negócios
do Império, a falta de informação e funcionários e a precariedade das
repartições especiais de terras públicas das províncias impediram que a
Lei de Terra atingisse o objetivo pretendido. A isso se somava o desin-
teresse dos particulares em legitimarem suas posses, favorecidos que se
sentiam pela facilidade de se apropriarem das terras devolutas.
As informações ministeriais sobre terras devolutas eram impreci-
sas e, até 1865, várias províncias (quase todo o Nordeste) não tinham
pareceres sobre a aplicação da lei. O Ministro e Secretário da Agricul-
tura, Comércio e Obras Públicas, inicia o relatório de 1870 afirmando
que a Lei de Terra de 1850 foi “mal executada e deve ser revista”. O
relatório afirma que a lei não conseguiu “impedir, como pretendeu, o
abuso da invasão das terras públicas, as quais continuam não só a ser
assoladas, extraindo-se madeiras de lei de suas matas para ser vendidas,
como também a ser possuídas ilegalmente e sem estorvo”. Reconhece-
se a dificuldade para executar a lei, particularmente porque isso exigia
a “completa separação dos domínios particular e público”, bem como
o registro das terras, porém isso não ocorreu. As iniciativas para estabe-
lecer colônias de imigrantes também não avançaram, apesar das des-
pesas realizadas para medições de terras, como “no fertilíssimo Vale do
Rio Doce, província do Espírito Santo, nas províncias da Bahia, Paraná
e outras, onde pretenderam estabelecer imigrantes americanos”20. Em
seguida o relatório demonstrava em números o fracasso da venda de
terras, uma receita de 412.933$000 para uma despesa em medição de
5.503:610$000.21 Sete anos mais tarde “reconhecia-se que a lei era ‘le-

20 Dez mil sulistas deixaram os EUA. Da parte que se estabeleceu no Brasil, quatrocentos foram
para o rio Doce. Judith Jones transcreve a carta do coronel Gunter para um amigo nos EUA,
na qual fala das terras do rio Doce: “Venha para cá e compre terras (...) que custarão 22 cents
o acre e você poderá pagar em quatro anos, melhor que qualquer uma nos Estados Unidos,
mesmo nas zonas mais férteis do Alabama.” A maioria dos americanos deixou o rio Doce,
dirigindo-se para São Paulo, onde a colonização prosperou. A terra que havia despertado tan-
ta esperança acabou expulsando-os: nuvens de pernilongos e outras pragas, o isolamento, a
irregularidade das chuvas, as secas prolongadas e a malária, que não deixava sobrar ninguém.
O coronel Gunter faleceu em 1883, mas deixou o filho Basil Manley, que foi nomeado repre-
sentante consular em Vitória, em 1889, tornou-se acionista de ferrovia e fez fortuna, vivendo
no Brasil até morte. JONES, Judith. Soldado descansa! São Paulo, Jarde, 1967.
21 Relatório do Ministro e Secretório da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, apresentado
a Assembléia Geral Legislativa, 1870, p. 16-18. Disponível em http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/
u1956/000023.html. Acessado em 18 de junho de 2009.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 39


tra morta’ em vários dispositivos”. As terras públicas continuavam a ser
invadidas e um projeto de reforma da lei foi elaborado ainda na década
de 1870, mas, só se concretizaria na República.22
Com a Constituição de 1891 as terras devolutas passaram ao
domínio dos estados, de acordo com o artigo 64, cujo caput afirma
“Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus
respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do terri-
tório que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações,
construções militares e estradas de ferro federais”23. Desde então
cada estado passou a adotar leis próprias sobre as terras públicas.
Em Minas Gerais a primeira legislação sobre a matéria foi a Lei nº 27,
de junho de 1892. Os estados, no entanto, seguiram as definições de
terra devoluta do artigo 3º da Lei de Terras de 1850, além de copiar-
lhe os mesmos fundamentos jurídicos. A lei mineira busca corrigir
um problema não resolvido pela legislação imperial, apesar de ser
apontado em relatório ministerial:
Se em lugar do sistema absoluto da venda de terras, fosse a lei
mais flexível e liberal, facultando em certos casos sua concessão
gratuita, embora em regra mantivesse o princípio da venda, acre-
dito que não se fariam esperar as vantagens dessa medida, em
bem da agricultura e do estado.
Por falta de meios para a aquisição de terras contíguas às estradas,
ao litoral ou aos grandes mercados, muitos indivíduos estabele-
cem-se em lugares longínquos.
Ali plantam somente o que lhes é estritamente preciso para viver;
porque a produção excedente ficaria nos paióis ou nas roças, sem
possibilidade de ser transportada para os mercados, tão caro seria
o frete...
Enquanto oscilamos em experiências sobre colonização, não se-
riamos desavisados, se também tentássemos a colonização nacio-
nal em pontos mais acessíveis ao comércio milhares de braços,
presentemente quase ociosos.
Essa tentativa depende, porém, da revisão da lei de 1850...24

22 Para uma maior apreciação dos resultados da Lei de Terras durante o Império ver: A política de
terras: o veto dos barões. In: CARVALHO, 2003.
23 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, Artigo 64.
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm.
Acessado em 17 de setembro de 2009.
24 Relatório do Ministro e Secretório da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Op. Cit., p. 18.

40 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


A legislação mineira condenou o ato de ocupar terras devolutas,
mas passou a incorporar elementos novos. O legislador reconheceu
que as ocupações e posses de terras devolutas fatalmente ocorriam e
continuariam a ocorrer, mesmo sendo ilegais. Assim, aceitou o possei-
ro25 como o motivo para a venda das terras devolutas. O novo lugar
ocupado pelo posseiro na legislação mineira é reforçado pelo artigo
24, em seu 4º parágrafo, da Lei nº 27 de 1892, quando reconhece
as posses anteriores a 1850 desde que tivessem o Registro Paroquial
previsto pelo Decreto nº 1.318 de 1854. A Lei nº 27 normatiza o
processo de venda de terra devoluta da seguinte forma: publicação de
editais com dados sobre a situação das terras, as áreas medidas e men-
ção à quantidade, qualidade e preço. Os lotes que não encontrassem
licitantes na hasta pública podiam ser vendidos diretamente a quem
os requeresse. O ato de ocupar terras devolutas foi considerado como
gerador de direito, como demonstra o artigo 19 da referida lei: os
ocupantes de terras devolutas sem posse legítima, com cultura e mo-
radia habitual, terão direito à compra das mesmas pelo preço mínimo
legal, logo que sejam medidas, demarcadas e expostas à venda. Desta
forma a legislação instituiu o “direito de compra preferencial” pelo
posseiro (GARCIA, 1958:174). A Lei n° 263, de 21 de agosto de 1899,
reforçou o direito do posseiro ao definir que bastava aos ocupantes de
terras devolutas, desde que comprovasse moradia habitual e cultivo,
apresentarem seus requerimentos de medição durante o primeiro ano
de ocupação (GARCIA, 1958: 176).
O legislador mineiro, desde o início, buscou enquadrar a apro-
priação privada de terras devolutas pelo posseiro em determinados
parâmetros legais. O marco nesse processo de regulação da posse e
propriedade de terra ocorreu com a Lei n° 1.144, de 05 de setembro
de 1930, ao ser criada a taxa de ocupação. Até então, apesar do reco-
nhecimento da posse de terras devolutas como geradora de direito, per-
manecia a proibição legal do apossamento de terras. Entretanto, ao criar
a taxa de ocupação o governo reconheceu que de nada valia a proibi-
ção legal contra o fato e, assim, legitimou a ocupação e posse de terras
devolutas, mesmo que de forma implícita. Esse era o reconhecimento

25 Entendido aqui como quem desbrava e ocupa terras devolutas com o intuito de habitá-las e
cultivá-las.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 41


de que a posse encerrava o “poder direto ou imediato sobre a coisa e
também absoluto ou erga omnes”, ou seja, se reconhecia que a “posse
prolongada e qualificada com os requisitos próprios pode se transformar
em domínio ou outro direito real”. (COSTA, 1998: 110)
O “direito preferencial de compra” e a “taxa de ocupação” ofe-
receram facilidades para transformar a posse de terras devolutas em
propriedade privada, por meio da venda. Essa orientação foi consagrada
pela Lei n. 550, de 20 de dezembro de 1949. A Constituição Brasileira
de 1946, no primeiro parágrafo do Artigo 156, impõe para a “preferên-
cia para aquisição” a condição da “morada habitual”, além de limitar a
25 hectares.26 A Lei n. 550/1949, no art. 26, não menciona a morada
habitual, como condição, coloca a necessidade de comprovar a cultura
efetiva de pelo menos da quinta parte dos terrenos para agricultura ou
de “três cabeças de gado vacum por alqueire geométrico, nos terrenos
de criação”. Para Garcia (1958: 64-65) o referido artigo “encerra um ver-
dadeiro absurdo, que tem servido de fonte a escândalos”. Isso porque
os particulares que comprovarem pelo laudo do agrimensor responsável
pela medição do terreno que possuem cultura ou criação de gado, po-
dem obter o direito preferencial de compra, independente de ter mora-
dia habitual nas terras. Estava aberto assim o mecanismo legal para excluir
o posseiro lavrador e permitir que “gente que nunca viu um pé de milho”
se torne proprietária de “grandes tratos de terras devolutas”.
O artigo 29 afastava ainda mais as chances de prevalecer o direi-
to constitucional do posseiro. Isso ao suprimir o direito preferencial de
compra do terreno devoluto pelo posseiro, caso esse não o requeresse
conforme edital de venda fixado pelo prazo de 60 dias. O princípio legal
está correto, pois não se pode recriminar a venda de terras a terceiros se
o posseiro não manifestou interesse de comprá-la, mesmo tendo prefe-
rência. A questão diz respeito à possibilidade real de o posseiro tomar
conhecimento de que suas terras foram postas a venda, na medida em
que não existia a obrigava da notificação direta ao interessado. Os edi-
tais eram publicados no jornal de maior circulação local (se existissem)
e no escritório do Distrito de Terras da localidade, por um prazo de 60
dias. Como o lavrador pobre, analfabeto, isolado na sua posse pela falta

26 BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, Artigo 156.
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao46.htm.
Acessado em 19 de novembro de 2009.

42 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


de estradas ou pelas chuvas, sem acesso a informação, poderia tomar
conhecimento da publicação do edital?
A questão se coloca na medida em que a posse no Direito Bra-
sileiro, apesar de se reconhecer sua eficácia erga omnes, “não constitui
um direito real típico”. O portador de título de propriedade pode “opor
o seu título ao possuidor e recuperar a posse”. O contrário também se-
ria possível, isto é, o possuidor teria hipoteticamente condição de opor
eficazmente a comprovação de sua efetiva posse ao proprietário. (COS-
TA, 1998:110). Entretanto, a segunda hipótese encontra-se prejudicada
pela distinção que se pode fazer entre “a forma e a produção da forma,
entre forma e poder”, que é um aspecto dos processos de regulação,
de modo que as “exigências normativas que no direito se voltam contra
o próprio direito de forma paradoxal”, afastam-no do que é justo, pela
ausência objetiva de pré-condições para fruir do direito, em função da es-
fera da racionalidade estar dissociada da realidade. (FISCHIER-LESCANO,
2010:172-175). O alargamento da categoria de posseiro, pelo legislador
mineiro, possibilitou incluir junto ao lavrador podre os fazendeiros, co-
merciantes, industriais, funcionários do governo estadual, profissionais
liberais, agentes de grandes companhias, empresas madeireiras e grandes
companhias siderúrgicas, que passaram a disputar a posse da terra. No
contexto marcado por enfrentamentos de poderes com base na violência,
a possibilidade garantida constitucionalmente do fruir do direito pelo la-
vrador pobre ficou prejudicada pela realidade vivenciada num quadro de
desequilíbrio de forças entre os agentes da ordem social objetiva.
Como observa Thompson (1997:351), ao questionar as interpre-
tações simplistas sobre a lei, na sua conclusão de Senhores e Caçadores,
a ação regulatória do Estado, oposta a uma tradição assentada na prá-
tica decorrente da longa duração, não contrapõe propriedade e não-
propriedade, no sentido da propriedade privada. Na verdade, é um
momento de transição no qual concepções distintas de propriedade são
contrapostas socialmente. O direito de propriedade privada se consti-
tuiu em detrimento de outras formas de apropriação da terra. Para o
desenvolvimento da economia capitalista foi decisivo a constituição de
um mercado de terra, porém esse mercado não se constituiu sem que
se eliminassem dois grandes obstáculos, segundo Hobsbawm (2006),
“os proprietários de terra pré-capitalista e o campesinato tradicional”.
Isso se dá pela combinação da ação política e econômica, na qual a

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 43


instituição da propriedade privada da terra joga peso significativo para
o processo de transição. A norma jurídica (Lei) se apresenta como prin-
cipal componente para implantação e sustentação do processo de mer-
cantilização da terra.
No Brasil, a lei institucionaliza a frente pioneira ao promover o
fim da fase dominada pela posse, característica das frentes de expansão.
Isso se dá porque a “frente pioneira formula o seu antagonismo com
a frente de expansão, em torno de um valor: a propriedade privada
da terra...” (MARTINS, 1975:47) O Estado, ao determinar a aplicação
da norma jurídica e ao criar os mecanismos burocráticos e coercitivos
para sua execução, promove a alteração do significado da terra e, deste
modo, altera a dinâmica territorial.
Estudos de casos
Em nosso estudo de caso selecionamos cinco processos referentes
à legitimação de terras nas regiões do Rio Doce e Mucuri, conduzido
pelo Departamento de Terras, Matas e Colonização de Minas Gerais,
por meio de distritos de terras localizados nos municípios dessas regiões.
O governo mineiro, nas duas primeiras décadas do século XX, tratou de
ampliar o número de distritos de terras para a medição e regularização
das terras devolutas, sendo que a maior parte dos distritos de terras lo-
caliza-se na região do Vale do Rio Doce. Nesse período iniciaram-se as
obras de infra-estrutura (principalmente estradas e pontes) e a atenção
do governo voltou-se para as terras devolutas.
O primeiro caso27 exemplifica a formação de um mercado parale-
lo de venda de posses, entendido pelos compradores como garantia de
legitimação de domínio. Em 1925 o 4° Distrito de Terras de Caratinga fez
a medição de um lote de terras localizado a nove quilômetros da cidade,
em um lugar denominado “Ribeirão do Lage”. O pedido da medição não
havia sido requerido pelos posseiros, mas mesmo assim a medição e ava-
liação do lote foram aprovadas pelo Chefe do Distrito. Como os ocupan-
tes28 não se manifestaram para a compra, as terras foram postas a venda.
Entretanto passaram três hastas públicas sem que ninguém aparecesse,

27 Processo N°. 2276. Requerente: Manoel Rocha e Antonio Avelino Rocha. Arquivo Geral do
Instituto de Terras do Estado de Minas Gerais – ITER.
28 De acordo com o memorial do agrimensor as terras eram ocupadas por Manoel Rocha e An-
tonio Avelino Rocha.

44 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


até que em 1928 uma proposta de compra foi aceita. O comprador assim
que recebeu o título do governo remeteu-o ao Registro Torrens29. As terras
que estavam ocupadas passaram a pertencer ao particular cuja proposta
de compra foi aceita fora da hasta pública.30
Entretanto, depois da venda, os posseiros encaminharam por
meio de advogado procurador uma carta ao Secretario da Agricultura,
protestando contra a venda das referidas terras. Eles alegaram serem os
verdadeiros ocupantes e pediram a anulação do Registro Torrens, além
de se comprometerem a pagar pela terra o mesmo valor da venda. O
fundamento para a solicitação são duas escrituras públicas de compra e
venda dessas mesmas terras, apresentadas com o intuito de provar o di-
reito dos reclamantes. As duas escrituras deixam claro que se tratava de
terra devoluta e dependiam de título. Entretanto, para os requerentes o
fato de estarem munidos de um documento público que comprovava a
compra da terra (na verdade houve a compra do direito de posse) teria
garantido o seu direito, mas perante o Direito Brasileiro a posse não é
um direito em si mesmo nem era possível comprar esse direito. “A posse
é um estado de fato. Se a lei protege, é visando à propriedade de que
ela é manifestação.” Nesse sentido, seria um “direito especial cujo fun-
damento dos interditos assenta-se na aparência da propriedade”. (BO-
LONHINI JR., 2004:37). O parecer jurídico foi pelo indeferimento da
reclamação e afirmação da legalidade da venda, com base no fato da
hasta pública permitir a venda a quem quer que seja. E mais, o recla-
mante não havia exercido o direito preferencial, mesmo o edital tendo
sido expedido e publicado por três vezes.
A venda do direito de posse era uma prática comum e motivo de
conflitos, se o comprador não estivesse ciente de que apenas adquiria o
direito preferencial de compra. Para um “comprador do direito” valia as
mesmas regras impostas pela legislação ao antigo posseiro, nos mesmos
termos, sem que o documento apresentasse validade. Como a defesa
possessória não esta garantida por lei e a legislação mineira abria brecha
no direito constitucional, mesmo o ocupante tendo morada habitual,
ficava desamparado pelo Estado, se não manifestasse a vontade de exer-
cer o direito preferencial à compra. Dessa forma o posseiro ocupante

29 O Registro Torrens é uma matrícula de imóvel incontestável após sua efetivação e depende de
se verificar antes inexistência de contestação.
30 Durval Alexandre dos Santos comprou as terras mesmo não sendo o posseiro ocupante.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 45


não tinha mecanismos de se proteger contra terceiros, o que propiciava
situações de reais conflitos.
O segundo caso31 permite discutir os processos de legitimação de
terras devolutas nas décadas de 1940 e 1950, nos quais se encontra o
choque entre a racionalidade da lei e a realidade social marcada pelo
favorecimento político. O exemplo é de uma requerente que pretende
adquirir o título de uma enorme área, vizinha a outra já titulada em nome
de seu marido. O processo transcorre ao longo de uma década, entre os
anos de 1941 e 1951. O lote objeto da legitimação é uma área de 435
hectares localizada no distrito de Brejaubinha, município de Governador
Valadares, no lugar denominado Ribeirão da Chuva. O Distrito de Terras,
Matas e Colonização encaminhou o processo para o Arquivo Central,
para aguardar resolução legislativa, por se tratar de área superior a 250
ha. A solicitante era casada e em nome de seu marido encontra-se regis-
trado um título de propriedade de uma área adjunta à sua, com 493 ha.
O total de 928 ha era muito superior ao definido pela Lei nº 171, de 14
de novembro de 1936. Diante do exposto o Secretário da Agricultura
emite um despacho de indeferimento da proposta de compra formula-
da pela requerente e alega que as terras devem ir a hasta pública.
A requerente então, com o intuito de que o Secretário revogue o
referido despacho, reúne um dossiê a fim de comprovar que seu marido
“exerce as profissões de agricultor e pecuarista”, ou seja, a terra pre-
tendida era cultivada. O dossiê conta com declarações de coletores do
estado e da União, do presidente da Câmara de Vereadores e do geren-
te do Banco do Brasil. O Prefeito de Governador Valadares na época,
genro da requerente, encaminha uma carta ao Secretário da Agricultura
solicitando reconsideração do despacho de indeferimento à proposta
de compra realizada por sua sogra. “Esse apelo faço-o particularmente a
V. Excia. por se tratar de terras pertencentes aos meus sogros que ali la-
butam há mais de 20 anos, tirando da referida propriedade os recursos
necessários para criarem uma família numerosa de 15 filhos.” Argumen-
ta que é dever do Estado proteger os filhos da Nação que desbravaram
as matas e lavraram a gleba. Sugere ao governador mandar fazer uma
sindicância in loco para comprovar o direito dos sogros.

31 Processo Nº 14376. Requerente: Helena Coelho Cipriano. Arquivo Geral do Instituto de Terras
do Estado de Minas Gerais – ITER.

46 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


O governador revoga o indeferimento e concede o direito pre-
ferencial de compra das terras, condicionada a comprovação de que
a taxa de ocupação foi paga de 1938 até o exercício de 194832. A in-
fluência de parentes com alguma autoridade na região se sobrepõe às
condições previstas na lei. A carta do prefeito foi decisiva para a con-
cessão da terra, independente do fato dos requerentes não residirem
no lote, mas em Governador Valadares, e de não manterem prepostos
ou colonos e, assim, não poderem fazer uso do direito preferencial de
compra. O fato do marido da requerente já possuir grande proprieda-
de seria um grave impedimento para aquisição do terreno, porém isso
também não foi levado em conta.
A alternativa “legal” foi a exigência da comprovação do pagamen-
to da taxa de ocupação, instituída pela Lei nº 1.144, de 05 de setembro
de 1930. Essa comprovação foi a maneira encontrada pelo governador
de Minas Gerais para legitimar a condição de posseiro e, dessa forma,
possibilitar o exercício do direito de compra preferencial. A taxa de ocu-
pação, para além de garantir legitimidade para a efetiva posse, possibili-
tava que determinada pessoa a pagasse por dez anos, sem necessidade
de comprovar essa efetiva ocupação (apto para exercer o direito pos-
sessório). Como a coletoria não fazia questionamentos ou investigava
a veracidade da ocupação, o funcionário arrecadador não tinha como
saber se realmente o pagador era o posseiro ocupante da área declara-
da. Também não havia controle para verificar se alguém já pagara taxa
sobre a mesma área, ou até mesmo se o terreno em questão era ou não
devoluto. Essa falha abria brechas para se ludibriar a lei e obter grandes
extensões de terra a custa de posseiros que efetivamente tinham mora-
da habitual, nos termos garantidos pela Constituição de 1946.
O terceiro caso33 assemelha-se ao anterior, pelo fato de não
existir a posse efetiva do requerente, porém traz novos elementos re-
lacionados a situações conflituosas que envolvem grilagem de terra.
O processo de legitimação transcorreu ao longo de treze anos, entre

32 Art. 1º da Lei n. 1.144 de 5 de setembro de 1930 (lei que institui a taxa de ocupação) – Os
ocupantes de terras públicas que houverem pago durante dez anos o imposto de ocupação,
legitimarão as suas posses mediante o pagamento do custo da medição, desde que sejam titu-
lares de direitos preferenciais, nos termos do regulamento atual.
33 Processo N° 5390. Requerente: Amadeu Meloto Neto. Arquivo Geral do Instituto de Terras
do Estado de Minas Gerais – ITER.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 47


1948 e 1961. O lote em questão abrange uma área de 228 ha, localizado
no distrito de Frei Serafim, município de Itambacuri, no lugar denomina-
do “Urupuca”. O lauto técnico classificou o terreno como de muito boa
qualidade, todo coberta por matas e com aptidão para cultura de diversos
cereais. O requerente residia na cidade de São Paulo e o que alegava para
adquirir a terra era o fato de ser agrônomo e, portanto, estar preparado
para aproveitá-la. Como não residia no terreno nem mantinha colonos
ou prepostos; como o terreno não possuía benfeitorias ou culturas, a for-
ma encontrada para obter a terra foi alegar o direito concedido pelo arti-
go 97 da Lei nº 550, de 20 de dezembro de 194934.
A leitura do processo permite constatar que houve um conluio
que envolveu o requerente agrônomo, um grileiro e, provavelmente, o
agrimensor que mediu o lote. Segundo informações contidas no ofício
do engenheiro chefe do Escritório Especial de Terras de Governador
Valadares, um suposto posseiro pediu que a medição do lote fosse
feita em nome do agrônomo (o requerente do lote), mas depois pro-
testou contra o ato, alegando manter morada habitual e cultura efetiva
no terreno; também declarou ter pagado pela medição do mesmo.
Conforme o processo, esse fato se assemelha ao ocorrido em outros
quatro processos de legitimação de terrenos situados na mesma área
(Urupuca) e medidos pelo mesmo agrimensor. Cerca de um ano de-
pois, supostos posseiros que questionaram a medição do terreno e o
direito do agrônomo, desistem da reclamação alegando que, ante a
impossibilidade de provas concretas sobre os seus direitos, não de-
sejam trazer embaraços à legitimação em nome do interessado. Essa
renúncia pode ser conseqüência de possíveis ameaças sofridas pelos
posseiros, como consta no aludido ofício:
ali operava de maneira desumana o Sr. (x), portador de uma car-
teira a título precário e a mando do 3º Distrito de Terras, sediado
em Teófilo Otoni. Esse Dr. (y) mulato que via o mundo através de
um par de óculos escuros cumpria ali religiosamente as ordens do
Sr. (x) que está pronunciado por crime de morte praticado naque-
la época na pessoa de um pobre posseiro naquelas imediações.

34 Art. 97 – Aos diplomados por escolas de agricultura ou de veterinária, mantidas ou subvencio-


nadas pelo Estado, que tenham requerido medição e cujos trabalhos geodésicos tenham sido
iniciados até a data desta lei, fica autorizado o Governo a lhes deferir a concessão e expedir o
respectivo título definitivo de propriedade, uma vez efetuados os pagamentos devidos.

48 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


No final o requerente (agrônomo) foi privilegiado em detrimen-
to dos posseiros, obtendo o título de propriedade do terreno. Passa-
dos cerca de cinco meses da titulação, o requerente solicitou cópias
da planta e do memorial de medição da terra, para fins de Registro
Torrens, facultativo desde a Lei n. 1.171, de 7 de outubro de 1930.
A pressa em solicitar esse registro, pouquíssimo utilizado, demonstra
uma aspiração de prova incontestável de domínio sobre o terreno,
numa situação de suspeitas acerca da legitimidade do direito sobre a
área. Desta forma afastava-se legalmente a mancha de grilagem que
pesava sobre a obtenção da terra.
O último caso35 se refere a um terreno localizado no distrito de
Frei Serafim, município de Itambacuri, no lugar denominado “Lagoa
Boa Vista”, e ilustra o confronto entre as frentes de expansão e pioneira
numa zona banhada pelo rio Urupuca.36 O início do processo se deu
em setembro de 1950, quando Thiago Luz requereu, em nome do filho
Friedrich Luz de oito anos de idade, a medição de um lote de 250 ha,
alegando cultivar mais de um quinto da área37. Meses antes de requerer
a medição, nomeou o advogado Washington Walfrido do Nascimento
para seu procurador, da sua esposa e de seus sete filhos menores. O
advogado havia exercido os cargos de agrimensor e chefe do Distrito de
Terras de Teófilo Otoni, logo estava numa posição vantajosa para prestar
os serviços de orientação, intermediação junto ao referido distrito e de
defesa dos interesses do cliente.
A medição do lote e a avaliação dos terrenos foram aprovadas em
janeiro de 1953, porém no processo consta uma carta de 1951, na qual
Thiago Luz requer a compra preferencial fora do edital de convocação
(hasta pública) pelo preço da avaliação do lote, agora com área medida
de 216 ha. Anexou como prova comprovante de pagamentos da medi-
ção, do custo total do lote e selos para títulos. Como o requerente pode
ter quitado o lote dois anos antes da aprovação da medição e do preço
das terras? Tudo indica que o pai do requerente desconhecia o lote

35 Processo Nº. 159, em nome de Friedrich Luz. Arquivo Geral do Instituto de Terras do Estado
de Minas Gerais – ITER
36 Esta zona foi onde ocorreu o episódio conhecido como “Demônio de Catulé”, em
1955,estudado por Castaldi.
37 250 ha era o limite permitido para a compra de terras devolutas sem autorização da Assem-
bléia Legislativa.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 49


reivindicado para compra, pois mencionou na solicitação inicial a área
correspondente ao limite legal do direito à compra preferencial.
Antes da efetivação da venda e emissão do título era necessário
verificar se o comprador estava apto: não adquiriu outras terras, não era
estrangeiro, o cônjuge não possui propriedade, não era menor de idade
etc. Como o requerente era “menor absolutamente incapaz” a Seção de
Concessões da Secretaria de Agricultura sustou a venda e mandou ar-
quivar o processo até 02 de dezembro de 1958, quando esse se tornaria
capaz, ao completar 16 anos. A falta de aptidão determinava a perda
do direito de preferência de compra e a realização de hasta pública,
mas a decisão foi suspender o andamento do processo. O pagamento
das terras antecipadamente pelo pai de Friedrich Luz foi uma manobra
bem sucedida, pois impediu as terras de irem para hasta pública. Isso
não teria sido possível sem a devida orientação do experiente advoga-
do. Com o processo paralisado bastava o requerente pagar a taxa de
ocupação a fim de garantir a defesa da posse38. No processo consta
parecer do Departamento de Terras, Matas e Colonização informando
que o andamento de todos os processos de concessões de terras que se
acham paralisados por motivos da menoridade do requerente exigiam a
apresentação da prova do pagamento da taxa de ocupação relativa ao
exercício corrente ou a exercícios anteriores.39
A taxa de ocupação servia para forjar ocupações e requerer o
direito de compra preferencial, constitucionalmente um direito do
posseiro com morada habitual. Entretanto, como veremos a seguir, o
comprovante do pagamento da taxa podia ser ineficaz para assegurar
o direito à posse, uma vez que outro agente interessado na mesma ter-
ra podia pagar a referida taxa e pleitear a preferência, em detrimento
do ocupante efetivo. Com o processo paralisado ocorreu a primeira
contestação à medição do terreno pelo agrimensor e pedido de direito
de compra preferencial, interposta por Joaquim de Souza e seu filho
Assis de Souza Simões, em 27 de agosto de 1954, visando defender o
direito sobre terreno de 24,20 há que supostamente possuíam na área
medida. Segundo os reclamantes, Friedrich Luz não teria direito sobre

38 Ao longo de todo o processo o interessado através de seu procurador requer a continuação


alegando já ter pagado as terras e apresenta o pagamento da taxa de ocupação.
39 Parecer do Departamento de Terras e Matas, de 28 de junho de 1954. Processo 159, em nome
de Friedrich Luz.

50 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


todo o lote porque eles estavam na posse dos 24,20 ha, desde o ano
de 1946, e pagavam regularmente a taxa de ocupação sobre a área.
No mês seguinte à contestação, o procurador de Friedrich Luz pede a
reabertura do processo de venda do terreno, alegando que as terras
já estavam quitadas. O pleito dos reclamantes foi encaminhado para
o Departamento de Terras, Matas e Colonização, que solicitou pare-
cer jurídico. Esse foi contrário aos reclamantes, pois eles “têm contra
si a palavra do Sr. Chefe do 3º Distrito de Terras e do agrimensor que
procedeu a medição do lote”, que confirmavam ser Friedrich Luz o
único “ocupante” do lote.
Para o inspetor Abeilard de Carvalho Costa, encarregado de ve-
rificar in loco a veracidade da reclamação, essa não procedia já que o
serviço do agrimensor Carlos Pantel estava correto. Segundo ele, a área
reclamada estava situada fora do terreno de Friedrich: “está encravada
no lote já legítimo do Sr. Geraldo Landi” (Deputado Estadual), que era
confrontante de Friedrich Luz. O inspetor afirma, ainda, que os recla-
mantes haviam abandonado a área e as benfeitorias há muito tempo.
No transcorrer da contestação, Friedrich Luz atinge a idade de 16 anos
e seu procurador novamente solicita a reabertura do processo. A Seção
de Concessões verificou que em nome do requerente não havia ou-
tras concessões e, em seguida, a Consultoria Jurídica emite o parecer
favorável à venda. Entretanto, um telegrama emitido pelo Engenheiro
Chefe do 7º Distrito de Terras faz com que o processo seja novamente
paralisado, em função da medição feita em nome do posseiro Sebastião
Gonçalves da Silva. Nessa medição se constatou a existência de ben-
feitorias, cercamentos e construção de estradas “localizadas em uma
sobra de terras ou em área medida para Frederico de tal”. O posseiro
apresentava justificativa fundada em depoimentos de testemunhas que
confirmavam a posse, julgada por sentença favorável. Os testemunhos
foram prestados em 1956, em função da justificação e reclamação de
posse por parte de Sebastião Silva e Onofre Batista contra com Horácio
Luz, irmão de Tiago Luz e tio de Friedrich.
A fim de garantir o andamento do processo, o pai de Friedrich
recorre às instituições e pessoas influentes que poderiam ajudá-lo. Em
setembro de 1958 o Secretário de Estado da Agricultura Álvaro Marcílio
recebe uma carta do Sr. João Mendes de Souza, então Diretor da Car-
teira de Crédito Agrícola e Industrial do Banco do Brasil S/A:

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 51


Venho encarecer a você a gentileza de examinar com toda a sua
peculiar boa vontade a possibilidade de despachar os requeri-
mentos de Friedrich Paul Ferreira Luz e Varolquides Pinheiro da
Costa, sobre a concessão de terras localizadas, no Distrito de Frei
Serafim, Município de Itambacuri, nesse Estado. Tendo o máximo
de interesse em servir a esses amigos, conto com sua interveniên-
cia para a solução do assunto.40

Após essa carta o processo volta a ter andamento, mas foi exigida
nova medição e avaliação do lote, por parte da Secretaria de Estado da
Agricultura. Em 1956, Álvaro Marcílio solicita relatório sobre a veracidade
das reclamações acerca de invasões e medições de terras devolutas, situ-
adas na região de Itambacuri. Apesar de não haver referência a Friedrich
Luz, consta no aludido relatório conflito envolvendo Horácio Luz. Assim, o
Chefe do 2º Distrito de Terras opinou pela localização precisa do lote de
Friedrich Luz, para que se pudesse ter um conhecimento exato se de fato as
terras pleiteadas pelos reclamantes estavam ou não incluídas nessa área.
Entendemos que no processo de Friedrich Luz a garantia de com-
pra preferencial foi utilizada contra a presença de posseiros, tais como
Sebastião Gonçalves, Onofre Batista, entre outros. Sebastião Gonçalves
não era posseiro primitivo, mas teria comprado o direito de posse de
Joaquim Assis. Essas terras foram englobadas na medição solicitada pelo
pai do requerente Friedrich Luz, irmão de Honório Luz. Esse fato gerou
disputa judicial pela defesa do direito de posses. O término da disputa
foi favorável ao filho de Tiago Luz, porque os juízes consideraram “que
seus atos possessórios não foram interrompidos”, que as taxas de ocu-
pação haviam sido pagas regularmente e, portanto, lhe cabia o direito a
compra preferencial. Independente de terem moradia habitual no lote,
o juiz aceitou como prova da ocupação a existência de benfeitorias e
os testemunhos favoráveis arrolados pela defesa. Esses testemunhos nos
permitem verificar a valorização monetária da terra e sua mercantiliza-
ção. Segundo Sebastião de Almeida Fonseca:
Qualquer pessoa que venha dizer que tivesse posse ou que tenha
posse neste lugar não é verdadeiro, pois foi a primeira pessoa
que entrou na zona e lá comprou 105 posses e fez toda estrada
e caminhos nos terrenos e Joaquim de Souza apenas quis tentar
entrar numa posse que estava ocupada pelos réus ...

40 Processo Nº. 159. Requerente: Friedrich Luz.

52 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Os processos, envolvendo Tiago e Horácio Luz, foram incluídos
no pronunciamento do Secretário de Estado da Agricultura Álvaro Mar-
cilio, deo dia 2 de dezembro de 1957, quando esteve perante a Comis-
são Parlamentar de Inquérito da Assembléia Legislativa de Minas Gerais
(MARCÍLIO, 1961: 43-45). A quase totalidade dos protestos contra as
pretensões dos dois irmãos “se referiam a terrenos de há muito medidos
e demarcados”. Os peritos encarregados da investigação encontraram
um total de 32 escrituras públicas de compra e venda de terras, nas
quais Tiago Luz era o comprador, além da existência de seis processos
em tramitação referentes à solicitação de direito de compra preferen-
cial de terrenos em nome dos filhos de Tiago Luz, exceto Friedrich.
(MARCÍLIO, 1961:44). Na sua exposição à CPI, o secretário afirma que
Tiago Luz havia comprado 105 posses e 32 propriedades na região do
Urupuca. Pelo testemunho de Agenor Querubim da Silva no referido
processo judicial verifica-se que a família Luz conseguiu criar condições
para a compra preferencial ao contratar mão-de-obra para derrubar a
mata, construir benfeitorias e dar início ao cultivo41.
Que os empreiteiros dos réus abriram a posse e ele depoente
plantou capim nos terrenos a mando dos réus; que esta área até
hoje está em poder dos réus; que plantou o capim na posse em
questão em 1949; que quem fez a derrubada da posse foi o fi-
nado Manoel Crioulo; que após a derrubada os empregados dos
réus plantaram o capim e construíram barracas.

De forma conclusiva este processo ilustra a dinâmica dos con-


flitos existentes nessa região em virtude do choque direto que sofre a
frente de expansão, na medida em que a terra adquire valor monetário
com o avanço da frente pioneira. Pode-se responder negativamente ao
questionamento de Martins (1975:45) sobre o suposto caráter evolutivo
da frente pioneira: “Cabe, pois, indagar se sociologicamente é válido o
pressuposto de que a zona pioneira é adequadamente estudada quando
entendida como resultado da evolução de um tipo a outro (da frente de
expansão para a frente pioneira). Ou, em outros termos, cabe perguntar
se há alguma evolução”. No caso da região do Vale do Rio Doce não
houve essa evolução, pois a rodovia Rio-Bahia, a CVRD, a indústria si-

41 O depoimento Agenor Querubim da Silva também comprova que a frente pioneira derrubava
a mata para formar pastos para a pecuária bovina, saltando o estágio da ocupação agrícola.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 53


derúrgica e o saneamento conduzido pelo SESP exerceram um papel
indutor para o surgimento da frente pioneira.
Saneado, porém, o que antes se considerava o ‘inferno verde’,
sequiosos latifundiários, mesmo quando impossibilitados de pre-
encher as exigências da lei, apressaram-se em requerer conces-
sões imensas para transformá-las em pastagens ou em negócios
fartamente compensador (MARCÍLIO, 1961, p. 15).

Acreditamos que os estudos de situações particulares fornecem


luz para a compreensão dos conflitos existentes em locais de consti-
tuição da frente pioneira. Os estudos dos processos de legitimação de
terras devolutas refletem o momento critico pelo qual passava a região
do rio Doce nas décadas de 1940, 1950 e 1960. As palavras do Juiz de
Direito Plínio Dias de Andrade são emblemáticas:
Esta questão possessória constitui um dos grandes problemas em
nossa Comarca e quando aqui chegamos encontramos diversos
casos e hoje, felizmente existem apenas uns seis casos em anda-
mento caminhando para uma rápida solução. A “fome de terras”
em nosso município é grande, mas, talvez, com as novas des-
cobertas, de outras áreas habitáveis, o problema será facilmente
solucionado, por precaução seria ate mesmo prudente que envi-
ássemos pedidos aos arrojados “Gagarim”e a “Chepard” para que
pudéssemos ceder mais terras a esses invasores inconformados
que nos amolentam constantemente.42

Os estudos de caso permitem contextualizar a questão da dispu-


ta pelas terras devolutas do Rio Doce, a partir das grandes transforma-
ções iniciadas com a industrialização brasileira, na década de 1930.
Também permitem entender as diferenciações territoriais produzidas
pelos confrontos entre a frente de expansão e a frente pioneira, as-
sim como o papel da propriedade privada, do mercado de terra e do
Estado na formação da estrutura agrária assentada no latifúndio. O
posseiro que é o sujeito da frente de expansão necessitava da floresta
e de uma estratégia de ocupação fundada na cooperação vicinal e na
solidariedade orgânica, porém a devastação das matas e a proprieda-
de privada da terra afeta diretamente as duas condições anteriores. A
técnica utilizada pelo lavrador pobre, para manter-se necessitava de
área compatível como numero de famílias existentes e a possibilidade

42 Processo 159, em nome de Friedrich Luz.

54 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


de avançar para novas zonas de floresta. Os grandes investimentos
de capital, a abertura das vias de comunicação e transporte, a ligação
com os grandes centros industriais e a formação do mercado de terras
tornam inviável a sobrevivência dessa economia rústica.

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58 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Sociedade do tempo versus sociedade do espaço:
o percurso de dois destinos -
Chonim de Cima (MG) e Toledo (PR)
Patrícia Falco Genovez1
José Luiz Cazarotto2

É
muito provável que um morador da cidade de Toledo, no
Oeste do Paraná, jamais tenha ouvido falar de Chonim
de Cima. É com alguma probabilidade, ainda que remo-
ta, que um morador de Chonim de Cima, no Sertão do Rio
Doce de Minas Gerais, tenha ouvido falar de Toledo. Mas por
que deveriam ser mutuamente familiares? Haveria um ponto
em comum entre estas duas localidades? Haveria motivos para
isto? Talvez possamos dizer que sim, apenas como estratégia,
como um desafio à compreensão de fenômenos sócio-culturais
e como um exercício instigante para se pensar o processo de
territorialização de ambas.
Tanto a vila de Toledo como a de Chonim de Cima foram es-
tudadas pelo antropólogo Kalervo Oberg (1901-1973) na primeira
metade dos anos 1950; ambas eram então vilas no sertão e se apre-
sentavam mais ou menos nas mesmas condições. Os seus estudos
que temos em mente aqui, para o presente ensaio, referem-se à vila
de Toledo nas matas do oeste do Paraná e ao patrimônio de Cho-
nim de Cima, um vilarejo com seus arredores no sertão mineiro do
rio Doce, hoje distrito de Governador Valadares. (OBERG, 1958.
OBERG; JABINE, 1960) 3

1 Doutora em História Moderna e Contemporânea (Cultura e Poder), UFF. Professora da Pós-


Graduação Stricto Sensu em Gestão Integrada do Território da UNIVALE. Pesquisadora do
Programa de Memória Social do Vale do Rio Doce.
2 Doutor em Psicologia Cultural UPS – Roma, USP, professor de Psicologia da UNISAL, membro
ativo da The Royal Anthropological Institute (London), membro ativo do Anthropos Internatio-
nal Institute (Bonn).
3 A produção literária de Kalervo Oberg é ampla mas lidamos aqui principalmente com duas de
suas obras, que nos interessam diretamente.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 59


Ainda que Chonim de Cima tenha iniciado sua existência, e seu
processo de territorialização, em 1895 e Toledo em 1946,4 os seus
inícios foram praticamente os mesmos: a abertura de uma clareira na
mata por um grupo de pessoas com um misto de pioneiros e de aven-
tureiros e empreendedores. Muitas vezes, em termos meio míticos, diz-
se que da natureza da primeira obra ou da direção do primeiro gesto,
traça-se o destino de todo um empreendimento. Pode ser, afinal, se
pisamos no primeiro degrau de uma escada, a intenção é clara.
Mas talvez, melhor, possamos dizer com Châtelet, que mais que
de um gesto mítico inicial, é o caos que é fascinante. E tanto mais fas-
cinante porque, segundo Bergson (1984), ele vai permitir a construção
de uma Ordem Desejada e não mais a ordem mecânica da simples
relação de causa e efeito, uma ordem mecânica explicável. Em sua
reflexão, Bergson ainda contrapõe a inteligência e o instinto: a inteli-
gência não admite o imprevisível e vive de um construir e reconstruir
um passado e rejeita toda criação nova. Já é da natureza do instinto
fazer brotar e mais que tudo, inventar e inovar (CHÂTELET, 1998, p.
169-207; BERGSON, 1984, p. 193). Tem isto lá algum sentido no caso
do primeiro gesto das vilas em questão? É possível delimitar, afinal,
qual foi o primeiro gesto? Estaria claro para os instauradores do pri-
meiro lugar qual seria a sua intenção e planos? Poderíamos atrelar esse
primeiro gesto a um dado padrão nos processos de territorialização
que se seguem em Chonim de Cima e Toledo?
Se não vejamos, enquanto Chonim de Cima teve como sua pri-
meira obra uma igrejinha, Toledo teve uma serraria (OBERG; JABINE,
1960a, p. 105);5 enquanto que no caso de Chonim de Cima o primeiro

4 Entretanto, Toledo já fora elevado à categoria de município em 1951; Chonim de Cima é ainda
hoje Distrito de Governador Valadares. Segundo o site Portaltoledo, não se deve desconsiderar
que Toledo estava imerso num programa federal de ocupação das áreas de fronteira, das déca-
das de 1940 e 1950. Apesar da passagem de europeus desde 1554, a região de Toledo passa
a constar no mapa somente com a compra daquelas terras por ingleses radicados em Buenos
Aires, em 1905, para fins de exploração de madeira.
5 Reconheça-se aqui a presença de certa retórica de contraste da parte dos autores. Na reali-
dade já em 1946, em Toledo, esteve o padre italiano Antônio Patui junto com os primeiros
trabalhadores. Este membro da Congregação do Verbo Divino, entidade da Igreja Católica, que
derrubou ele mesmo com um trator, parte da floresta para a construção da igreja do Imaculado
Coração de Maria, fundou a sede da atual imponente Catedral de Cristo Rei. Este padre, por
sinal, tem uma estátua em sua homenagem numa das principais praças cidade e uma rua com
o seu nome em frente ao Estádio de Futebol.

60 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


gesto simbólico-ativo fundador foi o de um destemido, descrito como
Moisés, ter decidido embrenhar-se nas matas com a sua família, no caso
de Toledo o gesto simbólico-ativo foi um gerente arrumar uns aventu-
reiros em Farroupilha e colocá-los num caminhão e rumar pelo sertão
do Paraná; um devoto em Chonim separa um pedaço de terra para a
igreja de Nossa Senhora da Piedade e no caso de Toledo um empresá-
rio, bem longe dali, em Porto Alegre, na forma prosaica e bem pouco
religiosa, assina a compra de uma fazenda (OBERG; JABINE, 1960a, p.
23; OBERG, 1958, p. 19).
Apesar de se poder lidar com um material mais amplo, dado os
objetivos deste ensaio, temos em mente, dois discursos em especial: o
resumo da história das origens de Chonim feita por um dos descenden-
tes do fundador e um discurso-proposta de instalação de um frigorífico
em Toledo, proferido por um dos administradores do empreendimento
agrário que resultou na cidade de Toledo. Dentro destes discursos temos
as idéias centrais que além de divergirem entre si, trazem o leitmotiv
que poderão decidir os destinos dos dois lugares.
Ora, os dois discursos em questão fornecem pistas preciosas so-
bre o processo de territorialização das duas vilas e marcam, funda-
mentalmente, as intenções e pretensões de cada grupo no momento
fundante desse processo. Do ponto de vista daquilo que Haesbaert
(2006) classifica como território percebe-se que o autor compreende
que cada grupo social “pode territorializar-se através de processos de
caráter mais funcional (econômico-político) ou mais simbólico (polí-
tico-cultural) na relação que desenvolvem com os seus espaços, de-
pendendo da dinâmica de poder e das estratégias que estão em jogo”
(HAESBAERT, 2004, p. 96). Na perspectiva de um processo de terri-
torialização simbólico, podemos vislumbrar a configuração de uma
cosmogonia bastante singular que subjaz em cada uma das vilas. For-
jam-se, nesse primeiro gesto os elementos que, muito provavelmente,
constituirão os alicerces mais profundos da sociedade de Chonin e
de Toledo. E, se quisermos, através deles poderemos encontrar uma
chave de leitura que contempla no aspecto simbólico do ato fundador
o sentido e a motivação para a escolha de estratégias tão distintas na
transformação de um dado espaço em território.
Em ambos os casos podemos vislumbrar a configuração de uma
tradição inventada, nos moldes propostos por Hobsbawm (1984, p. 9).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 61


De acordo com esse autor, a tradição inventada teria como caracterís-
tica um conjunto de regras e práticas de natureza simbólica ou ritual
com o objetivo de inculcar certos valores e normas de comportamento
mediante a repetição e uma continuidade em relação ao passado. De
um modo geral, esse tipo de tradição se refere às “reações a situações
novas ou que assumem a forma de referência a situações anteriores, ou
estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obri-
gatória” (idem. p. 10). Esta referência a situações anteriores seria funda-
mental na formação de um “sentido coletivo de superioridade das elites
– especialmente quando estas precisavam ser recrutadas entre aqueles
que não possuíam este sentido por nascimento ou atribuição – ao invés
de inculcarem um sentido de obediência nos inferiores” (idem. p. 18).
Mas estes gestos, além de requererem uma tradição, mesmo que
inventada, trazem em si uma carga simbólica e são reveladores de uma
utopia na topia, porque nada se faz sem algum sonho, sem uma visão
de futuro ou mesmo de uma idéia-força, nos termos de Aguiar, e são
muitas vezes quimeras que impulsionam lunáticos e subversivos. Quan-
do morrem as utopias elimina-se no mesmo momento o futuro, seja
ele qual for (AGUIAR, 2000, p. 203). Toledo fazia parte da terra dos
arados, talvez possamos chamar de uma terra das topias, uma terra que
enraizava os seus proprietários num chão, configurando o território de
cada um. Já Chonim de Cima era terra da enxada ou da foice que por
definição lidava com uma relação com a terra que levava num curto
espaço de tempo, à mudança, ao abandono da terra; era uma terra de
buscas utópicas e do peregrinar.
Essa dinâmica distinta da relação dos homens para com seus territó-
rios tem implicações pragmáticas. Em 1920, a metade dos arados do Brasil
estava no Rio Grande do Sul; em 1960, 86% dos arados estavam nos esta-
dos da então Região Sul (RS, SC, PR e SP). Em toda a área de Chonim de
Cima havia 5 arados, em 1952, e não mostravam sinais de terem sido usa-
dos por anos. Em termos de técnicas agrícolas, este fator, para Oberg, seria
decisivo. Com a coivara, sem arado, a terra tinha um uso muito limitado,
passando depois de apenas uns três anos de uso, a ter apenas a serventia
para pastagens ou tigüera, no caso de Chonim de Cima. A recuperação das
mesmas para ser de novo área agricultável, implicava num trabalho insano,
se feito com a força humana, sem considerar o dispêndio ulterior em cor-
retivos do solo (OBERG, 1965, p. 1419; OBERG, 1958, p. 50). Portanto, os

62 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


gestos simbólicos fundadores e as intenções e pretensões que subjazem o
início de um processo de territorialização podem ser vistos como fios con-
dutores que articularão o homem, o tempo, o território e a técnica.
A relação de Chonin com a constituição de um território reme-
te às percepções da sociedade ibérica, fundada metageograficamente
no espaço, tornando-se uma variante civilizacional. Dentro deste perfil,
de acordo com Barbosa Filho, os ibéricos se movimentaram por quase
dois séculos, em busca de espaço, “de novos territórios, consolidando
o territorialismo como determinação intrínseca de suas forma de vida”
(BARBOSA FILHO, 2000, p. 14). Por outro lado, o esforço empreendi-
do por Toledo, caberia naquilo que o Barbosa Filho denomina como
uma característica marcante das sociedades do tempo, num contrapon-
to com as sociedades do espaço. Dentro desta perspectiva, as socieda-
des do tempo, incorporam “o liberalismo como instrumento cognitivo
do mundo dominado pelo capitalismo, reduzindo-o simultaneamente a
universo axiológico disponível para o saque, para a incorporação sub-
metida ao cálculo realista da vontade política” (Idem, p. 15).
Estariam aqui as matrizes que levariam Toledo e Chonim a dife-
rentes destinos? Ou ainda, estariam os futuros demarcados, no dizer
de Oberg, pelo tipo de uso da terra: o modelo de fazenda agropastoril
do tipo mineiro versus o modelo de pequena propriedade familiar dos
imigrantes? Ou o determinante seria o modelo de produtor-proprietário
comum entre os imigrantes japoneses, alemães, italianos etc. com capa-
cidade de decisão e possibilidades de opções versus o arrendatário ou
o agregado limitado aos cultivos de sobrevivência e sujeito aos ditames
dos desejos dos proprietários das terras? (OBERG, 1965, p. 1417)6 Ou,
numa perspectiva mais ampla, estariam aqui presentes percepções tem-
porais que subjazem às duas matrizes já postuladas por Morse (1988):
a iberista e a americanista?7 Estaríamos, portanto, frente a processos tão

6 Reconheça-se aqui a presença de certa retórica de contraste da parte dos autores. Na reali-
dade já em 1946, em Toledo, esteve o padre italiano Antônio Patui junto com os primeiros
trabalhadores. Este membro da Congregação do Verbo Divino, entidade da Igreja Católica, que
derrubou ele mesmo com um trator, parte da floresta para a construção da igreja do Imaculado
Coração de Maria, fundou a sede da atual imponente Catedral de Cristo Rei. Este padre, por
sinal, tem uma estátua em sua homenagem numa das principais praças cidade e uma rua com
o seu nome em frente ao Estádio de Futebol.
7 Em sua obra Morse chama atenção para as matrizes ideológicas européias que influenciaram
a formação do pensamento e da cultura nas Américas. Neste esforço o autor busca as origens
medievais sobre cultura, homem e sociedade das formulações ideológicas anglo-saxã e ibérica

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 63


distintos de uso do espaço e de configurações territoriais animados por
duas lentes genitoras de sociedades com percepções diversas do mundo
e, por conseguinte, com percepções diversas da natureza, do Estado, do
indivíduo, da sociedade, da família e da própria hierarquização social onde
todos os elementos simbólicos e culturais encontram sua rede de sentidos?
(GEERTZ, 1978) Muito mais do que a disposição em responder às ques-
tões propostas importa perceber os percursos informados a partir de um
exercício de descrição antropológica típico dos estudos de comunidades
dos anos 50. Essas questões nos servirão como uma espécie de provocação
para a busca de chaves de leitura de natureza interdisciplinar, congregando
Antropologia, Psicologia Cultural, História, Filosofia e Geografia.
Kalervo, como discípulo dos estudos de comunidade, estudan-
do as duas vilas fez então uma espécie de radiografia da situação de
ambas naquele momento e provavelmente, não tinha em mente fazer
disto uma explicação de tudo o que ocorria. Devido ao seu emprego
ou ofício junto às agências de cooperação internacional, ele tinha em
mente mais a questão do uso da terra, os melhores procedimentos, os
limites etc. em vista de um dado desenvolvimento. Por isso, apesar de
seus relatos poderem ser inseridos na vertente dos estudos etnológicos
de comunidades, estas descrições são ainda incipientes para dar conta
de uma explicação mais sólida e exaustiva dos destinos das vilas. Para
isto, dever-se-ia lançar mão de muitas outras dimensões que não foram
totalmente esgotadas em seus estudos, ainda que venham aqui e ali
assinaladas (FONTENELLE, 1971, p.13).8
Oberg em seus estudos dos anos 1950 encontrou as duas vilas com
mais ou menos as mesmas proporções, ainda que uma já tivesse meio
século de existência. Mas depois de 60 anos a diferença é simplesmente

e analisa tanto seu comportamento nas pátrias de origem como sua posterior atuação em solo
americano. A matriz ideológica inglesa (americanista) tem sua origem nas quatros revoluções
que anunciaram o mundo moderno (religiosa, comercial, científica e política), por outro lado,
a vertente ibérica origina-se de forma mais conservadora e interpretaria os valores da moder-
nidade a partir do seu apego às tradições medievais, onde o tomismo se projetaria acima das
formulações renascentistas. Com a expansão ultramarina, Morse diria que: “no momento críti-
co da expansão ultramarina as sociedades progenitoras adotaram, deixaram-se levar ou foram
arrastadas por dois conjuntos de premissas políticas que seguem orientando a lógica da ação e
do pensamento político até hoje” (p.56)
8 Quanto aos limites e possibilidades dos estudos de comunidades, foram feitas várias críticas que
não vem ao caso comentar aqui. Quanto ao próprio conceito de comunidade, Raposo Fontanelle
concorda que nem sempre ele dá conta da complexidade e da variedade dos grupos humanos.

64 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


colossal. Enquanto Chonim de Cima acabou ficando quase que fossilizada
no tempo e no espaço, de acordo com o Plano de Desenvolvimento Rural
Sustentável realizado pela Prefeitura Municipal de Governador Valadares
(2009), Toledo apesar de ter iniciado mais de meio século mais tarde,
seis anos depois já era município e se desenvolveu sendo hoje uma cida-
de marcadamente moderna e pujante. Chonim de Cima continua sendo
uma vila perdida no sertão, com algumas casas a mais que 1952, com a
mesma escola, alguns carros a mais e a mesma estrada de terra, e prova-
velmente os mesmos problemas de saúde, educação etc. Toledo, por sua
vez, hoje conta com a presença de campi de cinco universidades, um PIB
anual de 1,5 bilhões de Reais, mais de 180 mil habitantes, é o entronca-
mento de 5 rodovias asfaltadas, 3º. IDH do Paraná, tem um automóvel
para cada 2,5 pessoas e já tinha um aeroporto em 1956, 10 anos após a
derrubada da primeira árvore, com vôos diários.
A que se deveu tamanha disparidade nos processo de territorializa-
ção empreendidos? As sugestões acima dão conta? Certamente a resposta
não é única e talvez não se tenha mesmo uma resposta plena se consi-
derarmos apenas uma única abordagem. Mas se levarmos em conta as
informações que temos a partir do raio x de Oberg, talvez possamos intuir
que para além destes ditames, tenhamos outros elementos que podem
iluminar os percursos dos destinos das duas vilas e de seus habitantes.
Percursos em campos complexos
Kalervo Oberg foi um antropólogo canadense, de antepassados
finlandeses, com cidadania norteamericana, que esteve no Brasil de-
senvolvendo atividades relacionadas à cooperação norteamericana
para os países da América Latina no Pós-Guerra (OBERG, 1958, p.
137). O governo dos Estados Unidos, através do Instituto de Assuntos
Interamericanos, desde 1942 desenvolvia programas de assistência es-
pecialmente nos campos da saúde, da educação e da agricultura em
diversos países da América Latina. Graças à sua formação antropológi-
ca e econômica, especialmente no que tange à questão agrícola, é que
Oberg passa a trabalhar com esta missão intergovernamental no Peru,
Equador, Suriname e Brasil (MELLATI, 1983).
Oberg é conhecido também nos meios antropológicos pela sua
reflexão sobre o choque cultural que ainda hoje merece atenção e
pelos seus estudos especialmente relacionados com as técnicas agrí-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 65


colas e seus efeitos econômicos e sociais. Na realidade, a síntese dele
sobre este assunto, tratar-se-ia de uma palestra que ele deu no Clube
das Mulheres no Rio de Janeiro em 3 de agosto de 1954. A conferên-
cia foi publicada ao que parece, várias vezes, e tem como pano de
fundo os estudos mais amplos da antropóloga Cora DuBois (OBERG,
1954, p. 177-182). Dentre os seus diversos trabalhos acadêmicos,
relacionados com o Brasil, temos, dentre outros, especialmente estes
dois que podem ser colocados dentro daquela onda dos estudos de
antropologia ou da etnologia, dos anos 1940 e 1950, a que se con-
vencionou chamar de estudos de comunidades como mencionamos
acima (MELLATI, 1983, p. 19-20).
Dos estudos de Oberg, conforme já referimos anteriormente, os
que se referem à vila de Toledo nas matas do oeste do Paraná e o patri-
mônio de Chonim de Cima no sertão de Minas Gerais, ambos iniciados
a partir da abertura de uma clareira na mata. E nos primeiros anos de
1950, eles se apresentavam mais ou menos nas mesmas dimensões. Da
leitura do material de Oberg, podemos ver que Chonim de Cima e To-
ledo têm algo em comum e algo na forma de contraste. Vamos chamar
a isto de binários antitéticos e sintéticos.
Binários antitéticos
As antíteses, ainda que possam ser constatadas com clareza, não
deveriam ser lidas isoladamente. De modo mais específico, de um lado
temos a Família Cunha em busca da sobrevivência no sertão de Minas
Gerais em 1895 e, de outro lado, a Industrial Madeireira e Colonizadora
Rio Paraná S.A. em 1946, em Porto Alegre, que compra uma fazenda
como uma forma de investimento. Os motivos que a Família Cunha ale-
ga para sair de Guanhães em 1895, são a falta de terras e de horizontes,
entretanto, não podemos dizer que tenha sido algo deste gênero que
motivara o investimento da Maripá S.A. em Toledo, mas certamente, ela
irá aproveitar-se de uma situação bem semelhante à de Guanhães, nas
colônias do Sul: famílias numerosas com pouca terra.
Deixamos de lado, neste ensaio, os aspectos das duas realidades
que têm suas raízes no passado mais remoto. No caso de Toledo, par-
timos da história do Oeste do Paraná, especialmente, desde a chegada
dos espanhóis e a fundação de Ontiveros na foz do rio São Francisco, em
1554. Mais tarde esta vila será transferida para Ciudad Real del Guairá na

66 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


foz do rio Piquiri. As reduções jesuíticas em 1610 em Guairá, com pou-
cos efeitos sobre as terras da atual Toledo não redundaram em grande
influência, a não ser a concentração de índios mais tarde escravizados
pelos bandeirantes. Os investimentos dos ingleses em 1905, a partir de
Buenos Aires, vão ter pouca influência no contexto como um todo.
Do mesmo modo, no que diz respeito à Chonim de Cima, dei-
xamos de lado a circunstância direta do Porto da Figueira, que depois
veio a ser Governador Valadares, que no final do Século XIX passa de
simples sertão com seus miasmas, a um campo de exploração comercial
da madeira, da mineração e implementação da pecuária. A passagem
da estrada de ferro em Valadares não deve ter significado grande coisa
para Chonim de Cima, ou pelo menos seja ainda algo a ser estudado.
O que nos interessa aqui, é que de um lado temos uma família
sobrevivente (!) e de outro lado, uma empresa investindo. De um
lado temos um grupo de pessoas cujos membros são de uma mesma
família e de um outro lado temos uma empresa que busca reunir um
grupo de pessoas de família diversas; de um lado uma família que
busca sobreviver no imediato e de outro uma empresa que investe e
lucra e reinveste no longo prazo; de um lado temos uma família que
chega a um lugar ermo construindo sua própria estrada para chegar a
um lugar para morar e de outro temos uma empresa que constrói as
estradas para que as pessoas possam chegar a um lugar ermo e assim
com elas investir.
Depreende-se dos estudos de Oberg que as atividades em Cho-
nim de Cima inicialmente, eram antes de tudo, de sobrevivência pura
e simples com alguma preocupação com a produção de um excedente
para trocas comerciais (estradas, café, gado etc.). A fazenda teria 154
km2 com 2 km2 reservados para o patrimônio, isto é, para a vila de
Chonim de Cima. As perspectivas de futuro não iriam muito mais que
a divisão das propriedades esgotadas para os herdeiros e uma futura
migração para outras florestas de loucuras, dentro daquele esquema que
os antropólogos chamam de brotamento (OBERG, 1958, p. 23-24). Já a
Maripá S.A. pensou de modo empresarial e por etapas dentro do pro-
cesso de transplante (transplantation). Após a aquisição dos 290 mil hec-
tares da Fazenda Britânia, o primeiro empreendimento foi a exploração
comercial da madeira (pinho, cedro etc.) com serrarias e estradas que já
anteviam as futuras vilas. Neste mesmo processo, foram feitas as demar-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 67


cações das colônias e das vilas (Toledo e Rondon) seguindo as estradas e
trilhas da exploração da floresta. Num segundo momento, foram feitas as
vendas destas terras para colonos do Rio Grande do Sul e de Santa Ca-
tarina. E, 10 anos mais tarde, a mesma empresa, ainda que não somente
ela, já estava lidando com a terceira etapa, isto é, a industrialização da
produção agrícola que de um certo modo é até hoje o ponto mais forte
da economia toledana (OBERG; JABINE, 1960a, p. 23-42).
Os motivos claros da saída dos Cunha de Guanhães não estão
explicitados no estudo de Oberg, uma vez que muitas pessoas do lo-
cal achavam uma loucura embrenhar-se pelas matas. Por outro lado,
a necessidade de seleção dos futuros colonos de Toledo fazia parte
da política da empresa: deveriam ser imigrantes alemães e italianos
e de boa índole (OBERG, 1958, p. 18; OBERG; JABINE, 1960a, p.
28). Para nos dedicarmos a compreensão da loucura da família Cunha
devemos, em primeiro lugar, captar o sentido desta retirada para as
matas do sertão (FREUND, 1980, p. 73). Talvez, nesse ponto, pos-
samos sugerir uma chave de leitura. Assim, temos a família Cunha
se retirando de Guanhães, onde segundo o ditado local, “quem não
era Coelho, era couve” (HORTA, 1986, p. 40). A retirada dos Cunha
rumo ao caos e à floresta cercada de perigos e índios bravios, mostra
um comportamento que pode ser compreendido num paralelo com a
lógica territorialista, caracterítico do Antigo Regime português, onde as
especificidades do sistema constituído permaneciam, praticamente,
impermeabilizadas no local de origem, no caso Guanhães (BARBOSA
FILHO, 2000, p. 103, 221, 240-247). A lógica territorialista sempre
joga, para as áreas de fronteira, os elementos desestabilizadores e,
tanto no Antigo Regime português quanto nas Minas, do século XIX, as
áreas de fronteira tiveram um papel importante: impediram mudanças
sociais profundas em momentos de crise.
No processo histórico que caracteriza Minas Gerais, mediante
a falta de perspectiva razoável para as elites constituídas ao redor das
lavras de ouro a solução, ao velho estilo, encontrava-se na realocação
desta elite em áreas diferentes, ainda pouco habitadas. Em outras pa-
lavras, uma vez que os grupos são relocalizados, permanece a morfo-
logia social preexistente, reproduzindo o mesmo quadro de valores.
Ou seja, os grupos que antes estavam concentrados na região central,
de extração aurífera, passam a ser redistribuídos, gerando sucessivos

68 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


desmembramentos municipais com espaço suficiente para buscar ri-
quezas e honrarias. Este padrão era bem aceito numa sociedade que
não podia correr riscos em função da forte base escravocrata que pos-
suía. Além disso, os esforços de alguns grupos familiares sempre eram
traduzidos em títulos de nobreza, comendas e cargos, trunfos impor-
tantes no exercício do poder local e regional (GENOVEZ, 2003). Veri-
fica-se, grosso modo, a existência de múltiplas estratégias de domínio
territorial (territorialidades) que se complementam e/ou se confrontam
levando grupos em desvantagem política, social ou econômica a se
lançarem às áreas de fronteira, reproduzindo alguns traços da lógica
territorialista do Antigo Regime Português.
Assim, como em vários momentos da história de grupos e famílias
mineiras do século XVIII e XIX, sem força suficiente para mudar o ce-
nário do mando local, restou a Marcelino Cunha se lançar rumo a uma
área de fronteira desabitada. Neste novo espaço seria possível repro-
duzir os mesmos quadros de valores de sua sociedade de origem com
a diferença que Marcelino se tornaria a referência da nova vila que se
formava, fundando uma nova tradição com bases que remontavam aos
séculos de colonização e da sociedade monárquica oitocentista. Con-
tudo, além da noção de territorialismo oriunda dos quadros mentais do
Antigo Regime permanecer nos subterrâneos da mentalidade daqueles
que fundaram Chonin, a figura de Moisés, já referida acima, também
tem seus fundamentos na perspectiva cosmogônica que caracterizou a
sociedade ibérica e sua ressonante na América Portuguesa. Marcelino
Cunha, era o responsável por seu povo numa travessia quase intranspo-
nível rumo a uma terra de promessas e, caberia a ele, hierarquizar so-
cialmente e distribuir as graças tal como o Rei na sociedade ibérica, nos
mesmos moldes da sociedade patriarcal que caracterizou todo o século
XIX e mantém alguns de seus elementos ainda vigorosos no interior do
Brasil em plena metade do século XX.
Ainda no que se refere à mentalidade, outro elemento importante
na inculcação da modernidade era a educação. Nesse aspecto Oberg
deixa entrever que em Chonim de Cima há uma certa preocupação
com a educação formal, mas ela não é nem central e nem parte da
mentalidade das pessoas, talvez porque o mais importante para essa
comunidade fosse de fato a manutenção do conservadorismo. Em Cho-
nim de Cima alguns grupos de pessoas, apresentavam um percentual

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 69


de analfabetismo que chegava até a 90%, enquanto que em Toledo
alguns grupos chegavam a ter 100% de pessoas alfabetizadas. No ge-
ral, o analfabetismo em Toledo era bastante baixo tendo-se em mente
que a média do Brasil de então era de 49% (em Toledo os analfabetos
não chegavam a 12%), em Chonim de Cima, mesmo entre as pesso-
as abastadas, passava de 50%. Oberg sinaliza com clareza a existência
de jornais, revistas e mesmo de uma biblioteca em Toledo, ainda que
a leitura não fosse uma prática consistentemente disseminada. Não se
pode dizer o mesmo de Chonim de Cima. Entretanto, as dificuldades
de frequência às aulas eram as mesmas nas duas localidades: a quase
totalidade das crianças urbanas estavam matriculadas e freqüentavam a
escola, entretanto, as rurais, muitas vezes estavam apenas matriculadas
por força de Lei, mas não freqüentavam regularmente.
Em Chonim de Cima a maioria dos habitantes não era proprie-
tária da terra, era de arrendatários ou marginal peasant nos termos de
Oberg, já em Toledo praticamente todos moradores eram proprietários
das terras em que trabalhavam. Por sinal, uma das reclamações dos co-
lonos era exatamente a ausência de trabalhadores volantes, isto é, que
pudessem ser contratados nos momentos de maior necessidade. Apenas
alguns paraguaios de vez em quando passavam por lá. Em Chonim de
Cima o ciclo do uso da terra – enquanto agrícola – estava em seu ponto
final em 1952, e em Toledo estava exatamente iniciando o processo de
produtividade agrícola. Devemos ter em mente que Chonim de Cima
já tinha 50 anos de exploração do solo. Oberg chama a atenção que do
ponto de vista de produtividade agrícola, o ciclo se encerrara, restando
uma pequena produção de subsistência e parcos recursos para a pecuá-
ria. Já em Toledo, hoje, quase 60 depois, não temos mais nenhum espa-
ço arbóreo a que possamos chamar de floresta, mas as terras continuam
muito produtivas e isto se deve a diversos fatores e não somente ao
sistema de coivara, provavelmente ao uso do arado e ao tipo de relação
com a propriedade agrícola.
O ponto sociocultural que une o grupo de Chonim de Cima é um
símbolo que podemos chamar de transcendente – Nossa Senhora da
Piedade (devoção, festas etc.) – e o ponto que une o grupo de Toledo é
mais, digamos, bem imanente, isto é, a MARIPÁ S.A. e seus empreendi-
mentos (escritórios, serrarias, estradas, gerentes, diretores etc.) (OBERG,
1958, p. 5; OBERG; JABINE, 1960a, p. 23). Provavelmente, a resposta

70 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


à pergunta sobre quem seria a pessoa mais importante em Chonim de
Cima seria mesmo alguém da Família Cunha, o dono da fazenda, ou
algo nesta mesma linha argumentativa, já em Toledo, o hors concours é
o Sr. Willy Barth, o diretor dinâmico, enérgico e entusiasmado da Mari-
pá S.A. Willy Barth era um dos diretores da MARIPA S.A. e recebe ho-
menagem em vários monumentos em Toledo como o Museu da cidade
e uma das principais praças, já Maripá é o nome da maior avenida da
cidade (OBERG; JABINE, 1960a, p. 24 e 112).
Podemos dizer que a fazenda Bom Retiro de Chonim começou
com a abertura de uma clareira para a construção de uma igrejinha
para Nossa Senhora da Piedade e que Toledo começou com uma cla-
reira para a construção de uma serraria. Nesse sentido, Oberg chama a
atenção que, num assentamento de fronteira, depois da construção das
casas de moradia, as prioridades variam de acordo com a cultura. No
Canadá e nos Estados Unidos, o médico já aparece quando o assen-
tamento tem apenas umas 200 ou 300 pessoas. Em Toledo, três cons-
truções extras apareceram imediatamente após a serraria e as casas: as
escolas, as igrejas e o hospital. Em termos de comparação com Chonim
de Cima, escola e igreja certamente estavam presentes de algum modo,
mas algo parecido com hospital demorou pelo menos meio século, isto
para não dizer que depois de 115 anos ainda não há nada digno deste
nome, somente um posto de saúde em condições precárias de funcio-
namento (OBERG, 1958, p. 22).
As publicações de Oberg, apesar de sintéticas e até um tanto po-
bres em termos de estilo, são ricas em informações e estes binários con-
trastantes poderiam ser estendidos para a estrutura familiar, as relações
com a vida política, a vida religiosa, os costumes populares ligados à
saúde, a natureza da migração, o estilo de vida e a vida social na frontei-
ra etc. Mesmo assim os seus ensaios fornecem elementos que sinalizam
para pensarmos sobre a invenção de novas tradições, sobre o processo
de territorialização e a configuração de estratégias de domínio sobre o
novo território em questão, seja ele Chonin ou Toledo.
Binários sintéticos
Numa leitura atenta da obra de Oberg, podemos constatar tam-
bém binários comuns ou aos quais podemos denominar de sintéticos:
uso da técnica da coivara no preparo do solo, desbravamento da flores-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 71


ta como ponto de partida para sobrevivência agrícola; construção das
casas usando-se o material disponível; um certo abandono dos poderes
públicos; a criação de porcos; início de tudo em meio a floresta virgem;
a manutenção de um certo vínculo com os familiares deixados nos luga-
res de origem; subdivisão da terra em herança gerando a ulterior migra-
ção; extração da madeira e queima da floresta, etc.
Entretanto, estes elementos comuns, acabam por ter uma resso-
nância bem diversa quando imersos nos traços antitéticos que vimos
acima: a coivara não degenerou a terra em Toledo em parte devido à
formação singular do solo e do uso de modernas tecnologias; o desbra-
vamento da floresta gerou em Toledo de um lado, uma renda considerá-
vel para a Maripá S.A. que investiu em mais estradas e melhorias sociais
(escolas, clubes etc.) e possibilitou além do mais, a presença de grandes
plantações de soja, milho e algo de café e indiretamente a criação de
bovinos, suínos e galináceos.9 Já em Chonim de Cima, a derrubada da
floresta deve ter gerado algo em termos financeiros, mas que não re-
dundou em melhorias significativas para a população em geral e gerou
apenas a possibilidade de pastagens e a criação de gado que por sua
vez, impossibilitou o uso agrícola da terra.
Tenha-se em mente que o solo em Toledo é praticamente todo
ele plano – no máximo a presença de colinas suaves – fazendo parte de
um amplo platô de rocha diabásica de origem vulcânica muito antiga.
Com isto, o solo de origem destas rochas é de um marrom-achocolatado
de grande profundidade havendo redução da erosão por declive e ma-
nutenção da natural fecundidade. Já em Chonim de Cima temos uma
formação colinosa e um solo com formação diversa, tendendo para o
arenoso nas encostas e lateritos e solos de aluvião, nas várzeas. Com isto
podemos prever os efeitos bem diversos de uma mesma prática agrícola
(OBERG; JABINE, 1960a, p. 29; OBERG, 1958, p. 14).
A construção das moradias seguiu num primeiro momento, pa-
drões muito semelhantes (uso de material disponível e técnicas próprias),
mas enquanto que em Chonim de Cima as casas mudaram muito pouco
em termos de seu estilo depois de meio século, em Toledo elas já se apre-

9 Graças à formação geológica da Fazenda Britânia, a Maripá S.A. pensara em usar a parte norte
da mesma para a produção de café, chegando-se a um plantio de mais de um milhão de pés
do mesmo. Não se tem informações do futuro destas plantações devido às condições climáti-
cas. Em 1975, as plantações de café de Londrina foram praticamente dizimadas pela geada.

72 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


sentavam, em 1956, com muitos dos confortos modernos. De um certo
modo, a presença dos políticos ou do Estado foi muito semelhante: en-
quanto que em Toledo quem fez o papel do Estado foi a empresa Maripá
S.A., em Chonim de Cima foi a Família Cunha. Neste aspecto, valeria a
pena comparar a descrição que Oberg faz da Família Cunha e da Maripá
S.A. em suas relações com a comunidade e colocá-las lado a lado: ambas
têm uma preocupação pela vida social de seus clientes.
Em Chonim de Cima temos mais vínculos familiares, de início,
que faz com que o fazendeiro de algum modo se preocupe com a vida
social (saúde, educação, transporte, trabalho, comercialização etc.)
de seus parentes e empregados (assalariados ou arrendatários). Pode-
mos dizer que aqui temos vínculos um tanto quanto qualitativos: é a
natureza do parentesco que estabelece a necessidade deste cuidado,
seguindo um padrão patrimonial. Já na Maripá S.A. ainda que tenha-
mos, pelo menos na descrição de Oberg, alguns traços de um interesse
humano legítimo (pelas qualidades humanas dos diretores como Barth
e Bercht) pela vida social dos clientes da empresa, não de pode negar
que é uma Empresa e que o modo como os imigrantes são tratados,
tem a ver com o retorno financeiro que eles podem trazer. Assim, para
que possam vir do Sul para Toledo, eles contatam as famílias, selecio-
nam, transportam, constroem estradas, escolas, igrejas, clubes etc. Em
resumo, eles gastam para ganhar. E num passo ulterior, como vimos
acima, criam condições para que a indústria se instale e mais uma vez,
a vida social dos clientes, seja viável. Mas não fazem isto isoladamen-
te, mas na forma de cooperação.
Os vínculos de parentesco – especialmente o compadrio – na
sociedade tradicional, faz com que o processo que os antropólogos cha-
mam de budding sofra algumas alterações, como podemos ver no caso
da visita às antigas redes sociais. A migração é um modo de ampliar a
família, ou pelo menos, o seu espaço, sem estar no mesmo espaço, mas
não necessariamente de se isolar da mesma. A visita, nestes casos, não
é apenas um processo de cumprimento de convenções sociais, mas são
processos de manutenção de presenças afetivas; o compadrio é um pro-
cesso de manutenção de vínculos familiares. Isto está claro em Chonim
de Cima. Em Toledo temos um processo semelhante nas constantes via-
gens que os colonos fazem às cidades ou vilas de origem mas especial-
mente nos nomes das vilas da região. Novo Sarandi, Nova Três Passos,

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 73


Nova Santa Maria etc. são nomes que de algum modo buscam trazer os
lugares de origem para mais perto (OBERG, 1958, p. 24).10
Apesar de Oberg chamar de fazendas as 10.000 subdivisões da
Fazenda Britânia, na realidade tratam-se de pequenos recortes de ter-
ras – em torno de 25 hectares – que servem bem para a sobrevivência
de uma família. No momento em que a família cresce com os filhos,
a subdivisão destas colônias torna a sobrevivência impraticável. Que
fazer? Em Chonim de Cima provavelmente a solução foi ir em busca de
novas terras de seus sonhos, mantendo a lógica territorialista. Em Toledo
ocorreu algo parecido mas com uma dinâmica diversa. Uma parte dos
colonos otimizou o uso da terra com a criação de porcos, galináceos etc.
Outra parte foi para a cidade, para a indústria e comércio. E uma parte,
mais tarde, migrou para o Mato Grosso, Goiás, Maranhão etc.11
A floresta foi a busca inicial e o problema inicial; busca porque
estava devoluta ou porque fora adquirida. Qual foi o destino da mesma?
Podemos dizer que do uso da mesma dependeu o futuro da região? Ou
do uso da riqueza da floreta original é que depende o futuro da região?
Em outras palavras, as estratégias e as práticas utilizadas pelos grupos
envolvidos no processo inicial de territorialização de um dado espaço,
estabelece alguns direcionamentos decisivos na configuração do futu-
ro da região. Em Toledo, a Maripá S.A. usou a exploração da floresta
para o processo de gastar para ganhar e depois investir e com isto pôde
dar o passo seguinte que foi o da industrialização da produção agrícola
usando a técnica ou prática da fixação do trabalhador no campo. Em
Chonim de Cima a floresta foi vista, ao que parece, como simples em-
pecilho; certamente houve algum ganho com a madeira. Mas como isto
não redundou num capital com ulterior investimento rentável no local;
a floresta acabou sendo mesmo um simples atravancamento da coivara
e não redundou em outra coisa que tigüera ou pastos.

10 Budding ou brotamento, seria um modo característico de certos grupos indígenas do Brasil-


Central, de ampliar número dos grupos ou desdobrar-se tendo-se em vista a sobrevivência ou
a praticidade da convivência social. A tendência, neste caso, é do isolamento, uma vez que o
chefe é tanto o guerreiro e o pajé (poder militar e simbólico) e com isto não depende mais da
gens de origem.
11 Aqui novamente valeria a pena ver o destino destas novas ondas migratórias. Os migrantes do Pa-
raná e do Rio Grande do Sul dos anos 1980 e 1990 em diante, não foram para as novas fronteiras
como simples mão-de-obra mas foram como empresas. Veja-se o caso de Goiás, Mato Grosso,
Barreiras, Tocantins, Maranhão etc; de um certo modo repetiram Maripá S.A. Qual foi o destino
dos migrantes de Chonim de Cima? Repetiram Marcelino Cunha? É um campo em aberto.

74 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Esta leitura é um tanto fria e não capta outras dimensões humanas
que eventualmente Oberg não tenha tido instrumentos para observar.
Dá a impressão de uma espécie de escravidão light onde com uma es-
pécie de fumaça de progresso as pessoas são realmente envolvidas num
empreendimento financeiro cujas metas são o lucro, a capitalização com
as vestes de progresso ou de modernidade. Por incrível que pareça, a
criação de porcos, ainda que não tenha sido a única atividade econômi-
ca, é comum às duas realidades, mas em Toledo ela se tornou uma ver-
dadeira indústria chegando aos dias de hoje à exportação para diversos
países, e em Chonim de Cima nunca ultrapassou à lida artesanal. Talvez
nesses indícios possamos indicar nos subterrâneos das mentalidades em
tela os resquícios da sociedade do espaço, no caso de Chonim e da so-
ciedade do tempo, no caso de Toledo, já referidas acima.
A chegada de meia dúzia de Farroupilhas – grupo de trabalhado-
res descendentes de italianos, contratados pela Maripá S.A., na cidade
de Farroupilha – em abril de 1946 ao riacho Toledo, donde o nome
da cidade, é considerado um momento épico. Então tratava-se de um
acampamento e hoje é um milagre. Não deixa de ser interessante do
ponto de vista antropológico, que no discurso da proposta de um fri-
gorífico S.A. este momento fundador seja retomado (OBERG; JABINE,
1960a, p. 37). Eles chegam abrindo picada para instalar uma serraria.
São empregados da empresa e não são da mesma família. Sua primeira
tarefa, abrir uma clareira para a serraria. Por que estavam ali? Para so-
breviver do seu trabalho – e por que não? – para realizar um milagre.
Em 1895, Marcelino Cunha, saiu em busca de sua terra dos so-
nhos. Após uma caminhada de três dias e de passar pela serra da Esca-
dinha, por caminhos ínvios, chega a um lugar de florestas densas, cheias
de animais, com boa aguada. Ali, no meio da mata, abre uma clareira
para construir uma igrejinha para Nossa Senhora da Piedade. Quem
estava ali? Um grupo bem pequeno de familiares. Por que estavam ali?
Para sobreviver de seu trabalho e – por que não? – para realizar um so-
nho, com a chegada de outros membros da família. Ainda que o mais
diverso seja a igrejinha versus serraria, não se pode desconsiderar que
tanto para uma empresa como para a outra, foi necessária uma boa dose
de coragem e de espírito de aventura que os discursos um tanto lineares
e economicistas não contemplam. Para o leitor urbano certamente é um
tanto romântico ver um grupo de pessoas instalarem-se num espaço e

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 75


ter que começar do nada e sonhar com o tudo que existiria muito além
dos montes que ainda azulam no horizonte. Contudo, para Marcelino
e certamente também para os anônimos Farroupilhas, a ação empre-
endida não era em sua essência romântica. Mas, é preciso levar em
conta, sem um quê de romantismo Marcelino não teria deixado a sua
Guanhães conhecida e nem os destemidos trabalhos italianos deixariam
sua Farroupilha cotidiana rumo ao incerto. De certo modo, é isto que
faz daquele momento no funil de luz da floresta, um momento único,
eventual e divisor do tempo e das experiências. Será que Toledo seria
algo sem isto? E Chonim de Cima seria? Claro que podemos também
dizer: Toledo e Chonim de Cima são o que são só por isso?
Não consideramos aqui aspectos que Oberg não teve em mente
num primeiro momento. Um deles é o fato de que em Toledo termos
somente descendentes de italianos e alemães, onde alguns ainda não fa-
lavam português. Não consideramos devidamente o aspecto, certamente
importante, da educação formal. O peso do valor e do tipo de comuni-
dade, isto é, do grupo humano participativo em termos mais igualitários
ou mais hierarquizados. Não vimos também os aspectos de interesse, ou
seja, o que se quer com o que se faz, com o estilo de vida e de sociedade
que se constrói. Claro que subjaz a tudo isto uma tendência de compre-
ensão em termos de uma pendularidade que vai desde o antigo e o con-
temporâneo, entre o Ancién Régime e a modernidade, entre o urbano e o
rural, entre uma lógica do pragmático e uma lógica do estético etc.
O tempo e o espaço em dois discursos: circular versus projetual?
A temática do tempo e seus mistérios acompanham a humani-
dade e talvez possamos dizer que a relação do ser humano com ele
constrói o humano que há em nós. De um modo simples, o tempo se
apresenta como presente, passado e futuro. Traz em si uma dimensão
de mistério, ou seja, de quase inexistência: o passado não existe, o fu-
turo ainda não é e o presente só se apresenta para nós já na forma de
passado. O ser humano, na consciência do tempo, vive como se estives-
se num fio de navalha. De um modo meio intuitivo podemos dizer que
é do modo como o futuro é considerado que resulta a possibilidade de
se compreender o que faremos. Se o futuro está em aberto, então en-
tramos no reino de uma possível liberdade, ou pelo menos, um espaço
com margem de manobra. Agora, se o futuro está fechado, só nos resta

76 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


projetar nele uma reprodução do passado, com alguma variação, mas
de qualquer modo é uma tradição.
A literatura sobre este tema é enciclopédica, mas vamos tomar
como guia do que pensamos aqui, a síntese de Galimberti (GALIMBER-
TI, 2008, p. 902-903). Levantaremos alguns aspectos e depois buscare-
mos ver se eles estão presentes nos discursos. A tese, de fundo é que,
além das dimensões, digamos, pragmáticas que apresentamos acima,
podemos certamente, ver esta dimensão do tempo colaborando ou não
para os destinos de Toledo e de Chonim de Cima.
Em linhas gerais, o tempo, a percepção do mesmo ou a concep-
ção do que vamos chamar aqui de tempo, vem das experiências cíclicas
da Natureza: dia e noite, estações, crescimento dos animais e plantas.
Tudo, segundo Galimberti, não se encaminha para uma finalidade, mas
para um final. O tempo neste sentido é perfeito, ou seja, se realiza. Ao
fim do tempo, chega-se ao que seria a sua meta. “No tempo cíclico não
há futuro que não seja a pura e simples retomada do passado que o
presente reforça” (GALIMBERTI, 2008, p. 902). O que se espera não é
outra coisa que o retornar. Os procedimentos culturais, sociais e mesmo
políticos buscam através dos mais diversos meios este retorno. O novo
tempo é o originário em sua plenitude. Idéia comum nas culturas anti-
gas, especialmente a Greco-romana.
Já uma segunda modalidade de tempo, na linguagem de Galim-
berti, é o tempo projetual cujo centro de referência é o futuro: sonhado,
desejado (nos termos de Bergson), planejado e habitante de utopias. É
só com a concepção de tempo deste gênero que se pode fazer a hora, se
não, ela simplesmente acontece. Ao conceito de tempo projetual subjaz
a idéia do projeto, do lançamento, do plano, da antecipação racional de
passos a serem dados, do controle do que vai acontecer. Neste sentido,
não se está lidando com um futuro dos deuses, mas dos seres humanos;
não se trata do futuro de um eschaton ou de uma utopia, mas de algo
imediato, que mantém de algum modo vínculo com as experiências
de passado, especialmente o recente e ainda mantido de algum modo
em memórias (GALIMBERTI, 2008, p. 586 a 591). É aqui que surge
um conceito interessante: a idéia de kairos, ou seja, o momento ou o
tempo oportuno. Os gregos distinguiam estes tempos (Aion e Kairos).
Em termos nossos talvez possamos dizer que temos dois tempos, o do
calendário e o momento. Um é do Cronos e o outro é mítico.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 77


Este tempo cairológico de certo modo é um recorte da visão es-
catológica de tempo; um tempo compreendido entre uma origem que
remete a um fim e é essencial para se superar a idéia de tempo cíclico
e se chegar ao tempo linear ou histórico. Em resumo, a história é tempo
dotado de sentido; dotado de fim e não de simples resultado ou de re-
torno. Neste tempo de eschaton o futuro é o grande campo de atenção.
É até muito comum ver-se o passado como um campo do mal, e o futu-
ro sonhado como a plena e total felicidade. Aqui a ciência se contrapõe
às crendices, a utopia ao marasmo, a revolução à tradição; o progresso
é a salvação em oposição à perdição que está na manutenção pura e
simples do passado. Daqui redundam discursos ou relatos que, segundo
Galimberti, vêm da medicina hipocrática: a anamnese – retomada do
passado para compreender o que está acontecendo no presente – e a
prognose – que partindo destas informações do presente questiona que
se pode esperar num tempo futuro.
Temos diante de nós dois discursos: o de Marcelino e o do Ondy,
propositor do frigorífico em Toledo. Se é verdade que subjazem a estes dis-
cursos concepções de tempo diversas, então, podemos esperar que elas de
algum modo deixem isto transparecer. Então vamos aos discursos:
Dois discursos da coragem? Moisés e o Diretor
Dos relatos de Oberg temos aqui e ali um pouco de sua compre-
ensão destas duas comunidades, isto é, uma mais do tipo tradicional
e a outra mais do tipo moderna; uma de estilo mais Brasil Colônia e
outra do tipo Brasil Segunda República; uma presa à noção de tempo
circular e, portanto, afeita a contínuas conquistas de espaço e outra do
tempo histórico/projetual que reconfigura o espaço no qual se encontra.
A leitura que faz, por ser um tanto focada na questão do desenvolvi-
mento agrário ou social, deixa fora do foco alguns temas que podem
ser centrais se quisermos compreender um pouco da história dos dois
grupos em maior densidade. Assim, os dois discursos que remetem ao
ato fundador, podem ser ao mesmo tempo lidos de vários modos. Aqui
olharemos quanto à questão da temporalidade.
Oberg, através da sua pesquisa nos deixa uma espécie de fotogra-
fia daquele momento de Toledo e de Chonim de Cima, mas que tem
atrás de si elementos que deixam entrever tanto os passos anteriores de
cada uma das povoações como os possíveis passos ulteriores. Será que

78 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


podemos pensar num pano de fundo mais parametral que de algum
modo seria a alma dos passos dados pelas pessoas e pelas comunidades
nos dois lugares? Depois de tudo isto, por que não tomar como ponto
de partida com dois discursos que Oberg relata em suas obras?
Um é proferido por um dos netos do fundador de Chonim de Cima
que conta a história dos Cunha e Chonim de Cima dos Porcos ou Chonim
dos Cunha numa forma clara de narrativa. O outro é mais elaborado,
num estilo de proposta, feito pelo gerente da Industrial Madeireira Colo-
nizadora Rio Paraná S.A., Ondy H. Niederauer que propõe a construção
de um frigorífico. Os dois discursos foram recolhidos com a diferença
de poucos anos. Em Chonim de Cima a coleta de informações ocorreu
em 1951 e 1952 e em Toledo foi em 1956 (OBERG; JABINE, 1960a, p.
9-10).12 Estamos numa mesma data, mas estamos num mesmo tempo?
a) Mas nada atemorizou Marcelino: Uma breve história de Chonim de Cima13
Marcelino José da Cunha, talentoso e ainda jovem com os
seus 49 anos, corajoso mas pobre, vivia em Guanhães com a sua
esposa e 13 filhos (6 rapazes e 7 moças). Durante algum tem-
po ele esteve pensando num lugar onde ele pudesse estabelecer
uma fazenda sólida que mais tarde pudesse dar alguma segurança
para os seus filhos. Mas como? Em Guanhães isto não era mais
possível. Somente no mato os seus desejos poderiam se realizar;
o seu ideal poderia ali ser realizado. Mas a floresta? A malária?
Só de falar isto já causava um horror. As pessoas em Guanhães
diziam que ele estava meio louco para querer ir morar no mato.
Mas nada atemorizou Marcelino. Cheio de energia e fé em Deus,
ele tomou a decisão de ir. Isto foi no ano de 1895, ele saiu em
busca da sua terra dos sonhos apesar de todas as dificuldades que
ele já esperava encontrar. Depois de reunir os suprimentos e car-
regar os animais ele tomou o caminho de Peçanha e de Coroaci,
viajando por três longos dias pelas piores estradas, morro acima
e abaixo, até encontrar as famosas montanhas da Escadinha, que
foram seguidas ao longo de 15 km, uma distância onde não se
encontrou mais água. As longas estradas sem uso estavam cober-
tas por bambus espinhentos até ao ponto de em alguns lugares

12 Oberg estava vinculado à Escola de Sociologia e Política da USP. Com isto, os estudos de Cho-
nim de Cima foram levados adiante com a colaboração de estudantes desta universidade em
1951 e 1952; já em Toledo, entre agosto e outubro de 1956, ele contou com a ajuda entre-
vistadores fornecidos pelo Departamento de Fronteiras do Estado do Paraná e da Divisão de
Desenvolvimento de Comunidades.
13 Tradução dos autores.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 79


se terem tornado impenetráveis. Mas nada assustou Marcelino
que foi adiante corajosamente até que finalmente chegou a um
desacampado cercado por uma densa floresta virgem. Um gran-
de número de animais foi encontrado ali, tais como o tapir, a
capivara, o veado, os porcos do mato, a paca, a cotia, vários tipos
de macacos, onças, tamanduá e muitos outros. Entre os pássaros
foram encontrados o mutum, a arara, o jacu, a jacutinga, o ma-
cuco, o jaó e outros.
Existiam ainda alguns índios selvagens vivendo na área. O solo
fértil estava coberto por uma valiosa madeira de lei em pé, e esta
árvores eram as mais comuns: peroba, ipês, sapucaieiras, baraú-
nas, bálsamos, cedros, itapicurus e um grande número de outras.
Foi ali então que Marcelino encontrou o lugar dos seus sonhos.
Existiam já umas poucas casas na área, ocupadas por morado-
res que cultivavam pequenas áreas de terra. Estes tinham vindo
de Governador Valadares (!).14 Uma pequena área foi deixada
de lado para a igreja de Nossa Senhora da Piedade. Marcelino
comprou as pequenas propriedades dos roceiros e garantiu a sua
cooperação no estabelecimento de sua grande fazenda. Foi dado
o nome à fazenda de Bom Retiro de Chonim. Um dos chefes in-
dígenas, que anteriormente ocupara este vale, se chamava Choni,
e a partir disto a fazenda e depois a vila receberam o seu nome.
Pouco mais tarde, irmãos e primos de Marcelino vieram e assumi-
ram as terras próximas da fazenda. Entre estes estavam Zeferino
José da Cunha, Antônio Gonçalves da Cunha, Domingos Fernan-
des da Cunha, Cesário e Eduardo da Cunha.
Apesar de Marcelino ter comprado as pequenas propriedades
dos camponeses, ele permitiu que eles continuassem a viver e
a trabalhar em suas antigas propriedades. Por isso, Marcelino se
tornou meio Moisés, que sabia conduzir o seu povo com toda a
humildade. Como estas pessoas e os seus filhos eram analfabetos
ele até mesmo fundou uma pequena escola primária para eles.
A população cresceu mas não havia progresso, e para se con-
seguir suprimentos de Peçanha, uns 90 km de distância, era coisa
muito difícil naquelas trilhas miseráveis. Lá eles compravam sal,
tecidos, pólvora, instrumentos para o trabalho na roça e medi-
camentos a preços muito altos. Existia uma outra possibilidade,
especialmente, descendo o rio Doce com canoas até o Espírito
Santo, mas neste caso tratava-se de uma longa jornada. Seguindo
as trilhas ao longo do rio, tropas de mulas e o gado eram levados

14 O nome e município de Governador Valadares são de 1938, entretanto a vila ou a presença


humana nesta região é bem anterior e o autor apenas queria referir-se àquele região, hoje
denominada com este nome [NT].

80 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


a Vitória, no Espírito Santo, mas esta era uma empresa perigosa
uma vez que os assaltantes atacavam as tropas quando elas vol-
tavam. Marcelino ouviu falar de Teófilo Otoni, 150 km adiante,
onde os suprimentos seriam mais baratos. Ele decidiu ir para lá,15
sendo que 90 km eram através da mata virgem. Ele recebeu algu-
ma ajuda de alguns homens de Itambacuri e arcando com os cus-
tos, ele equipou uma tropa e iniciou a aventura em outubro de
1898. Depois de 21 km eles chegaram ao rio Suaçui Grande. Ali
eles acamparam a primeira noite ouvindo os sons da floresta. No
dia seguinte eles fizeram uma balsa de embaúba, e atravessaram
o rio. Ali eles acamparam durante um longo tempo enquanto eles
abriam o caminho. Outros acampamentos foram feitos e final-
mente eles encontram um outro grupo que vinha trabalhando na
abertura da estrada no sentido contrário, vindos de Itambacuri.
Uma festa celebrou o encontro.
Desde aquele tempo, as pessoas passaram a comprar os seus
suprimentos em Teófino Otoni. Marcelino separara um pedaço
de terra para uma capela e pediu aos padres uma imagem de
Nossa Senhora. Esta capela foi mais tarde construída onde a igre-
ja está hoje. Marcelino, devido às dificuldades na construção de
caminhos e trilhas e por outros trabalhos, pegou a malária.
Sabendo que chegara a sua hora e pensando em seu povo
como se fosse um rebanho de Deus, ele tinha que decidir quem
seria o seu sucessor, um que pudesse levar adiante a missão de
desbravar a terra. Esta tarefa foi dada ao seu genro e discípulo,
Marcial Cyriaco da Silva. Esta foi, como se pôde ver, uma escolha
abençoada. Ele deu conselhos a Marcial e pediu aos seus filhos
(de Marcelino) que seguissem as ordens de Marcial e que ficas-
sem unidos. Após isto, Marcelino, no dia 28 de novembro de
1899 restituiu a sua alma ao Criador com a idade de 54 anos.
Marcial [sic] Cyriaco da Silva estava agora no cargo sob a guia
do exército de Nossa Senhora da Piedade (ele parece que sem-
pre ouvia a voz de seu sogro). Os campos eram cultivados em
comum bem como as pastagens para o gado. Certas áreas foram
separadas para o plantio do milho, do arroz, da mandioca para
se fazer farinha e amido; uma parte dos produtos era usada para
alimentar os porcos. Plantou-se o algodão do qual se faziam as
roupas usadas no trabalho. A terra era fértil e as colheitas muito
boas. Marcial, obedecendo os desejos de seu padrinho, ordenou
que se construísse uma capela no lugar escolhido pelo seu sogro,
e onde uma cruz fora erguida em honra de Marcelino. Ele ainda

15 Ao que parece ele mesmo construiu a estrada, como se depreende do texto mais adiante [NT].
Mas, é possível que Marcelino tenha aproveitado antigas trilhas indígenas.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 81


se lembrou da intenção de formar o patrimônio de Nossa Senho-
ra da Piedade de Chonim.
Ao longo dos anos, Marcelino da Cunha e os seus irmãos
e primos se multiplicaram e formaram outras fazendas, mas
nenhum se separou do rebanho. Marcial ampliou a capela e
como o número das crianças aumentou ele estabeleceu uma
escola estadual em outubro de 1922. Como agradecimento
por ele ter conseguido a escola, o povo o elegeu para vere-
ador para a câmara municipal de Figueira (agora conhecida
como Governador Valadares).16 Já em 1912, Marcial formou
uma banda através da compra de 12 instrumentos e pela con-
tratação de um professor. Mas tarde esta banda trouxe alegria
para a vila tocando tanto músicas populares como religiosas. A
capela foi ampliada e ornamentada. Marcial mais tarde foi in-
dicado como o terceiro juiz de paz em Peçanha. Então Marcial
começou as tratativas no sentido de que Chonim viesse a ser
separado como um distrito. Com grande alegria, ele conseguiu
isto em 1924 (OBERG, 1958, p. 18 a 20).

No mito fundante de Chonin, referente à chegada de Marcelino,


as categorias espaço e tempo encontram-se entrelaçadas. A descoberta
de um novo espaço, no meio do mato, seria a única forma de reforçar
a segurança da família e manter os valores sócio-culturais do grupo, no
velho molde territorialista. Na impossibilidade de enfrentamento com
a família Coelho, já plenamente estabelecida em Guanhães, tornou-se
primordial a busca por um espaço a ser dominado, significado e territo-
rializado onde a percepção de tempo circular pudesse refazer a ordem
vivenciada na sociedade de origem mas que o colocasse numa posição
privilegiada, refundando uma nova tradição. A partir de uma percepção
circular de tempo a hierarquia original se conservou e a terra dos so-
nhos, alcançada após três dias de viagem, é descrita de forma edênica
na qual prevalecem os encantos naturais e a pródiga fauna, tal como
uma terra prometida, nos moldes bíblicos. O lugar dos sonhos já tinha
alguns moradores esparsos que foram absorvidos por Marcelino que
conduziu a todos como uma espécie de Moisés, todos em cooperação
com os demais parentes da família Cunha.
De acordo com o próprio discurso fundador a população cresceu
mas não havia progresso, já que a perspectiva de tempo estava basi-

16 Seria mais razoável pensar-se na Câmara de Peçanha, que era vila desde 1881 e não de Go-
vernador Valadares que seria município somente 16 anos mais tarde [NT].

82 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


camente atrelada à natureza e chega-se à meta desejada, a territori-
zalização de um espaço onde os Cunha vivenciassem sua segurança e
se tornassem figuras centrais na localidade e nos arredores, o que não
ocorrera em Guanhães. Nesse caso, o progresso representa um elemen-
to perigoso que poderia romper com a busca de estabilidade e conser-
vadorismo dos valores e costumes cotidianos. Os únicos movimentos
que quebram o cotidiano se reduzem à busca da própria sobrevivência
do grupo, a busca por produtos em cidades vizinhas que exigem a aber-
tura de picadas e caminhos em direção a Teófilo Otoni. Esses esforços
levaram Marcelino a contrair malária e, novamente, na perspectiva cí-
clica, ele faz seu sucessor, reafirmando um novo Moises e mantendo o
mesmo estilo de vida. O novo eleito, Marcial, obedece aos desejos do
sogro Marcelino e constrói a Capela, multiplica as fazendas sem separar
o rebanho e alcança importância local ao participar da política e em ou-
tras instâncias sociais e culturais. Retomando Galimberti (2008, p. 902),
conforme exposto acima, “no tempo cíclico não há futuro que não seja
a pura e simples retomada do passado que o presente reforça”.
b) Nada os intimidou: Proposta de construção de um frigorífico
Em 11 de outubro de 1956, Niederauer, através do rádio fez
este discurso: ‘Quero aproveitar esta oportunidade para falar aos
moradores deste município, a todos os que vieram com a sincera
intenção de fazer algo pelo bem comum, a todos os que amam
o Paraná, como uma pequena parte de nosso imenso Brasil, aos
que fizeram e estão fazendo algo pelo progresso de Toledo, en-
fim, aos homens de boa vontade que aqui vivem.
Levamos 10 anos para alcançar este momento, em que, pela
primeira vez, podemos trazer a público uma proposta concreta
para a construção de um frigorífico em Toledo. Foram 10 anos de
intensa labuta, cheios de dificuldades e esforços cansativos, pois
foi em 1946, com a formação de Maripá e seus planos para a
colonização de toda a Fazenda Britânia, atualmente o município
de Toledo, que apareceu, entre muitos outros, o problema do
escoamento dos produtos desta região. Este problema ainda per-
manece conosco, embora de forma menos aguda. Hoje vemos as
folhas de fumo serem embarcadas para S. Paulo, via Guaíra, Porto
Epitácio e a Estrada de Ferro Sorocabana. Teremos outros meios
de transporte desde que os produtos apareçam. Mas, naqueles
dias longínquos, quanto os primeiros homens desembarcaram
dos caminhões junto ao rio Toledo, em abril de 1946, nada havia
a não ser floresta, floresta e mais floresta. Hoje temos este milagre

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 83


que é Toledo, em vez de um acampamento de meia dúzia de
homens, vindos de Farroupilha, do Rio Grande do Sul.
Nada os intimidou, nem aos que os seguiram. A custa de seus
eforços, em 1946, 1947 e 1948, foi-nos possível a construção de
algumas estradas, serrarias e as primeiras casas. Depois seguiu-se
a exportação de madeira, que trouxe algum dinheiro. Aparece-
ram novas despesas, com a necessidade de se comprar máquinas
e tratores, a construção de mais estradas e o levantamento topo-
gráfico das terras. Em 1949 e 1950, vieram os primeiros compra-
dores de terras. Alguns indivíduos fracos logo desistiram, mas os
mais ousados resolveram tentar a sorte, comprando uma ou duas
colônias.17 Em 1951, os colonos apareceram em avalancha [sic].
Nos escritórios da Companhia trabalhamos muitas vezes até às
3 horas da manhã. Toledo começava a viver. Os anos de 1952 e
1953 deslizaram. Fez-se novas derrubadas e novos campos co-
meçaram a surgir aqui e ali. A produção de feijão ultrapassou as
necessidades locais e as sobras foram exportadas para o Rio de Ja-
neiro. Em 1954 e 1955, iniciou-se a produção de porcos, e os co-
lonos tiveram que vendê-los. Surge então o Empório, em socorro
aos colonos, comprando os porcos e remetendo-os para Ponta
Grossa. Em 1956, houve um aumento inesperado no número de
porcos, além de se iniciar a criação de gado, tudo isto exigindo
mercado para a venda. E aí, o que aconteceu? Três navios ame-
ricanos, com seus porões carregados de banha, apareceram no
Rio de Janeiro. Esta banha, adquirida nos Estados Unidos pela
COFAP, foi posta no mercado brasileiro a Cr$ 30,00 o quilo.
Mais banha veio da Argentina, para ser descarregada em Porto
Alegre. O resultado imediato do baixo preço da banha foi a que-
da do preço do porco no Brasil, de tal modo que os frigoríficos
locais não podiam competir com o produto estrangeiro de baixo
preço. Além disto, os frigoríficos começaram a limitar o núme-
ro de porcos que compravam, alguns restringindo-se a, apenas,
mil cabeças mensais. Esta situação trouxe dificuldades para o
município, tanto para os produtores como para os comercian-
tes. Cada vez que mandávamos um caminhão carregado para
Ponta Grossa, o preço do porco era baixado. O Empório então,
resolveu mandar os porcos para São Paulo, a fim de serem ven-
didos aos açougueiros e aos matadouros. Mas isto resultou em
maiores gastos em fretes.

17 As terras em Toledo foram divididas em lotes nas cidades com quadras de 100 metros de lado;
ao redor das vilas ou projetos de cidades, pequenas chácaras de até 2,5 hectares e as colônias
eram espaços maiores com até 25 hectares. Na obra referente a Toledo, Oberg chama de
fazendas a estas subdivisões, provavelmente a partir do termo inglês farm, mas o mais correto
seria mesmo sítios, quintas, pequenas propriedades rurais.

84 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Enquanto o Sr. Egon Bercht estudava as possibilidades técni-
cas da construção de um frigorífico aqui em Toledo, o Sr. Willy
Barth provava que a única solução para o problema do porco
era um frigorífico que nos permitisse a exportação de produtos
já industrializados, em vez de vendermos os porcos vivos. Uma
vez enlatados os produtos do porco, não importaria o tempo que
demorasse para atingir os mercados consumidores ou de que tipo
eram as estradas. O que interessava era que nossos colonos pu-
dessem vender quantos porcos criassem que o município progre-
disse economicamente.
O frigorífico projetado deverá ser grande, mas não demais.
Considerando a atual e a futura produção de porcos, deve ter a
capacidade para 200 a 250 porcos por dia, além de 10 a 15 cabe-
ças de gado. O frigorífico deve ser construído de forma a permitir
a expansão futura. Outra consideração de grande importância
na formação da nova Companhia é a contínua solidariedade do
povo, nesta área. Se cada um de nós procurasse se tornar inde-
pendente e trabalhar só para si, estaríamos caminhando para trás.
Devemos nos unir e trabalhar juntos, pois só unidos venceremos.
Por esta razão é que o frigorífico deve ser construído pela conju-
gação de nossos esforços, pois de outra forma não seremos capa-
zes de fazê-lo. Todos nós devemos participar da industrialização
da matéria prima que nós mesmos produzimos. Dessa forma, os
lucros do empreendimento não irão para os frigoríficos de Ponta
Grossa, Curitiba e São Paulo, mas para o colono que derrubou as
florestas, plantou o campo e criou os porcos. Quem mais que eles
têm o direito aos lucros da industrialização? Esperamos ter de 300
a 500 acionistas,valendo cada ação mil cruzeiros ao par.
Uma sociedade limitada é uma associação de pessoa e,
como tal, exige, no caso de qualquer mudança contratual, que
todos os seus sócios assinem o instrumento que determina tal
mudança. A morte de um deles, por exemplo, poderá deter-
minar um balanço geral de débitos e créditos. Imaginem um
matadouro-frigorífico com 500 quotistas fazendo balanço cada
vez que faleça um deles. Além disto, a responsabilidades dos
quotistas é limitada ao capital total da companhia. Isto quer di-
zer que cada sócio é passível de responder pelas obrigações da
companhia com o seu capital privado até o total do capital da
companhia, no caso de outros sócios não contribuírem com as
sua quotas. Esse tipo de companhia só é recomendado quando
o número de associados é muito pequeno.
O frigorífico pode ser também criado sob a forma de coo-
perativa. Mas quem, atualmente, quer este tipo de organização?
E, além disso, como poderíamos arranjar entre os criadores de
porcos desta região, 20 mil contos, porque um frigorífico moder-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 85


no de acordo com as estimativas do Sr. Egon Bercht, custará esta
soma! Uma cooperativa, neste caso, não é aconselhável. Estuda-
mos isto com cuidado e atenção, atendendo sempre em primeiro
lugar os interesses do município. Chegamos assim à conclusão
que o que queremos é uma Sociedade Anônima: cada pessoa
será responsável somente pelas ações que venha a subscrever,
podendo um acionista comprar quantas ações deseje, em seu
próprio nome ou no de outra pessoa. E mais importante ainda, o
acionista estará sempre protegido pelas leis que regulam as ativi-
dades da Companhia.
Uma vez decidido ser a Sociedade Anônima o que queremos,
surge a questão de como estabelecer esta companhia que insta-
lará o frigorífico, nosso frigorífico, o frigorífico de Toledo. Logo
que o Sr. Egon Bercht iniciou seus estudos no Rio Grande do
Sul, várias entidades industriais e comerciais manifestaram o seu
interesse em participar desta empresa. Ele, no entanto, não assu-
miu nenhum compromisso, apesar de as ofertas haverem exce-
dido ao capital necessário. Queremos saber, em primeiro lugar,
até que ponto o povo deste município está preparado para fazer
investimentos. Somente depois que nosso povo tenha se compro-
metido, é que o restante das ações será posto a venda em Porto
Alegre. É por esta razão que queremos fazer um inquérito, que
mostrará quanto cada habitante está disposto a investir. Obtida
esta informação, as ações da companhia serão postas a venda,
logo que sejam publicados os seus estatutos.
O pagamento das ações subscritas por cada acionista pode
ser feito em 4 prestações. Diz a Lei que 10% do capital subscrito
deve ser pago no ato da subscrição e depositado no banco. Um
mês depois, mais 15% deve ser depositado. Novo pagamento
deve ser feito 6 meses mais tarde. O pagamento final vencerá em
18 meses depois da fundação da companhia.
Concluindo esta palestra, coloco-me à disposição de qualquer
pessoa que deseje maiores detalhes. Também pode-se obter in-
formações com os Srs. Egon Bercht e Willy Barth, nos escritórios
da Maripá (OBERG; JABINE, 1960a, p. 36 a 39).

Os termos do discurso de Niederauer denotam uma perspectiva


em que estão presentes pelo menos quatro dimensões importantes,
que buscaremos sinalizar aqui, ainda que rapidamente. Primeiro, uma
perspectiva de um relacionamento territorial simbólico que vai bem
além das cercas de Toledo, isto é, de um município perdido nos ser-
tões. Ele menciona o fato de se querer fazer algo para o bem do Paraná,
para o Brasil. No caso de Toledo, pelo que se deduz da obra de Oberg,
86 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
a comunidade não esperava muito das autoridades, mas também não
ficavam esperando delas aquilo que eles poderiam fazer.18
Um segundo aspecto, é a necessidade de ampliar os horizontes dos
territórios comerciais com as relações ou vínculos empresariais com Ponta
Grossa e até com São Paulo, a centenas de quilômetros de distância. Este
horizonte que se alarga que de início tem em vista um espaço para se
colocar as mercadorias, por outro lado, deixa entrever certa admissão de
contaminação pelo progresso; era uma estrada de duas mãos.
O passado não é esquecido, mas ao contrário, é retomado na
forma da memória de um tempo de empenhos, de lutas e mesmo de
sofrimentos que não devem ser considerados como tendo um sentido
em si mesmos, mas que devem remeter a um horizonte de futuro que
possa de algum modo dar sentido ao esforço despendido. São vistos
como passos ou atividades feitos em termos de um projeto sonhado e
mesmo desejado.
Um quarto aspecto que não se deve deixar de lado, é a clara deter-
minação de se depositar tanto a responsabilidade quanto a oportunidade
nos ombros dos próprios moradores. Não se propõe que um capitalista
venha fazer para eles aquilo que deve ser feito por eles. De um certo
modo, com isto, o futuro permanece em suas mãos. O tempo projetado
desdobra-se num espaço ocupado (território) e Niederauer convoca en-
tão a que se mantenha a autonomia pela assunção desta nova empresa.
No discurso do Diretor apresenta-se uma perspectiva de tempo
projetual, nos termos de Galimberti, visto acima, onde são convocados
os homens dispostos ao progresso de Toledo. A proposta clara é a da
construção de um frigorífico, solução pensada após se vivenciar o perí-
odo das serrarias, da exportação da madeira, cujo lucro fora investido
em novas despesas com máquinas e tratores usados para preparar a
terra aos novos compradores. Os fatos expostos no discurso proferido
na rádio, remontava ao milagre de Toledo, numa demonstração clara de
reconhecimento ao pequeno grupo de homens que abriu uma picada
floresta a dentro. O processo de territorialização que permeou o surgi-
mento de Toledo relaciona-se, desde o início, com a idéia de progresso
numa perspectiva de tempo futuro. A proposta do frigorífico surge como

18 As estradas foram construídas e mantidas pela MARIPÁ S.A., a educação, em grande parte,
estava nas mãos de entidades privadas, etc.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 87


mais um projeto, dentre outros tantos anteriores, que buscaram uma
expansão futura. O surgimento da Maripá não visava rememorar um
tempo/espaço anterior mas um novo tempo/espaço.
Considerações finais
Nesta proposta temos a oportunidade de trabalhar o percur-
so de duas situações sociais a partir daquilo que Weber chama de
ciência da realidade. Dada a complexidade e a processualidade da
realidade humana, a mesma requer que se admita a possibilidade
de inúmeros percursos ou abordagens. Isso é necessário para que
a mesma seja respeitada enquanto objeto de conhecimento. Com
todos os limites naturais de uma empresa deste tipo, o presente en-
saio, lançando mão de conceitos da história, da geografia, da antro-
pologia, da psicologia cultural e da filosofia, busca compreender – e
não explicar – este objeto, respeitando a sua natureza complexa e
processual; no primeiro caso, uma vez que não é possível reduzi-lo a
uma única dimensão, e no segundo, por ser histórico. Nos termos de
Weber, importa compreender, “a conexão e a significação cultural de
suas diversas manifestações em sua configuração atual, de um lado,
e as razões que fizeram com que historicamente elas se desenvolves-
sem sob esta forma e não sob outra, de outro lado” (WEBER, 1968,
p. 170-171 apud COLLIOT-THÉLÈNE, 1995, p. 26).
Esse esforço de compreensão das duas realidades, tanto a de Cho-
nim quanto a de Toledo, nos apresenta pontos comuns e divergentes que
nos levam a intuir, a partir de duas matrizes de perspectiva de mundo, o
delineamento de percursos distintos tendo em mente os apontamentos
levantados por Oberg. As matrizes americanista e iberista, de acordo
com Morse (1988), poderiam ser complementadas com o territorialismo
marcante das sociedades do espaço em contraponto às sociedades do
tempo, nos dizeres de Barbosa Filho (2000). Desse enfoque desdobram-
se um emaranhado específico de relações entre o homem, o tempo
e espaço, o processo de territorialização e a técnica. Essas matrizes e
conceitos se fundem e se reconfiguram no gesto fundante inicial como
os fios condutores que emprestarão sentido às representações das ações
seguintes; e, se quisermos, moldarão uma percepção de tempo e espa-
ço específica, conforme vislumbramos em Chonim e Toledo, exigindo
de qualquer pesquisador uma perspectiva holística.

88 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


A análise dos discursos fundadores é desafiadora, especialmente
quando requer uma perspectiva interdisciplinar e, por isso, considera-
mos a nossa incompleta se comparada àquela exigida pelo melhor es-
tilo das análises realizadas pelos Annales, especialmente as de Braudel
(1987). Dentro desse estilo, “as relações homem-meio, o reconheci-
mento da mudança e da permanência dos aspectos que compunham a
paisagem de um determinado lugar, identificando a constituição física
da mesma aliada ao comportamento social e cultural dos habitantes” se
constituíram na principal ênfase dada pelos Annales em suas explora-
ções (RIBEIRO, 2007, p. 92). Em conjunto com as obras de Bloch (2001)
e Febvre (1991), Braudel destaca não só a dimensão temporal mas vin-
cula a sociedade a um determinado espaço.
Mas, não podemos deixar de reconhecer o esforço de tantos outros
autores que, a partir de suas áreas de conhecimento, tentam há décadas
trabalhar com o desafio de compreender a articulação do homem com o
meio em que vive e com o tempo que lhe é perceptível. Na trilha aberta
por Braudel, Paul Claval (1999) reanimou os estudos culturais na geografia
francesa e se tornou a referência às atuais tendências da chamada new
cultural geography (HENRIQUES, 1997, p. 135). Fundada por Carl Sauer,
na década de 30, a Geografia Cultural que vincula o espaço à cultura bus-
ca em sua vertente mais radical tomar “a paisagem como um texto que
deve ser lida, analisada, interpretada e explicada como documento social
(...) como configuração de símbolos e signos leva a metodologias mais
interpretativas do que morfológicas (...) específica para a leitura de ima-
gens – representações do espaço (...)” (MIRANDA, 2007, p. 96). Comple-
mentando a complexidade da aproximação entre as categorias tempo e
espaço, a proposta de Saquet (2006, p. 81) de uma abordagem (i)materal
do território nos parece a mais válida no momento para a reflexão acerca
de Chonim e de Toledo. De acordo com o autor,
Espaço, tempo e território são conceitos e processos do real inti-
mamente articulados. Não estão separados, mas são diferentes.
O homem, em sociedades distintas, está (no), produz (o), é (o) e
percebe o território, arranjando-se em tramas e relações sociais,
que são (i)materiais, ou seja, econômicas, políticas, culturais e
naturais ao mesmo tempo. No homem reside a síntese do social
e do natural, como ser genérico, biológico e socialmente, e a
síntese da objetividade e da subjetividade, do (i)material. Somos
objetivos e subjetivos concomitantemente, ou seja, não somos

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 89


e nem vivemos somente a matéria ou a idéia em movimento
(SAQUET, 2006, p. 82).

Em outras palavras, cabe ao agente individual o papel de única


entidade onde as diferentes esferas de ação estão simultaneamente
presentes e em contato. Estas esferas podem correr paralelas e mo-
vidas por aquilo que Weber chama de “legalidades próprias”, sem a
determinação efetiva de uma sobre as demais. Assim, a “análise das
relações entre elas (ou melhor, entre seus sentidos) só é possível com
referência a essa entidade que as sustenta pela sua ação e é a portado-
ra simultânea de múltiplas delas: o agente individual” (COHN, 1991,
p. 29). É, portanto, somente através do sentido “que podemos apreen-
der os nexos entre os diversos elos significativos de um processo parti-
cular de ação e reconstruir esse processo como uma unidade que não
se desfaz numa poeira de atos isolados. Realizar isso é precisamente
compreender o sentido da ação” (idem, p. 28).
As pistas de Morse quanto às matrizes ibérica e americanista,
de Barbosa Filho quanto à sociedades do tempo e do espaço e, as de
Galimberti, sobre a percepções de tempo, nos levam a pensar essas
duas categorias – tempo e espaço – a partir do sentido que os agen-
tes lhe emprestam e das relações que estabelecem. Chonim e Toledo
relacionam-se com o espaço. Mas qual é o sentido e a motivação
dessa relação para ambos? O primeiro relaciona-se com o espaço
tendo como dimensão o passado; o segundo, a dimensão do futuro.
Há nos dois casos, a fixação dos homens no espaço, que logo ganha
um significado e se transforma em territórios mas essa fixação não se
dá com a mesma dimensão de tempo. O que as tornou diferentes? O
que estaria subjacente a estas duas matrizes e dimensões temporais?
Muito provavelmente estamos lidando com percepções distintas do
tempo: o circular e o projetual.
Isto posto, retornemos ao início de nossa reflexão onde imagina-
tivamente, pensáramos nos atuais habitantes de Toledo e de Chonim de
Cima e em hipotéticas relações de desconhecimento mútuo. Lancemos
mão, mais uma vez, de um recurso fantástico para tentarmos nos apro-
ximar dos sentidos das ações aqui descritas: vamos tomar dois morado-
res um de Toledo e outro de Chonim de Cima e congelá-los no tempo lá
na década de 1950. Digamos que estes moradores despertassem depois

90 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


de 60 anos. Certamente o morador de Chonim de Cima, ao despertar,
estaria quase em casa mesmo nos dias de hoje no ainda Distrito de Go-
vernador Valadares. O que realmente seria muito diverso para ele, hoje
em dia, em relação aos primeiros anos da década de 1950? Talvez car-
ros mais modernos, a televisão, o computador etc. Mas o estilo de vida
num todo, as estradas, os moradores, a educação e os seus costumes
não sofreram mudanças tais que ele em pouco tempo não pudesse de
novo levar a vida de antes.
Já o morador de Toledo, certamente, não deixaria de se espantar
com o que veria, mas graças à sua perspectiva das coisas, talvez este
susto não fosse assim tão grande. Tudo o que houvesse de novo, de
certo modo, já estava morando em sua imaginação do futuro de Toledo
desde a sua juventude.
Mas invertamos a situação, vamos descongelar o choninense em
Toledo: como será que ele se sentiria? Talvez até dissesse: onde foi que
erramos? Rodovias, indústrias, comércio, universidades, aviões, escolas,
jornais, hospitais etc. Que pensaria o congelado toledano se ele desper-
tasse nos dias de hoje em Chonim de Cima? Talvez dissesse também:
onde foi que erramos! Ainda estradas de terra, educação e saúde precá-
rias, falta de emprego etc.
A territorialização que redundou da clareira inicial certamente
não faria parte de das concepções de mundo destes descongelados
invertidos. Pensemos, ainda, na frase hipotética ao despertar. Atrás de
errar está num primeiro momento uma questão que se contrapõe ao
acertar. Mas, talvez o mais correto seja pensar-se que eles tenham em
mente mesmo algo relacionado ao caminhar, ao percurso. Onde foi
que nos desviamos do caminho e projeto iniciais! Tanto para Chonim
de Cima como para Toledo havia uma proposta de um caminho e
mesmo de um caminhar inicial que, bem ou mal, os levaria a algum
lugar – uma topia na utopia – que de algum modo seria a terra dos
sonhos. Mas para um a terra dos sonhos era espacial e quanto menos
mudasse tanto melhor, dentro de uma percepção de tempo circular;
para o outro, a terra dos sonhos incluía a idéia de quando mais mudas-
se tanto melhor, dentro de uma percepção de tempo projetual. Uma
vez o tempo remete a um passado que permanece, noutra vez, remete
a um futuro que acontece. Para um o novo é ameaçador, para o outro,
o novo é buscado e até inventado (Bergson, 1984).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 91


Fonte

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94 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
Ciência, saúde e território em Minas Gerais
(1895-1930)1
Jean Luiz Neves Abreu2

Introdução

O
advento da República trouxe mudanças importantes no
campo da saúde pública no Brasil. Em reação à insufici-
ência da estrutura sanitária herdada do Império, capaz de
fazer frente às enfermidades, políticos, médicos e higienistas en-
fatizavam a necessidade de reformas e maior presença do Estado
nessa área. Além da unificação e ampliação dos serviços de higie-
ne federais, com a criação do Departamento Nacional de Saúde
(1920) as discussões pelo aprofundamento das ações nesse campo
tomaram corpo com o movimento pelo saneamento dos sertões
(FARIA e CASTRO SANTOS, 2003:21-29, HOCMAN, 1998).
O movimento pelo saneamento no Brasil procurou reunir esfor-
ços de médicos e intelectuais em uma cruzada contra as doenças que
atingiam o país, visto como um “imenso hospital”. De acordo com as
diretrizes nacionais de saúde pública, em vários estados ocorreram re-
formas com o intuito de combater endemias, que pelo seu impacto
econômico e social eram consideradas responsáveis pelo atraso do país,
como o impaludismo e ancilostomíase (LIMA e HOCHMAN: 1996).
Conforme se pretende mostrar neste trabalho, em Minas Gerais
houve significativos esforços para a constituição de uma organização
sanitária com o objetivo de combater as enfermidades e problemas de
saneamento em vários municípios mineiros. A partir dos relatórios de
saúde produzidos por médicos sanitaristas, procura-se discutir como a
construção da saúde pública foi inseparável da questão territorial e, ao

1 Este texto é produto das pesquisas realizadas no Arquivo Público Mineiro e faz parte do pro-
jeto: Saúde, higiene e sociedade: o sanitarismo em Minas Gerais (1889-1930) e do projeto
“Ocupação e Modernidade: Processos de Territorialização no Vale do Rio Doce”, financiados
pela FAPEMIG.
2 Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor da Universidade
Federal de Uberlândia/MG.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 95


mesmo tempo, identificar os principais aspectos do sanitarismo no Esta-
do e seus pressupostos.
A organização sanitária e a questão territorial
Em fins do século XIX, Minas Gerais enfrentava vários problemas
médicos-sanitários. Tais problemas resultavam, em grande parte, da au-
sência de uma estrutura e políticas de saúde capazes de enfrentar os
desafios colocados pelas epidemias e pela extensão territorial do Estado.
De maneira geral, a organização dos serviços de saúde era incipiente. O
Serviço Sanitário havia sido regulamentado desde 1895 e compunha-se
de um Conselho de Saúde Pública e Diretoria de Higiene - encarregada
da execução do regulamento sanitário -, delegacias de higiene e vaci-
nação instaladas nos municípios. Desativado em 1898, o Serviço só foi
reestruturado em 1910.
A Diretoria de Higiene possuía várias atribuições, tais como inspe-
ção sanitária em habitações e estabelecimentos, como fábricas e escolas,
e outros serviços a exemplo do de estatística demógrafo-sanitária e desin-
fecção. Na década de 1910, Belo Horizonte contava com apenas duas
instituições na área médica: a Faculdade de Medicina e a Fundação Eze-
quiel Dias, filial do Instituto de Manguinhos que desempenhou importan-
te papel nas questões sanitárias (TORRES, 2007:124-134). Outra parceria
foi com o Instituto Pasteur, de Juiz de Fora, para onde eram encaminha-
dos os “indivíduos pobres” atacados por animais acometidos de raiva.
Os relatórios dos primeiros anos de funcionamento da Diretoria
de Higiene após sua reestruturação oferecem um retrato das dificul-
dades de trabalho enfrentadas pelo então diretor Zoroastro Rodrigues.
No relatório referente a 1910, ele reclamava do “excesso de trabalho,
num departamento de administração pública que só agora começa a ser
instalado.” (Relatório da Diretoria de Higiene, 1911:3) Nesse período, o
conhecimento das condições endêmicas do estado dependia de notifi-
cações das Câmaras Municipais.
Na maior parte das vezes, as providências se resumiam em en-
viar médicos para municípios e regiões assolados pelas doenças. Um
Exemplo é a notificação que o presidente da Câmara de Curvelo fez
para a Diretoria de Higiene sobre casos de febre amarela e varíola em
Curvelo. Em resposta, Zoroastro Rodrigues enviou o Dr. Samuel Libâ-
nio, médico auxiliar da Diretoria de Higiene, para medicar os doentes

96 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


da região em penosa viagem nas margens do rio Picão (Relatório da
Diretoria de Higiene, 1911:26-27).
Entretanto, diante da precariedade dos recursos, os médicos pou-
co podiam fazer. Havia também carência de mão-de-obra para a rea-
lização dos serviços da Diretoria, como o de estatística sanitária, reali-
zado pelo próprio Zoroastro com a publicação de um boletim mensal
e um anuário. O diretor afirmava não dispor de um só auxiliar, sendo
impossível realizar a estatística de outras cidades (Relatório da Diretoria
de Higiene, 1913:17). Apesar da existência de um serviço de estatística
da Diretoria de Higiene, com a criação da Diretoria de Saúde Pública,
em 1927, que se constituiu uma Inspetoria de Demografia e Educação
Sanitária. O serviço de estatística se destinava à apuração de dados re-
lativos à nupcialidade, natalidade e mortalidade e abrangia 28 cidades,
além de Belo Horizonte, conforme é possível verificar nos relatórios
produzidos entre 1928 e 1935.
Outro entrave residia no impacto das finanças públicas sobre a
saúde. No relatório de 1915, Zoroastro Rodrigues afirmava que se acaso
fossem “outras as condições econômicas e financeiras, deveria o Estado
volver desde já suas vistas para a solução de problemas vitais de saúde
pública”. O médico se reportava na ocasião à necessidade do combate
sistemático de moléstias como o impaludismo, a doença de chagas e a
ancilostomose (Relatório da Diretoria de Higiene, 1916: 20).
A situação calamitosa da saúde em Minas Gerais mereceu aten-
ção especial do sanitarista Belisário Penna. Em viagem ao norte de Mi-
nas, em 1907, requisitada pela Estrada de Ferro Central do Brasil para a
profilaxia da malária, o sanitarista pôde verificar a existência de famílias
de trabalhadores que viviam à margem da estrada que eram acometidas
pela tripanossomíase provocada pelo “barbeiro”. Em suas observações
sobre Minas Gerais, visto como “o Estado da doença”, salientou: “É
impressionante e doloroso o contraste entre a privilegiada natureza do
território mineiro, e o aspecto da miséria orgânica, de doença, e da tris-
teza da maioria de seus habitantes”.
Observava que, ao lado de uma natureza privilegiada, “com o
clima invejável” e com a pujança fauna e da flora havia uma população
“degenerada de papudos, de cretinos, de aleijados, vítimas do ‘barbei-
ro’, ou de cacheiticos e estafados, vítimas do impaludismo e ancilosto-
míase”, legiões de doentes que viviam “miseravelmente sem nada pro-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 97


duzir”. Esse diagnóstico era atribuído ao descaso dos governos estadual
e municipal mineiro no tocante aos assuntos de saúde pública. Ainda
segundo apontava o sanitarista, pouca verba era destinada à higiene em
comparação com outros estados (PENNA, 1918: 9-10).
As considerações de Belisário Penna eram compartilhadas pelos
médicos que atuaram em Minas Gerais e que reconheciam as dificulda-
des para resolver os problemas sanitários no Estado. Além da reclamada
falta de verba, para as autoridades médicas a extensão territorial de
Minas se colocava como um dos principais obstáculos do saneamen-
to. Nesse sentido, o diretor da Diretoria de Higiene, Samuel Libânio,
chamava atenção para o problema das grandes distâncias e difíceis vias
de comunicação: “nessa enorme extensão variam imenso as condições
topográficas, e surgem a cada passo, problemas higiênicos regionais, de
feição complexa e que urge resolvidas científica e eficientemente” (Re-
latório da Diretoria de Higiene, 1920:11).
Em 1918, foi dado um passo importante para o enfrentamento
dos obstáculos de saneamento e resolução dos problemas sanitários de
Minas, quando o Governo firmou convênio com a Fundação Rockefel-
ler a fim de determinar-se a extensão e intensidade da ancilostomíase
e seus efeitos na população do campo. A criação do Serviço de Sanea-
mento e Profilaxia Rural para o combate às endemias nas zonas rurais
do Estado resultou desse acordo.
No Brasil acordos de apoio técnico e científico foram assinados
em alguns estados como São Paulo, Mato Grosso, Rio de Janeiro e Mi-
nas Gerais. As áreas de atuação da Fundação refletiam e reforçavam
diferenças regionais na medida em que favoreciam estados em situação
econômica e política favorável (FARIA, 2002).
Minas Gerais foi um dos estados que mais recebeu investimen-
tos em razão de sua situação política e econômica e das condições de
trabalho oferecidas. Os médicos da Comissão deram apoio técnico no
combate às verminoses em vários municípios mineiros. Imbuídos de
uma missão científica, realizavam exames de fezes, diagnósticos e distri-
buição de medicamentos aos infectados (MARQUES, 2004:9-10).
Em 1920, com a criação do Departamento Nacional de Saúde
Pública, o Governo Federal passou a organizar e financiar metade dos
serviços de profilaxia rural e dos programas de educação nos estados bra-
sileiros, o que significou maior ampliação da esfera do poder do Governo

98 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Federal em matéria de intervenção sanitária (SANTOS e FARIA, 2003:31-
35). Conforme o acordo assinado entre o Departamento Nacional de
Saúde Pública e o representante do estado, firmado em 29 de outubro de
1920, Minas Gerais “aceitava promover a aceitação pelos municípios de
todas as leis sanitárias e disposições do Departamento de Saúde Pública
em relação aos serviços de saneamento e profilaxia rural” (Arquivo Públi-
co Mineiro (APM). Série 10: Saúde e Assistência Pública).
Samuel Libânio, Diretor de Higiene de Minas Gerais na época, foi
um dos defensores da reforma sanitária dos anos 1920, que tinha como
um dos seus principais propósitos a campanha contra as endemias das
áreas rurais. Segundo ponderava o médico, todos os progressos realizados
em Minas “em matéria de administração sanitária podem ser aferidos pelo
seu grau de centralização” (Relatório da Diretoria de Higiene, 1923:9).
O Serviço de saneamento rural adotou em Minas a organização
de postos e subpostos, sendo criado pelo decreto 6.051 de 1922 o
Serviço Permanente de Higiene Municipal. Para Samuel Libânio esse
serviço representava o esforço em “prol de uma organização sanitária
que difunda seus benefícios de maneira mais efetiva e duradoura” por
todo o território mineiro (Relatório da Diretoria de Higiene, 1923:9).
Os postos de higiene possuíam várias atribuições, como o combate às
endemias locais e a surtos epidêmicos, inspeção médico-sanitária nas
escolas, fiscalização de gêneros alimentícios, higiene urbana e rural,
entre outros. Tais estabelecimentos contariam com todas as instalações
indispensáveis, além de um laboratório local para pesquisas (Mensagem
do Presidente Arthur da Silva Bernardes 1922:49).
Os postos de higiene contavam com a cooperação técnica da
Comissão Rockefeller. O Diretor de Higiene era responsável pela no-
meação de todo o pessoal administrativo, enquanto a Comissão ficava
responsável pela indicação de um subchefe com função técnica. A con-
tribuição financeira realizar-se-ia no prazo de cinco anos, terminado o
prazo duas outras partes contratantes (o município e o estado) assumi-
riam a responsabilidade do custeio do serviço (Relatório da Diretoria
de Higiene, 1922:9). De forma geral, o papel exercido pelos médicos
ligados à Fundação Rockefeller teve receptividade positiva por parte dos
responsáveis pelos postos de higiene. Em relatório enviado a Samuel
Libânio em maio de 1924, E. Jansen de Mello, médico responsável pelo
posto de Barbacena, salientava a contribuição da Campanha da “bene-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 99


mérita Fundação Rockefeller” na campanha contra as verminoses (Rela-
tório da Diretoria de Higiene, 1924:116).
Buscando otimizar os serviços de saúde, a Diretoria de Higiene
passou a ser denominada Diretoria de Saúde Pública, pelo decreto n.
8.116, de 31 de dezembro de 1927. Dessa maneira, eram confiadas
aos municípios as “providências que se tornarem necessárias à saúde
pública”. A reorganização dos serviços de saúde pública subordinava-se
ao “princípio de descentralização técnica e administrativa”, tendo em
vista a extensão territorial do estado e as difíceis comunicações com o
interior. Nesse contexto, os centros de saúde desempenharam relevante
papel em vários municípios. Em 1928, além de Belo Horizonte, havia
essas unidades em Barbacena, Juiz de Fora, Três Corações, Teófilo Otoni
e Uberaba. (Mensagem do Presidente do Estado Antonio Carlos Ribeira
de Andrada, 1927: 80-84).
A organização sanitária de Minas Gerais adotou modelo seme-
lhante aos de outros estados, como São Paulo, que tinha como um de
seus pilares os centros de saúde. Na verdade, esse modelo de assistência
à saúde refletia a influência norte-americana. Conforme chama atenção
Lina Faria, o termo centro de saúde (health Center) foi utilizado inicial-
mente para denominar postos de assistência à infância e posteriormente
passou a designar agrupamento de serviços médicos e de assistência sa-
nitária. Os centros comunitários de saúde atingiam várias cidades norte-
americanas nas décadas de 1920 e 1930.
A vinda da Comissão Rockefeller para o Brasil a partir de 1916
imprimiu uma mudança nos trabalhos sanitários nas áreas rurais de São
Paulo, principalmente no que diz respeito à concepção e instalação dos
postos municipais e centros de saúde no estado (FARIA, 2007:113-134).
Conforme enfatiza igualmente Carlos Eduardo Aguilera Campos “as ba-
ses científicas e filosóficas a nortear o trabalho nesses estabelecimentos
sanitários baseavam-se na epidemiologia, na educação sanitária e na
administração sanitária”. As unidades de saúde envolviam uma nova
metodologia, fundamentada na subdivisão das cidades em distritos sa-
nitários, visando um maior conhecimento, controle e profilaxia das do-
enças (CAMPOS, 2007:888).
Em 1930, Ernani Agrícola, então Inspetor dos Centros de Saúde
de Minas Gerais, via de forma otimista a adoção desse sistema de orga-
nização sanitária: “Os centros de saúde e postos de higiene são unidades

100 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


sanitárias que correspondem satisfatoriamente às necessidades modernas
para o desenvolvimento e aperfeiçoamento dos trabalhos de saúde públi-
ca” (Apud FARIA, 2002:583). Os vários serviços executados por esses es-
tabelecimentos podem ser exemplificados pelo Centro de Saúde de Belo
Horizonte. Este contava com serviço de propaganda e educação sanitária,
saneamento (visitas nas casas, melhoramentos), exames laboratoriais, hi-
giene pré-natal e infantil, serviço de nariz, vigilância sobre os que vendem
ou manipulam gêneros alimentícios, amas, barbeiros, serviço antivenéreo,
entre outros (Relatório da Diretoria de Saúde Pública, 1920:26-30).
Em 1932, Minas Gerais contava com a seguinte estrutura sanitá-
ria: um centro de saúde na capital, oito centros no interior, quatorze
postos de higiene, dez sub-postos, um dispensário antivenéreo anexo
ao centro de saúde da capital, um instituto Pasteur em Juiz de Fora, um
serviço anti-rábico na capital, um laboratório bromatológico e de pes-
quisas clínicas, quatro hospitais regionais, serviço de malária, Centro de
Estudos e Profilaxia da lepra, o qual compreendia um dispensário cen-
tral, o hospital de Lázaros de Sabará e Colônia Santa Isabel (Relatório da
Diretoria de Saúde Pública, 1932:5).
Estratégias de saneamento do território mineiro
Para compreendermos as ações de saneamento em Minas Gerais
nas primeiras décadas do século XX é relevante considerar o papel das
observações realizadas in loco pelos médicos sobre as condições de vida
das populações. O lugar de destaque conferido nos relatórios médi-
cos às descrições acerca das condições sociais, ambientais e geográficas
como fatores indissociáveis das enfermidades sugerem a conciliação do
desenvolvimento da microbiologia no Brasil com a tradição científica
dos estudos de campo. Ao analisar os relatórios produzidos a partir das
viagens de sanitaristas, Nísia Trindade Lima afirma que a
busca de conhecimentos advindos da geografia, da cultura e da
história, fundamentais para a compreensão da incidência de de-
terminadas doenças e sua distribuição no tempo e no espaço,
favoreceram perspectiva mais ampla sobre as populações com
que os médicos estabeleceram contato, muitas vezes como efeito
não antecipado de suas atividades (LIMA, 2009:234)

Tais considerações podem ser aplicadas ao caso de Minas Gerais.


Nesse sentido, os relatórios de saúde elaborados pelos médicos procu-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 101


ravam evidenciar que as enfermidades eram resultantes das condições
geográficas, sociais e econômicas das populações. Na década de 1920,
sob ordem da Diretoria de Higiene, médicos realizaram viagens e ins-
peções sanitárias em diversas regiões do Estado, com o objetivo de co-
nhecer melhor as condições nosológicas do território mineiro e elaborar
planos de saneamento.
Foi com esse propósito que, em 1920, uma comissão foi designa-
da pelo médico inspetor Dr. Mello Teixeira, em companhia do médico
chefe do oeste, Dr. Antonio Viegas, realizou viagem nas linhas Estrada
de Ferro Oeste de Minas. Para o mesmo fim, o Dr. Ernani Agrícola foi
enviado a percorrer a Estrada de Ferro Vitória Minas, na zona do Rio
Doce. No relatório da inspeção médica realizada na Estrada de Ferro
do Oeste de Minas, sobressai a percepção de uma população sem assis-
tência vivendo em precárias condições de habitações e acometida pelo
impaludismo e mal de chagas.
O plano de saneamento a ser aplicado nas regiões cortadas pela
ferrovia incluía construção de casas com a obrigação da construção de
fossas segundo determinação do médico, obras de engenharia sanitária
e quininização dos funcionários. Já na região do Rio Doce, Ernani Agrí-
cola recomendava a criação de um Posto central em Figueiras, subpos-
to de medicamentos em Aimorés e Cachoeira Escura e a utilização de
vagão posto para atendimento aos funcionários e população da região
(Relatório da Diretoria de Higiene, 1921:224-229).
Em 1921, o Dr. Eder Jansen de Mello foi igualmente designado
para proceder ao estudo das condições sanitárias e da organização de
um combate as endemias na Estrada de Ferro Central do Brasil (Ramal
de Montes Claros). Em seu relatório salientava a necessidade de uti-
lização de carros-postos, construção de fossas sanitárias, trabalhos de
hidrografia a serem realizados pela Estrada e quininização preventiva de
funcionários. (Relatório da Diretoria de Higiene, 1922: 142).
A utilização de vagões e postos fluviais em lanchas permitia que
a assistência médica chegasse a pontos isolados, que margeavam as fer-
rovias e os rios:
Percorrendo, constantemente, as pequenas localidades onde a
permanência custosa de um posto não se justificaria, vão eles
socorrendo em medicamentos e conselhos higiênicos, os mais ne-
cessitados do Estado, estabelecendo relações entre a Comissão e

102 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


os mais obscuros obreiros do solo mineiro, párias em matéria de
saúde e vigor físico (Relatório da Diretoria de Higiene, 1923: 21)

Os médicos assumiam uma perspectiva missionária, levando a ci-


ência e a civilização aos sertões. Conforme salientava Samuel Libânio “a
ambulância sanitária, o posto móvel, o hospital permanente representam
as etapas sucessivas da obra de conquista que se consolida através da re-
denção da saúde do nativo (Relatório da Diretoria de Higiene, 1924:3).
As autoridades governamentais e médicas acreditavam que não
bastava a aplicação de medicamentos se não fossem modificadas as
condições do meio. Nesse sentido, o governador Fernando de Mello
Vianna, no relatório de 1925, considerava que a campanha contra o
paludismo só obteria sucesso caso fossem melhoradas as condições eco-
nômicas das regiões atacadas pela morbidade (Mensagem do Presidente
de Estado Fernando de Mello Vianna, 1925: 171).
Nesse contexto, as obras de saneamento eram consideradas for-
mas de intervir nas condições do meio relacionadas à propagação das
doenças. A esse respeito, Samuel Libânio observa que eram largos os
tratos de nossa terra que têm seu progresso retardado, a sua prosperi-
dade econômica entibiada por causas desconhecidas, por males remo-
víveis, para cuja erradicação se tem consertado planos de saneamento
(Relatório da Diretoria de Higiene, 1924:5).
A profilaxia da malária e de outras enfermidades era realizada me-
diante a construção de casas de alvenaria e obras de hidrografia. As colô-
nias de trabalhadores agrícolas, concebidas desde fins do século XIX para
viabilizar a fixação do imigrante, serviam como modelo para as medidas
de saneamento a serem adotadas. Nesse sentido, é visível a preocupação
dos médicos com a aclimatação do estrangeiro e com as condições de
saúde dos trabalhadores agrícolas que residiam nos núcleos.
Em 1920, foi nomeada uma comissão constituída por Ernani Agrí-
cola e dois auxiliares para realizar a inspeção sanitária na “fazenda mo-
delo” Álvaro da Silveira, em Martinho Campos. O plano a ser adotado
previa medidas para impedir a propagação da malária, como execução
de obras de hidrografia e profilaxia individual dos colonos, com quini-
nização e defesa da habitação contra o mosquito transmissor (Relatório
da Diretoria de Higiene, 1921:208-210).
Várias fotografias foram reproduzidas nos relatórios pelos sanita-
ristas com o intuito de demonstrar a eficácia das obras realizadas no
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 103
entorno das ferrovias e nas colônias bem como os tipos de construções
que deveriam ser adotadas como modelo. Uma das fotografias trazia
em primeiro plano a “habitação primitiva” feita de pau-a-pique e, ao
fundo, a casa de alvenaria, simbolizando o contraste entre o atraso e a
modernidade.
Além das obras realizadas pelo governo estadual, alguns municípios
possuíam leis que regiam os serviços permanentes de higiene e sanea-
mento. Em dois de dezembro 1919, por exemplo, foi sancionada uma lei
na Câmara de Santa Rita de Sapucaí que tornava obrigatória a construção
de “latrinas higiênicas de acordo com os tipos fornecidos pela autoridade
competente, devidamente instalada a rede geral”. A lei previa ainda que a
Câmara poderia construir fossas e instalações sanitárias “que seriam pagas
pelos proprietários mediantes prestações mensais”.
Reforçando tais diretrizes, em correspondência encaminhada à
Secretaria do Interior pelo subprocurador Geral do Estado, Fernando
de Mello Vianna, expedida em vinte e sete de setembro de 1920, de-
clarava: compete às “municipalidades regular a higiene e salubridade
públicas locais, nos seus estatutos e posturas (...) e pode ser o proprie-
tário compelido a construir fossas, na zona suburbana, ou pagá-las no
perímetro urbano, sob as penas da lei” (APM. Série 10: Saúde e Assis-
tência Pública). A inexistência de uma estrutura sanitária foi objeto da
preocupação de vários médicos. O Dr. Eder Jansen de Mello, chefe do
posto de higiene municipal de Barbacena, via na necessidade de insta-
lação de fossas, o mais “importante problema sanitário de Barbacena”
em razão da ausência de rede de esgotos naquela cidade (Relatório da
Diretoria de Higiene, 1924:166)
Outros serviços de saúde de relevância eram realizados em vários
municípios mineiros. Os médicos ligados ao Serviço de Profilaxia e Sa-
neamento Rural, em parceria com a Fundação Rockefeller, realizavam
exames e medicação das pessoas. No relatório referente aos anos 1930
e 1931, há menção aos trabalhos dos médicos da Comissão no combate
de febre amarela, que havia realizado um trabalho de vigilância de fo-
cos em vinte e três localidades no norte do Estado. Segundo o relatório,
a notificação de casos em Corinto só se tornou possível depois que a
comissão instalou postos de viscerotomia e enviou um médico “a fim de
colher sangue das crianças de diversas idades, em várias localidades do
norte” (Relatório da Diretoria de Saúde, 1932: 49).

104 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Compulsando os relatórios, observa-se que apesar dos serviços de
profilaxia voltados para o combate da febre amarela, doenças venéreas
e assistência aos leprosos, na maior parte dos relatórios há uma ênfase
nas enfermidades causadas pelas infestações de vermes, principalmente
a ancilostomíase. Se considerarmos que a construção de latrinas tam-
bém objetivava combater as parasitoses, pode-se considerar que hou-
ve um grande investimento na profilaxia das doenças causadas pelos
helmintos. É significativo ressaltar que a própria atuação da Fundação
Rockefeller no Brasil, entre 1918 e 1923, concentrou-se na campanha
contra a ancilostomíase, “doença vista acima de tudo como um proble-
ma econômico” por minar a capacidade de mão-de-obra nas planta-
ções (LÖWY, 2006:139).
A questão do trabalho consistiu em um dos aspectos centrais do
discurso sanitarista no Brasil. No primeiro Congresso Nacional dos Práti-
cos Brasileiros, realizado em 1922 no Rio de Janeiro, o sanitarista Miguel
Osório de Almeida propugnava que o “saneamento da sociedade deveria
tornar o trabalhador capaz de trabalhar. Isso levará à redução da pobreza
e à melhoria das condições de vida de todos” (Apud LÖWY, 2006: 141).
Compartilhando da opinião de seus pares em outros estados, os
médicos mineiros viam as enfermidades como resultantes do atraso eco-
nômico e ignorância da população. Samuel Libânio corroborava essa
ideia ao afirmar ser pródigo em “conselhos higiênicos ofensivos e de-
fensivos” em relação “ao impaludismo que com tanta facilidade assalta
os pobres ignorantes roceiros que plantam suas moradas à beira dos
brejais, pântanos, das lagoas e das águas baixas” (Relatório da Diretoria
de Higiene, 1921:201).
Não se pode desconsiderar dentre os propósitos dos serviços de
profilaxia rural estava a ideia de que era necessário fazer chegar ao ho-
mem do campo e às populações abandonadas do interior a assistência
médica e, ao mesmo tempo, garantir mão-de-obra sadia à lavoura:
Aquilatando devidamente a relevância e urgência dessa obra de
defesa da saúde das populações rurais, flageladas por várias ende-
mias, cônscio da situação angustiosa e desesperadora de milhares
de patrícios contaminados e reduzidos à mais profunda miséria
fisiológica pelo ‘mal de Chagas’ e outras moléstias igualmente ani-
quiladoras que roubam às lides sadias e nobilitantes da lavoura
tantas energias úteis, - pôs o governo o maior empenho em pro-
mover o saneamento rural e criar postos profiláticos em diversos

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 105


pontos do Estado, onde se lhe afigurou mais premente a adoção
dessa medida de grande alcance humanitário e patriótico (Men-
sagem do Presidente de Arthur da Silva Bernardes, 1920: 53)

O Dr. Mario Augusto de Figueiredo, chefe do Posto Municipal


de Higiene de Raul Soares, incorporava essa perspectiva ao comentar
as enfermidades que acometiam os sertanejos. O mesmo observava
que “corroídos pela sífilis, sugados pelos vermes, cachexiados pela
malária, aniquilados pela lepra, escurentados pela ignorância, vivem
os nossos irmãos como tristes párias dentro da nossa pátria que eles,
anonimamente, tanto procuram engrandecer”. Daí a importância de
se difundir a higiene pelo interior de Minas, por aí residir a “maior
fonte de riqueza do país” (Relatório da Diretoria Saúde Pública de
Minas Gerais, 1929:15-22). Atrelada a essa questão estava a ideia de
que as condições endêmicas poderiam ser modificadas pela ação da
ciência, crença amplamente difundida no pensamento social da época
(HOCHMAN e LIMA, 2000).
A redenção pela higiene
Além dos avanços da ciência no combate às enfermidades, com o
desenvolvimento de exames, vacinas e medicamentos, a higiene passou
a ser vislumbrada como disciplina com estatuto científico e elemento
imprescindível para a conservação da saúde dos indivíduos e da coleti-
vidade. Segundo Vera Regina Beltrão Marques, o “fato de a higiene ser
considerada uma disciplina científica de base biológica, porém dotada
de atributos morais, munia-a de grande poder de intervenção social”
(MARQUES, 1994:112). Por meio da higiene, os médicos procuravam
difundir não só hábitos saudáveis entre a população como normatizar
comportamentos considerados prejudiciais à saúde.
Nesse contexto, a educação para a saúde ganhou grande desta-
que. Incorporando os métodos norte-americanos, os médicos brasileiros
partiam do princípio de que para combater a ignorância e o desconhe-
cimento dos preceitos higiênicos fazia-se necessário promover a cons-
ciência sanitária da população, a partir de recursos modernos, como
projeção de filmes e utilização de transparências (LÖWY, 2006:140-
149). Assim, a educação sanitária representou uma das diretrizes das
políticas de saúde implantadas em alguns estados brasileiros. Em São
Paulo, o Instituto de Higiene se constituiu em espaço para o desenvolvi-
106 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
mento de estratégias para incutir hábitos de higiene entre a população
e, principalmente, as crianças, por meio de propaganda e formação de
educadoras sanitárias (ROCHA, 2003).
Demonstrando a relevância que o tema assumiu em Minas, Belo
Horizonte foi escolhida para sediar o segundo Congresso Brasileiro de
Higiene, onde foram discutidos “assuntos de atualidade científica e de
interesse imediato nacional” (Mensagem do Presidente Fernando de
Mello Vianna, 1925:160). O discurso dos médicos e as medidas toma-
das demonstram a relevância da educação no processo de difusão dos
princípios sanitaristas. Nesse sentido, Samuel Libânio defendia o papel
da escola afeiçoando “o homem a novas formas de viver e pensar, na
idade em que se constroem hábitos definitivos”. A instrução médico-
sanitária com noções de higiene individual e coletiva significava um
passo definitivo em prol do levantamento da energia do povo mineiro
(Relatório da Diretoria de Higiene, 1921: 5).
A higiene representava ainda o meio pelo qual o desenvolvimen-
to da criança, tanto físico quanto psíquico, se processaria nas condições
“mais favoráveis à eugenia da raça”. Salientava a importância da inspe-
ção médico-sanitária nas escolas, onde a atividade do médico tinha por
objetivo a “aplicação e adaptação à vida escolar dos ensinamentos de
patologia e higiene”. Uma inspeção cuidadosa proporcionaria descobrir
“desvios funcionais” e garantiria que o desenvolvimento da criança se
processasse nas “condições mais favoráveis à eugenia da raça” (Relató-
rio da Diretoria de Higiene, 1923: 6-7).
O Dr. Mário Augusto de Figueiredo compartilhava de ideias simi-
lares. Em artigo intitulado Problemas sociais que não podem ser descu-
rados no Brasil novo, reproduzido no relatório de 1930, afirmava que
a “raça brasileira” estava se degenerando e para seu melhoramento aí
estava a puericultura “sugerindo os meios de combate, ditando as pas-
sagens profiláticas, as medicações eficientes". Para o médico, a cura dos
males que se perpetuavam por séculos dependia do socorro da ciência
e nisto consistia “a grande parte da higiene na sua parte mais bela, a
eugenia“ (Relatório da Diretoria de Saúde Pública, 1930:12-30).
Ao associarem eugenia, raça e higiene, as concepções desses mé-
dicos estavam em acordo com a perspectiva do pensamento eugênico
predominante no Brasil da década de 1920. Conforme observa Nancy
Stepan, nesse período houve uma identificação entre eugenia e sanea-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 107


mento por parte dos sanitaristas brasileiros, que imaginavam vários tipos
de reformas sanitárias capazes de melhorar as condições hereditárias
da população, bem como combater certas enfermidades que podiam
levar à degeneração, como o alcoolismo. A despeito de projetos eugê-
nicos “negativos” – destinados a impedir a procriação daqueles que não
tinham saúde – predominou a eugenia “preventiva”, perspectiva segun-
do a qual eram possíveis as possibilidades de regeneração por meio da
educação e saneamento (STEPAN, 2004:331-361).
Ao longo da década de 1930 e da seguinte, os médicos sanitaris-
tas mineiros elaboraram várias propostas de implantação da educação
higiênica nas escolas por meio de palestras, distribuição de folhetos e
do acompanhamento pelos professores e médico escolar dos hábitos
higiênicos dos alunos. Segundo Keila Carvalho, de um modo geral essa
educação despertaria a conscientização dos indivíduos, proporcionan-
do a correção de anomalias – como problemas posturais, gagueira, etc
- e a conservação da saúde pela fixação dos hábitos saudáveis. A edu-
cação sanitária ganhava contornos normatizadores das condutas, tendo
por base argumentos como a saúde pelo progresso e da regeneração do
povo (CARVALHO, 2008: 106-114).
A educação sanitária não se restringiu às crianças. Os médicos
propugnavam a difusão ampla dos princípios higiênicos entre a popu-
lação. Desde 1920, os relatórios oficiais indicam ações dos governos
estaduais na divulgação dos preceitos higiênicos a partir de palestras,
distribuição de folhetos, artigos, notas de imprensa e filmes.
Em relatório encaminhado à Diretoria de Higiene em maio de
1924, o Dr. Eder Jansen de Mello notificou a realização de seis con-
ferências e quatorze preleções em teatros e escolas, além de 2 filmes,
um sobre ancilostomíase e outro sobre doenças venéreas. A respeito da
eficácia dos métodos de propaganda, o médico comentava que o povo
pouco se interessava pelas conferências, ocorrendo o contrário quando
da exibição de filmes. O Dr. Ernani Agrícola notificou a realização de
conferências públicas na sede da Liga Protetora Operária de Lafaiete,
aproveitando da grande aglomeração das festas religiosas e contando
com o apoio das autoridades eclesiásticas. Em Congonhas do Campo,
além das conferências, organizou-se uma “pequena exposição de ver-
mes intestinais” e foram exibidos filmes sobre verminoses e doenças
venéreas (Relatório da Diretoria de Higiene, 1924: 166-192).

108 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Os hospitais também eram considerados importantes pólos irra-
diadores da higiene. Samuel Libânio observava a respeito que muito
mais que simples casas de socorro e higienização, os hospitais torna-
vam-se antes “escolas de higiene, centro de instrução e educação sani-
tárias, ponto de gravitação e de irradiação de todo um pequeno núcleo
de progresso e civilização”. Os dispensários de doenças venéreas exer-
ciam papéis equivalentes, espaços onde eram realizadas conferências
públicas, “ilustradas e em linguagem ao alcance de todos” (Relatório da
Diretoria de Higiene, 1922: 20-23).
A transformação da Diretoria de Higiene em Diretoria de Saúde
Pública trouxe um incremento nos serviços de propaganda. Estes pas-
saram a ser ligados à Inspetoria de Demografia e Educação Sanitária
“com o encargo de orientar o programa educativo do povo nas regras
elementares de higiene e na defesa de sua saúde”. A inspetoria realizou
Campanha contra a tuberculose, difteria, mortalidade infantil, febre ti-
fóide, sarampo, alimentação infantil, varíola e febre amarela. Em 1928,
o centro de saúde da capital contabilizou várias conferências públicas
e centenas de palestras particulares por médicos, enfermeiras e guar-
das, além da distribuição de quatorze mil novecentos e cinqüenta e
um 14.951 folhetos de propaganda e educação sanitárias (Relatório da
Diretoria de Saúde Pública, 1929:23-27).
Para atingir a população os médicos sanitaristas procuraram
também criar material didático que tivesse ampla aceitação. Neste
sentido, o Inspetor Odilon Santos contratou, em 1930, o desenhista
Domingos Xavier para a feitura artística de desenhos. Foram impressos
setenta mil setenta mil exemplares sobre vários temas, tais como O pe-
rigo das mãos sujas, Combates à tuberculose, O valor do leite materno,
dentre outros. Entre 1930 e 1931, os serviços de educação sanitária
foram ampliados com a publicação regular no Minas Gerais, órgão
oficial da imprensa do estado, de mais de duzentos 200 trabalhos na
sessão “Pela Saúde Pública”.
Por intermédio da Sociedade Rádio Mineira, houve a realização
de várias palestras e distribuição de impressos com preceitos de higiene
destinados às crianças. A imprensa escrita e a rádio passaram a ser rele-
vantes veículos de divulgação sanitária. Além dos veículos de comunica-
ção da Capital, em 1935, a Inspetoria procurou incorporar a imprensa
do interior, dirigindo-se aos jornais de quase todos os municípios minei-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 109


ros solicitando “a preciosa cooperação nesta tarefa educativa” (Relatório
da Diretoria de Saúde Pública, 1935:90-91).
A partir da leitura dos relatórios médicos, fica evidente o lugar de
destaque dado à educação sanitária em Minas Gerais e seus significados
na difusão dos princípios norteadores dos princípios sanitaristas no esta-
do. Embora fuja ao escopo de nossa análise, é significativo observar que
o trabalho de propaganda e educação sanitária seria aprofundado nos
anos seguintes. Com o decreto n. 69, de 20 de janeiro 1938, procurava
estabelecer uma nova organização sanitária, logo a Inspetoria de Demo-
grafia e Educação Sanitária da Diretoria de Saúde Pública passou a se
denominar Inspetoria de Propaganda e Educação Sanitária. A partir de
1940, vários trabalhos de divulgação sanitária foram publicados no Mi-
nas Gerais e várias palestras proferidas na Rádio Inconfidência, em Belo
Horizonte, e em outras rádios do interior (Divulgação Sanitária-palestras
na rádio Inconfidência, 1952).
O saneamento como ideal e prática
O ideal sanitarista da Primeira República foi incorporado por
médicos e autoridades em Minas Gerais. A situação econômica do
Estado possibilitou acordos com a Fundação Rockefeller, garantindo a
aplicação de recursos e métodos modernos no combate às endemias.
Os serviços de saúde – como o Serviço de Profilaxia Rural e o Serviço
Permanente de Higiene Municipal – traduzem os esforços dos médi-
cos sanitaristas em promover reformas e promover a higiene do povo
mineiro. Entretanto, é preciso atentar que o ideal de saneamento em
Minas esbarrou em alguns obstáculos.
Um dos problemas dizia respeito à ausência de leis eficazes di-
recionadas a obras de saneamento e construção de fossas em alguns
municípios. Sobre a questão, Ladário de Faria, chefe do distrito sani-
tário da Zona da Mata, comentava que a construção de fossas conti-
nuava morosa em razão da falta de material e de transporte (Relatório
da Diretoria de Higiene, 1921: 109 e 182). Ernani Agrícola, na época
chefe do posto de Bom Despacho, comentava a grande dificuldade
para execução dos serviços de profilaxia na zona rural devido a dis-
tância dos povoados e da dispersão da população. Em Uberabinha, no
Triângulo Mineiro, o Dr. Elpenor de Oliveira, em relatório remetido
em janeiro de 1923, notificava a falta de profissionais para inspecio-

110 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


nar todo o serviço de fossas, o que o obrigava a fazê-lo pessoalmente
(Relatório da Diretoria de Higiene, 1923:98 e 166).
Nem mesmo os serviços de saúde Belo Horizonte ficaram ilesos às
críticas. De acordo com Samuel Libânio, a legislação vigente, em 1924,
mostrava-se obsoleta para a complexidade dos serviços de higiene da
capital. No relatório, o médico solicitava que deveria haver uma ação
conjunta da prefeitura e do Estado para obrigar os moradores a constru-
írem latrinas, fazendo figurar essa obrigação para a concessão de terre-
nos e lotes (Relatório da Diretoria de Higiene, 1924: 19).
Outro motivo de reclamações dos médicos consistia na resistência
da população. Ao comentar os serviços do posto de Itajubá no relatório
de 1920, o Dr. Alfredo da Cunha chamava atenção para a aversão aos
exames e medicações, culpando a hostilidade e ignorância da popula-
ção (Relatório da Diretoria de Higiene, 1920:160-162).
A oposição às medidas profiláticas partiu não só da população
urbana e rural desprovida de recursos como das classes dirigentes. Em
correspondência enviada ao Secretário do Interior, em setembro de
1920, Samuel Libânio reportava denúncia feita pelo vice-presidente
da Câmara de Santa Rita de Sapucaí sobre “pessoa de destaque na
magistratura mineira que se recusa a cumprir a lei referente à cons-
trução de fossas” e cujo exemplo muito prejudicava “os trabalhos de
saneamento”. Em vista disso, ele solicitava a submissão do caso à apre-
ciação do subprocurador do Estado a fim de que a Diretoria pudesse
agir firmemente, multando e executando o infrator (Correspondência
da Diretoria de Higiene do Estado de Minas Gerais, 29/09/1920. APM,
Série 10: Saúde e Assistência Pública).
De forma semelhante, o Dr. Irineu Lisboa dizia que a campanha sa-
nitária de profilaxia das verminoses era de difícil execução. Por um lado,
a “classe indigente” não dispunha de recursos; de outro “a rebeldia dos
proprietários”, de “espíritos malévolos e maldizentes” que faziam propa-
ganda contra o serviço. Citava em particular o caso de um vigário que se
insurgiu contra a construção de fossas dizendo ser uma “ameaça a saúde
do povo” (Relatório da Diretoria de Higiene, 1923: 162).
As questões de ordem financeira são várias vezes mencionadas
como entraves para uma eficaz organização sanitária. No relatório do
Governo de 1925, reclamava-se da redução de recursos destinados pelo
Governo Federal ao serviço de saneamento rural e do fim do custeio de

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 111


outros serviços, como o destinado à sífilis e doenças venéreas, que teve
sua dotação orçamentária reduzida em 1924. (Mensagem do Presidente
de Estado Fernando de Mello Vianna, 173:160).
Nesse mesmo sentido iam as queixas referentes à falta de pessoal
técnico capacitado para os serviços, propalada em vários relatórios. Er-
nani Agrícola expunha o problema às autoridades governamentais em
1932. No relatório das suas atividades, dizia ser de grande alcance se
o governo de Minas entrasse em entendimento com a Universidade
de Minas Gerais para o funcionamento de cursos destinados aos atuais
médicos de saúde pública. Segundo salientava
Sem médicos, enfermeiras visitadoras e guardas sanitários perfei-
tamente instruídos na prática dos trabalhos de saúde pública e
sem o entusiasmo pela profissão não progredirá a obra sanitária,
mesmo que a Diretoria disponha de grandes dotações orçamen-
tárias (Relatório da Diretoria de Saúde Pública, 1932: 15)

Aspecto importante a ser comentado é a distribuição desigual dos


recursos de saúde no território mineiro. Embora algumas cidades con-
tassem com postos de saúde em funcionamento, a assistência à saúde
não chegava de maneira semelhante em todas as regiões. Consideran-
do os critérios adotados, índice endêmico, a densidade populacional e
importância econômica, as regiões da Zona da Mata e do Sul de Minas
eram as mais beneficiadas.
No relatório referente ao Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural
de 1923, Samuel Libânio observava que o serviço guardava “proporções
modestas em relação ao imenso território sobre que deve agir”. Chama-
va atenção, em particular, para a inexistência de hospitais regionais no
Triângulo Mineiro e no Vale do Rio Doce. Considerava central a questão
do saneamento do Rio Doce, “cuja vasta bacia, em grande parte alaga-
da”, possuía uma “numerosa população de impaludados a exigir pronta
ação” do serviço, como a construção de habitações apropriadas, obras
de hidrografia sanitária e quininização contínua. Sobre o oeste de Minas
afirmava que havia “inúmeros casos hospitalizáveis”, mas os doentes
mal tinham assegurado uma “humilde esteira” para estenderem seus
corpos (Relatório da Diretoria de Higiene, 1923: 30-31).
Tais aspectos eram reforçados no relatório do governo relativo
à saúde em 1925. Segundo este, o conjunto de medidas profiláticas
aplicados em alguns municípios, “deveria tornar-se extensivo deveria
112 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
tornar-se extensivo a outras zonas do Estado, de terras mais ferazes e
que assoladas pelo mal, não têm podido fixar o colono, como se verifica
nas bacias dos rios Doce e Jequitinhonha” (Mensagem do Presidente do
Estado Fernando de Mello Vianna, 1925: 171).
Apesar do otimismo sanitário vislumbrado na época, cabe res-
saltar que a assistência médica ainda não correspondia às necessida-
des e demandas do amplo território mineiro. Um exemplo é que a
região do Vale do Rio Doce, mencionada nos relatórios como des-
provida de recursos na área da saúde, sofreu grande carência da as-
sistência médica até a década de 1940. Tal quadro só mudou quando
a região passou a ser objeto de programas de saúde empreendidos
pelo Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) a cargo de uma comis-
são mista de sanitaristas brasileiros e norte-americanos para a extin-
ção da malária e outras endemias. O programa de saneamento vinha
em grande parte atender às demandas de uma região que naquele
contexto estava em crescimento em razão da exploração de recursos
minerais (Vilarino, 2008).
A crise de 1929 trouxe conseqüências aos serviços de saúde
executados em Minas Gerais. Em 1932, Ernani Agrícola chamava
atenção para a redução de verbas destinadas à saúde pública, o
que prejudicava a execução de vários séricos. Ao assumir a dire-
ção da saúde publica, Ernani Agrícola encontrou os serviços de-
sarticulados por força do orçamento em vigor. Comentava sobre
a necessidade das obras complementares na Colônia Santa Isabel,
que embora tivesse capacidade para mil leprosos não tinha dotação
orçamentária apropriada.
Além disso, ressaltava a precariedade do funcionamento dos
centros de saúde e postos de higiene, com a redução de recursos
e consequente diminuição de funcionários. Isso afetava alguns ser-
viços, como o de estatística, pois desde 1929 não era publicado o
boletim trimestral de estatística demógrafo-sanitária, sendo decidi-
do que em razão de diminuição de verba e de pessoal não mais se
publicaria o boletim, o que seria feito de forma mais completa no
“Anuário de Estatística Demógrafo-Sanitária” (Relatório da Diretoria
de Saúde Pública, 1932:13-21).
Esse conjunto de fatores mencionados acima indica o descompas-
so entre os ideais do projeto sanitarista e sua execução em Minas Gerais

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 113


nas primeiras décadas do século XX. Questões de ordem cultural, como
a resistência da população; e de ordem técnica e financeira impediam
o bom andamento dos projetos. Além disso, as políticas de saúde re-
forçavam a desigualdade social e econômica ao privilegiaram as mais
rentáveis regiões do Estado.
Considerações finais
Ao longo desse estudo, procurou-se abordar alguns elementos do
sanitarismo em Minas Gerais nas primeiras décadas do século XX. Con-
sultando os relatórios elaborados pelos médicos sanitaristas, pode-se
constatar constata-se que as políticas de saúde no Estado seguiam, em
grande medida, as diretrizes da saúde pública adotadas no Brasil. Procu-
rava-se implantar em Minas uma estrutura sanitária capaz de vencer os
obstáculos da extensão territorial e voltada para endemias consideradas
responsáveis pelo atraso econômico.
Os discursos dos médicos sanitaristas em Minas Gerais incorpo-
ravam, por sua vez, as ideias vigentes na época ao defenderem o papel
da ciência – representada pela higiene e pelas técnicas médicas – como
meio não só de enfrentar as enfermidades, mas também de suplantar
os obstáculos mesológicos e sociais que impediam a modernização do
Estado. Dessa maneira, os médicos insistiam no papel das obras de sa-
neamento para mudar as condições do meio e da educação sanitária
como forma profilática de diminuir as doenças que minavam as energias
dos trabalhadores do campo.
Mas como se viu, grande parte dos projetos de saneamento esbar-
ravam em problemas diversos, dentre os quais estavam a resistência da
população, a própria imensidão do território e, mais grave ao olhar das
autoridades, a inexistência de recursos suficientes.
Além disso, o projeto de saneamento era excludente ao garan-
tir mais recursos para as regiões mais ricas e populosas. Reforçava-se
assim uma distribuição dos recursos de saúde pelo território que não
partia da pobreza como critério e sim da riqueza que algumas regi-
ões tinham a oferecer, e por essa razão, deviam ser merecedoras de
projetos de saneamento. A nosso ver, esse fato revela um paradoxo
do sanitarismo em Minas Gerais, já que um dos propósitos das po-
líticas de saúde era por fim ao círculo vicioso entre pobreza, atraso
econômico e doença.

114 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Referências documentais e bibliográficas 3
Relatórios da Diretoria de Higiene
Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Delfim Moreira da Costa Ri-
beiro Secretario de Estado dos Negócios do Interior pelo Dr. Zoroas-
tro Rodrigues de Alvarenga, ano de 1910. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial, 1911.
Relatório apresentado ao Exmo Sr. Dr. Delfim Moreira da Costa Ribei-
ro, secretario de Estado dos Negócios do Interior pelo Dr. Zoroastro R.
Alvarenga, Diretor Geral de Higiene, referente ao ano de 1912. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1913
Diretoria de Higiene. Relatório apresentado ao Exmo Sr Dr. Américo
Ferreira Lopes Secretário de Estado dos Negócios do Interior pelo Dr.
Zoroastro R Alvarenta Diretor Geral de Higiene, ano de 1915. Belo Ho-
rizonte: Imprensa Oficial, 1916.
Relatório apresentado ao Exmo Sr. Dr. Affonso Penna Júnior, Secretário
de Estados dos Negócios do Interior do Estado de Minas Gerais pelo Dr.
Samuel Libânio, Diretor Geral de Higiene. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial, 1921.
Relatório apresentado ao Exmo Sr. Dr. Fernando de Mello Vianna, Se-
cretário de Estados dos Negócios do Interior do Estado de Minas Gerais
pelo Dr. Samuel Libânio, Diretor Geral de Higiene. Belo Horizonte: Im-
prensa Oficial, 1923.
Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Dr. Fernando de Mello Vianna,
M. D. Secretario do Interior do Estado de Minas Gerais pelo Dr. Sa-
muel Libânio, Diretor Geral de Higiene. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial, 1924
Relatório apresentado ao Exmo Sr. Dr. Affonso Penna Júnior, Secretário
de Estados dos Negócios do Interior do Estado de Minas Gerais pelo Dr.
Samuel Libânio, Diretor Geral de Higiene. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial, 1922.
Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Dr. Fernando de Mello Vianna, M.
D. Secretario do Interior do Estado de Minas Gerais pelo Dr. Samuel Libâ-
nio, Diretor Geral de Higiene. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1924.

3 A grafia dos documentos foi atualizada.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 115


Relatórios da Diretoria de Saúde Pública
Relatório apresentado ao Exmo Snr. Secretário da Segurança e Assistên-
cia pública, relativo ao ano de 1928 pelo Dr. Raul d’Almeida Magalhães.
Diretor de Saúde Pública. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1929.
Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Dr. Diretor de Saúde Pública do
Estado de Minas (Raul de Almeida Magalhães) pelo Dr. Mario Augusto
Figueiredo, chefe do posto permanente de hygiene Municipal Raul So-
ares, referente ao anno de 1929. Diretoria de Saúde pública de Minas
Gerais. Ponte Nova: Est. Graph Gutenberg, 1929.
Relatório apresentado ao Exmo Sr. Dr. Noraldino Lima, Secretário da
Educação e Saúde pública, relativo aos anos de 1930 e 1931. Dr. Ernani
Agrícola. Diretor de Saúde pública. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de
Minas Gerais, 1932.
Relatório apresentado ao Snr. Secretario da Educação e Saúde Pública
pelo Dr. Mario Álvares da Silva Campos, Diretor de Saúde Pública. Belo
Horizonte: Papelaria Brasil, 1935

Relatórios de Presidentes do Estado


Mensagem do Presidente de Estado Delfim Moreira da Costa Ribeiro ao
Congresso Mineiro. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1916.
Mensagem do Presidente de Estado Fernando de Mello Viana ao
Congresso Mineiro. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de
Minas Gerais, 1925.
Mensagem do Presidente de Estado Antonio Carlos Ribeiro de Andra-
da ao Congresso Mineiro. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado
de Minas Gerais 1928.
Mensagem do Presidente de Estado Antonio Carlos Ribeiro de Andra-
da ao Congresso Mineiro. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado
de Minas Gerais, 1929.

Outros documentos
PENNA, Belisário. Minas e Rio Grande do Sul: estado da doença e esta-
do de saúde. Rio de Janeiro, Revista dos Tribunais; 1918.
Divulgação Sanitária (palestras na Rádio Inconfidência). Secretaria de
Saúde e Assistência do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1952
(série de divulgação).

116 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Cópia do acordo entre o Departamento Nacional de Saúde Pública
e o representante do Estado firmada em 29 de outubro entre Carlos
Chagas e Samuel Libânio. Arquivo Público Mineiro (APM). Série 10:
Saúde e Assistência Pública.
Correspondência da Diretoria de Higiene do Estado de Minas Gerais,
29/09/1920. APM, Série 10: Saúde e Assistência Pública.

Referências bibliográficas:
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118 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Entre práticas sanitárias e saberes tradicionais:
a territorialização do saneamento no Médio Rio Doce
Patrícia Falco Genovez1
Maria Terezinha Bretas Vilarino2

Introdução

D
e uma zona de floresta e vazio demográfico, no início do
século XX, a região do Médio Vale do Rio Doce se torna a
mais populosa de Minas Gerais, em 1960. Esse processo
de territorialização foi o resultado da construção de uma ferrovia,
da abertura de estradas de rodagem, da introdução da extração e
exportação do minério de ferro, da expansão da indústria da ma-
deira, da mica e da siderurgia a carvão vegetal. A aceleração do
processo de ocupação e modernização da região do Rio Doce está
associada à atuação do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) no
Programa de Saneamento do Vale do Rio Doce, com os Projetos
Rio Doce e Mica, na década de 40, e o Programa Minas Gerais, na
década de 1950, que resultaram dos Acordos de Washington entre
o Brasil e os Estados Unidos (1942). A ação de promoção preven-
tiva da saúde visava a melhoria da habitabilidade humana naquelas
condições e a manutenção da saúde. Neste sentido, foi essencial
para a permanência e mesmo a sobrevivência das pessoas na região
ensejando a indústria e as demais atividades que requeriam a urba-
nização e a sedentarização de grandes grupos humanos.
Este ensaio propõe abordar esse processo de territorialização da
saúde e do saneamento, ocorrido no Médio Rio Doce, a partir da me-
mória. Neste sentido, lançamos mão do pensamento de Saquet (2006, p.
81) que, a partir das discussões de Raffestin, Dematteis e Turri, entende
“o território e a territorialização como resultado e condição de um pro-

1 Doutora em História Moderna e Contemporânea (Cultura e Poder), UFF. Professora da Pós-


Graduação Stricto Sensu em Gestão Integrada do Território da UNIVALE. Pesquisadora do
Programa de Memória Social do Vale do Rio Doce.
2 Mestre em História (Ciência e Cultura), UFMG. Professora do Curso de História/UNIVALE.
Pesquisadora do Programa de Memória Social do Vale do Rio Doce.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 119


cesso histórico, em que há relações socioespaciais em diferentes níveis
escalares”. Enquanto processo histórico a sociedade está num território,
o produz e o percebe como articulado a tramas e relações sociais cuja
síntese se dá no indivíduo social. Enfim, ainda nos termos de Saquet:
O território é natureza e sociedade: não há separação; é economia,
política e cultura; edificações e relações sociais; des-continuidades;
conexão e redes; domínio e subordinação; degradação e proteção
ambiental, etc. Em outras palavras, o território significa heterogenei-
dade e traços comuns; apropriação e dominação historicamente
condicionada; é produto e condição histórica e trans-escalar; com
múltiplas variáveis, determinações, relações e unidade. É espaço de
moradia, de produção, de serviços, de mobilidade, de des-organiza-
ção, de arte, de sonho, enfim, de vida (objetiva e subjetivamente).
O território é processual e relacional, (i)material, com diversidade e
unidade, concomitantemente (SAQUET, 2006, p. 83).

Precisamente pela natureza complexa do território, compreen-


der o processo histórico que o transforma demanda um foco especial
em seus atores, que de fato são aqueles que lhe emprestam sentido e
significado. Acessar, pois, o território a partir de seus atores exige um
esforço no sentido de se alcançar, por meio da memória dos mesmos e
perscrutando através de suas narrativas, as suas sensações, percepções
e intenções. É importante ressaltar, no presente ensaio, que a memória
não será apenas uma estratégia, mas também uma forte aliada enquanto
fonte de informação, seja em seus formato documental seja nas lem-
branças verbais daqueles que vivenciaram o processo de saneamento
no Médio Rio Doce, na primeira metade do século XX, mais especi-
ficamente, entre as décadas de 40 e 60, em seu auge. Isso é possível
tendo em mente que, dentre as operações maravilhosas da memória,
descritas por Ricoeur, podemos perceber sua amplitude – visto que não
se encontra limitada às imagens das impressões sensíveis e dispersas – e,
sendo assim, “a memória das coisas e memória de mim mesmo coinci-
dem: aí, encontro também a mim mesmo, lembro-me de mim, do que
fiz, quando e onde fiz e da impressão que tive ao fazê-lo” (RICOEUR,
2007, p. 110). Entrelaçar o tempo histórico com a memória individual
e mais, entrelaçar essa memória pessoal com a coletiva é tentar conciliar
dois tempos: o tempo da alma e o tempo do mundo (Idem, p. 112). É,
porque não dizer, emprestar maior dinamicidade ao mapeamento dos
processos territoriais ancorando-os nestes dois fluxos temporais.
120 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
O desafio de lembrar já não é por nada desprezível. Entretanto,
a memória é também ameaçada pelo esquecimento. Aliás, a memória
humana é esquecer e lembrar e com isto, é constituir e eliminar ter-
ritórios e territorialidades dentro de um processo dinâmico e infindo.
Mesmo com o recurso à documentação congelada, ainda assim estamos
dentro desta dinâmica. Neste sentido, vêm a calhar o pensamento de
Ricoeur. Para ele a história do tempo presente seria, “um âmbito pro-
pício a essa provação, na medida em que ela própria está numa outra
fronteira, aquela onde esbarram uma na outra a palavra das testemu-
nhas ainda vivas e a escrita em que já se recolhem os rastros documen-
tários dos acontecimentos considerados” (Idem, p. 456). Neste ponto
percebe-se o papel da História, nos termos de Ricoeur, justificando o
duplo emprego da palavra:
(...) como conjunto dos acontecimentos (dos fatos) decorridos, pre-
sentes e futuros, e como conjunto dos discursos sobre esses acon-
tecimentos (esses fatos) no testemunho, na narrativa, na explicação
e, finalmente, na representação historiadora do passado. Fazemos
a história e fazemos história porque somos históricos. Este ‘porque’
é o da condicionalidade existenciária (RICOEUR, 2007, p. 362).

Ao historiador é reservada uma tarefa espinhosa de lidar ao mesmo


tempo com a memória e com o esquecimento. E neste mister, saber que
a memória é apenas uma das lembranças processadas de algum modo;
assim como o esquecer também é um processo de outro modo significa-
tivo em sua negatividade. Neste sentido a tarefa primordial aqui é lidar
com uma representação historiadora do passado que traz em si estas duas
dimensões e além do mais, relacioná-la a uma territorialidade. O campo
de ancoragem, pois, desta reflexão são rastros documentários referidos a
uma experiência vivida por inúmeras pessoas ao desenvolverem suas fun-
ções num determinado tempo, ao longo do Médio Rio Doce. O principal
desafio não está simplesmente na compulsão da documentação, mas nos
vazios e criações que testemunhas ainda viva ensejam ao elaborar um
discurso de memória. Na esteira de Ricoeur, o lembrar – que é sempre
um processo de criação – remete não somente a um evento exterior mas
também a uma experiência vivida pela própria pessoa ao recorrer à sua
memória. Nisto compreende-se que a memória não só institui uma pre-
sença de passado narrado mas é em si mesma a própria possibilidade de
a pessoa perceber-se como existente ao longo do tempo.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 121


De acordo com Ricoeur (2007, p. 108), “é principalmente na nar-
rativa que se articulam as lembranças no plural e a memória no singular,
a diferenciação e a continuidade”. Se for na narrativa que as lembran-
ças se articulam é importante ter em mente que será através dela que
obteremos toda uma teia de significados que marcarão os territórios do
cotidiano, do saneamento e da saúde.
De acordo com Rapport e Overing (2000, p. 283 a 290), as nar-
rativas podem ser encontradas em toda parte e convergem por meio da
linguagem, imagens e gestos. Exatamente por essa característica, elas
podem ser encontradas em diferentes formatos e estilos e se manifestam
nos mitos, nas lendas, nas fábulas, nos contos, nas novelas, nos roman-
ces épicos, nas histórias, tragédias, comédias, dramas, nas imitações, nas
pinturas, filmes, fotografias, vitrais, desenhos animados, jornais e con-
versas. “Pode-se dizer que os seres humanos sonham, divagam, crêem,
duvidam, planejam, fofocam, revêem o passado, lembram, antecipam,
aprendem, esperam, desesperam, constroem, criticam, odeiam e amam
através das narrativas” (HARDY, 1968, p. 5 a 14 apud RAPPORT; OVE-
RING, 2000, p. 283, tradução livre).
Nesse aspecto, “a narrativa pode ser concebida como o contar
(através de qualquer que seja o meio, ainda que especialmente através
da linguagem) uma série de eventos temporais de tal modo que se possa
esquematizar uma seqüência significativa” (RAPPORT; OVERING, 2000,
p. 283, tradução livre). Por isso, a narrativa faz com que o tempo se tor-
ne um aspecto da realidade sócio-cultural e humano quando articulado
no âmbito de uma seqüência narrativa. Ele, o tempo, passa a ter certa
textura e a ser humanamente experenciado devido ao fato dele ser pon-
tuado por certo fluxo de eventos. Para as autoras, nós, seres humanos,
somos temporais, em síntese, com nossas percepções, compreensões e
identidades embasadas numa história em processo de narração. Tenha-
se com isto em mente que a narrativa não tem em primeira instância o
objetivo de verificar algo, mas de significar algo; é um fio condutor de
eventos. Talvez a principal característica da narrativa seja a de trazer os
eventos ou as experiências de algum modo na forma de um discurso e
não na forma de uma argumentação.
Em síntese, as construções do sentido pessoal nas narrativas
individuais exibem uma originalidade e um trabalho artesanal que as
colocam para além da sobredeterminação da linguagem na qual elas

122 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


são escritas, das formas coletivas ou públicas que elas empregam (RA-
PPORT, 1998). Assim, através das performances narrativas, as pessoas
que viveram o processo de saneamento no Médio Rio Doce escrevem
e re-escrevem a história de suas vidas e de seus mundos, e, apesar de o
modo de fazê-lo seja uma espécie de bricolage de formas culturais em
grande parte herdadas – palavras, imagens, comportamentos – não é
tanto a sociedade e a cultura que elas incorporam, mas a consciência
individual, no momento em que se lembram de si mesmas, como des-
taca Ricoeur. A forma narrativa torna-se personalizada em seu uso, e os
indivíduos continuam a escrever histórias que descrevem seu próprio
ponto de vista do mundo. A narrativa termina por exprimir através dela,
com bastante clareza, a natureza da vida vivida de maneira única e in-
determinada (RAPPORT; OVERING, 2000, p. 290, tradução livre). .
Dado que o fenômeno narrativo está aí na vida humana em mirí-
ades de formas e com conteúdo praticamente infinito, a sua mensagem
precisa ser de algum modo desvelada. Muitos estudiosos já se debruça-
ram sobre isto com as mais diversas teorias. Aqui retomamos um destes,
Labov, para o qual existem várias técnicas de interpretação de uma nar-
rativa, mas nenhuma delas leva a resultados claros e definitivos. O es-
forço está no sentido de que uma análise mais cuidadosa possa iluminar
o processo pelos quais as narrativas são criadas, transmitidas e compre-
endidas (LABOV, 2001). Não poucos estudiosos buscaram, através dos
mais diversos artifícios, descobrir uma espécie de estrutura subjacente
a todas as formas de narrativas e que estivesse presente de um modo
universal. Isto ao que parece, acabou mais por obscurecer o valor da
narrativa que elucidar a sua contribuição.
Como síntese, a narrativa reúne acontecimentos dispersos e vá-
rios tipos de ações, planejadas e inesperadas, dando a eles significados
precisos. O ato de narrar é, portanto, uma prática discursiva com papel
fundamental na produção e reconhecimento dos códigos sociais, e este
aspecto podemos constatar impressos nos registros de memórias dos
diversos grupos que estiveram envolvidos no processo de saneamento
do Médio Rio Doce. Em conjunto com os rastros documentais de di-
versas naturezas, sobretudo registros da imprensa, documentos oficiais
e a própria documentação produzida pelo SESP, as narrativas podem
tangenciar, ou promover ‘esbarrões’ como propõe Ricoeur, entre a per-
formance deste serviço, descrita oficialmente, e as impressões e tensões

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 123


vividas pelos indivíduos. Nesse sentido, pode nos servir como flashes a
iluminar práticas e culturas inscritas no processo de saneamento do Mé-
dio Rio Doce e de como esse mesmo processo repercutiu no território.
Através delas, podemos nos aproximar do cotidiano e do imaginário e
obter, a partir de diversos prismas, as relações entre os variados grupos,
acessando, mesmo que forma indiciária, algumas de suas estratégias in-
dividuais e coletivas. Conforme o dito acima, as narrativas – documen-
tais ou verbais – remetem a uma realidade que em resumo é inacessível
diretamente, mas que através de certas quebras ou rupturas deixam en-
trever frestas reveladoras de mundos em tensão.
Rastros documentários do saneamento no Médio Rio Doce:
os desafios de uma memória escrita
a) Contexto histórico e econômico: caminhos e possibilidades
A caracterização do vale do Rio Doce, que acompanhará a con-
textualização espaço-temporal desta investigação dá uma medida de
como ali se articulavam questões políticas, socioeconômicas e culturais,
que afetaram a incorporação da região ao projeto de desenvolvimento
nacional. A presente reflexão dá voz a diversos locutores, que por sua
vez falam de cenários variados e para platéias as mais diversas. Seria in-
gênuo esperar que todos tivessem as mesmas memórias e produzissem
os mesmos esquecimentos, como vimos nos termos de Ricoeur acima. A
experiência humana expressa nesta variada documentação remete não
à necessidade de um discurso único e hegemônico, mas à possibilidade
de que as diversas fontes falem e a resultante será a memória destas ex-
periências que constituíram tanto a realidade social do território como
as identidades das próprias pessoas.
As fontes utilizadas para essa contextualização sócio-histórica co-
locam em diálogo memórias e relatos de técnicos envolvidos com o tra-
balho na Estrada de Ferro Vitória-Minas (ALMEIDA, 1949), impressões
de observadores locais (FONSECA, s.d.; PAULA, 1993; TEIXEIRA, 1974;)
lembranças de antigos moradores da cidade de Governador Valadares
(SOARES, 1983; SIMAN, 1988), relatório da Companhia Vale do Rio
Doce (1963) e estudo recomendado pela empresa a pesquisadores do
IBGE na década de 1950 (STRAUCH, 1955; 1958), relatórios dos Presi-
dentes dos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo para as primeiras
124 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
décadas do século XX e um estudo realizado sob os auspícios do SESP
em áreas por ele atendidas (FONTENELE, 1959). Essas fontes, conside-
rados seus limites subjetivos e/ou ideológicos, mais se completaram do
que divergiram no tocante às condições naturais ou históricas da região
do Rio Doce. Os discursos presentes nas obras em questão também se
combinam com os debates mais amplos que se divulgavam acerca da
constituição da identidade nacional até a década de 1930 ou com a pro-
posta modernizante mediada por um Estado forte, entre 1930 e 1950.
O processo histórico, do qual o vale do Rio Doce é o centro,
tem características que fazem dele um objeto privilegiado para o es-
tudo da relação entre o homem e o ambiente, no contexto de intensa
mobilidade humana (migração interna, imigração/ emigração) e no en-
frentamento de doenças endêmicas. Nesse processo está presente uma
temporalidade delimitada, definida pelo período de 1903-1960, e uma
espacialidade demarcada pela presença do Rio Doce, da Estrada de
Ferro Vitória-Minas (EFVM) e da floresta tropical. O ano de 1903 marca
o início da construção da ferrovia, e o de 1960, além de marcar o fim
do convênio entre os governos brasileiro e norte-americano, que sus-
tentava a atuação do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), assinala
o último Censo do IBGE, no qual os indicadores sociais e econômicos
apresentavam elevação em relação ao decênio anterior. A década de
1960 apresentou os primeiros sinais de inflexão da curva dos indicado-
res, especialmente os demográficos (ESPINDOLA, 2000, p. 67-75).
Em 1908, com o anúncio durante o IX Congresso Geológico Inter-
nacional de Estocolmo, sobre a existência de grandes reservas de hema-
tita no quadrilátero ferrífero de Minas Gerais, delinearam-se os rumos
que tomaria o processo de ocupação desta região. A estrada de ferro,
que em 1906 chegou à cidade de Colatina3 (ES) e em 1907 penetra em
Minas com destino a Diamantina. Mas o projeto acabou sendo alterado
mudando o seu destino em função das jazidas de minério de ferro na
área de Itabira/MG. Um consórcio inglês comprou as terras onde se
localizavam as jazidas assumindo também o controle da ferrovia. Em
1910 é inaugurada a estação ferroviária de Figueira (atual Governador
Valadares/MG) e em 1912 e ferrovia chega até Mesquita (a 300 km de
Colatina) (COMPANHIA VALE DO RIO DOCE. 1963: 56).

3 Colatina torna-se pólo regional do Baixo rio Doce, posição antes ocupada por Linhares.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 125


A construção de uma ferrovia é um acontecimento que interfere
profundamente no meio por onde passa. Almeida (1959, p. 97), neste
sentido, deixa claro que: “a construção da ferrovia favoreceu a ocupa-
ção, ao abrir clareiras na floresta: ao longo dos trilhos surgiram peque-
nos povoados e atividades agropastoris, além da extração da madeira”.
Para Ceciliano Abel de Almeida (1959), engenheiro responsável por
grande parte do trajeto da linha férrea, a ferrovia, ao modificar os meios
de transporte, estimularia o desenvolvimento cultural e abriria para as
aldeias apáticas o progresso.
O engenheiro enaltece a obra realizada como meritória e promo-
tora do desbravamento, da colonização, do desenvolvimento cultural e
da facilidade de circulação das riquezas. Anuncia a abertura da região
do Médio Rio Doce à exploração econômica, não apenas como con-
seqüência imediata da inauguração do tráfego da EFVM, também pelo
saneamento de sítios como Lajão (atual Conselheiro Pena), Barra do
Cuieté, Baguari, Pedra Corrida, Naque, Cachoeira Escura, entre outros.
Além destes aspectos mais diretamente econômicos, a ferrovia – com
suas peculiaridades – enseja também alterações culturais mais amplas,
uma vez que por mais vazio que fosse o território, havia ali um mun-
do existente que de algum modo vai sofrer e influenciar a presença
da ferrovia e de suas contribuições. Estes aspectos serão significativos
na detecção de resistências aos processos de saneamento e mesmo de
modernização mais ampla nos anos posteriores, afinal, a ferrovia não
adentrou simplesmente uma floresta mas encontrou seres humanos ali
presentes ou transplantados para a sua própria confecção.
Durante a I Guerra Mundial a construção da ferrovia foi interrom-
pida, em função das dificuldades financeiras enfrentadas pela Compa-
nhia. Ao ser reiniciada a construção, esta seguiu lentamente, chegando
a Ipatinga em 1922, a Nova Era, 10 anos mais tarde, e a Itabira, em
1943 (COMPANHIA VALE DO RIO DOCE, 1963: 56). Isso porque “o
impaludismo atacava as turmas de trabalhadores, dizimando-as impie-
dosamente, afugentando-as dos locais de trabalho, e o pior, dando uma
imagem aterradora das condições sanitárias” (ROSA, 1976: 157).
Na década de 1920 a política siderúrgica mineira definiu o inte-
resse oficial em relação à região do Rio Doce, impulsionando o povo-
amento e a exploração das riquezas naturais. A combinação minério
de ferro-reserva florestal foi estratégica para a definição da política si-

126 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


derúrgica do governo de Minas Gerais e, ao mesmo tempo, atenderia
as necessidades da economia brasileira (BRITO; OLIVEIRA, 1997, p.
50).4 A opção mineira de exploração econômica abriu para o capital
estrangeiro as ricas reservas de minério, se aproximando das tendências
internacionais de divisão do trabalho, pela qual Minas Gerais e o Brasil
se colocavam como produtores e fornecedores de matérias-primas e
importadores de produtos acabados. Entretanto, os mineiros também
buscaram caminhos próprios, incentivando a instalação de companhias
siderúrgicas e fábricas de ferro gusa que utilizassem o carvão vegetal.
Segundo Strauch a estrada de ferro favoreceu a penetração nas
terras do vale propriamente dito e abriu um novo tempo para o Médio
Rio Doce (STRAUCH, 1958: 107). Essa opinião é confirmada pelo tes-
temunho de Raimundo Fonseca, que cresceu na vila de Figueira, atual
Governador Valadares: “Deveu-se, pois, à construção primitiva da fer-
rovia, a eclosão do núcleo populacional da Figueira, como de resto,
àquela se creditavam a sua colonização em massa e o progresso do
vale.” (FONSECA, s.d.: 39)5
Ao ser inaugurada a estação da EFVM, a localidade hospedei-
ra aumentava sua área de influência, tornava-se entreposto comercial,
atraia atividades econômicas diversas e via sua população aumentar ra-
pidamente. Na parte capixaba destacam-se Colatina (município criado
em 1921) e Baixo Guandu (antigo distrito de Colatina, emancipado em
1935); ao penetrar em Minas Gerais, a primeira estação inaugurada foi
a de Aimorés (elevada à categoria de cidade em 1925). Na medida
em que a construção avançou, de 1906 a 1910, foram inauguradas as
estações de Resplendor, Conselheiro Pena (Estação de Lajão) e Figuei-
ra, municípios emancipados em 1938. Nestas localidades, a chegada
da indústria madeireira, atraída pela estrada de ferro, deu impulso à
fixação humana, na medida em que abriu estradas vicinais para o es-
coamento das toras de madeira. As mudanças refletidas nos desmem-
bramentos municipais e na dinâmica econômica também ensejavam

4 A definição desta política demandou décadas de debates e controvérsias quanto ao papel do


Estado e do capital privado e sobre tecnologias mais adequadas, revelando diferentes interes-
ses e concepções republicanas.
5 Na década de 1930 Raymundo Fonseca foi funcionário do Banco Comércio e Indústria de
Minas Gerais na vila de Figueira, onde começou a carreira em 1931, como contínuo, sendo
que no ano seguinte foi transferido para Aimorés.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 127


transformações no modo como as pessoas passaram a compreender-se,
assim como, marcou a resistência às mudanças ocorridas na esteira dos
acontecimentos, como mostram as narrativas reveladas pelos atores que
vivenciaram esse processo.
Na década de 1930 essa região se abre como fronteira agrícola sub-
sidiária ao processo de industrialização e urbanização do Brasil que de-
mandava por produção de alimentos a preços baixos e matéria prima: mi-
nérios e madeira. Para essa condição de fronteira concorrem três fatores: a
política siderúrgica do governo de Minas Gerais (GUERRA, 2007)6; a deci-
são do Governo Federal de incrementar a exploração do minério de ferro
de Itabira para exportação e a abertura da rodovia Rio-Bahia (1943/1944.
Conforme relatório da Companhia Vale do Rio Doce, de 1963.
As novas atividades econômicas potencializaram o desenvolvi-
mento urbano-regional, com destaque para Governador Valadares, João
Monlevade e Itabira em Minas Gerais e Colatina no Espírito Santo.7 Nas
décadas de 1930 e 1940, ao longo do Médio Rio Doce, não foram inco-
muns os fenômenos de crescimento acelerado da população, o apareci-
mento repentino de núcleos urbanos, a ocupação de terras devolutas e
a instabilidade social características das zonas de fronteira agrícola.
b) As condições da saúde: desafios e soluções
A história da saúde, enquanto campo destinado à investigação
das práticas e dos saberes, estende-se para a intervenção no campo
da saúde e propõe uma reflexão sobre as interseções entre os saberes
populares e as práticas profissionais. Certamente, um dos principais tra-
balhos a serem levados adiante no Médio Rio Doce, imerso no processo
de territorialização descrito acima, não foi a medicação oriunda das
práticas profissionais, mas as resistências encontradas na população aos
modelos terapêuticos utilizados, como veremos adiante. Isto é compre-

6 A siderurgia a carvão vegetal é uma atividade muito importante para a economia mineira e
brasileira, gerando um faturamento anual da ordem de US$ 4 bilhões. A história do carvão
vegetal no Brasil teve início em meados do Século XIX, no leste de Minas Gerais, quando as pri-
meiras sementes da Revolução Industrial influenciaram o surgimento da indústria siderúrgica
naquela região. Nela encontravam-se dois ingredientes fundamentais para o desenvolvimento
da tecnologia de produção de ferro-gusa a carvão vegetal: a presença da Mata Atlântica e de
grandes jazidas de minério de ferro.
7 As zonas de povoamento mais antigo como Ponte Nova e Guanhães, não sendo atendidas pela
EFVM nem pela Rio-Bahia e não dispondo de riquezas minerais economicamente exploráveis, não
progrediram ou tenderam a um processo de regressão. Cf. Companhia Vale do Rio Doce, 1963.

128 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


ensível, uma vez que a doença não existe, mas sim o doente; e este
se compreende enquanto tal a partir de suas referência de significado.
Assim, de um lado, a população se defrontava com patologias novas que
eram para ela estranhas e, por outro lado, tinha ainda que lidar com sis-
temas médicos diversos daqueles tradicionais e familiares a seus hábitos
de lida cotidiana com as doenças.
As condições sanitárias do Médio Rio Doce, que acompanharam
o surgimento e o crescimento dos vilarejos e das cidades estão presentes
no relato deixado por Ceciliano Abel de Almeida, referente às primeiras
décadas do século XX, relacionadas à construção da EFVM. Também en-
contramos menção nos cronistas locais e no estudo elaborado por Ney
Strauch em 1955, sob encomenda da Companhia Vale do Rio Doce,
que apresenta avaliação referente às décadas de 1940 e 1950.
O relato deixado pelo engenheiro é rico em descrições sobre a
região alcançada pela ferrovia. Recorremos às suas impressões para de-
linear circunstâncias marcantes relacionadas a aspectos sociais e sani-
tários dessa fase de ocupação do Médio Rio Doce. Ele revela a peleja
para execução da obra sob sua responsabilidade, destacando entre as
dificuldades enfrentadas a insalubridade do ambiente e a presença da
malária que atingia os trabalhadores.
Muitas referências são feitas sobre a enfermidade, pois é um dos
motivos de pedidos de contas e retirada de trabalhadores ‘atormenta-
dos pelo padecimento’. Para atenuar a situação, recorria-se ao médico
da ferrovia, que aconselhava “vinte e cinco centigramas de sulfato de
quinina, pela manhã, e aumentasse a dose fosse necessário; que se al-
moçasse antes de encetar o serviço; e, finalmente, que se usasse mos-
quiteiro” (ALMEIDA, 1959, p. 237).8
A advertência do médico nem sempre era observada, e “dia a dia
se multiplicavam os acessos de sezões que avassalam aqueles infelizes
da turma renovada” (ALMEIDA, 1959, p. 236-237). Muitos trabalhado-
res não tomavam o quinina, e quando questionados desculpavam-se
com saídas engenhosas como a de um deles que admitia escondê-lo de-
baixo da língua e atirar fora, para longe “por mode eu não ficar surdo”,
e outro que dizia que, por sentir muito calor, “tirava o mosquiteiro e
deixava as muruçocas picarem meus pés”. Muitos admitiam a transmis-

8 Cf. Recomendação citada pelo engenheiro é do clínico da estrada Dr. João dos Santos Neves.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 129


são pelo mosquito somente em atenção ao doutor e outras explicações
eram dadas pelos trabalhadores para explicar a causa da infecção: “o
banho no rio, a água do brejo ou da lagoa, a fruta silvestre comida sem
estar sazonada” (ALMEIDA, 1959, p. 236-237).
Sobre a presença de serviços médicos e farmacêuticos na região,
nas três primeiras décadas do século XX, as informações do engenheiro
são reafirmadas por outros textos de expressão local. Com base neles é
possível traçar um perfil sanitário adverso: a ocorrência de enfermida-
des variadas atingia a população dos povoados e das cidades mais prós-
peras: “verminose de toda espécie, tuberculose, febre tifóide, sarampo,
leishmaniose; [...] o saneamento era o maior problema” (PAULA, 1993,
p. 558); da saúde em geral tratavam os farmacêuticos práticos que se
fixavam na região promissora, em vista da ferrovia; dentistas, também
práticos, e médicos formados chegavam aos poucos e as dificuldades
de assistência em relação à medicina científica eram grandes (SOARES,
1983; PAULA, 1993; FONSECA, s.d.).
Carentes de tudo, os povoados eram poucos e espalhados desor-
denadamente na imensidão da mata e a beira-rio. O serviço médico da
ferrovia atendia os trabalhadores acometidos pelas febres e outras en-
fermidades, assim como, a população que a ele recorria quando da sua
passagem itinerante pelas localidades em que se levantavam os acam-
pamentos (ALMEIDA, 1959).
No início da década de 1930 a presença de médicos na cidade de
Colatina, beneficiada pela cafeicultura e pela ferrovia, se destacava em
comparação à vila de Figueira, no centro do Médio Rio Doce, pois con-
tava com nove médicos contra um único consultório na segunda. Entre-
tanto nenhuma das duas localidades possuía hospital (ROQUE, 1933,
apud TEIXEIRA, 1974, p. 68). Em Aimorés foi inaugurado o primeiro
hospital no ano de 1936 (PAULA, 1993), mas as práticas populares de
cura que se valiam de ervas medicinais e/ou elementos sobrenaturais
permaneceram dominantes (FONTENELE, 1959).
Os cronistas locais também indicam para essas décadas a existên-
cia de uma gama de problemas relacionados às condições de atendi-
mento à saúde e à urbanização desordenada: em geral, os povoados, as
vilas e as cidades não possuíam tratamento de água e esgoto satisfatório
ou eram incipientes; as ruas não eram calçadas e a poeira ou a lama
na época das chuvas eram transtornos para os moradores e para o co-

130 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


mércio; a falta de estradas radiais dificultava a comunicação e isolava
as zonas periféricas; a gente pobre se ressentia da falta de condições de
acesso a medicamentos e assistência e contava somente com a caridade
de particulares ou de obras religiosas, pois os serviços médicos e farma-
cêuticos eram poucos ou particulares e caros; a incidência de endemias
era constante (SOARES, 1983; PAULA, 1993).
As dificuldades de abastecimento interno e a demanda dos países
aliados durante a II Guerra Mundial impulsionaram a economia regio-
nal. A produção de carvão para a siderurgia de aço e derivados cresceu
— para compensar as dificuldades de importação; a exploração da mica
ou malacacheta9 ampliou-se e passou a representar um mercado lucra-
tivo e, principalmente, foi preciso reformar a ferrovia para transportar o
minério de ferro explorado em grande escala pela recém-criada Com-
panhia Vale do Rio Doce (ESPINDOLA, 1998).
O interesse dos Estados Unidos se fez presente diretamente na re-
gião, motivado pela presença destes dois minérios estratégicos. Em 1943,
para executar o saneamento do Vale do Rio Doce e resolver os problemas
das endemias, foi estendido à região o Serviço Especial de Saúde Públi-
ca – SESP, criado um ano antes, para atuar nas regiões Norte e Nordeste.
Neste ano tiveram início o Programa do Rio Doce e Programa da Mica,
com o objetivo de criar as condições sanitárias necessárias para a explo-
ração do minério de ferro e da mica (CAMPOS, 2006, p. 173-189).
O SESP foi uma agência de saúde pública criada por meio de
um acordo bilateral entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos
em 1942, a partir dos chamados “Acordos de Washington” (CAMPOS,
2006, p. 35).10 O objetivo de “implementar políticas sanitárias em áreas
econômica e militarmente estratégicas” atenderia, de um lado, interes-
ses americanos imediatos, relacionados às necessidades de guerra, e de
aproximação econômica com o Brasil, e de outro, respondia aos inte-
resses do governo Vargas de expandir no território brasileiro a presença
e autoridade do Estado” (CAMPOS, 2006, 173-185).

9 Minério bastante utilizado na indústria elétrica e eletrônica dos países desenvolvidos, a mica
ou malacacheta é a designação comum dos minerais do grupo dos silicatos de alumínio e de
metais alcalinos aos quais freqüentemente se associam magnésio e ferro.
10 Os “Acordos de Washington” selaram a aproximação entre os governos do Brasil e dos EUA,
bem como a adesão brasileira ao “esforço de guerra” dos Aliados contra os países do Eixo,
durante a II Guerra Mundial.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 131


A fim de situar a atuação do SESP no Médio Rio Doce nas déca-
das de 1940 e 1950, vale considerar que o estado sanitário desse ter-
ritório não se diferenciava da situação sanitária nacional e dos estados
de Minas Gerais e Espírito Santo, especialmente considerando as loca-
lidades do interior. Como apresentado, no Médio Rio Doce a condição
médico-sanitária demandava atenção: epidemias, ausência de serviços
médicos, quadro lastimável de saneamento, dieta alimentar deficitária,
população sem recursos para adequados suprimentos médicos e farma-
cêuticos, entre outras dificuldades.
Tal desalento torna-se ainda mais instigante se tomarmos os re-
latórios dos governadores dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo
para as primeiras décadas do século XX: o panorama sanitário é oficial-
mente avaliado como satisfatório em quase todo o período compreen-
dido entre os anos 1910 e 1930; são identificados alguns momentos de
intranquilidade, como o ano de 1918, quando se alastra a gripe espa-
nhola nos dois estados.
No Espírito Santo o reaparecimento da febre amarela na capital e
do paludismo no interior foi apresentado como anormalidade no estado
sanitário para o ano de 1917.11 O relatório de 1922 destaca efeitos posi-
tivos no combate a verminoses com a continuidade da cooperação com
a Fundação Rockefeller. Percebe-se o anúncio de abertura de Postos de
Higiene e Profilaxia Rural a partir de 1919, coincidindo com a determina-
ção federal para instituição dessa medida. As referências à capital, Vitória,
são muito mais frequentes do que ao interior, contemplando-se as regiões
de maior densidade populacional ou dinamismo econômico; nesse caso
a área capixaba do vale do Rio Doce merece poucas menções, excetu-
ando a cidade de Colatina, centro irradiador de atividade comercial e
de produção agrícola. Entretanto, tais referências indicam a presença de
doenças como varíola (alastrim), tuberculose, verminoses em geral com o
“ankilostomiase em caráter mais ou menos generalizado”, malária (palu-
dismo), refletindo um quadro sanitário diferente daquele pretensamente
considerado satisfatório em muitas ocasiões pelos relatórios oficiais.
Em relação a Minas Gerais a situação não é diferente: as referên-
cias oficiais a saúde pública, saneamento, assistência hospitalar, assistên-
cia a alienados, distinguem em sua maior parte a capital Belo Horizonte

11 Idem.

132 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


e cidades e regiões mais em evidência, por motivos econômicos, polí-
ticos ou históricos, a exemplo de Juiz de Fora, Barbacena, S. João d’El-
Rey, ou Zona da Mata Mineira e Sul de Minas. São indicados problemas
sanitários, de abastecimento de água, de endemias, especialmente ver-
minoses variadas, em diversas localidades do interior do estado.
Essas considerações são importantes para se compreender como
e por que o vale do Rio Doce ganha visibilidade nas novas conjunturas
mineira e nacional. Concomitantemente a instalação do SESP em locali-
dades do Médio Rio Doce e sua consolidação perpassa por essas ques-
tões levantadas. Embora guardasse riquezas virtuais, esse território foi de
tardio povoamento e recebeu pouca atenção do poder público nas três
primeiras décadas do século XX; todavia, a demanda pelas riquezas e as
possibilidades produtivas ali identificadas aceleraram sistematicamente
o processo de sua exploração.
Assim, em 1943 foi definida pelo governo federal, a atuação
no Médio Rio Doce do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP).
As condições sanitárias e de saúde encontradas pelo SESP na região
não eram das melhores como se viu. Na área Linha Acima12, onde
havia dezoito pequenas cidades e quatro campos de trabalhadores a
malária era endêmica e parasitoses variadas acometiam a população
(FSESP, cx 48, doc 42); na área de Linha Abaixo, com 12 cidades e
aproximadamente 32 acampamentos a situação não era diferente
(FSESP, cx 21, doc 29); a malária também foi diagnosticada em Cola-
tina e identificados seus vetores (FSESP, cx 21, pasta 146); em Gover-
nador Valadares, um surto da doença se alastrava (FSESP, cx 48, doc.
42). Em todas as localidades inspecionadas as condições de higiene
e saúde pública eram deficitárias.
Nos acampamentos de trabalhadores da ferrovia a situação se agra-
vava. O levantamento feito pelo médico americano James Knott (apud
CAMPOS, 2006: 175-176), diretor da primeira etapa do Programa, re-
velava a precariedade: em cada acampamento, organizados de forma
temporária, viviam entre 100 e 300 pessoas, em geral analfabetas; cons-
truíam-se barracões para solteiros (de 12 a 20) ou em compartimentos
em outros barracões para aqueles que estavam com a família; a água

12 A região estipulada foi dividida em duas áreas: Linha Acima, entre Governador Valadares e
Nova Era (antiga São José da Lagoa) e Linha Abaixo, entre Governador Valadares e Colatina (no
estado do Espírito Santo).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 133


era obtida em riachos ou pântanos próximos, inclusive neles as mulheres
lavavam as roupas; não havia banheiros; não se cultivavam hortas e o
alimento básico era comprado na venda do empreiteiro; os barracões
de sapê (paredes de barro e teto de folhas de palmeira) mal divididos
facilitavam a presença de insetos. A propagação de doenças (disenterias,
infecções intestinais, malária) seria inevitável nesta situação.
Medidas profiláticas de combate à malária e outras doenças,
bem como a organização dos serviços de abastecimento de água e de
rede de esgotos em algumas cidades ao longo da EFVM e outras medi-
das afins, como cursos para formação de pessoal e educação sanitária,
foram implementadas pelo Serviço especial de Saúde Pública. O SESP
atuou na assistência médica, na educação sanitária, no saneamento e
no controle de doenças transmissíveis, bem como cuidou de formar
profissionais da saúde, implantando e desenvolvendo, em vários es-
tados, escolas técnicas e de graduação em enfermagem. No vale do
Rio Doce os municípios existentes ao longo da EFVM foram assistidos
pela implantação de serviço de água e esgoto, ações de saneamento,
como a construção de latrinas, identificação dos vetores e combate à
malária e a outras endemias, cursos para parteiras e cuidados infantis,
treinamento para atendentes de centros de saúde e para guardas sani-
tários, treinamento para visitadoras que faziam trabalho de educação
sanitária, entre outras atividades.
A continuidade da expansão econômica e demográfica da região
depois de encerrada a Segunda Guerra até o final da década de 1950,
em certa medida, foi favorecida pela decisão governamental de manter
os programas de saneamento. A atuação do SESP na criação dos servi-
ços de água e esgoto, na erradicação das endemias e na modificação
das práticas de saúde, alterando costumes, valores culturais e organiza-
ção do espaço tiveram influência decisiva na configuração territorial da
região (BASTOS, 1993, p. 329).13 Pesquisadores sobre a emigração de
moradores da cidade de Governador Valadares e da circunvizinhança
para os Estados Unidos, desde a década de 1960, consideram a pre-
sença de americanos na região, nesse período como um dos fatores

13 “Em 1942, a lado e um pouco à margem dos serviços federais de saúde de rotina, iniciou-se
um profundo trabalho de modificação da mentalidade brasileira que iria refletir-se nas ativida-
des de Educação para a Saúde. Esse processo começou com a criação do SESP”.

134 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


determinantes (SOARES, 2002, p. 110).14 É significativa a opinião de
Siva Monteiro de Castro, advogado que vivia em Governador Valadares
na década de 1950, referindo-se ao trabalho do SESP:
Graças ao admirável programa de Serviço Especial de Saúde Pública
(SESP), o saneamento desta região ora se processa a luz de recentes
preceitos de medicina e engenharia sanitária, o que vai garantindo
a fixação do homem em zonas onde outrora a malária estiolava a
força construtiva do braço humano (CASTRO, 1951, p. 36).

O geógrafo Ney Strauch em estudo encomendado pela Com-


panhia Vale do Rio Doce em 1951 e publicado em 1955 (STRAUCH,
1955, p. IX) pelo serviço gráfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) conclui que entre os aportes econômicos advindos da
presença da EFVM, recém-reformada para atender a exportação de mi-
nérios, a questão sanitária ficou resolvida:
Fator importante, coroando os incalculáveis benefícios prodiga-
lizados pelo vale do rio Doce no setor da economia, foi o sane-
amento da região, empreendido pelo Serviço Especial de Saúde
Pública - SESP, a cargo de uma comissão mista de sanitaristas bra-
sileiros e norte-americanos, com a extinção da malária e outras
endemias, instalação de água potável, esgotos, assistência médica
e distribuição de medicamentos às populações da vasta zona do
vale do rio Doce (STRAUCH, 1955, p. 188).

Ao contrário do que a informação sugere, longe de resolução, o


problema sanitário ainda se constituía à época do estudo (1951) um en-
trave à ocupação de certas áreas da bacia, como o vale do Rio Suaçuí, não
atingido diretamente pela EFVM nem atendido pelo SESP, onde a falta de
saneamento e os altos índices de malária, esquistossomose e amebiana
eram dominantes (STRAUCH, 1955, p. 39). O relatório da Companhia
Vale do Rio Doce de 1963 reconhece que o rápido crescimento das ci-

14 “A absoluta liderança exercida pelos Estados Unidos da América na preferência dos emigrantes
valadarenses remete a intensas ligações mantidas pelo município de Governador Valadares
com esse país: durante a II Grande Guerra, a economia valadarense foi impulsionada pelo co-
mércio da mica, que, sendo importante para a indústria bélica, trouxe firmas americanas para
a cidade [...]. Nesse mesmo período, as modificações no traçado da Estrada de Ferro Vitória-
Minas [...] eram realizadas também por intermédio de uma companhia americana. A presença
dos Estados Unidos em Valadares manifesta-se ainda na construção do Serviço Especial de
Saúde Pública – SESP [...]. Esses três fatos colocaram os valadarenses em contato com os ameri-
canos e sua cultura. Portanto, foram os vínculos estabelecidos historicamente com os EUA que
permitiram a construção, em Valadares, de laços sociais norteadores da opção migratória”.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 135


dades não foi acompanhado pela oferta de serviços públicos aos particu-
lares nem para as indústrias, prevalecendo “enormes atrasos em relação
às necessidades atuais” (COMPANHIA VALE DO RIO DOCE, 1963, p.
12). Na verdade, o processo de crescimento das cidades era muito mais
acelerado do que as políticas públicas podiam dar conta.
Desenha-se, portanto, um território que, como visto nos rastros
documentais acima, em suas dimensões econômica e política, trilhava
um caminho de acelerado crescimento com a abertura da EFVM sem,
contudo, ter políticas sociais que acompanhassem tal processo. Nesse
território econômico fervilhavam as oportunidades para os interessados
nas riquezas do Médio Rio Doce e o tempo da tecnologia e da moderni-
dade passava rápido. Num outro compasso temporal, estavam os territó-
rios social e cultural desta população que se aglomerava às margens da
ferrovia e da rodovia, que logo se estabeleceria. Sem assistência social e
sanitária de espécie alguma, os territórios do cotidiano e das mentalida-
des (simbólico) encontravam-se preso às rezas, benzedeiras, raizeiros e
crendices, levando a população a desprezar o pouco recurso sanitário e
médico que lhes era ofertado. Falamos, portanto, de um território entre-
cortado, palmilhado pelas doenças e pelas promessas de futuro, imerso
numa mesma cronologia, sem dúvida, mas num mesmo tempo? Talvez
esse tenha sido o grande papel do Serviço Especial de Saúde Pública
(SESP), efetuar através de suas políticas sanitárias o compasso entre os
tempos dos territórios da modernidade e do cotidiano.
O saneamento, o desenvolvimento e o cotidiano através da memória:
os desafios do tempo da alma
Dado que as práticas culturais relacionadas à doença e suas profi-
laxias e terapias têm uma longa história e profundo vínculo com as prá-
ticas tradicionais era de se esperar, no mínimo, resistências às propostas
ditas modernas. Assim, ao longo das memórias temos sempre práticas
de negação, boicote e mesmo oposições explícitas. Por ser um objeto
complexo, tanto as memórias do saneamento, quanto os esquecimento
vinculados ao processo e a polifonia que se estabelece entre antigos
funcionários e indivíduos que vivenciaram o processo nos remetem a
um exercício de contraponto com as transformações ocorridas que re-
marcaram e reordenaram um dado território que passa a se apresentar
de uma forma multifacetada. Isto posto, faz-se necessário um aparato
136 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
que, em respeito ao objeto ora proposto, seja em sua essência interdis-
ciplinar englobando não apenas uma perspectiva meramente histórica
mas, fundamentalmente, humanista no sentido de ancorar as narrativas
e o processo de saneamento ocorrido em suas múltiplas perspectivas.
Ora, partindo desse pressuposto, estamos diante de um fenômeno
multifacetado, compreendendo o saneamento, o território e a memória
que, nesta estratégia de pesquisa, pode ser mais bem compreendido a
partir de diversas narrativas que remetem a práticas e a efetivação dessas
em um território que também se apresenta de forma múltipla e dinâmica
uma vez que sofre reordenamentos. Esta reordenação territorial, por sua
vez, desencadeia ações por parte dos agentes envolvidos, sejam eles de
saúde ou da sociedade civil. Por essa razão, acreditamos que a contribui-
ção de Max Weber possa ser positiva, em sua proposta de uma sociologia
compreensiva englobando as várias esferas da sociedade. A sociologia
compreensiva de Weber é a proposta de uma ciência da realidade, atra-
vés da qual o pesquisador busca o significado cultural de suas diversas
manifestações assim como as razões históricas de seu desenvolvimento
(WEBER, 1968, p. 170-171 apud COLLIOT-THÉLÈNE, 1995, p. 26).
A par dos rastros documentários que discursam sobre os projetos
executados pelo SESP é importante ponderar as impressões daqueles
que viveram, re(viveram) e experienciaram tal processo de saneamen-
to. Para tanto, utilizaremos algumas narrativas de informantes, dentre
os quais se encontram quatro funcionários do SESP e quatro indivíduos
que viveram nas décadas de 40 a 60, no auge da atuação do serviço.
Dentre os funcionários, o primeiro, é um agente sanitário que trabalhou
por décadas no Serviço em Governador Valadares; a segunda e a tercei-
ra funcionárias, foram serventes treinadas em Colatina, posteriormente,
para atuarem como auxiliares de atendimento; o quarto, dentista e um
dos nomes mais significativos na implementação dos projetos de sanea-
mento do SESP em Governador Valadares.
O trabalho do agente sanitário, segundo o Informante 1, era fazer
inquérito de higiene nas moradias e ao mesmo tempo fazer divulga-
ção de hábitos de higiene e saneamento, como utilização das fossas,
limpeza das áreas ocupadas, tratamento do lixo. Segundo seu depoi-
mento, alguns moradores ficavam receosos ou mesmo não gostavam de
receber os agentes sanitários, por vergonha ou desconforto da presença
dos mesmos nas moradias. Nestes casos eram instruídos para falar com

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 137


autoridade a fim de convencer o morador, o que dava resultado na
maioria das vezes. Configurava-se uma situação muito incômoda a falta
de higiene com os alimentos. Na narrativa do Informante 1, é comum
a lembrança de ver muita gente lavar as verduras na mesma bacia do
banho ou regar a horta com a água já utilizada para higiene.
Nosso depoente chama a atenção para o que ele considera uma
situação vexatória. Ela ocorria quando alguma pessoa atendia o apelo do
guarda para procurar o Centro de saúde e não era atendido conforme o
esperado seja no horário ou na forma de tratamento. Frequentemente
essa situação acarretava reclamações com o guarda que havia insistido
na busca pelos serviços do SESP, e este era tido como culpado pela per-
da de tempo ou confiança nos serviços sespianos. Para este agente sani-
tário um trabalho muito importante era acompanhar as enfermeiras ou
atendentes nas escolas para atividades de educação sanitária, porque
as crianças aceitavam muito mais facilmente os ensinamentos e novos
hábitos divulgados, inclusive reforçando-os em suas casas.
Segundo nosso informante, cada agente possuía um roteiro, e um
mapa da cidade para facilitar o serviço; ao fazer as visitas os agentes faziam
um itinerário que continha o endereço completo das casas que estavam
sendo atendidas. Algumas pessoas tinham resistências a esse serviço, por
não aceitarem o acesso de desconhecidos em suas casas; quando esse era
permitido, os agentes iam verificar se na casa havia banheiro, rede de es-
goto, caso contrário, eles providenciavam e dava-se baixa naquele servi-
ço. O ex-guarda sanitário também pontuou que mesmo com as melhorias
higiênicas, a população da zona rural, da periferia e até mesmo da cidade,
utilizavam as privadas para guardar arreio dos cavalos, colocarem galinhas
para chocar; as pessoas mesmo não utilizavam. Ele explicou que mesmo
as pessoas possuindo latrinas em suas casas, não tinham o costume de
usá-la, pois permanecia o costume de ir “ao mato”, o que “contaminava o
solo com vermes, micróbios, e as pessoas que andavam descalço naquele
lugar e também tudo que está ao redor”. Segundo nosso informante mui-
tas dessas pessoas, oriundas da zona rural, mantinham aqueles costumes
e resistiam aos novos equipamentos sanitários. Não compreendiam ou
desconfiavam dos divulgados ‘milagres’ do saneamento. Curioso é que
o mesmo informante afirmou que ele mesmo “não sabia nada de sane-
amento” antes de entrar no Serviço, ele mesmo sendo convencido das
novas idéias e tornando-se seu divulgador.

138 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


As informantes 2 e 3 que atuaram em uma unidade de atendi-
mento do SESP em Colatina também refletem a mesma realidade des-
crita pelo informante 1. E, assim como ele, ao relatarem suas impressões
sobre a processo de saneamento promovido pelo SESP, relembram um
pouco do que viveram e do sentiram. Em suas narrativas, ficaram regis-
tradas a situação precária da população e o esforço enquanto simples
zeladoras, que se tornam auxiliares de atendimento mediante treina-
mento interno no serviço. Elas retratam situações cotidianas em que
era necessário comprarem marmitas para mães cercadas de crianças
famintas. O destaque dado ao trabalho incessante de limpeza do posto
de atendimento acaba contrastando com os inúmeros casos em que elas
cumpriam ordens médicas para banhar os pacientes antes da consulta,
fato que evidencia a falta de higiene pessoal da população. Tal como o
informante 1, preferem silenciar os enfrentamentos entre a nova pers-
pectiva de higiene promovida pelo SESP e os atendidos pelo serviço.
Mas, deixam escapar nas entrelinhas de suas narrativas a dificuldade
enfrentada para vacinar pacientes mordidos ou picados por animais.
Talvez esse estranhamento entre as práticas sanitárias orientadas pelo
Serviço e aquelas praticadas cotidianamente não tenham saltado em
suas memórias porque fosse comum, algo com o qual elas acabaram
lidando no dia-a-dia. Nesta rotina conturbada, de limpeza das insta-
lações e da promoção da higiene nos pacientes, da recusa aos medi-
camentos receitados – por vezes, alternados com ‘água de fubá’ co-
nhecido de todos – da desnutrição infantil e da fome generalizada elas
relatam acabam por vislumbrar o SESP como uma ilha imersa no caos,
onde muitos recebiam mais do que assistência médica, o trabalho era
também de atenção social. Percebe-se nessas informações a dificuldade
de territorializar o saneamento. Mesmo com as interferências físicas nos
territórios domésticos e públicos, os territórios simbólicos e mentais per-
maneciam à margem da modernidade, num outro tempo.
Em contraste com os informantes anteriores, recrutados em meio
à população do Médio Rio Doce e imersos num mesmo universo men-
tal, o informante 4, conta que ao chegar do Rio de Janeiro, no início da
década de 1940, possuía uma mentalidade mais evoluída que a da região
[sic]. Sua fala remonta frequentemente às origens dos eventos relacio-
nados a Governador Valadares, levando-o a conectá-los tanto à História
do Brasil quanto a História Contemporânea mundial, numa busca de

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 139


argumentos que possam justificar a ação do SESP, inclusive sua criação.
Remonta à questão da História do Brasil, “tumultuada pela Revolução
de 30, o Estado Novo de Getúlio Vargas”, em seguida chega à II Guerra
Mundial, que “fez florescer toda a região do Médio Rio Doce”, pois pre-
cisavam [os Aliados] da mica de Governador Valadares, do minério de
ferro de Itabira, e da borracha da Amazônia. Na perspectiva desse infor-
mante, Getúlio assina um acordo com os Estados Unidos, e para garantir
a legitimidade do serviço de saúde pública financiado pelos americanos,
dá ao mesmo uma característica “especial”, com autonomia em relação
ao Ministério de Educação e Saúde, então existente.
O Brasil se transformou em função da imposição da guerra o que,
segundo nosso depoente, explica o porquê do Serviço Especial de Saú-
de Pública. Para ele, o Brasil não podia ter um órgão público criado para
suprir os interesses americanos relativos ao saneamento das regiões aci-
ma referidas, sem ferir a soberania nacional. Então, uma das aplicações
de recursos ao Brasil, pelo acordo de Washington, foi a criação do SESP.
Após a chegada do SESP, de acordo com nosso informante, foi dada
ênfase à medicina preventiva que o mundo já conhecia, diferentemente
do Brasil, que conhecia somente a medicina curativa. De acordo com
a opinião do informante 4 o Serviço conduziu à revolução na saúde no
Brasil e que, hoje, estão tentando reavivar o que fizeram há cinqüenta
anos para a área da medicina doméstica e dietética. Essas informações
nos levam a questionar a validade da ação sespiana e o sucesso de sua
política de saneamento e atendimento.
Ao falar da situação sanitária de Governador Valadares, o infor-
mante 4 a descreve como sendo muito precária e com muitas endemias.
Ele considera que o SESP foi muito importante para todos os moradores
de Governador Valadares e lamenta por ele não existir mais, por não ter
sido adequado a estrutura jurídica e aos interesses da saúde brasileira.
Em outras palavras, para esse depoente as mudanças ocorridas – em
1960, a transformação do SESP em Fundação SESP, ligada ao Ministério
da Saúde, e finalmente sua incorporação pela FUNASA (no Governo
Collor) atendeu a novos propósitos políticos/jurídicos e de diferentes
interesses e políticas públicas.
A dimensão do trabalho efetuado pelos funcionários do SESP só
pode ser aferida se pensarmos a partir dos hábitos locais nas décadas
de 40 a 60. Os informantes que vivenciaram essas décadas e que não

140 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


tiveram uma ligação direta com o serviço nos confirmam algumas indi-
cações já coletadas nos rastros documentários expostos no item anterior
e nos ajudam a formar uma pálida idéia do que era a cidade de Gover-
nador Valadares, considerada pólo da região e como eram percebidos
os aspectos sanitários. O informante 5 fala de uma cidade de pouco
mais de sete mil habitantes, no início da década de 40, sem água enca-
nada e tratada. Essa água turva chegava numa carroça, dentro de uma
cartola (tambor) e era consumida sem ferver. As primeiras noções de
higiene e saneamento vieram com os filmes do SESP, projetados em pra-
ça pública. Nosso informante chegou a ser atendido no posto do SESP,
fez exames para averiguar as causas do mal que sofria, mas, de acordo
com seu próprio relato, após pegar o resultado do exame, colocou na
carteira, por desconhecer que o processo de tratamento. Esse fato nos
permite raciocinar de forma indiciária no sentido de que o Serviço po-
dia em alguns casos a falta de informação dos procedimentos normais
dos tratamentos. Sem ter nenhuma orientação, nosso informante não
retornou ao médico, o que veio a fazer um ano depois, num consultório
particular. Morador do centro da cidade, ele se recorda que nos anos
seguintes iniciou-se um processo de tratamento de água e de constru-
ção de fossas secas nas casas. Mas, esses procedimentos ocorreram para
um pequeno número de casas e estabelecimentos comerciais do centro,
diferindo bastante do restante da população.
Mas, esse acesso ao SESP, a médicos e aos novos hábitos sanitá-
rios não perdurou na lembrança de todos. Outras informantes (6 e 7),
relatam a cidade de Governador Valadares em fins da década de 30 e
nas seguintes, como uma cidade sem calçamento, sem luz e nem água,
com incidência de muitas doenças. Elas não falam do SESP, nem dos
médicos que atendiam lá, embora morassem na área central da cidade.
Lembraram-se que muitas vezes o purgante era melhor que o médico e
que outros preferiam procurar as benzedeiras a esperar um médico apa-
recer na cidade. Essa mesma impressão nos é passada pela informante
8, residente numa área um pouco afastada do centro. A falta de luz,
água e saneamento também é relatada apesar de sua condição finan-
ceira satisfatória, se comparada a outros moradores na mesma época.
Essas melhorias só aparecem na memória da informante em fins da dé-
cada de 60. Nesse sentido, essas lembranças se aproximam dos relatos
de Ceciliano Abel de Almeida, de Strauch e dos cronistas locais – vistos

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 141


na primeira parte deste ensaio – e acabam por questionar tanto os rela-
tórios presidenciais de Minas e, posteriormente, o próprio discurso do
SESP que projetava para toda a população tanto as melhorias quanto as
transformações oriundas da modernidade pretendida.
Os relatos dos funcionários acima mencionados coincidem na ava-
liação sobre o controle exercido pelo Serviço, que segundo eles era muito
organizado. O trabalho dos guardas ou agentes sanitários era supervisio-
nado e cada um tinha um itinerário determinado, fichas próprias para
preenchimento; andavam a pé ou de bicicleta e cobriam toda a cidade,
indo também à zona rural. Havia muito rigor por parte dos diretores e
qualquer desvio era punido com a suspensão do serviço, conhecida entre
os agentes como “balão”. O mesmo rigor se manifesta nas narrativas das
auxiliares de atendimento. Talvez esse rigor se deva ao fato de que havia
investimento externo e era direcionado especificamente para a constitui-
ção de um cenário propício para a extração de minérios.
Algumas observações podem ser realçadas a partir das informa-
ções coletadas. Em primeiro lugar, são comuns entre os informantes as
demonstrações de carinho relativo aos anos de trabalho na agência. De
modo geral, eles não relatam problemas, erros ou desmandos e nem
mesmo conflitos entre o SESP, a sociedade e o governo. Toda a ação
tende a ser descrita pelos depoentes como muito bem organizada e eles
revelam um sentimento de lealdade ao SESP. Há um destaque freqüente
em relação aos bons salários pagos em comparação àqueles pagos na
cidade de Governador Valadares e região e a isso agregam a posição
social distinta que os funcionários conquistaram.
Para além de questões financeiras e sociais, percebe-se na fala
dos funcionários, uma apropriação do discurso técnico-científico incuti-
do a partir dos cursos oferecidos pelo SESP. Uma análise mais cuidadosa
desses depoimentos mostra como pessoas comuns se transformavam
em agentes de mudança, propondo melhorias sanitárias que até bem
pouco tempo era novidades até para eles. Em parte, evidentemente,
isso pode ser explicado por questões financeiras e salariais. Por outro
lado, fazia parte da política do Serviço treinamentos sistemáticos e com
constante supervisão do trabalho.
Todos falam do investimento dos norte-americanos como se so-
mente estes estivessem à frente do processo de saneamento básico.
Nesse sentido, tem-se a impressão perder-se a perspectiva de que havia

142 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


um acordo bilateral entre os Estados Unidos e o Brasil. Outra fala que
é comum entre os depoentes é o reconhecimento da atuação do SESP
trazendo melhorias para a região, apesar dos limites que o empreendi-
mento dessa natureza e naquelas circunstâncias estão presentes.
A partir dessa perspectiva a ação social dos funcionários do SESP
pode ser compreendida a partir dos delineamentos weberianos que a
pondera enquanto uma modalidade específica de conduta à qual o pró-
prio agente associa um sentido, objetivamente visado pelo agente e que
se manifesta em ações concretas, fundamentadas por um motivo. O vín-
culo motivacional que envolvia todo o corpo de funcionários sespianos
forneceu-lhes uma dimensão processual à ação social executada e nos
impede de analisá-la como ato isolado. Toda a ação destes funcionários
se encaixa numa seqüência definida de elos significativos, formando o
que o autor identifica como uma ‘cadeia motivacional’. Para além do
conceito de ação social, Weber propõe um desdobramento no intuito
de avançar para além do individual; o conceito de relação social. Este
último conceito se refere “à conduta de múltiplos agentes que se orien-
tam reciprocamente em conformidade com um conteúdo específico do
próprio sentido das suas ações” (COHN, 1991, p. 26 a 30). A diferença
básica entre eles está no fato de que no primeiro a conduta é orienta-
da significativamente pela conduta de outro(s) enquanto no segundo,
a conduta de cada agente é orientada por um sentido reciprocamente
partilhado. Nesse ponto, compreende-se o delineamento de um dis-
curso sespiano, com elementos de continuidade onde as narrativas se
cruzam e ganham força mesmo quando se referem a um contexto caó-
tico, permeado de confrontos culturais que tentam redefinir as práticas
cotidianas de uma população inteira.
Além disso, as narrativas mostram um território múltiplo, ou seja,
aquele definido nos documentos do SESP, aquele visitado pelos agen-
tes de saúde e o vivenciado pelos indivíduos (HAESBAERT, 2006, p. 93).
Partindo desse enfoque, o território encontra-se inserido dentro de um
contexto sócio-histórico imerso em relações de poder e a territorialida-
de exercida por cada um dos grupos é compreendida como o controle
de pessoas e/ou recursos a partir de uma estratégia espacial para atingir,
influenciar ou controlar outros recursos e pessoas, podendo ser ativada
ou desativada. “Assim, podemos afirmar que o território, relacionalmente
falando, ou seja, enquanto mediação espacial do poder resulta da intera-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 143


ção diferenciada entre as múltiplas dimensões desse poder, desde sua na-
tureza mais estritamente política até seu caráter mais propriamente sim-
bólico, passando pelas relações dentro do chamado poder econômico,
indissociáveis da esfera jurídico-política” (Idem, Ibidem). Essas relações de
poder, recortando territórios, podem ser vislumbradas nas narrativas dos
informantes e nos rastros documentais expostos anteriormente.
Territorialmente, as cidades do Médio Rio Doce apresentavam
espaços de atuação sespiana com uma dinâmica de saneamento e de
interferência direta sobre as práticas cotidianas dos indivíduos, mas não
alcançava todos os recantos, onde prevaleciam as territorialidades ainda
mantidas enraizadas às práticas da medicina popular, cujos hábitos de
higiene tinham regras próprias e uma valorização cultural inerente à
mentalidade local. Na proposta prática das atividades do SESP havia um
mapeamento que fundamentalmente era externo a essas relações sim-
bólicas já presentes. Não estaria na desconsideração dessas dimensões
simbólicas presentes na territorialidade um dos motivos pelos quais os
objetivos do Serviço foram alcançados de modo limitados e, no geral,
não foram duradouros? Tanto isso é verdade que o informante 4 julgaria
de bom proveito o retorno do Serviço. Não estaríamos, portanto, lidan-
do com um fenômeno que, por sua natureza, envolve processos com-
plexos e de longa duração; e, que requerem, para ser compreendidos,
lançar-se mão de uma simbólica e de uma ritualística para as relações?
Contudo, não há como não reconhecer que a força do discurso
sespiano ganhou adeptos para além do corpo de funcionários. O discur-
so dos memorialistas, difundido na década de 1970, se desenvolve no
sentido de distinguir um grupo seleto de famílias que teriam vindo para
Governador Valadares, e outras cidades do Médio Rio Doce, na década
de 1930 e, especialmente, na de 1940, na mesma época de implanta-
ção e estabelecimento do SESP. Essas famílias teriam atuado de maneira
a promover o desenvolvimento local a partir de seus múltiplos empre-
endimentos. Os chamados ‘pioneiros’, responsáveis pelo progresso e
modernidade da cidade, estabeleceram moradia nas áreas centrais de
Governador Valadares. Vozes privilegiadas para relatar sobre o passado
local, eles acabam por fundir ao próprio relato a responsabilidade pelo
progresso e da civilização às suas próprias famílias. Por esse motivo, ao
relatarem sobre a história, o fazem numa perspectiva linear e evolutiva,
ressaltando os feitos de famílias ilustres, prestigiadas e que coadunavam

144 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


com os esforços de civilização e modernização empreendidas pelo SESP.
Como esse discurso foi o único a ser divulgado sobre a formação da ci-
dade e seu desenvolvimento até as últimas décadas, ele de certa forma
acentua e potencializa a ação do Serviço. Mesmo porque, o grupo de
pioneiros, residentes em sua grande maioria no centro da cidade, foram
os que de fato receberam de forma mais intensa a atuação do SESP e
vivenciaram cotidianamente os projetos de saneamento então executa-
dos, como a abertura de redes de esgoto e tratamento de água.
Num contraponto com os memorialistas e funcionários sespianos,
a memória produzida pela mídia, especialmente a do Jornal Diário do
Rio Doce, circulante em Governador Valadares, reflete mesmo nas en-
trelinhas de um discurso jornalístico filtrado pelos interesses em voga,
um alerta para situações cotidianas que ocorriam num território que
estava além daquele habitado pelos ‘pioneiros’ e no qual o SESP encon-
trava as condições necessárias para implementação de seus projetos.
Uma breve varredura sobre as manchetes mais significativas chama à
atenção para várias matérias relativas à periferia de Governador Vala-
dares, cujos problemas de saneamento e saúde pública revelam outra
realidade, bem distante daquela descrita pelos memorialistas ao falarem
das décadas de progresso e civilização ao se referirem aos ‘pioneiros’
(JORNAL DIÁRIO DO RIO DOCE, 1958 a 1970).
Frequentemente o jornal noticiava a falta de abastecimento de água
tratada, o lixo espalhado pelas ruas da cidade, inclusive aquelas da área
central, as demandas da população no aspecto sanitário e de saneamento
básico (Idem). Aliás, essas notícias, curiosamente, não aparecem apenas
no final da década seguinte à implantação do SESP e à consolidação do
desenvolvimento e modernidade empreendidos pelos ‘pioneiros’, elas se
estendem por toda a década seguinte e avança à década de 1970, mos-
trando que a ação do SESP embora tenha de fato produzido mudanças
significativas não avançou no sentido da transformação propagada pelo dis-
curso de saneamento implementado pelo Serviço e pelos memorialistas.
Ambos elaboram um discurso que, baseado numa espécie de ponto inicial,
na década de 1940, forjam uma tradição que funde a ação saneadora e
modernizadora do SESP com a atuação empreendedora dos ‘pioneiros’ no
que poderíamos chamar de um novo marco de surgimento de Governador
Valadares, distanciando-se de sua matriz secular de atraso frente às demais
regiões mineiras (HOBSBAWM; RANGER, 1984, p. 9 a 24).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 145


Considerações finais
O levantamento prévio da situação sanitária da região nos rastros
documentais da primeira parte desse ensaio nos mostra uma determina-
da dinâmica sociocultural e econômica, em que atuavam diversos atores
sociais, agregada aos processos de ocupação e exploração do território do
Médio Rio Doce na primeira metade do século XX. Nesse sentido, as des-
crições dos memorialistas locais da década de 70, os documentos oficiais
e relatórios presidenciais, convergiam para uma situação comum, em que
o domínio da floresta tropical e a presença do Rio Doce definiriam as
condições de povoamento e de desenvolvimento socioeconômico, além
de se relacionar com as condições sanitárias da região.
Neste processo de territorialização, o povoamento ocorrido de
forma mais contundente nas quatro primeiras décadas do século XX
nos leva a um panorama onde é possível a distinção entre dois grupos
de ‘povoadores do vale do Rio Doce’: (a) um grupo que se assenhora
das terras e da riqueza, inclusive com amparo legal, os autodenomi-
nados “pioneiros”; e (b) outro grupo maior, de trabalhadores de várias
especialidades — agricultores, oleiros, canoeiros, carpinteiros, braçais,
cortadores de madeira, etc., e suas famílias, que ao fim seriam os bra-
sileiros que careciam da assistência médica, do provimento de equipa-
mentos e de educação sanitária. Foi em meio a essa população que o
SESP atuou e é com base nesses registros, daquilo que o Serviço diz ter
feito e do que a população diz ter recebido e internalizado que ponde-
raremos sobre o processo em tela.
As referências ao SESP nos textos de memorialistas locais e no
depoimento dos antigos funcionários tratam-no com a deferência diri-
gida à autoridade ou benfeitor, e são comuns os elogios à sua atuação
e à proposta ‘moderna’ para a saúde e o saneamento de áreas urbanas
e rurais. Tais menções são afirmativas da capacidade e da competência
do Serviço e de seus técnicos, dos benefícios realizados para as cida-
des e as populações atendidas, tais como a erradicação da malária,
tratamento de outras enfermidades e implantação de serviços para o
tratamento de água e esgoto. Nesses discursos a ação de SESP é digna
dos melhores louvores, e são raros os questionamentos críticos como
o publicado no jornal valadarense Voz Rio Doce, em 1947, dizendo
que o SESP era pura fachada de “macaquitos” metidos a “yankee”.
Em trabalhos acadêmicos mais recentes sobre o Médio Rio Doce, a
146 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
ação do SESP é reconhecida como um dos fatores que impulsionaram
o desenvolvimento regional entre as décadas de 1940/1950 e relacio-
nada a ele, porém de forma pontual, sem aprofundamentos sobre as
atividades realizadas ou métodos utilizados.
Nesse sentido, verificar o contexto de constituição do SESP e a
concepção de saúde e de desenvolvimento subjacentes às suas práticas,
bem como as condições de sua manutenção, através do acordo bilateral
até 1960 tornou-se fundamental para avaliar sua atuação no Médio Rio
Doce. As metodologias de intervenção que acompanharam a execução
dos projetos de saneamento e de assistência médica se relacionaram
com a concepção do “círculo vicioso da doença e da pobreza” e com
uma pedagogia sanitária em que a responsabilidade individual sobrepu-
ja a responsabilidade política. As duas tendências observadas nos relató-
rios e nas publicações do SESP — o tripé ignorância-pobreza-apatia —
como causas do agravamento do quadro nosológico, e o entendimento
da saúde como fator de desenvolvimento econômico, anunciam, mas
não esclarecem as interferências das condições sociais sobre a propaga-
ção de doenças. Essa concepção parte da suposição de que certos há-
bitos, costumes e sistemas de crenças populares, bem como processos
de cura a partir da medicina rústica, são manifestações de ignorância e
superstição. Os relatos e imagens que os sanitaristas Belizário Penna e
Arthur Neiva divulgaram sobre as populações do interior do Brasil (de
isolamento, doença, uso da terapêutica popular, apatia e ignorância) em
seu Relatório da viagem científica realizada em 1912 ao Norte da Bahia,
sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e Goiás de Norte a Sul (promovi-
da pelo Instituto Oswaldo Cruz, por requisição da Inspetoria de Obras
Contra as Secas) e publicado em 1916, na Revista Memórias do Instituto
Oswaldo Cruz, foram reapropriadas por diversos intelectuais em suas
interpretações do Brasil e reforçaram essa tese (LIMA, 2008).
Para o Médio Rio Doce, as ações do SESP entre as décadas
de 1940 e 1950 propiciaram o ordenamento dos territórios urbanos,
o saneamento rural, a erradicação da malária, a contenção de outras
endemias e a imposição das práticas médicas científicas. Dessa forma,
foram criadas as condições territoriais para a região receber e expan-
dir os grandes investimentos de capital (mineração, siderurgia, indústria
madeireira) e, ao mesmo tempo, confirmar como fronteira agrícola (ex-
pansão da pecuária de corte e produção agrícola), confirmando-se o

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 147


papel do Serviço, na consolidação e no fortalecimento da presença do
Estado (state building) nessa região.
Para a população atendida tais ações provocaram alterações nas
práticas de saúde, nos costumes e nos valores culturais e uma (re)organi-
zação do espaço. O discurso de ciência em que o SESP se apoiava procu-
rava sistematizar uma pedagogia sanitária de intervenção na comunidade
e tal pedagogia se opunha às estratégias que a comunidade utilizava para
lidar com as doenças. Portanto, a atuação deixa claro o objetivo de pre-
parar as gerações mais novas segundo os padrões científicos e simultane-
amente combater as práticas da medicina popular. Nessa dinâmica, as
visitadoras, as auxiliares de atendimento e os guardas sanitários se apro-
priaram do discurso técnico-científico e eles mesmos se percebem como
agentes de mudança “por dentro”, pois eram membros das comunidades
atendidas ou que tinham o mesmo perfil, como em geral ficou implícito
nos depoimentos apresentados ao longo deste ensaio.
Para nossos informantes, antigos funcionários, o SESP foi uma
benesse do poder público, confirmando a tese de que a disponibiliza-
ção de bens públicos de saúde não foi usufruída como conquista social.
A população atendida pelo SESP ainda está por ser ouvida, auscultada.
De mais a mais, ainda não se cumpriu no Médio Rio Doce, tampouco
no Brasil, a meta estampada no selo comemorativo de 1960, por oca-
sião da transformação do SESP em Fundação SESP, de responsabilidade
de Dom Basílio Penido, médico e monge beneditino: Salubritas ubique
curanda, isto é, “seja a saúde promovida por toda a parte”.
O nosso outro grupo de informantes nos dá um panorama bem
diferente, no qual a benesse, quando é usufruída nem sempre apresenta
o mesmo caráter transformador, como ficou revelado no caso em que
o paciente fez o exame, mas por falta de orientação sequer o levou ao
médico para ser devidamente medicado. Em outros, o Serviço sequer
foi referido e quando as narrativas sobre o cotidiano tocam na questão
das endemias e das dificuldades sanitárias, os informantes não se refe-
rem diretamente ao SESP como um agente transformador. O curioso é
que o esquecimento tanto esteve presente nas narrativas daqueles que
se encontravam mais afastados das áreas onde a atuação sespiana ocor-
reu com mais intensidade quanto nas áreas mais próximas.
É nesse sentido que podemos falar de um objeto transversal. A
questão sanitária perpassa os meandros do território físico, demarcado

148 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


na região do Médio Rio Doce de acordo com os documentos oficiais,
mas também remete a outra concepção de território imerso em um
contexto sócio-histórico, cercado por inúmeras relações de poder que
vão desde as estabelecidas entre os habitantes autóctones e os ‘pio-
neiros’ àquelas que vinculavam os interesses americanos à região. Esta
segunda concepção de território, de cunho relacional, nos dá uma
dimensão mais apurada das territorialidades que ora se chocavam, ora
se complementavam no processo de saneamento que se desenrolava
principalmente nas áreas centrais em direção à periferia da cidade de
Governador Valadares como também dos outros centros atendidos.
Simbolicamente, o território atendido pelo SESP era visto de forma
global e incluía a cidade, mas em função das múltiplas territorialida-
des, a realidade fornecia novos contornos aos projetos executados. As
informações e a educação sanitária pretendida pelo SESP não descon-
figuravam as práticas cotidianas da população da periferia que mesmo
assistida mantinha seus costumes.
A territorialidade dominante dos ‘pioneiros’ de Governador Va-
ladares – que podemos tomar como um centro exemplar em relação
às demais cidades do Médio Rio Doce – revestida de modernidade se
sobrepunha a da população menos abastada que em muitos aspectos
não contestou o discurso civilizador, mas apenas internalizou o que si-
nalizava seus atores mais significativos, oriundos das famílias ilustres e
bem sucedidas. Ao elevar os ‘pioneiros’ à categoria de heróis locais,
os memorialistas cumpriram seu papel na seleção do que deveria ser
lembrado e do que teria que ser esquecido, como realça Paul Ricoeur
(2007). Daí a importância de se trabalhar a partir da interação entre a
memória coletiva e a individual, abrindo espaço para a compreensão
da sociedade e buscando, ao estilo Weberiano, as conexões e a signi-
ficação cultural da realidade da vida que nos rodeia. A ação social de
cada agente envolvido no processo apresenta um sentido manifestado
na concretude da cadeia motivacional que se forma, conforme visto
acima (COHN, 1991). Nesta ‘teia de significados’ (GEERTZ, 1978), cabe
interpretar os motivos do SESP realçados nas palavras dos seus antigos
funcionários e o sentido cotidiano desta mesma ação. Cabe, mesmo de
forma indiciária, ponderar sobre as negociações destas narrativas amar-
radas nos vários discursos, dentre os quais o dos documentos oficiais e
aqueles revelados pelo Jornal Diário do Rio Doce.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 149


Por isso, o território mutifacetado que se apresenta exige da análi-
se histórica um esforço contínuo de contraponto entre suas várias esca-
las espaciais e temporais. Numa perspectiva mais ampla a ação sespiana
não pode ser enquadrada numa estrutura uma vez que não se pode fa-
lar de uma ação homogênea. Estamos, portanto, lidando com um agen-
ciamento, cujo conjunto de partes interage negociando sentidos e con-
figurando ações e intenções (HAESBAERT, 2006, p. 112 a 117). Nessa
multiterritorialidade a modernidade dos ‘pioneiros’ não tem o mesmo
sentido para os demais habitantes e nem mesmo o desenvolvimento e
urbanização empreendidos a partir dos projetos implementados pelo
SESP serão incorporados ao cotidiano da mesma forma. O SESP tinha
como modelo de saneamento o padrão internacional, a grande maioria
da população tinha como modelo o próprio vizinho que muitas vezes
podia ridicularizar o uso da fossa sanitária. O reordenamento do espaço
urbano, citado acima, embora alterasse visivelmente o território não de-
sagregava as práticas de manter o lixo nas ruas, de usar o mato para as
necessidades fisiológicas e as fossas para guardar arreios e galinhas; ou,
até mesmo de achar a água do Rio Doce mais confiável que aquela que
chegava através de um sistema de abastecimento.
A partir do que foi exposto, a ação do SESP deve ser analisada
levando-se em consideração os vários discursos e as múltiplas territoriali-
dades constituídas. Partindo desses pressupostos, nos posicionamos dian-
te de um território que ganha dinâmica e sentido a partir da apreensão da
conduta dos múltiplos agentes e dos significados que a ação destes venha
a ganhar. É necessário para tanto, estender a análise para a antropologia
interpretativa de Geertz (1978), cuja cultura é compreendida como uma
‘teia de significados’. Nas palavras do próprio autor, “acreditando como
Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados
que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua
análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis,
mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado” (GEERTZ,
1978, p. 15). Todo esse processo ocorre mediante uma negociação dos
significados por intermédio da interpretação narrativa, armazenada por
uma comunidade (BRUNER, 1997, p. 65).
Recuperando as palavras de Saquet (2006, p. 83), “o território é
processual e relacional, (i)material, com diversidade e unidade, conco-
mitantemente”. Nele se estabelecem as mais variadas escalas geográfi-

150 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


cas e até mesmo temporalidades diferentes. Neste exercício, ao abordar
o processo de territoralização da saúde e do saneamento a partir da
memória, podemos sugerir, de forma complementar, que em meio a
estas operações espaciais e temporais, o território também comporta
diversas narrativas, lembranças e esquecimentos, apreensões, sentidos,
intenções e representações numa busca incessante de conciliar, assim
como no desafio posto ao historiador, os tempos da alma e do mundo.

Fontes

Fontes orais

- INFORMANTE 1 - Entrevista concedida à Professora Maria Terezinha


Bretas Vilarino, em 14/12/2007, arquivada no Programa de Memória do
Vale do Rio Doce – PMVRD/Univale.
- INFORMANTE 2 - Entrevista concedida à Professora Maria Terezinha
Bretas Vilarino, em 16/02/2008, arquivada no Programa de Memória do
Vale do Rio Doce – PMVRD/Univale.
- INFORMANTE 2 - Entrevista concedida à Professora Maria Terezinha
Bretas Vilarino, em 16/02/2008, arquivada no Programa de Memória do
Vale do Rio Doce – PMVRD/Univale.
- INFORMANTE 4 - Entrevista concedida à Professora Maria Terezinha
Bretas Vilarino, em 29/05/2008, arquivada no Programa de Memória do
Vale do Rio Doce – PMVRD/Univale.
- INFORMANTE 5 - Entrevista concedida à Professora Maria Terezinha
Bretas Vilarino, em 09/12/2008, arquivada no Programa de Memória do
Vale do Rio Doce – PMVRD/Univale.
- INFORMANTE 6 - Entrevista concedida à Professora Maria Terezinha
Bretas Vilarino, em 01/04/2009, arquivada no Programa de Memória do
Vale do Rio Doce – PMVRD/Univale.
- INFORMANTE 7 - Entrevista concedida à Professora Maria Terezinha
Bretas Vilarino, em 01/04/2009, arquivada no Programa de Memória do
Vale do Rio Doce – PMVRD/Univale.
- INFORMANTE 8 - Entrevista concedida à Professora Maria Terezinha
Bretas Vilarino, em 24/08/2009, arquivada no Programa de Memória do
Vale do Rio Doce – PMVRD/Univale.
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 151
Fontes documentais

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Série 1 – Infra-estrutura urbana – INEU.
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154 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Controle social e identidade: os casos do
Clube Atlético Pastoril e o Esporte Clube Democrata1
Eliazar João da Silva2
Julieta Soares Alemão Silva3

D
entre os diferentes fenômenos circunscritos ao limiar do
século XX, um deles está relacionado à emergência de
alguns centros urbanos nas diferentes regiões do país, e
ao surgimento de indústrias e fábricas. O movimento crescente
da urbanização (e diretamente ligado ao processo de industria-
lização) deve ser pensado também como um fenômeno social.
Nesse sentido, tais processos além de reorganizar o espaço físi-
co ocupado pela população, compreenderam uma reordenação
em termos de valores e costumes que contribuíram para que
surgissem novas relações sociais.
As cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo configuraram-se
como dois exemplos de centros urbanos que incorporaram a pers-
pectiva de mudanças em suas ruas e bairros. Certamente a condição
de migração das áreas rurais para as áreas urbanas, se explica pela
instalação e expansão de fábricas e indústrias localizadas nessas ci-
dades. Houve também outros surtos de urbanização - mesmo que
em escala menor - nas diversas regiões do país, e a cidade de Go-
vernador Valadares acompanhou este processo. Na primeira metade
do século XX, houve um significativo aumento do contingente popu-
lacional nessa cidade. Segundo dados do IBGE, no ano de 1930 a
população que era de 2.130 habitantes, passou para 5.374 em 1940,
e para 20.357 em 1950. Desta forma, pessoas vinham de diferentes
regiões, incluindo trabalhadores rurais, em busca de trabalho nas
empresas existentes na urbe em questão.

1 Este texto é resultado da pesquisa desenvolvida na Universidade Vale do Rio Doce – UNIVALE
entre 2006 e 2007, e contou com o apoio financeiro da FAPEMIG.
2 Professor dos Cursos de Graduação e do Programa de Mestrado em História da Universidade
Federal da Grande Dourados – UFGD.
3 Aluna do Programa de Mestrado em História pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 155


A população que se deslocava das áreas rurais com seus costumes e
tradições, ao chegar nas cidades encontrava um estilo de vida caracterizado
por diferentes práticas sociais, culturais e econômicas. O cotidiano das ci-
dades impunha um novo ritmo para as relações de trabalho, consumo e la-
zer. Tais comportamentos relacionados à sociabilidade dos habitantes foram
transformados também pelas idéias de modernidade, ainda que houvesse a
permanência de elementos circunscritos às áreas rurais. Sobretudo nas dé-
cadas iniciais do século XX, as manifestações culturais do meio rural come-
çaram a ser entendidas como arcaicas e ultrapassadas pelas elites urbanas,
e, sobretudo, por integrantes do poder público das cidades que compu-
nham, a partir do período mencionado, o cenário urbano-industrial.
Introduzido na cidade de São Paulo na última década do século
XIX, a prática futebolística apresentou-se como um esporte que simbo-
lizava o estilo de vida moderna que se almejava. Antes de ser implan-
tado no Brasil, o futebol já era amplamente praticado em alguns países
da Europa como, por exemplo, na Inglaterra e na França. A prática de
esportes em geral (sobretudo o futebol), inicialmente praticados pelas
famílias mais abastadas, tivera sua origem na Europa (CALDASa, 1990)
As transformações pelas quais passaram algumas cidades do Brasil
(especialmente a do Rio de Janeiro e de São Paulo), decorrentes do pro-
cesso de industrialização e urbanização, estavam relacionadas às idéias
de modernidade. Nesse sentido, a introdução da prática do futebol,
e as reformas dos grandes centros urbanos, faziam parte do “projeto
modernizador” empreendido pelas camadas sociais mais abastadas e
incentivadas pelo poder público.
Tal projeto estava fundamentado na perspectiva de absorver tudo
que dissesse respeito à Inglaterra e à França, e que era entendido como
“moderno”. A prática do futebol acompanhou esta concepção. O Flu-
minense Futebol Clube, da cidade do Rio de Janeiro (fundado em 21 de
julho de 1902), foi uma das equipes que melhor representou as tendên-
cias do período, uma vez que o clube mencionado se caracterizava pelo
seu “requinte” no qual as “melhores famílias” se encontravam a fim de
se confraternizarem e discutir as novidades da Europa (Paris e Londres,
principalmente). Com seus salões de festa, e os espaços destinados a
assistência e/ou prática dos esportes considerados saudáveis e civiliza-
dos, a “boa sociedade” podia desfrutar de tudo aquilo que era também
oferecido aos europeus. (SILVAa, 2006).

156 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


O fenômeno das reformas urbanas no início do século XX visava,
entre outras coisas, um modelo de modernização inspirados nas cidades
de Londres e Paris. A remodelação das regiões centrais do Rio de Janeiro
e de São Paulo, promovidas a partir da iniciativa de representantes do
poder público, demonstram de forma emblemática algumas contradi-
ções e tensões presentes no período denominado de “República Oligár-
quica” (1889-1930). As elites urbanas empreenderam várias medidas no
sentido de transformar tanto o espaço físico, quanto os hábitos e costu-
mes da sociedade. Tais reformas tiveram como pressuposto o embele-
zamento das cidades, com a finalidade de que as mesmas adquirissem
uma paisagem moderna. (MORAISa, 1994).
Estas reformas contribuíram para o surgimento de novos dese-
nhos na paisagem urbana. Nesse sentido, na impossibilidade de arcar
com os custos das reformas empreendidas principalmente por integran-
tes do setor público, as pessoas menos privilegiadas economicamente
foram obrigadas a ocupar as regiões marginais dos centros urbanos.
No limiar do século XX, esses locais se caracterizavam por apresentar
uma infra-estrutura bastante precária, tal como ocorre neste início do
século XXI. (CARVALHOa, 1987)
Da mesma forma que as cidades de Londres e Paris serviram de
referência para as reformas dos centros urbanos de São Paulo e do Rio
de Janeiro, também a partir delas havia repercussão nos demais cen-
tros que iam se formando no país. Nessa perspectiva, o fenômeno das
reformas urbanas objetivava desenvolver uma melhoria no centro das
cidades, o que deixava de lado as regiões marginais, contribuindo, in-
clusive, para o surgimento de favelas. A prática de esportes, sobretudo
do futebol, deve ser pensada como parte constitutiva destes espaços
urbanos em formação.
Nos anos que correspondem ao período denominado de Repú-
blica Oligárquica, o aparecimento embrionário da sociedade urbano-
industrial e o seu desenvolvimento no Brasil emergiu fundado em uma
sociedade rural, recém saída da escravidão e cujos traços culturais ainda
eram perceptíveis. Desta forma, a República proclamada não garantiu
a igualdade de direitos para o conjunto da população. De acordo com
Carvalho, o direito civil, dentre outros direitos, não obteve represen-
tatividade. A perspectiva de garantia da liberdade, por exemplo, aos
negros (os quais compreendiam expressiva parcela da população), não

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 157


significou a sua inclusão social. As oportunidades de emprego formal, de
saúde e moradia de qualidade permaneciam restritas a uma minoria da
sociedade. (CARVALHOa, 2001).
Nesta perspectiva, as cidades em expansão localizadas nas várias
regiões do país, não dispunham de infra-estrutura básica para atender a
população negra e de brancos pobres, além do grande contingente de
pessoas oriundas das áreas rurais, e mesmo de outros países. O rápido
crescimento da população urbana, e, simultaneamente, o fato das ativi-
dades econômicas não absorverem a mão-de-obra crescente, constitu-
íram-se como elementos propulsores da pobreza, e para o surgimento
de inúmeras outras mazelas sociais. De acordo com Moraes:
Apesar de toda expansão e evolução, o crescimento urbano foi
repleto de contradições, apresentando um lado perverso e caó-
tico. O incessante processo de crescimento urbano gerou uma
série interminável de graves problemas, sofridos, geralmente,
pelas populações mais pobres. O incontrolável crescimento das
populações, a falta de moradia, os problemas com abastecimento
de alimentos e de água, a insalubridade geradora de doenças e
epidemias, o subemprego ou desemprego, a violência e a men-
dicância também foram partes constitutivas do quadro urbano.
(MORAISb, 1994: 14-15)

Neste cenário, a prática de esportes em geral, sobretudo o fute-


bol, passaram a constituir um novo significado. As mudanças na traje-
tória desse esporte, principalmente no que se refere à sua divulgação
na sociedade, contribuíram para que ele fosse interpretado como uma
manifestação da cultura popular urbana. Nessa perspectiva, o futebol
pôde ser concebido como tal a partir da idéia de que ele inverteu sua
lógica inicial de implantação, ou seja, de esporte praticado apenas pelas
elites para uma atividade esportiva de grande alcance popular.
Ao ser introduzido no país, no final do século XIX, a prática fute-
bolística restringia-se a grupos sociais específicos, a saber, as camadas
sociais mais abastadas. Esse aspecto elitista constitui uma característica
que marcou a fase inicial do futebol no Brasil. De acordo com Caldas,
(...) boa parte da trajetória inicial do futebol no Brasil possui um
caráter elitista e, dificilmente poderia ser de outra forma. Os in-
gleses, precursores desse esporte em nosso país, faziam parte da
elite da sociedade paulista e carioca; além deles, somente os bra-
sileiros ricos tinham acesso à prática do futebol. É preciso ainda

158 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


levar em conta que quase todo o material necessário para o jogo
era importado e muito caro.(...) Mandar buscar material na Ingla-
terra não era uma coisa acessível a qualquer pessoa aficionada
do futebol. Com efeito, a trajetória desse esporte mudaria até
com rapidez. (CALDASb, 1990:24).

Entendemos que os próprios uniformes (entre outros elementos)


necessários para a prática do futebol oficial, inicialmente constituía um
fator de distinção social. Nesse sentido, a prática futebolística foi inicial-
mente compreendida como o esporte ideal e moderno, que deveria ser
restrito às pessoas “melhores posicionadas” economicamente. Confor-
me já apontado anteriormente, o próprio Fluminense Futebol Clube é
um exemplo emblemático dessa fase elitista do esporte.
A prática das atividades esportivas (especialmente o futebol), no
momento de sua implantação no Brasil fez parte do que as elites con-
cebiam como “bons princípios e hábitos que deveriam ser adquiridos e
incorporados”. Além disso, os jovens estudantes pertencentes às famílias
mais abastadas verificavam na atividade futebolística, a possibilidade de
garantir uma boa saúde.
A partir das décadas iniciais do século XX, o jogo de futebol con-
tribuiu para que emergisse uma nova concepção em relação ao corpo.
Além de promover uma transformação nos padrões de beleza, que es-
tava relacionada ao alcance de um “físico forte”, o futebol concorre-
ria para o aumento da produtividade. Nesse caso, o preparo do corpo
compreendia pressupostos que estavam diretamente ligados às técnicas
de produção. Isto significa que da mesma forma que havia uma pre-
ocupação com o aperfeiçoamento das máquinas, o corpo deveria ser
disciplinado e treinado por meio dos esportes.
A prática do futebol poderia, então, contribuir para motivar a dis-
posição dos operários em suas atividades cotidianas. Além do aspecto da
manutenção de uma desejável boa saúde, o esporte apresentou-se tam-
bém como um agente importante para a competição. Tal idéia foi bastante
difundida em meio aos trabalhadores das fábricas. (ANTUNESa, 1992)
Ao longo das décadas iniciais do século XX, o futebol passou a
ser divulgado e popularizado na sociedade por meio das práticas coti-
dianas presentes nas vilas operárias. Nos clubes ligados às empresas, foi
possível a inserção de pessoas de origem humilde no futebol, fazendo
com que gradativamente o esporte deixasse de ser praticado apenas

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 159


pelas elites. Os operários e altos funcionários das empresas nacionais e
estrangeiras, os imigrantes, os comerciantes, os estudantes dos colégios
mais tradicionais, padres educadores dos considerados melhores colé-
gios, todos fizeram parte da trajetória do futebol. (SILVAb, 2006).
Criado em 1904, o The Bangu Athletic Club pertencia aos “altos
funcionários” da Companhia Progresso Indústria Ltda. Este clube mar-
cou o início do processo que poderíamos chamar de “democratização
do futebol no país”. Primeiramente formado pelos funcionários de ori-
gem inglesa, gradativamente o clube se viu obrigado a incorporar atletas
de outras origens étnicas e sociais, em função da impossibilidade numé-
rica de formar duas equipes contando-se apenas com os “ingleses”.
Desde então, houve a “necessidade” de se permitir a participa-
ção de operários de precárias condições sócio-econômicas. O que se
viu a partir do ingresso de vários operários da própria empresa, foi o
surgimento de uma equipe de futebol bastante talentosa e temida pelos
times adversários. A equipe acabou sendo mais conhecida do que a
própria empresa, razão pela qual o “operário-jogador” passou a ter mais
privilégios. A citação a seguir é elucidativa nesse sentido.
Quase sempre o jogador-operário era mais rapidamente promo-
vido. Os considerados craques, então, eram nitidamente protegi-
dos pela diretoria. Além disso, o contato mais informal no campo
de futebol com os altos funcionários ingleses teria função determi-
nante nas vantagens aferidas pelos jogadores-operários. A partir
desse instante, o operário (embora a coisa não fosse oficializada)
não representava para a Cia. Progresso Industrial um trabalhador
a mais. Ele era, entre outras coisas, um veículo de divulgação da
própria empresa, uma vez que o Bangu sistematicamente viajava
para jogar em outras cidades. (CALDASc, 1990:29).

O fenômeno da popularização do esporte foi objeto de acompa-


nhamento dos meios de comunicação como periódicos e transmissões
radiofônicas, o que levou ao processo de exploração e de (re) significa-
ção do futebol em vários níveis, inclusive no político.
A década de 1930 constituiu um período marcado por várias dis-
cussões, dentre elas a profissionalização oficial da prática do futebol e
sua construção como um dos símbolos de identidade nacional. Em meio
a esses novos significados a ele atribuídos, foi fundado na cidade de
Governador Valadares, em 1932, o Esporte Clube Democrata. Sua fun-
dação ocorreu em momento anterior à própria emancipação político-

160 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


administrativa da cidade em questão. A então Figueira do Rio Doce era
ainda distrito da cidade de Peçanha. Somente em 1932, a cidade que
abriga o Esporte Clube Democrata foi emancipada.4
Tal como ocorreu em Governador Valadares, a incorporação da
prática futebolística foi perceptível nas cidades das diferentes regiões
do país. De acordo com Toledo, a popularização da prática futebolís-
tica acompanhou o crescimento das cidades e foram várias as vias de
apropriação desse esporte. Nesse sentido, tal apropriação não se dava
somente participando ou assistindo as partidas, mas também por meio
das conversas sobre os resultados dos jogos em bares, casas e ruas,
pelas transmissões radiofônicas, pela utilização de gírias do futebol em
situações vividas fora dos campos. Sobre essa questão vale apontar o
que disse o autor:
(...) As construções dos estádios e praças esportivas estiveram
em consonância com o crescimento da popularização do fute-
bol. Simbolicamente o futebol contaminou o imaginário urbano,
recriando comportamentos, inaugurando linguagens, gírias que,
como se sabe, vieram transcender os limites das praças esportivas,
enriquecendo uma linguagem popular e urbana, aproximando
segmentos sociais até então separados por uma segregação espa-
cial e étnica. (TOLEDOa, 1996:15).

Certamente o grande contingente populacional oriundo das áreas


rurais e de outros países, foi atraído por esse esporte devido às razões
que não se referiam exclusivamente à busca de um físico saudável, mas
também a partir da perspectiva de encontrar nos jogos de futebol mo-
mentos de sociabilidade.
A idéia de que o futebol fazia parte dos hábitos de uma significativa
parcela da sociedade foi constatada por representantes do poder públi-
co, os quais não hesitaram em disto buscar tirar proveito. Nesse sentido,
sobretudo a partir da década de 1930, é perceptível uma orientação po-
lítico ideológica do governo federal quanto à exploração, nos meios de
comunicação (como rádios e alguns periódicos), da idéia de concepção
do futebol como um símbolo do sentimento de identificação nacional.
O primeiro campeonato mundial de futebol foi realizado em
1930 no Uruguai e a atuação da equipe brasileira não foi das melho-

4 Cf. Edição Comemorativa dos 60 anos do Esporte Clube Democrata. Jornal Diário do Rio Doce, 13-
12-1992. Segundo nos informa o jornal, inicialmente o time se chamou São Domingos da Figueira.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 161


res. Um dos motivos está relacionado às divergências envolvendo à
APEA (Associação Paulista de Esportes Atléticos), e a AMEA (Associa-
ção Metropolitana de Esportes Atléticos), localizadas, respectivamen-
te, nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Embora a equipe
brasileira não tenha apresentado uma boa performance, três atletas
se destacaram pelo seu refinado jeito de jogar: Fausto, Domingos da
Guia e Leônidas da Silva. O bom desempenho desses jogadores con-
tribuiu para que houvesse ainda mais um maior interesse do governo
pelo esporte, o que motivou a sua profissionalização. Na perspectiva
do poder público, os jogos da Copa do Mundo poderiam trazer um
reconhecimento mundial dos atletas brasileiros, ao mesmo tempo em
que divulgaria o nome do país.
Certamente o primeiro aspecto que evidencia o interesse do
governo federal na prática futebolística caracterizou-se pelo seu em-
penho em tornar o esporte profissional. Além disso, a Confederação
Brasileira de Desportos – então CBD - chamava a atenção para a idéia
de que não deveria mais haver divergências entre as associações APEA
e AMEA. O objetivo do governo era fazer com que essas associações
disponibilizassem seus melhores atletas para os campeonatos mun-
diais a fim de que aumentassem as possibilidades de êxito da equipe
brasileira. Nessa perspectiva, a vitória no mais importante evento fu-
tebolístico do mundo tinha como premissa a divulgação do país que
estava sob o governo de Getúlio Vargas.
Na década de 1930, o cenário mundial foi marcado pela emer-
gência de regimes totalitários. A Itália é um exemplo de país que
explorou a vitória nos campeonatos mundiais de 1934 e 1938, como
uma forma de enaltecer o seu regime político. A aproximação entre
questões políticas e o futebol também pôde ser verificada na Alema-
nha por ocasião dos jogos olímpicos realizados em Berlim, no ano
de 1936. Desta forma, a aproximação entre poder público e futebol
no Brasil, durante o regime autoritário de 1937 a 1945, de alguma
maneira pode ter sido influenciada pelo que estava acontecendo na-
queles países da Europa.
Este cenário contribuiu para que representantes do governo fede-
ral passassem a se interessar diretamente pelo sucesso da seleção bra-
sileira de futebol, com a finalidade de explorar seu eventual êxito para
legitimar ideais de patriotismo e civismo. Nesse sentido, nos jogos do

162 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


campeonato sul-americano em 1937, cronistas esportivos por meio de
veículos de comunicação, e que eram subordinados ao Departamento
de Imprensa e Propaganda - DIP (órgão de comunicação vinculado aos
interesses do governo federal) - também tiveram um papel fundamental
para a divulgação do “sentimento nacional”.
Antecedendo ao jogo final, as publicações de cronistas esportivos
davam conta de que o Brasil seria campeão. Para tanto, a idéia de “civis-
mo” foi amplamente difundida, a fim de que os atletas se “entregassem”
em campo por “amor ao Brasil”. Mas não somente jogadores foram
“convocados” a defenderem a “pátria”. Na perspectiva de cronistas es-
portivos, a torcida também assim deveria se comportar. (...) Terminado
o torneio sul-americano de 1937, e envolto num espírito de nacionalis-
mo via imprensa, os jogadores foram recebidos na capital da República
como “soldados da pátria”, embora não tivessem vencido a partida final
contra a Argentina. Houve uma grande “festa cívica” na chegada dos
atletas ao Rio de Janeiro: eles foram recepcionados como heróis da na-
ção. Vários periódicos enalteceram a disposição e o “espírito guerreiro”
dos atletas brasileiros. (SILVAc, 2006).
Nos anos compreendidos entre 1937 a 1945 (período denomina-
do Estado Novo) o governo de Getúlio Vargas difundiu a idéia de cons-
trução do “Homem Novo”. Dentre as perspectivas da construção deste
“homem” que o Estado desejava criar, residiam as que diziam respeito
ao civismo, à disciplina, ao sentimento patriótico, e ao bom preparo
físico. O incentivo das autoridades políticas, no que tange à prática de
atividades físicas, serviu como um caminho para que incutisse também
na sociedade o sentimento de pertencimento à nação, sobretudo nos
jogos dos campeonatos mundiais, evento no qual são reunidos países de
diferentes continentes, e que tinham como objetivo principal a conquis-
ta de um título internacional.
Tal como ocorreu nos jogos sul-americanos realizados em 1937,
na Copa do Mundo de 1938 permaneceu a estratégia dos veículos
de comunicação em “convocar as pessoas”, fossem elas adeptas ou
não ao futebol, a torcerem pela seleção brasileira. Supomos que esse
aspecto contribuiu para incutir na sociedade a compreensão de que
o fato de se envolver nos jogos da seleção brasileira, resultaria na
idéia de também torcer pelo Brasil enquanto nação, independente-
mente do futebol.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 163


Desde a implantação do futebol no Brasil, o número de adeptos
desse esporte aumentou significativamente. Desta forma, homens, mu-
lheres e crianças das mais diferentes origens étnicas e sociais demonstra-
vam seu apreço pela prática futebolística, comparecendo em massa aos
centros esportivos espalhados pelo país. Em meio a essas circunstâncias,
a década de 1940 foi marcada por um fenômeno que contribuiu para a
constatação do empenho do governo federal no que diz respeito às ati-
vidades esportivas, principalmente o futebol. Trata-se do fato de que foi
nesse período que ocorreu a construção de grandes centros esportivos
como o Pacaembu e o Maracanã, erguidos, respectivamente, nas cida-
des de São Paulo e do Rio de Janeiro, e contando com financiamento
de dinheiro público para ambas as construções.
As medidas de incentivo à prática do futebol, seja por parte de
representantes do poder público, sejam por parte de órgãos da impren-
sa, seja, enfim, por parte de empresários dos mais diferentes segmentos,
tiveram repercussão também no interior do país, o que motivou novos
significados atribuídos ao futebol na cidade de Governador Valadares, o
que aqui nos interessar destacar.
As vilas operárias desempenharam um papel fundamental na
popularização da prática do futebol. Na década de 1940, a cidade
Governador Valadares presenciou a construção de uma vila operária,
na qual a prática futebolística obteve maior destaque, se comparada
às demais atividades de lazer. Nesse período, as atividades econô-
micas presentes na urbe em questão, giravam em torno da extração
e comercialização da mica, de pedras preciosas e de madeira. Além
disso, a pecuária também tinha significativa participação na econo-
mia local. (SILVAa, 1997).
A Companhia Agropastoril Rio Doce iniciou suas atividades no
ano de 1943, e constituiu-se como uma das mais modernas fábricas
de compensado do Estado de Minas Gerais. Ao lado da empresa foi
construída uma vila operária - tal como ocorreu com empresas de
outras regiões do país – que tinham também por objetivo estabele-
cer um controle social dos funcionários. Nesse sentido, no interior da
vila existia uma estrutura que tinha como pressuposto fazer com que
os moradores permanecessem no ambiente da empresa, viabilizando
dessa forma, o controle dos hábitos e comportamentos dos emprega-

164 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


dos com vistas a garantir uma boa produtividade. Sobre esse aspecto
vale ressaltar o que disse De Decca:
Quando as fábricas ou empresas dispunham de vilas operárias
ou casas para moradia dos trabalhadores em suas cercanias, ha-
via também regulamentos para controle da vila proletária fora
dos muros das fábricas. Havia normas para movimentação de
pessoas, com horários fixos de entrada e saída, horário de si-
lêncio, horário para dormir, etc. A vida operária era controla-
da também nas vilas operárias através da creche, da escola, da
igreja, dos equipamentos de lazer existentes, sendo os costumes
policiados para um bom desempenho e produtividade no traba-
lho. (DECCA, 1991:51)

Na vila construída ao redor da empresa Agropastoril Rio Doce ha-


via mercados onde podiam ser encontrados produtos de higiene pessoal
e para o vestuário, além de armazéns. Existia também cinema, clube
social, espaços para a prática de esportes (em especial, o futebol), esco-
las, área de lazer para as crianças e templos religiosos. Quanto às formas
de lazer, os investimentos se destinavam na maioria das vezes, para a
construção de campos de futebol. Tal como ocorreu em outras cidades
do país, em Governador Valadares o futebol também esteve associado
aos mecanismos de controle social. (SILVAb, 1997).
Entendemos que a atividade futebolística também atraiu a aten-
ção dos dirigentes da Companhia Agropastoril Rio Doce, de tal forma
que resultou na criação do CAP- Clube Atlético Pastoril, cuja estru-
tura assemelhava-se à de time profissional, já que contava com atle-
tas de reconhecida habilidade técnica, e recebendo alguns benefícios
econômicos. Construído na década de 1940, o campo localizava-se
nas proximidades da serraria e possuía uma estrutura que o capacita-
va para receber alguns dos considerados “grandes clubes nacionais”.
Dentre eles, podemos mencionar o São Paulo Futebol Clube, Clube de
Regatas Flamengo, Clube de Regatas Vasco da Gama, Clube Atlético
Mineiro e Cruzeiro Esporte Clube.
O campo da serraria era bastante frequentado pelas pessoas da
cidade e também de outras regiões. De acordo com Chaves da Silva “ O
time era famoso em toda região e em dias de jogos chegava a atrair pes-
soas até da Bahia”. (SILVAc, 1997:19). Desta forma, entendemos que o
interesse dos dirigentes da empresa pela prática futebolística também
se deve ao fato do CAP contribuir para uma maior divulgação da com-
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 165
panhia. Além disso, o sucesso do time nas partidas poderia fazer com
que o operário/atleta sentisse orgulho de pertencer à empresa, fato que
contribuiria para uma melhor produtividade da mesma.5
Certamente os benefícios da prática futebolística também eram
sentidos por parte dos operários. Como já mencionamos, a moderniza-
ção das cidades impunha um novo ritmo para as relações de trabalho. A
repressão e outros mecanismos de controle social eram uma constante
no relacionamento entre patrão e empregado. Para o operário, fazer
parte do time de futebol da empresa era uma maneira de ficar distante
do mundo do trabalho. Entretanto, não podemos deixar de ressaltar
que para além desse fato, o futebol já fazia parte do cotidiano da maior
parte da população não apenas de Governador Valadares, mas também
de outras cidades do Brasil.
O Clube Atlético Pastoril mobilizava um significativo número de
pessoas para assistirem às partidas. De acordo com Chaves da Silva,
quando o CAP ia disputar uma partida com algum clube de reconhe-
cimento nacional, como, por exemplo, o Clube Atlético Mineiro ou o
Cruzeiro Esporte Clube, a Companhia divulgava o jogo distribuindo
panfletos pelos locais em que fazia entrega de compensado. Desta for-
ma, vinham pessoas de outras regiões, mas principalmente da cidade.
(SILVAd, 1997). O fato é que o CAP atraiu a atenção das pessoas não
somente pela fama de seus adversários, mas também pelo seu bom de-
sempenho em campeonatos regionais. Dentre os títulos conquistados,
podemos citar o de campeão amador nos anos de 1955 e 1956.
Um importante adversário do CAP era o Esporte Clube Democra-
ta. Nos jogos em que esses dois clubes se enfrentavam, a expectativa era
de que seria um grande jogo, com a torcida comparecendo em massa.
Como é possível constatar nos depoimentos a seguir, os jogos entre Pas-
toril X Democrata eram considerados “clássicos”6. Guardadas as devidas

5 Este aspecto pode ser verificado em vários clubes espalhados pelo país como o “The Bangu
Athletic Clube”, da cidade do Rio de Janeiro. Muitas vezes, a partir dos bons resultados do
time de futebol residia a justificativa de que a fábrica teria ficado mais conhecida justamente
em função do time do futebol, o que conferia a este esporte um importante instrumento de
propaganda da própria fábrica. (ANTUNESb, 1992)
6 A expressão “clássicos no futebol”, diz respeito aos jogos entre duas equipes, nos quais o resul-
tado é sempre imprevisível, além de contar com presença de muitos torcedores e com bastante
equilíbrio no histórico dos confrontos. Em nível internacional, podemos dar o exemplo dos
confrontos entre a seleção brasileira de futebol e a seleção argentina de futebol.

166 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


proporções era como assistir a uma partida entre Atlético e Cruzeiro. De
acordo com o radialista Luiz Alberto Coelho Teixeira:
As cores do Pastoril era verde e branca e o símbolo era o leão, e o
Democrata era a pantera. (...) Então era assim, em um ano o De-
mocrata era campeão e no outro ano era o Pastoril. Existia muita
rivalidade. (...) A história que eu sei é que o Pastoril era muito
querido. E até hoje [ em 2008] existem ex-pastorilenses que cho-
ram quando lembram do CAP. Seria muito bom para o Democra-
ta se o Pastoril fosse reativado, (...) é bom ter rivalidade.7

Sobre essa rivalidade entre Democrata e Pastoril, o músico e autor


do Hino do Democrata Rosenberg Petersen afirma que:
O Pastoril é um time que até hoje tem uma enorme torcida aqui
em Governador Valadares, e pra cidade seria melhor fazer voltar
o Pastoril. Isto porque toda cidade tem que ter no mínimo um
time para fazer rivalidade, da mesma forma que tem o Atlético
e Cruzeiro, e também o Internacional e Grêmio (...) Se Gover-
nador Valadares conseguisse que o Pastoril voltasse, isso aqui
seria “um trem de doido”. Seria melhor e a torcida iria dobrar
em campo, principalmente na época de um clássico. Nos jogos
Pastoril X Democrata era um clássico como Cruzeiro X Atlético.
Seria muito bom pra cidade.8

O Sr. Jorge Carvalho, ex-atleta de futebol do Esporte Clube Demo-


crata, atuou por essa agremiação esportiva nos anos de 1956 a 1964. Car-
valho afirma que nesse período o clube ainda não tinha as arquibancadas
– que foram construídas entre 1962 e 1963 – e que “o campo não com-
portava o número de torcedores. A população considerava os jogos do
Pastoril X Democrata um clássico. E a torcida era empolgada mesmo”.9
Entendemos que o Clube Atlético Pastoril, inicialmente partícipe
de um sistema de controle social no que diz respeito à vila operária,
configurou-se também como um instrumento de sociabilidade de signi-
ficativa importância, tal como ocorreu em outras situações que envol-
viam a relação entre cidades/clubes/empresas do país. O CAP encerrou
suas atividades no início da década de 1970, e ainda neste início do
século XXI, é mais lembrado do que a própria empresa à qual pertencia,

7 Depoimento do radialista Sr. Luiz Alberto Coelho Teixeira, colhido no dia 10/12/2007.
8 Depoimento do Sr. Rosenberg Petersen colhido em 14/08/2007. O músico nos informa que o
Hino do Democrata foi escrito no ano de 1978 e gravado em 1980.
9 Depoimento do Sr. Jorge Carvalho (ex atleta do Esporte Clube Democrata), colhido 15/08/2007.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 167


conforme nos informam alguns dos entrevistados que contribuíram para
nossa pesquisa. Em Governador Valadares, o futebol praticado pelo CAP
dentro da vila operária, e a rivalidade deste clube com o Esporte Clube
Democrata, concorreram para uma maior influência e presença dessa
atividade esportiva no cotidiano da cidade.
Nos centros urbanos em crescimento nas diversas regiões do país,
o fenômeno da massificação do futebol se manifestou, e é algo que está
ligado ao interesse dos meios de comunicação. Eles passaram a dedi-
car gradativamente um espaço mais amplo para notícias referentes ao
futebol. O ano de 1950 foi caracterizado pela chegada das imagens te-
levisivas no país, bem como pela difusão dos diferentes meios de comu-
nicação de massa. Com a ampliação de recursos para a divulgação da
prática futebolística, esse esporte atingia maiores proporções levando-o
à sua condição de manifestação da cultura popular urbana.
O projeto de construção da nacionalidade, explorando também
o futebol, e empreendido pelo governo federal (que teve início na
década de 1930), contava com programas de rádios, publicação de
jornais e revistas para esta construção, tornando-se mais consistente
com o advento da televisão. Um aspecto relevante e associado a esta
questão, é que no ano de 1950, o Brasil foi pela primeira vez, sede do
Campeonato Mundial de Futebol.
Na medida em que os anos avançavam, destinava-se um espaço
cada vez maior às notícias relacionadas ao esporte. Esta condição foi sen-
do gradativamente ampliada, sobretudo durante a realização da Copa
do Mundo no país. Além de jornais e revistas que abordavam assuntos
relacionados também aos esportes, foram criados vários periódicos, cuja
preocupação restringia-se exclusivamente à prática esportiva. De fato, a
década de 1950 significou um dos marcos mais importantes da trajetó-
ria do futebol brasileiro (SILVAd, 2006), incluindo-se aí a conquista do
primeiro campeonato mundial de futebol em 1958, na Suécia.
O futebol foi efetivamente compreendido como uma manifes-
tação popular, e que fazia parte dos hábitos de diferentes camadas so-
ciais. Ele simbolizava a fusão entre elas, o que também lhe conferia
um significado de nacionalidade. Os debates relacionados aos símbolos
de unidade nacional, iniciados na década de 1930, atingiram maiores
dimensões justamente na década de 1950, período em que a idéia de
civismo atingia proporções ainda mais amplas no Brasil.

168 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Tal como ocorreu nas diversas cidades do país, em Governador
Valadares a imprensa escrita também cobria as notícias relacionadas
ao futebol, como, por exemplo, o desempenho da seleção brasileira, e
dos demais clubes de reconhecimento nacional. Além disso, havia um
espaço destinado às atuações do Clube Atlético Pastoril e do Esporte
Clube Democrata. Esses dois clubes tiveram um papel fundamental
para que houvesse a incorporação da prática futebolística ao cotidia-
no da cidade. A partir de 1958, ano em que foi fundado o Diário do
Rio Doce, as colunas esportivas divulgavam notas sobre o Pastoril e o
Democrata, conferindo-lhes a importância que ambos ocupavam no
imaginário futebolístico da cidade.
Nas décadas de 1940 a 1960, o Esporte Clube Democrata dis-
putou campeonatos amadores confrontando-se com clubes de Minas
Gerais, da Bahia e do Espírito Santo. A boa performance nesses jo-
gos fez com que o clube recebesse denominações como “Expresso do
Vale” e “Time do Olé”.
1962 e 1963 o Time do Olé e o grande ataque atômico
Este time conseguiu grandes vitórias, chegando a ficar 22 jogos
invictos perdendo a invencibilidade para o Bahia , que fora neste
ano campeão da Taça Brasil; o Democrata perdeu de 1 a 0.
O famoso time do Olé conseguiu estes principais resultados:
Democrata 4 X Americano de Campos 1; Democrata 3 X Demo-
crata de Sete Lagoas 1; Democrata 3 X Democrata de Sete Lagoas
2; Democrata 3 X Atlético Mineiro 1; Democrata 8 X América de
Caratinga 1; Democrata 8 X América de Teófilo Otoni 2 ; Demo-
crata 5 X Comercial de Aimorés 2.
O time do Olé foi denominado com esse apelido porque vencia
fácil seus adversários e depois dos 30 minutos do segundo tempo
dava um verdadeiro Olé nos seus adversários.(...)10

Até o ano de 1963 o espaço no qual o Esporte Clube Democrata


treinava e fazia seus jogos em Governador Valadares, era conhecido
apenas como “o campo do democrata”. De 1932 a 1940 o campo
localizava-se na Rua São Paulo, depois passou para a Praça João Paulo
Pinheiro (nas proximidades da Estação Ferroviária) e no ano de 1949
foi transferido para a Rua Osvaldo Cruz, onde permanece até o início
deste século. A mudança do campo para a Rua Osvaldo Cruz ocorreu

10 Cf. Edição Comemorativa dos 60 anos do Esporte Clube Democrata. Jornal Diário do Rio
Doce. 12-02-1992. p.5.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 169


devido a uma permuta feita com a Prefeitura Municipal de Governa-
dor Valadares. De acordo com Carvalho, “a Prefeitura precisou do
terreno localizado na Praça João Paulo Pinheiro, e então foi feita uma
substituição pela área localizada na Rua Osvaldo Cruz.”11 Nesse último
local em que foi instalado o agora estádio do Democrata, as pessoas
já praticavam esportes (principalmente o futebol), antes mesmo de
serem construídas as arquibancadas. Sobre esse aspecto vale ressaltar
o que disse Petersen:
O campo do Democrata era rodeado apenas por eucalipto. Não
tinha essa arquibancada e não tinha nada. Eu vivia ali, antes mes-
mo de participar daquelas escolinhas[ de futebol]. Então no local
era apenas o campo, uma parte de Valadares onde já se praticava
esportes brincando.12

No ano de 1964 ocorreu a estréia do Esporte Clube Democrata


como time profissional no campeonato mineiro. O clube estava sob
a presidência do Sr. José Mamoud Abbas, que o assumiu no ano de
1960. Nesse período, o presidente do clube substituiu toda a ilumina-
ção do estádio, bem como deu início à construção das arquibancadas
de concreto. Em 1963 houve a inauguração do Estádio do Democrata,
recebendo o nome de “José de Magalhães Pinto”, então Governador do
Estado de Minas Gerais. Em 1977 o Estádio passou a se chamar José Ma-
moud Abbas, em homenagem ao ex-presidente que ocupava tal cargo
no momento da inauguração do Estádio.13
Em 1981, o Democrata conquistou o título de campeão da Taça
Minas Gerais. No decorrer dessa década conseguiu significativas vitórias
contra o Clube Atlético Mineiro e o Cruzeiro Esporte Clube, principais
agremiações de futebol de Minas Gerais.
Em 1981 - No Mineirão- Democrata 1 X Atlético 0. Em 1994
Democrata 1 X Atlético 0, em BH. No campeonato mineiro de
1984, pela 6a rodada do 1o turno, o Democrata venceu o Cru-
zeiro, aqui em Valadares, de 3 a 0 com gols de Paulo Roberto (2)
e Jairo no dia 8 de julho de 1984.14

11 Depoimento do Sr. Jorge Carvalho colhido em 15/08/2007.


12 Depoimento do Sr. Rosenberg Petersen colhido em 14/08/2007.
13 Cf. Edição Comemorativa dos 60 anos do Esporte Clube Democrata. Jornal Diário do Rio
Doce, 13-12-1992.
14 Cf. Edição Comemorativa dos 60 anos do Esporte Clube Democrata. Jornal Diário do Rio
Doce. 13-02-95. P-6.

170 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


O fenômeno de formação das Torcidas Organizadas, ocorrido es-
pecialmente nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo no limiar da
década de 1970, também pôde ser constatado em Governador Valada-
res na década seguinte. Foram várias as torcidas criadas como a Pantera
Cor de Raça (essa é a única torcida que tem sede, a qual está localiza-
da nas dependências do próprio estádio do Esporte Clube Democrata),
Pandemônio, Panterões da Fiel, GV Panter, Panter Gole, dentre outras.15
A partir da profissionalização oficial do futebol (na década de 1930),
ocorre uma mudança na postura dos torcedores que passaram a “exigir”
melhores resultados dos seus clubes. De acordo com Toledo, “Por volta
da metade da década de 70 as Torcidas Organizadas já assumiam um
papel de pressão política diante dos times”. (TOEDOb, 1996:27)
Antes mesmo de ser formada a primeira torcida organizada, já se
notava um grande interesse de torcedores pelos jogos do Democrata.
De acordo com Rosenberg Petersen, “a paixão dos torcedores pelo clu-
be foi sempre com a mesma intensidade, o que ocorreu foi que na me-
dida em que os anos avançavam a torcida aumentava cada vez mais em
quantidade de pessoas”.16 Nessa perspectiva, uma característica impor-
tante do Esporte Clube Democrata, e que torna legítima a sua influência
no cotidiano da cidade de Governador Valadares, diz respeito ao fato
de que este clube possui uma das torcidas mais vibrantes e empolgantes
do interior mineiro. O desempenho da torcida em dias de jogos, com
seus “gritos de guerra”, os cantos, e as batucadas, é considerado como
“um espetáculo à parte” durante as partidas, o que pode inclusive inter-
ferir nos seus resultados.
O ex-atleta Darcy Menezes, que disputou alguns campeonatos jo-
gando pelo Democrata na década de 1980, afirma que a força da torcida
era tão grande que “quando o clube jogava em casa, dificilmente perdia
o jogo”.17 No entanto, da mesma forma que a torcida empolga o time, ela
também “exige” bons resultados nas partidas. Sobre esse aspecto, o Sr.
Almyr Vargas, ex-presidente do Esporte Clube Democrata ressalta que:
A torcida do Democrata não é diferente de nenhuma torcida, o
que ela quer é vitória, é conquista. A torcida quer o ego dela sem-

15 Cf. Edição Comemorativa dos 60 anos do Esporte Clube democrata. Jornal Diário do Rio Doce.
13-02-95.p-3.
16 Depoimento do Sr. Rosenberg Petersen colhido em 14/08/2007.
17 Depoimento do Sr. Darcy Menezes colhido em 11/12/2007.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 171


pre satisfeito, sempre num crescente. Se o ego dela vai para o bu-
raco, ela também faz um papel de como se estivesse indo também
pro buraco. Nesse caso ela reage, briga e agride. E isso acontece
com qualquer torcida, não tem nenhuma que é pior ou melhor.
Agora é bom que se diga, a torcida do Democrata é altamente
positiva quando ela está na posição de apoio ao Democrata. A
torcida sempre deu prazer ao Democrata, sempre participou ati-
vamente, e nunca nos deu trabalho, ela sempre nos ajudou.18

Além das questões de cunho político e social que estiveram in-


trínsecas na trajetória da prática futebolística no Brasil (inclusive con-
siderando-se o momento de sua implantação até os períodos mais re-
centes), a questão econômica também deve ser ressaltada. A atividade
futebolística no interior das vilas operárias, no início do século XX, pos-
sibilitou a inserção de atletas de origem humilde em vários times, moti-
vando a própria profissionalização oficial do esporte. Supomos que este
fenômeno exerceu um papel fundamental na divulgação do futebol em
diferentes regiões do país.
Neste sentido, vários atletas buscavam/buscam no futebol profissio-
nal uma perspectiva de ascensão econômica/social. Além disso, ser um
jogador de futebol passa, muitas vezes, a idéia de poder proporcionar
uma maior visibilidade ao atleta em diferentes círculos sociais. Darcy Me-
nezes, que jogou pelo Cruzeiro Esporte Clube na década de 1970, e pelo
Esporte Clube Democrata no início da década de 1980, afirma que:
Eu joguei no Cruzeiro que é um grande clube, e joguei também
no Democrata que é um time que dá para você aparecer. De-
pendendo daquilo que você mostra jogando, você continua man-
tendo a aparência na mídia, e então eu tive isso. Então eu me
orgulho porque mesmo depois de ter parado, e já com 58 anos,
qualquer lugar que eu passo sempre tem alguém que me conhe-
ce e me cumprimenta, e então isso pra mim é muito gratificante.
E aqui em Governador Valadares e região, quando eu chego em
qualquer lugar eu sou bem vindo e tenho as portas abertas. E eu
acho muito gratificante porque o pessoal sempre vem me pergun-
tar, principalmente sobre a época do Cruzeiro (...)19

Quanto à perspectiva de se obter uma ascensão social e reconheci-


mento popular por meio do futebol, o ex-atleta Gilmar Estevão afirma que:

18 Depoimento do Sr. Almyr Vargas colhido no dia 11/12/2007.


19 Depoimento do Sr. Darcy Menezes, colhido em 11/12/2007.

172 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Desde criança eu já pensava em ser um jogador de futebol. Eu
tinha ídolos e sempre fui torcedor do Clube Atlético Mineiro. En-
tão isso veio desde cedo, sempre pensando em conseguir ser um
jogador. (...) Apesar de não ter passado nenhuma dificuldade em
termos de alimentação, eu vim de uma família muito humilde
lá de Belo Horizonte. Então quando eu tive a oportunidade de
ser um jogador profissional, eu percebi que por esse caminho eu
podia conseguir uma vida melhor pra mim e pra minha família.
Porque eu não consegui me formar e ainda faltava um ano para
eu terminar o 2o grau ainda. (...) E não dava pra conciliar o fute-
bol com os estudos. (...) Então quando eu vi essa oportunidade
única de conseguir alguma coisa na minha vida, foi bom demais.
E também socialmente foi muito bom.(...)20

No ano de 1991, o Esporte Clube Democrata conquistou o título


de vice-campeão mineiro, o que possibilitou a classificação do clube
para a Copa do Brasil no ano seguinte. Além disso, o artilheiro do cam-
peonato mineiro foi Gilmar Estevão, que jogava pela equipe do Demo-
crata. Após atuar na agremiação esportiva de Governador Valadares,
nos anos de 1989, 1990 e 1991, Estevão teve a oportunidade de ir
para o Cruzeiro Esporte Clube, depois para o São Paulo Futebol Clube.
Disputou o Campeonato Brasileiro de Futebol, a Taça Libertadores da
América, e, posteriormente, foi jogar na Arábia Saudita e em Portugal.
Sobre a sua relação com o Democrata, ele nos diz que
A minha relação com o Democrata é muito forte e vai continuar
sempre assim, porque esse clube abriu as portas pra mim. Me
ajudou na vida profissional e também social, e até mesmo em
termos de bens materiais.(...) Porque com a minha trajetória aqui
eu consegui vôos maiores(...) 21

Certamente o título de vice-campeão mineiro de futebol conquis-


tado pelo Democrata trouxe uma maior visibilidade para a cidade de
Governador Valadares e região. Para além dessa questão, o ex-presiden-
te do clube, Sr. Almyr Vargas, afirma que a influência da agremiação
esportiva no cotidiano da cidade contribui para uma melhoria na socia-
bilidade dos habitantes.
(...) Todo e qualquer governante que se preze, e que tenha um pou-
quinho de visão , deve ter em mente que uma das primeiras coisas

20 Depoimento do Sr. Gilmar Estevão, colhido em 27/08/2007.


21 Depoimento do Sr. Gilmar Estevão, colhido em 27/08/2007.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 173


a se investir é no esporte. A coisa mais barata que existe para a co-
moção de uma comunidade, de uma cidade, de um país, é o fute-
bol. Na época em que o Democrata foi vice-campeão mineiro, em
todos os lugares que chegávamos, eu e amigos particulares, sempre
paravam a gente para perguntar sobre o Democrata. (...) Então é
o veículo de publicidade mais barato e que mais dá prazer. E nós
temos um outro dado muito importante. Nós pedimos ao delegado
de polícia que fizesse uma pesquisa sobre a violência na cidade. E o
resultado foi que , quando o Democrata jogava na cidade, o índice
de criminalidade e de bagunça diminuía. Então o esporte envolve
essa parte da segurança e do bem estar da família, e isso é um dado
muito importante. Principalmente no nosso país, que deixa muito a
desejar em termos de educação, se o cidadão não tem o que fazer,
ele vai sair com um instinto bestial, que é a agressão, que é a farra.
E se tiver um esporte para ele passar o tempo dele, ele se considera
também no direito de assistir o futebol e participar dele. (...)22

A importância e a influência do Esporte Clube Democrata para a


cidade de Governador Valadares nos parece ser algo inequívoco. Supo-
mos não ser um exagero ou uma precipitação sugerir que esta agremia-
ção configura-se como um dos mais marcantes instrumentos de divul-
gação da cidade, razão pela qual se verifica uma evidente identificação
entre o clube e a cidade.
A afirmativa do ex-atleta (e bastante reconhecido no universo do
futebol) Darcy Menezes, ilustra, com propriedade, uma das muitas in-
terpretações que poderia ser conferida ao Esporte Clube Democrata e
sua relação com a cidade de Governador Valadares. O próprio Darcy
Menezes, oriundo do interior do Rio Grande do Sul, optou por construir
sua vida na cidade. Para o ex-atleta, o futebol cumpre, inclusive, um
papel social. Segundo ele,
Eu acho o democrata importantíssimo porque ele é um digno
representante da cidade, ao mesmo tempo em que o clube faz
um elo entre a sociedade, o esporte e a cultura. Na cidade de
Governador Valadares e região, como também em vários outros
lugares, o Democrata é conhecido como um time de futebol, um
time formador de craques e de homens. O clube tem uma cate-
goria de base que serve de exemplo para que os meninos, futura-
mente, possam seguir a carreira profissional, e, com isso, evitar as
ruas, as drogas e o fumo. (...) Em qualquer modalidade a pessoa

22 Depoimento do Sr. Almyr Vargas, colhido em 28/11/2007.

174 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


tem que ser 100% atleta. Se ele quiser ser um vencedor, ele tem
que ser 100% atleta. Então o atleta que consegue essa conscienti-
zação, não vai para as drogas, não vai para o fumo e não vai para
a noite. Então se não se tornar um grande atleta, ele torna-se um
grande homem. 23

Conforme exposto ao longo deste texto, o processo de construção


e reformas dos grandes centros urbanos esteve associado à idéia de mo-
dernização do país. Concomitantemente a estes dois fenômenos, houve
a difusão da prática de esportes como um dos símbolos da urbaniza-
ção. Neste cenário, o futebol configurou-se como esporte inicialmente
praticado preponderantemente pelas camadas sociais mais abastadas,
porém transformou-se, de maneira relativamente súbita, numa manifes-
tação também de grande alcance popular. A partir daí, a prática futebo-
lística do início do século XX, passou a movimentar e atrair diferentes
segmentos e camadas sociais.
A inserção do futebol no cotidiano de significativa parcela da popu-
lação circunscrita aos grandes centros urbanos como as cidades do Rio de
Janeiro e/ou São Paulo, mas também às cidades do interior do Brasil, con-
correu para que o esporte adquirisse um novo significado, a saber, o de ma-
nifestação da cultura urbana local e regional. Fundado em 1932, o Esporte
Clube Democrata iniciou sua trajetória antes da própria emancipação polí-
tico-administrativa da cidade de Governador Valadares. A influência dessa
agremiação esportiva no cotidiano da cidade é algo inequívoco, o que nos
leva ao entendimento de que o Esporte Clube Democrata ocupa um dos
espaços dentre os símbolos da identificação de Governador Valadares.

Depoimentos orais
1 - Sr. Almyr Vargas, Presidente do Esporte Clube Democrata entre os
anos de 1980 e 1991.
2 - Sr. Darcy Menezes, ex-atleta de vários clubes profissionais de futebol,
dentre eles o Cruzeiro Esporte Clube e o Esporte Clube Democrata
3 - Sr. Gilmar Estevão, ex-atleta de vários clubes profissionais de futebol,
dentre eles o São Paulo Futebol Clube e o Esporte Clube Democrata.

23 Depoimento do Sr. Darcy Menezes colhido em 11/12/2007.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 175


4 - Sr. Jorge de Carvalho, ex-atleta do Esporte Clube Democrata, atuan-
do entre os anos de 1956 e 1964.
5 - Sr. Luiz Alberto Coelho Teixeira, um dos profissionais da impressa
de Governador Valadares que mais acompanhou a trajetória do Espor-
te Clube Democrata
6- Sr. Rosenberg Petersen, autor do Hino do Esporte Clube Democrata,
escrito em 1978, e gravado em 1980.

Fontes impressas

1 - Edição Comemorativa dos 60 anos do Esporte Clube Democrata. 12/02/1992.


2 - Jornal Diário do Rio Doce, 1958 a 2006.

Instituições pesquisadas

1 - Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte/MG.


2 - Hemeroteca do Núcleo de Estudos Históricos e Territoriais – NEHT/
Curso de História da Universidade Vale do Rio Doce – UNIVALE.

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TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 177


178 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
Além do tombamento: a proteção do patrimônio
cultural como exercício do direito à cidade
Cristiana Maria de Oliveira Guimarães1

G
overnador Valadares é uma cidade de Minas Gerais, lo-
calizada na porção leste do estado, especificamente no
Vale do Rio Doce. Margeada pelo rio Doce, sua história
e desenvolvimento é devedora desta condição (Figura 1). Como,
em menor grau, de sua posição geográfica no entroncamento tri-
plo conformado pelas Rodovias Rio-Bahia , BR 116 e a BR 381
com a Ferrovia Vitória-Minas.

Figura 1: Vista aérea de Governador Valadares (Distrito-sede)


Fonte: Google Earth, Digital Globe, Image, 2008.

A bacia do Rio Doce foi uma das últimas regiões ocupadas em


Minas Gerais. No auge da mineração, em Minas Gerais, a Coroa Por-

1 Doutora em Ciências Humanas: sociologia e política, pela FAFICH/UFMG, Mestre em Arquitetura


e graduação em Arquitetura e Urbanismo, os dois últimos pela Escola de Arquitetura da UFMG.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 179


tuguesa temerosa do contrabando através das águas do rio Doce, até
o mar, no Espírito Santo proibiu a ocupação dessa área, conhecida
como Sertões do Rio Doce. Entretanto, quando os veios auríferos se
esgotaram, a proibição da ocupação perdeu seu sentido, tornando-se,
ao contrário, interessante ao Estado. Inicia-se o processo inverso, o de
incentivo à ocupação dos Sertões do Rio Doce, do qual fazem parte
a Guerra Ofensiva aos Botocudos e os incentivos financeiros e fiscais
aos interessados em se fixar na região (BORGES, 1988; ESPÍNDOLA,
1999; 2005). Entretanto, essas iniciativas não alcançaram os resulta-
dos pretendidos. Apenas na segunda metade do século XIX, Figueira,
posteriormente Governador Valadares, transforma-se em entreposto
comercial de envergadura considerável. O rio Doce, navegável do po-
voado até a foz, possibilitou sua consolidação como porto de canoas e
troca de mercadorias (SIMAN, 1988).
Nos primeiros anos da República, a região recebe um grande
contingente de migrantes em função da construção da ferrovia Vitória-
Minas, então chamada, Vitória-Diamantina. Entre 1904 e 1907, a mo-
vimentação de seus trilhos encontrava-se próxima de Figueira do Rio
Doce, então distrito do município de Peçanha. A instalação da ferrovia
e a inauguração, em 1910, da estação ferroviária de Figueira trouxeram
efeitos significativos, como a consolidação da sua posição de entreposto
comercial; a vinda de migrantes da própria região do rio Doce, do Espí-
rito Santo, da Bahia e de alguns estrangeiros de nacionalidade italiana,
espanhola e siríaca2 e o aumento da importância econômica da cultura
do café e da extração de madeira para a região (SIMAN, 1988).
Governador Valadares cresceu rapidamente na década de 40 e
se destacou, nos anos 50, como um dinâmico centro regional. Entre
1940 e 1950 a população passou de 5734 para 20357 habitantes, e na
década seguinte saltou para a espetacular cifra de 70494 habitantes. A
cidade se beneficiou do crescimento da economia regional, passando
a exercer diversas funções: primeiro tornou-se pólo de beneficiamento

2 A construção da estrada de ferro é um dos fatores relacionados à “tradição migratória”. Em


um primeiro momento, a região recebia imigrantes; a partir da década de 60 a região passou
a exportar mão-de-obra. Hoje essa é uma das suas características distintivas; seus aspectos
positivos e negativos estão sendo recentemente estudados. Cf. SIQUEIRA, Sueli. Migrantes e
empreendorismo na microregião de Governador Valadares: sonhos e frustrações no retorno.
2006. Tese (Doutorado em Ciências Humanas: sociologia e política) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Belo Horizonte.

180 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


e distribuição de produtos regionais (mica, pedras semipreciosas, ma-
deira, couro, cereais e outros); segundo, passou a ser um importante
centro de pecuária,com um dos maiores rebanhos do estado; terceiro,
como centro comercial importante (ESPÍNDOLA, 1999).
Nas décadas de 60 e 70, um quadro de estagnação econômica
substitui o boom anterior. Evidencia-se a fragilidade da economia
baseada no extrativismo - a mica perde sua importância no mer-
cado mundial e o esgotamento das reservas florestais provocou o
fechamento de diversas serrarias. O desmatamento favoreceu o sur-
gimento de grandes extensões de capim colonião, contribuindo para
que a pecuária assumisse o protagonismo nas atividades econômicas
municipais. Essas mudanças repercutem na oferta de emprego, ao
gerar uma perda na absorção de mão-de-obra. Isso se agrava com o
processo de absorção das pequenas propriedades pelos grandes pro-
prietários que utilizam principalmente, formas de exploração extensi-
vas, absorvendo pouca mão-de-obra. Na década seguinte, a situação
de estagnação econômica recrudesce, acompanhando os aconteci-
mentos nacionais e internacionais. À recessão somaram-se algumas
especificidades locais, como o contato precoce com a comunidade
americana e a constituição de uma intensa rede de migração, conso-
lidando uma das características valadarenses mais marcantes no con-
texto atual – o grande número de migrantes que vão tentar a sorte no
exterior, principalmente nos Estados Unidos. O mencionado quadro
de estagnação econômica permanece na década de 90 e início dos
anos 2000 (ESPÍNDOLA, 1999; SIQUEIRA, 2006).
Em nossos dias, a cidade3 busca outras opções de desenvolvimen-
to e atividades econômicas. Nesse sentido, tem destaque o empenho
em sua constituição como pólo de serviços médicos e educacionais. As
atividades ligadas ao turismo completam o quadro dos novos interesses
e potencialidades fomentados na construção de uma nova vocação para
a cidade. Nesse contexto, aparecem localmente, o interesse e a preo-
cupação em preservar seu patrimônio cultural.
***

3 Este texto trata apenas do Distrito-sede do município de Governador Valadares. Além deste,
compõem o município os distritos de Alto de Santa Helena, Baguari, Brejaubinha, Chonim,
Chonim de Baixo, Derribadinha, Floresta, Goiabal, Penha do Cassiano, Santo Antônio do Pon-
tal, São José do Itapinoa, São Vítor, Vila Nova.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 181


Atualmente, vimos utilizando o termo patrimônio cultural, de modo
corriqueiro como se seu significado só possibilitasse uma interpretação, de
compreensão natural, livre de conotações políticas e culturais. Como o ter-
mo e seu significado são exatamente o contrário disso, começamos pela ex-
planação de nossa posição sobre ele. Esta está relacionada à compreensão
do patrimônio como uma construção simbólica, um constructo.
A assunção deste conceito tem reverberações. Se o patrimônio
cultural é uma construção simbólica, alguém ou um grupo é responsável
por isso. Há um momento de escolha e decisão sobre o que será ou não
considerado patrimônio. Ele não é dado a priori. Essa escolha tem mo-
tivos e intenções – a construção do patrimônio é um processo histórico,
localizado no tempo e espaço, logo um processo político e cultural.
Propomos, agora, uma reflexão sobre essa escolha. Nosso argu-
mento é que os bens identificados como patrimônio não deveriam ser
apenas os excepcionais, mas aqueles capazes de representar, de modo
mais amplo o possível, no nosso caso, para a cidade, sua identidade.
Muitas vezes, o que estamos, aqui, sugerindo que fosse identificado
como patrimônio são hábitos que de tão costumeiros são despercebi-
dos como fundamentais. Em Governador Valadares, temos um exem-
plo bem característico: o andar de bicicleta (Figura 2). Sua proteção,
logicamente, não deve passar por medidas como o tombamento, mas
pelo seu incentivo e manutenção, o que poderia ser feito, a partir, da
melhoria e aumento das redes de ciclovias.
Chegamos, com essa ilustração, a outro ponto de nossa argumenta-
ção. Acreditamos que políticas e medidas de proteção do patrimônio para
serem legítimas e eficazes precisam estar baseadas no uso e na sua apro-
priação pela população. Uma analogia aos nossos patrimônios privados é
útil para explicar, de modo bastante simplificado, essa posição. Nossos
patrimônios privados, embora cuidados e preservados, às vezes até melho-
rados, são utilizados de modo cotidiano. De um modo ou de outro, estão
na dinâmica da nossa vida. Pensemos em nossa casa. É um imóvel com um
determinado valor de mercado; é nosso lar, com vários aspectos simbólicos
e afetivos. No entanto, não cogitamos deixá-la guardada, sem uso, para
que seja protegida. Diferente disso é o uso que agrega, diariamente, outros
valores, sempre ressignificados ao longo tempo, invalidando a decisão so-
bre qual deles é o mais importante ou original. Está sempre atual, vivida e
imprescindível ao cotidiano, e por isso, cuidada e preservada.

182 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Figura 2: Fotografia da I Corrida Oficial Medalha de Ouro.
Fonte: Arquivos CEDAC/UNIVALE.

Evidentemente, uma casa é do âmbito do privado, do patrimô-


nio particular e familiar. O patrimônio da cidade tem outro âmbito - o
coletivo. Mesmo com as ressalvas necessárias, a caricatura é válida para
dizer que o patrimônio de todos deve ser cuidado e preservado, mas
isso não significa a sua retirada da vida cotidiana. Propomos que ele seja
inserido na complexa equação urbana, como mais uma de suas variá-
veis, tal como o são o trânsito, a moradia, a segurança pública. Trata-se
de compreender o patrimônio cultural como um dos direitos urbanos; e
assim, como parte fundamental do exercício do direito à cidade.
Antes de aprofundarmos esta proposta - pensar o patrimônio cul-
tural como parte do direito à cidade -, precisamos esclarecer as posições
teóricas que sustentam essa idéia, ainda que sob o risco de cometermos,
pela exigüidade das colocações, abreviações não desejadas.
Reconhecemos na esteira de autores como SANTOS (1996,
2005), SOJA (1993), LEFEBVRE (2001) que a espacialidade é socialmen-
te produzida, e como a própria sociedade, existe em formas substan-
ciais – espacialidades concretas - e como um conjunto de relações entre
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 183
indivíduos e grupos. O espaço socialmente produzido deve, então, ser
distinguido do espaço físico da natureza material e do espaço mental da
cognição e representação. O espaço é formado e moldado a partir de
elementos históricos e naturais, sendo esse um processo político. Logo,
o espaço é político e ideológico.
É nesse espaço político e ideológico que a vida se realiza em
sua concretude. Em outras palavras, a reprodução da vida é mate-
rializada no espaço, sendo ele interventor nessa mesma reprodução.
Assim sendo, é necessário que determinadas situações e caracterís-
ticas advindas da materialidade espacial estejam disponíveis e aces-
síveis a todos, para que desse modo, esteja também disponível a to-
dos, as condições necessárias para realizar a produção e reprodução
da vida. Essas, como aqui colocado, ultrapassam a idéia da simples
subsistência. Está incluída, no grupo do necessário à vida, a possibili-
dade de intervir e modificar a própria construção do espaço, no qual
a vida se materializa. Garantir de modo ampliado, o uso da cidade,
a possibilidade futura de novas apropriações ou ainda a modificação
dessas faz parte do exercício do direito à cidade, tal como proposto
por Lefebvre (2001),
uma forma superior de direitos: direito à liberdade, à individua-
lização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra
[à atividade participante] e o direito à apropriação [bem distinto
do direito à propriedade] estão implicados no direito à cidade
(LEFEBVRE, 2001, p. 135).

Voltando ao conceito do patrimônio cultural, tal como aqui apre-


sentado, temos que esse é o resultado das diferentes formas de apropria-
ção da cidade pelas pessoas, ao longo de suas trajetórias. Pode-se dizer,
então, que a proteção do patrimônio cultural é – ou deveria ser – a prote-
ção dessas formas de apropriação. Concluímos, então, que garantir o am-
plo acesso ao patrimônio cultural é parte do exercício do direito à cidade,
e - esta é a nossa defesa – como tal, ele deveria ser compreendido.
***
Pensemos, agora, no conjunto de bens protegidos em Gover-
nador Valadares. São eles: o Antigo Templo Presbiteriano, a Compa-
nhia Açucareira do Rio Doce, a Fachada da Antiga Cadeia Pública, as
Fachadas da Antiga Sede Dos Correios e Telégrafos, a Venda do Seu
Margarido, a Argola de Amarrar Solípedes, o Cadeiral do Júri, Maria
184 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
Fumaça e Painel Cubista do Edifício Helena Soares, e por fim, o Com-
plexo da Santa e o Pico da Ibituruna.
Os cinco primeiros integram o rol dos bens imóveis. São bens
de uso público, alguns de propriedade pública, outros de ordem priva-
da, mas não familiar, como aqueles pertencentes às Igrejas. A exceção
que confirma a regra acontece em dois planos: o único bem familiar, a
Venda do Seu Margarido, é também o único exemplo de resistência às
restrições impostas pela política preservacionista local. Além de vários
protestos, o tombamento e suas reações a esse incorporam um comple-
xo processo judicial.4 O resultado mais visível das polêmicas é o péssimo
estado de conservação em que se encontra (Figura 3).

Figura 3: Fotografia da Venda do Seu Margarido.


Fonte: Acervo da autora, 2007.

Em todos os casos acima, os motivos para o tombamento são ex-


plicados por aquilo que representam para a história da cidade. É im-

4 Sobre a polêmica em torno do tombamento da Venda do Seu Margarido confira: GUIMARÃES,


C. M. O. O Patrimônio Cultural de Governador Valadares (MG): algumas reflexões. In: Revista
CPC USP, nº 05, novembro 2007. Disponível em <http://www.usp.br/cpc/v1/php/wf07_revis-
ta_interna.php?id_revista=9&id_conteudo=29&tipo=5> Acesso em abril de 2008.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 185


portante fazermos a ressalva, que a história da cidade é, assim como o
patrimônio cultural, uma construção simbólica, localizada no tempo e
no espaço, com intenções e motivações políticas e ideológicas. Assim
sendo, o patrimônio cultural e a história da cidade se complementam,
legitimam um ao outro, e ainda, tornam concreto o discurso que ante-
riormente os construiu desta ou daquela maneira.
Já os bens móveis são representados pela Argola de Amarrar Solípe-
des, o Cadeiral do Júri, a Maria Fumaça e o Painel Cubista do Edifício He-
lena Soares. Também nesses casos, a justificativa para o tombamento está
localizada no papel desempenhado na trajetória da vida citadina, tal como
essa é contada. A descrição referente ao Cadeiral do Júri nos mostra isso:
(...) merece ser conservado como símbolo de uma época. Este
mobiliário teve um papel coadjuvante na história jurídica vala-
darense, compondo cenários de históricos e memoráveis jul-
gamentos, sendo ainda hoje, o palco de importantes decisões
judiciais (SEBRAE, 2004)

Vale pontuar, mesmo que brevemente, a inexistência entre os


bens tombados, tanto móveis como imóveis, daqueles que representam
a permanência indígena na região, ou ainda, dos diversos conflitos re-
lacionados à posse de terra que marcaram o local nas décadas de 50 e
60 do século passado.
O Complexo da Santa e o Pico da Ibituruna compõem a catego-
ria dos conjuntos paisagísticos. É importante observar que o Comple-
xo da Santa, conjunto composto pela imagem monumental de Nossa
Senhora e sua capela, encontra-se no ponto mais alto do Pico da Ibi-
turuna, um importante acidente geográfico situado à margem do rio
Doce. Os dois juntos – rio Doce e Pico da Ibituruna - conformam um
forte símbolo identitário e marco da paisagem local. O tombamen-
to municipal do Pico da Ibituruna é, na realidade, a reafirmação do
tombamento anterior realizado em nível estadual, pela Constituição
Estadual de 1989, como conjunto paisagístico. Em outro âmbito, a
questão ambiental, a área do Pico da Ibituruna é contemplada com
outras medidas protecionistas: em nível estadual é classificada como
uma APEE – Área de Proteção Especial Estadual e em nível municipal
foi determinada como APA – Área de Proteção Ambiental, em uma
ação decorrente da política de meio ambiente municipal, através da
Lei Complementar nº 55 de 27 de maio de 2004.
186 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
A compreensão do patrimônio cultural como algo excepcional
à dinâmica urbana justifica a escolha do tombamento como único
instrumento de proteção desses bens, apesar de suas diferenças es-
senciais. Muito se tem discutido e debatido sobre esse instrumento
(CASTRO, 1991; FONSECA, 1997; LERNER, 1987), que no Brasil,
passou a ser identificado como a preservação do patrimônio em si,
configurando um daqueles casos nos quais a parte incorpora o todo.
Não cabe aqui retratar todo esse debate, apenas aproveitamos para
esclarecer nossa posição de que o instituto do tombamento tem ca-
racterísticas e atributos muito precisos, entre os quais altos graus de
excepcionalidade e imutabilidade. Apesar de sua indiscutível vali-
dade, é urgente a contextualização desse instrumento, pois por sua
própria definição, ele não deveria ser aplicado única e universalmen-
te. Contrariamente, esse é o traço principal da política de preserva-
ção do patrimônio realizada em Governador Valadares.
Cabe aqui, comentar outro aspecto. A política de preservação va-
ladarense foi motivada pela existência em Minas Gerais da, já famosa,
Lei Robin Hood5. Essa lei inclui ações referentes à educação, saúde,
agricultura, preservação do patrimônio cultural, nos critérios de cálcu-
lo do repasse da parcela do ICMS devida aos municípios. Essas ações
são avaliadas dentro de critérios previamente definidos e fiscalizados
pelos órgãos competentes. No caso do patrimônio cultural, o Instituto
Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA/
MG – cumpre esse papel. Entre as exigências colocadas pelo IEPHA/MG
estão a existência de uma política municipal de preservação do patri-
mônio cultural e a criação e atuação efetiva de um conselho municipal
de patrimônio cultural. Seguindo essa cartilha, em 2001, foi constituído,
o Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural6, como pedra inaugural
da política preservacionista local. A partir daí, seguiram-se outras inicia-
tivas das quais, destacam-se os já mencionados tombamentos. É impor-
tante ressalvar que de acordo com os critérios estipulados pela Lei Robin
Hood, uma das ações com maior pontuação (e facilidade de execução)
é justamente, o tombamento dos bens.

5 Em Minas Gerais, tornou-se revolucionária a criação e implementação da Lei Estadual 12.040


de 28/12/1995, conhecida como Lei Robin Hood.
6 O Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural – CDPC - foi instituído pelo Decreto Munici-
pal nº 6927 de 19/03/2001 e referendado pela Lei Municipal 4646/1999.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 187


Lembramos aqui, mais uma vez, que o patrimônio cultural
não é um dado natural, mas uma construção simbólica e cultural,
um constructo. Rudemente falando, ele será aquilo que as políticas
responsáveis por sua proteção decidirem que ele seja. Logo, a con-
cretude do patrimônio cultural, seja de um país, cidade ou comu-
nidade é decorrência do modo como teoricamente ele é compre-
endido. No caso de Governador Valadares, a opção nos parece ter
sido pelo viés do excepcional: tanto no que se refere à constituição
do patrimônio oficial, como nos instrumentos e mecanismos esta-
belecidos para sua proteção.
Nesse conjunto de situações, conceitos e valores o patrimônio
cultural fica restrito a uma visão que o transforma em “coisas de ar-
tista e gente letrada”, tal como anunciava o discurso popular ainda
nas décadas de 20 e 30 do século passado, momento em que a po-
lítica de preservação foi sistematizada no Brasil, como já menciona-
do. Como bem expressa o dito popular, grande parte da população
não se sente identificada nem com aquilo que é estipulado como
patrimônio cultural, nem tampouco, com as medidas que visam sua
proteção. Não há a compreensão desse patrimônio cultural como
seu, e conseqüentemente, não há a assunção das restrições que se-
riam realizadas em seu nome, como nos ensina os fatos seguintes ao
tombamento da Venda do Seu Margarido.
Outro exemplo da realidade valadarense reforça nossa hipóte-
se que deixamos muito de lado, ao priorizar como ações de proteção
ao patrimônio, medidas específicas e excepcionais. O mesmo exem-
plo mostra o outro lado dessa moeda: o que se poderia preservar
como identidade e tradições da cidade, caso o patrimônio e sua pro-
teção estivessem alargados à questão urbana como um todo. Falamos
do Bairro Esplanada.
O bairro é tradicionalmente local de moradia das elites, muito
valorizado tanto para o mercado, como simbolicamente. Apresenta
ótimas condições de infra-estrutura, asfalto, abastecimento de ener-
gia elétrica, redes de telefonia, cabo e similares, redes de drenagem
e abastecimento de água. O início de sua ocupação pode ser locali-
zado na década de 50, estando, atualmente, totalmente consolidado
ou até, além disso.

188 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Algumas alterações na Lei de Uso e Ocupação do Solo de 1993
determinaram um aumento no potencial construtivo para cinco bair-
ros7, entre os quais, o Bairro Esplanada. Nesses passou a ser permitida
a construção de até 18 pavimentos por lote, desde que seguidos al-
guns parâmetros específicos, enquanto o padrão do número de pavi-
mentos permitidos para o conjunto urbano fica entre quatro e cinco
pavimentos. Há, inegavelmente, um ganho significativo na possibilida-
de construtiva na região.
As leituras de autores como Santos (1994), Singer (1979), Villaça
(1998), entre tantos outros, nos ensinam que o valor do solo urbano
vai além do valor do solo em si. Como invariavelmente, a infra-estru-
tura e os equipamentos urbanos são distribuídos de modo desigual
nas cidades, os pontos que detêm melhor infra-estrutura e melhores
equipamentos são mais valorizados pelo mercado. Soma-se a isso, a
proximidade de outros pontos importantes na cidade, que também,
infelizmente, seguem a regra já estabelecida de locais melhores e ou-
tros piores. Completam o quadro, duas outras variáveis relacionadas às
possibilidades construtivas. A primeira diz respeito ao potencial cons-
trutivo de cada terreno, ou seja, a quantidade em metros quadrados
que se pode construir. A outra variável corresponde aquilo – ao tipo
de “coisas” - que pode ser construído em cada parte. Vejamos um
exemplo, mesmo que hipotético.
Suponhamos que temos em mão dois terrenos de igual metragem
e condições de topografia e localização. No primeiro, Lote A, é permi-
tida apenas a construção de residências unifamiliares, ou seja, casas, de
no máximo dois pavimentos. No segundo, Lote B, é possível a constru-
ção de residências multifamiliares, com até 18 pavimentos, o que resul-
ta em uma torre de apartamentos, com pelo menos 18 unidades. Não
é preciso matemática elaborada para percebermos que o segundo caso

7 Os outros bairros afetados pela citada determinação da Lei de Uso e Ocupação do Solo são: Vila
Bretas, Lourdes, Vila Mariana, Morada do Acampamento. São bairros (com exceção para o Morada
do Acampamento ou Acampamento da Vale) de ocupação também tradicional, assim como o
Esplanada, mas diferente desse, caracterizada por classes mais populares, classes média baixa e
baixa. As determinações trazem também para essas áreas, um aumento da possibilidade construti-
va. Sabe-se que além da localização, como anteriormente exposto, o potencial construtivo é um
dos fatores mais influentes na conta do valor de cada porção do solo urbano. Em sentido oposto ao
nosso alerta anterior, aumentar o potencial construtivo de áreas menos valorizadas aparece como
um caminho para a melhoria da distribuição dos preços dos terrenos no mapa citadino.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 189


é mais atraente ao mercado construtivo/imobiliário. Do mesmo modo,
não precisamos nos alongar muito para entendermos que, nessa lógica,
a substituição de casas tradicionais por torres de apartamentos é apenas
uma questão de tempo e ativação da economia. Esse processo é ainda
mais rápido quando o local em questão é desejado por todos, como é o
caso do bairro Esplanada.
Algumas abordagens teóricas são possíveis a partir do nosso
exemplo hipotético. Entre essas está o debate sobre a valorização de-
sigual de terrenos particulares, motivada por políticas públicas, ponto
crucial, para o urbano. Contudo, por uma questão de ordem, vamos
deixá-lo para outra ocasião, priorizando aqui, a reflexão ligada ao
tema patrimônio cultural.
No bairro Esplanada, pelo menos em parte desse, ainda pre-
dominam as antigas relações de vizinhança, motivadas pela também
tradicional relação rua/morador baseada na tipologia das residências
unifamiliares. Nessas, o morador ao sair de sua varanda, já está na rua,
o que não acontece nas torres dos apartamentos. No primeiro caso a
rua é extensão de sua varanda ou dos jardins. Não há a intermediação
do elevador, ou ainda, das áreas comuns dos prédios e dos famosos
playgrounds, substitutos modernos das calçadas como local de brinca-
deiras e encontros infantis. Outros costumes, como colocar as cadeiras
à rua, ao fim de tarde, comum há alguns anos, mas já se tornando
raridade, não são exeqüíveis quando se habita as torres de apartamen-
tos. A distância morador/rua aumenta ainda mais, quando os edifícios,
para darem conta das exigências, tanto comerciais, quanto normati-
vas, precisam dispor de um número suficiente de vagas de garagem,
o que é feito pela incorporação para essa finalidade dos primeiros
pavimentos. O resultado é a substituição de ruas vivas, movimentadas,
extensão dos jardins, por ruas esvaziadas, as quais, pela sensação de
insegurança que provocam, giram a roda e tornam-se cada vez mais
esvaziadas, e assim, de fato inseguras.
Outro ponto é a perda de uma ambiência caracterizada pela
pouca densidade e pela significativa existência de quintais e jardins.
Trata-se da substituição de áreas permeáveis por outras impermeáveis,
e ainda, áreas verdes por falta de vegetação. Em uma cidade com altas
temperaturas e sérios problemas de drenagem e enchentes essa troca
acarreta conseqüências além da diminuição da qualidade estética do

190 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


lugar. Conseqüências essas que ultrapassam os limites do bairro e atin-
gem a cidade como um todo.
O leitor desavisado poderia supor estar diante de um quadro de
saudosismo, ou nostalgia exagerada, que desconhece fazer parte das
melhores tradições suas transformações internas. Não se trata disso,
mas de uma tentativa de desnaturalizar o que muitas vezes assumimos
em nosso cotidiano como uma situação sobre a qual não temos ação
ou decisão. É justamente o oposto disso: a cidade é feita e refeita a
cada instante por decisões aqui e ali, cada uma com várias conseqü-
ências, que por sua vez, determinam outras. O que acontece é que
não nos damos conta disso, às vezes pelo imediatismo imposto pelas
urgências do dia-a-dia, outras vezes, por que esse jogo não é explici-
tado como deveria ser.
No caso em questão, o bairro Esplanada, não podemos afirmar
que as transformações – em curso e futuras – são fundadas apenas nas
mudanças próprias à passagem do tempo e novos hábitos. O aumento
da possibilidade construtiva para até 18 pavimentos funciona como um
propulsor para a substituição das residências unifamiliares pelas torres
de apartamentos ou de salas comerciais; modificação que, como vimos,
traz uma série de outras.
Como anunciado, essa problemática não alcançou a política de
patrimônio, mostrando a não amarração de suas ações e propostas
ao planejamento urbano como um todo. Há uma certa indiferença
em relação às possibilidades de somar-se a legislação urbanística, ou
pela reafirmação de suas determinações, ou pela limitação dessas.
Do modo como está colocada em Governador Valadares, a proteção
do patrimônio é rígida para muito poucos e específicos bens, aqueles
tombados, enquanto vários outros, materiais e imaterais, são deixa-
dos a sua própria sorte.
Entre esses, está a Catedral de Santo Antônio. Essa não está incluí-
da entres os bens tombados, e a primeira vista, nem seria mesmo o caso.
Não se trata disso, mas da necessidade de se alargar os mecanismos
de proteção, não daquele patrimônio singular e excepcional, mas de
um outro, constituído pelos os marcos, hábitos e cotidiano vivido, que
fazem da cidade a cidade de Governador Valadares. Recentemente, foi
construída uma torre de apartamentos ao lado da Catedral – literalmen-
te ao lado, em lote vizinho (Figura 4).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 191


Contrariando orientações assumidas desde a Constituição Federal
de 1988 e reafirmadas pelo Estatuto da Cidade8, a política de patrimônio
local está restrita a um âmbito muito específico. As citadas leis determi-
nam que a vivência do patrimônio cultural é parte do direito à cidade e
como tal deve ser tratado e compreendido. Nos dois exemplos vistos até
agora foram deixados de lado instrumentos que poderiam auxiliar na pro-
teção do patrimônio como a limitação de gabaritos, restrições na escala
construída e até diminuição do potencial construtivo de determinados
locais. Isso poderia ser feito a partir da definição de locais específicos que
precisam de maior restrição e limites construtivos para viabilizar a prote-
ção de características ou hábitos, considerados patrimônio cultural. No
nosso caso, a justificativa seria a proteção do patrimônio cultural. Neste
ponto, é preciso esclarecer que reconhecemos que ao abarcar regras do
ordenamento urbanístico, a política do patrimônio entra em uma seara
marcada por grandes conflitos e disputas de poder. Contudo, defendemos
que esse é um jogo que não pode ser evitado, caso o resultado almejado
seja uma cidade melhor e legítima a proteção do patrimônio cultural. Do
modo como tem sido a sua prática em Governador Valadares, isso não
tem acontecido. Vejamos um último exemplo.

Figura 4: Vista da Catedral de Santo Antônio em dois momentos: à esquerda, na


década de 50/60; à direita, em 2010.
Fonte: Arquivos CEDAC/UNIVALE/Acervo da autora.

Governador Valadares é margeada pelo rio Doce, sendo sua ocu-


pação e desenvolvimento devedores desta condição. Na outra margem
do rio, como já visto, está o Pico da Ibituruna. Não é preciso explicar

8 Esse é o nome pelo qual ficou conhecida a lei federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001.

192 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


aos valadarenses como o rio Doce e o Pico da Ibituruna fazem parte
da cidade – não é possível pensá-la sem a existência dos primeiros.
Contudo, a singularidade da paisagem composta pela tríade cidade - rio
Doce - Ibituruna não recebe atenção especial, nem pelas políticas de
patrimônio, nem tampouco, na legislação urbanística9. A dinâmica ur-
bana, incluídas aí suas normas, não está suficientemente embebida da
importância de se manter essa paisagem ao alcance de todos, para que
possa ser vivenciada plenamente.
As normas permitem e a sociedade avaliza, através de sua parti-
cipação no mercado imobiliário – seja como empreendedor ou com-
prador dos empreendimentos – a construção de edificações com ga-
baritos altos, à margem do rio, impossibilitando a sua visibilidade e
vivência. Esses mesmos edifícios altos “levantam” a linha do horizonte
diminuindo, em termos da percepção, o impacto e a presença do Pico
da Ibituruna (Figura 5).

Figura 5: Vista parcial da cidade com a Ibituruna ao fundo, em dois momentos.


À esquerda, década de 50/60; à direita, em 2007.
Fonte: Arquivos CEDAC/UNIVALE/ Acervo da autora.

Trata-se da conformação de uma barreira, à semelhança do que


ocorre em várias orlas marítimas brasileiras. Ali, o mar, aqui o rio Doce,
torna-se privilégio de uns poucos – daqueles que podem pagar por ele.
Falamos da privatização do patrimônio de todos.

9 Sabemos da existência de medidas de proteção isoladas tanto para o Pico da Ibituruna como
para o rio Doce, às vezes, de modo até duplicado. Essas estão relacionadas principalmente a
proteção ambiental. Interessa aqui apontarmos como o conjunto cidade- rio Doce – Ibituruna
não recebe o mesmo tratamento.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 193


Reencontramos o interesse principal deste texto: pensar o patri-
mônio cultural como um dos direitos urbanos. Afinal, para nós, preser-
vá-lo é antes de tudo garantir o usufruto do que é coletivo – a cidade,
suas características, significado e história.

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TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 195


196 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
As redes sociais e a configuração do primeiro
fluxo emigratório brasileiro: análise comparativa
entre Criciúma e Governador Valadares
Sueli Siqueira1
Gláucia de Oliveira Assis2
Emerson César de Campos3

Introdução

N
o início dos anos de 1980 vários brasileiros voaram para
a “América”. Este novo movimento da população que na
década de 1990 consolidou uma migração para os EUA,
Europa e Japão, marca uma inversão da auto-imagem do país como
uma nação de imigrantes. Conforme demonstraram vários estudos
Sales (1998), Bógus e Bassanezi (1998), Reis e Sales (1999), Martes
(2000), Siqueira (2009), este fluxo de brasileiros para o exterior tor-
nou-se uma questão relevante quando, o que era um movimento
esporádico para o estrangeiro nos anos 1960, transformou-se num
fluxo migratório demograficamente significativo.
As pesquisas começaram seguindo o percurso dos próprios fluxos
migratórios. Quando as notícias de brasileiros barrados no exterior come-
çaram a aparecer na imprensa, algumas questões instigavam os pesquisa-
dores: quem são os brasileiros emigrantes? Por que deixaram o país? Por
que alguns lugares se tornam ponto de partida e chegada para os migran-
tes? Assim as primeiras pesquisas (MARGOLIS, 1994; SALES, 1999; AS-
SIS, 1999) traçaram um perfil dessa população e apontaram para a cidade
de Governador Valadares (MG) como ponto de partida de emigrantes
para os EUA indicando que entre essa cidade e algumas cidades nos EUA,
havia uma conexão, uma rede de relações que ligava os dois lugares.

1 Doutora em Sociologia e Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professo-
ra titular da Universidade Vale do Rio Doce.
2 Doutora em Antropologia pela Universidade de Campinas. Professora titular da Universidade
do Estado de Santa Catarina.
3 Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor titular da Universi-
dade do Estado de Santa Catarina.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 197


Ao longo dos anos de 1990, conforme demonstram os trabalhos
de Martes (2000), Sales (1999), Reis e Sales (1999), o fluxo de brasileiros
para os EUA manteve-se continuo ao mesmo tempo em que se diver-
sificava a população, complexificando as características da população
migrante, bem como revelando outros pontos de partida para a emigra-
ção, como a cidades de Criciúma, na região sul do país, ou de Maringá
no estado do Paraná.
Os estudos revelaram também uma importante mudança na ex-
pectativa temporal (SALES,1999; ASSIS, 2004, SIQUEIRA, 2008a). Os
migrantes que inicialmente se auto-definiam como temporários, depa-
ram-se ao longo da década com a ampliação do tempo de permanência
o que coloca em questão a idéia de retorno (ASSIS, 2003, SIQUEIRA,
2009). Assim homens e mulheres migrantes vivenciam o crescimento da
comunidade brasileira, tornando-se mais visível, nas regiões de destino,
através de suas lojas de produtos étnicos, suas igrejas, suas famílias, no
surgimento de uma segunda geração de migrantes. É neste contexto que
podemos falar da primeira geração de filhos de brasileiros nascidos nos
EUA. Assim a questão que se coloca para os migrantes é como manter
as relações com o Brasil, os laços familiares e afetivos, os investimentos
e ao mesmo tempo participar das redes sociais nos EUA.
A emigração internacional de brasileiros passou a fazer parte do
cenário nacional em um período muito recente da nossa história. A partir
da secunda metade da década de 1960 é que inicia a ida dos primeiros
emigrantes que na década de 1980 se configura como um fluxo migra-
tório relevante. Estes emigrantes deram novos contornos tanto as suas ci-
dades de origem através do envio de moeda estrangeira como, também,
as localidades de destino, pois recriam os espaços sociais e formatam o
mercado de trabalho (mercado de trabalho secundário) dessas regiões.
Governador Valadares foi o cenário central desse novo movimen-
to populacional que ao longo dos anos 1990 manteve-se contínuo, ao
mesmo tempo em que se diversificava o perfil da população (classe,
sexo, gênero) e emergiram novos pontos de partida. As pesquisas de-
monstraram que embora no imaginário construído sobre a emigração
de brasileiros Governador Valadares permaneça como o lugar de onde
saem todos os emigrantes, há um espraiamento desse fenômeno por
todo o território nacional. No entanto, a despeito dessa diversificação
dos locais de origem dos emigrantes, há apenas algumas cidades do Bra-

198 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


sil de onde partem a maioria dos emigrantes e nesse contexto além da
Região de Governador Valadares, cidades da região de Criciúma (SC),
e outras cidades da região sul do país (FUSCO, 2006; SIQUEIRA e JAS-
SEN, 2008) passaram a fazer parte desse novo movimento populacional.
Alguns estudos foram realizados buscando compreender por que estas
cidades estavam se tornando ponto de partida de emigração, quais as
características dos fluxos nesses locais e os efeitos desse fenômeno para
as cidades de origem (SIQUEIRA, 2009)
Os migrantes da cidade de Governador assim como de Criciúma
tem como principal local de destino à região da grande Boston, nos
Estados Unidos. Por isso foram selecionadas para analisarmos como se
configuram os fluxos nesses dois locais de origem no Brasil.
Este estudo revela-se significativo para ampliar a compreensão do
fenômeno da migração internacional de brasileiros para os EUA, pois além
de permitir desvendar a formação das redes sociais nos dois lugares, pos-
sibilitará compreender e explicar, através de uma análise comparativa, os
diferentes elementos que compõem a formação dos fluxos migratórios.
Governador Valadares, emergiu como ponto de partida de emi-
gração, desde nos anos de 1960, esse fluxo se consolidou na segunda
metade dos anos de 1980 e modificou a vida cotidiana na cidade en-
volvendo aqueles que partiram e aqueles que ficaram numa intrincada
rede de relações. Na década de 1990 a cidade de Criciúma (SC) emerge
como ponto de partida de emigrantes para a região de Boston (EUA).
Dessa forma, a partir dessas cidades procuraremos traçar as redes que
articulam e sustentam este fluxo - há uma ampla rede migratória que
envolve agências de turismo, intermediários, entidades religiosas, redes
de parentesco, amizade, solidariedade étnica que incentivam e susten-
tam a migração, fazendo com que esse processo migratório faça parte
da dinâmica dessas cidades. Como já foi demonstrado, através dos es-
tudos de Massey (1987) e Boyd (1986) sobre migrantes mexicanos nos
EUA e as pesquisas de Sales (1999), Martes (2000), Assis (2004), Fusco
(2000, 2006), SIQUEIRA (2008b) as redes sociais se constituem num sig-
nificativo capital social tanto nas cidades de origem como nas de destino
dos emigrantes brasileiros.
A pesquisa analisou como se formaram, articularam, mantiveram
e se modificaram as redes sociais no processo migratório. Para com-
preender a influência das redes sociais, torna-se fundamental delinear

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 199


como elas se constituem quais as suas dinâmicas e estratégias na socie-
dade de origem. Portanto a pesquisa foi realizada nas duas cidades no
Brasil que tem as conexões com a região de Boston (EUA) – Governador
Valadares e Criciúma e nos Estados Unidos nas cidades de Boston, Lo-
well, Framingham, New York, Bridgeport.
A pesquisa é de cunho qualitativo, cujos dados foram coletados
através de relatos orais de emigrantes que iniciaram o fluxo migratório.
Através da técnica de bola-de-neve foram localizados os primeiros emi-
grantes e ou seus familiares que participaram dessa rede. Utilizando-se
também de entrevista semi-estruturada buscou-se delinear os pontos
iniciais, as conexões e o perfil dos primeiros emigrantes. Foram realiza-
das 47 entrevistas com os primeiros emigrantes e ou seus familiares que
residem atualmente no Brasil ou estavam a passeio em suas cidades de
origem e 28 com emigrantes residentes nos Estados Unidos. O Campo
no Brasil foi realizado no período de março de 2007 a dezembro de
2008 e nos Estados Unidos no mês de março de 2008.
Para atender alguns objetivos do projeto de pesquisa, como des-
crever o impacto da emigração internacional na cidade de Governador
Valadares e região foram utilizados dados secundários coletados e ana-
lisados pelo Núcleo de Estudos sobre Desenvolvimento Regional – NE-
DER da Universidade Vale do Rio Doce que desenvolve pesquisa sobre
o tema da emigração desde 1998 e o núcleo de Estudos Migratórios da
Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.

2 - A configuração das redes sociais tecidas pelos migrantes brasileiros

Tal como outros fluxos migratórios internacionais, os migrantes


brasileiros utilizam-se das redes sociais para minimizarem os riscos
presentes na migração de longa distância. Conforme demonstraram os
trabalhos de Margolis (1994), Sales (1999), Assis (1999, 2003) e Fusco
(2000, 2006), uma análise da configuração das redes sociais ajuda a
compreender por que motivo algumas cidades brasileiras tornaram-se
ponto de partida para os Estados Unidos e como essas redes contri-
buem para a consolidação do fluxo. Para Sales (1999), a redefinição
da expectativa temporal é reveladora das mudanças nos projetos de
permanência dos emigrantes brasileiros, indicando o amadurecimento
das redes sociais. No caso da conexão Governador Valadares – Esta-

200 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


dos Unidos, por exemplo, Assis (1999) e Fusco (2000) demonstraram
como se construiu uma rede de relações entre os imigrantes e aqueles
que permaneceram na cidade que consolidaram ao longo dos anos
80 um fluxo entre a região de Boston, Massachusetts e Governador
Valadares, na medida em que os emigrantes, uma vez estabelecidos,
disponibilizaram recursos que facilitaram o projeto migratório daque-
les que os sucederam.
Essas questões apresentadas para análise de imigrantes nos Esta-
dos Unidos podem ser pertinentes para pensarmos sobre como se arti-
culam as redes sociais nos fluxos dos imigrantes brasileiros, pois, como
veremos nos dados que emergiram na pesquisa de campo, homens e
mulheres também se utilizam de maneira diferenciada das redes sociais.
No caso dos imigrantes de Criciúma, tal como Bott (1976) observou na
análise das famílias inglesas, podemos perceber uma interessante confi-
guração: os homens apóiam-se mais nas redes de amigos, ao passo que
as mulheres contam mais com os parentes.
No Brasil, os estudos de redes sociais têm sua tradição ligada aos
estudos de migração interna, descrevendo o longo percurso do Nordeste
para São Paulo e a rede de relações que envolviam. Os estudos analisam
a formação e a consolidação das redes no caminho do campo para a
cidade, como no estudo de Durham (1984). Nos anos de 1980, quando
os brasileiros partem para o exterior, embora a migração envolva riscos
e custos bem mais expressivos, as redes sociais e algumas características
do trabalho e inserção do migrante são semelhantes. Portanto, o que se
pretende aqui é demonstrar que, na migração internacional essas redes
sociais são igualmente importantes.
Como em outros fluxos migratórios, os emigrantes brasileiros utili-
zam-se das redes sociais para minimizar os riscos presentes na migração
de longa distância. No caso da emigração de brasileiros para os Estados
Unidos e o Japão4, destacam-se, nesse cenário, algumas cidades bra-
sileiras que se tornaram pontos de partida para os emigrantes. Nessas
cidades – Governador Valadares (MG)5, Criciúma (SC) – há uma ampla
rede migratória que envolve agências de turismo, intermediários, insti-

4 Mais detalhes sobre a emigração para o Japão ver Sasaki (1999) e Oliveira (1999).
5 Sobre Conexão Governador Valadares – Estados Unidos, ver Assis (1999), Soares (1995) e Scu-
deler (1999), Sales (1999). Além desses estudos, Goza (2003) analisa as redes estabelecidas
entre Valadares e outras cidades no Canadá.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 201


tuições religiosas, redes de parentesco, amizade, solidariedade étnica
que incentivam e sustentam a migração, fazendo com que o processo
migratório integre a dinâmica dessas cidades. Nos locais de destino, os
migrantes brasileiros concentram-se em determinadas cidades onde já
haviam redes estabelecidas pelos conterrâneos. Nos Estados Unidos é
interessante destacar que a concentração de brasileiros ocorre em cida-
des que tiveram um fluxo migratório de portugueses.
No caso da recente emigração de brasileiros para os Estados
Unidos, as primeiras pesquisas sobre esses fluxos – Margolis (1994),
Sales (1999), Assis (1999) –, embora não tivessem como foco central
a análise das redes sociais, apontaram para a importância das redes
sociais no processo migratório. Nesse contexto, inicialmente emergiu a
cidade de Governador Valadares (MG) como ponto de partida dos pri-
meiros emigrantes para os Estados Unidos. Pesquisas6 têm destacado
que, se inicialmente a cidade de Governador Valadares (MG) pôde ser
identificada como ponto de partida dos fluxos na década de 1960. Ao
longo dos anos 90 esse movimento migratório se diversifica, partido de
diversos pontos do país.
Sales (1999) demonstrou a importância das redes sociais na cons-
tituição da comunidade brasileira que se articula através dos comércios
étnicos e da Igreja. Discutiu ainda como a redefinição da expectativa
temporal é reveladora das mudanças nos projetos de permanência dos
emigrantes, indicando o amadurecimento das redes sociais. Sales ainda
demonstrou como os imigrantes brasileiros construíram um significado
de legitimidade para a sua situação de clandestinidade. Pois, apesar de
não terem os documentos necessários, conseguiam fazer tudo nos Es-
tados Unidos, trabalhar usando documentos falsos, colocar os filhos na
escola pública, ir ao hospital, abrir contas em banco, etc., por isso não
sentiam falta, no seu dia-a-dia, da legalização (dos papéis).
A autora ainda destaca que os brasileiros, mesmo indocumenta-
dos, comparavam os direitos que usufruíam nos Estados Unidos com
a ausência desses direitos no Brasil e que essa comparação reforçava
a legitimidade da condição clandestina. Mesmo com o discurso da
legitimidade da condição clandestina, a autora observou que, com o

6 Martes (2000) demonstrou, em survey realizado com imigrantes brasileiros em Massachusetts,


a diversificação da composição demográfica do movimento migratório para essa região.

202 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


aumento da expectativa temporal, os imigrantes começavam a preo-
cupar-se com a legalização.
No entanto, é importante ressaltar que esse discurso, muito pre-
sente entre os imigrantes, sofreu uma mudança profunda após os aten-
tados de 11 de setembro de 2001 e as políticas cada vez mais restritivas
aos imigrantes. Embora os imigrantes continuem trabalhando com do-
cumentos falsos e matriculando seus filhos na escola, desde 2001, os
papéis passaram a ocupar um outro lugar na vida e nas preocupações
dos brasileiros imigrantes.
A pesquisa de Martes (2000) sobre os imigrantes brasileiros em
Massachusetts (Estados Unidos) centrou o foco na análise das redes
sociais enfatizando a importância das mesmas. Segundo Martes, as
redes sociais, geralmente de parentesco, de amizade e religiosa, são
fundamentais para explicar por que os brasileiros chegam aos Estados
Unidos, sobretudo por que as redes sociais ajudam a diminuir os cus-
tos psicológicos e econômicos da migração. No entanto, ao analisar
a configuração da comunidade brasileira nos Estados Unidos, Martes
questiona as análises que salientam apenas os aspectos de solidarie-
dade nas redes sociais, criticando o pressuposto da solidariedade ét-
nica predominante nos estudos de migração. Para a autora, o caso da
emigração de brasileiros para os Estados Unidos permite questionar tal
perspectiva de análise das redes sociais, apontando para os conflitos
que ocorrem no interior das mesmas. Para demonstrar seu argumen-
to, Martes analisa o caso das redes religiosas e o comércio de postos
de trabalho na faxina doméstica entre os imigrantes, demonstrando a
ambigüidade e o conflito no interior das mesmas.
Ao longo deste estudo discutimos com os argumentos de Mar-
tes (2000), demonstrando através da pesquisa realizada em Governa-
dor Valadares e Criciúma com migrantes retornados, que o conflito e
a ambigüidade, antes de colocarem em questão as redes sociais que
constituem o processo migratório, são constitutivos da mesma. Se par-
tirmos da idéia que solidariedade e conflito não são antagônicos, mas
complementares, constatamos que as redes sociais compreendem soli-
dariedade e conflito.
Fusco (2006) discute as redes sociais partindo da cidade de ori-
gem dos fluxos – Governador Valadares – cidade conhecida como
ponto de partida de emigrantes internacionais. A pesquisa demons-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 203


trou a relevância das redes para explicar por que a cidade tornou-se
nacionalmente conhecida como ponto de partida de emigrantes. Em
Criciúma, Fusco (2006) localizou as redes sociais e demonstrou a sua
importância para a configuração da conexão Criciúma-Boston, no en-
tanto, não tinha por objetivo analisar como essas redes eram configu-
radas/marcadas por gênero e geração.
Siqueira (2009) na pesquisa realizada em Governador Valadares e
na Região da Nova Inglaterra demonstra a importância das redes sociais
para a efetivação do projeto de migração. Desde o financiamento da
viagem, o recebimento no aeroporto dos EUA, as primeiras informações
sobre o cotidiano nas cidades de destino e a inserção no mercado de
trabalho secundário nos EUA só é possível através do uso destas redes.
Para um habitante de uma cidadezinha do interior da Microrregião de
Governador Valadares que não conhece a capital de seu estado chegar
a um dos maiores aeroporto do mundo (New York) e dois dias depois
estar trabalhando na construção civil nos EUA só é possível se ele recebe
o apoio das redes sociais.
Scudeler (1999) analisou a inserção do migrante valadarense no
mercado de trabalho americano. A autora discute as teorias econômicas
sobre a inserção de trabalhadores imigrantes no mercado de trabalho
americano e demonstra, no caso dos imigrantes valadarenses, que tal
inserção ocorre articulada às redes que os migrantes dispõem tanto na
cidade de origem quanto na região de destino.
Goza (2003) demonstra a importância das redes estabelecidas
entre Governador Valadares (MG) cidades dos EUA e em Toronto (Ca-
nadá). Goza descreve as redes sociais construídas nos dois lugares e
ressalta que nos Estados Unidos tais redes migratórias parecem mais
consolidadas, enquanto que no Canadá a presença das redes é menos
evidente. Segundo o autor, o fato de tanto nos Estados Unidos quanto
no Canadá os imigrantes relatarem que possuem parentes residindo na
mesma região evidencia a rapidez com que as redes crescem e sus-
tentam o argumento de Massey (1987) sobre a “causação cumulativa7“

7 “Isto quer dizer que à medida que as redes se constituem e estabelecem elos entre a sociedade
de emigração e a sociedade de destino, a migração torna-se uma atividade de menor risco.
Assim, mais pessoas se conectam ao fluxo migratório, pois há um conjunto de informações e
estratégias disponíveis que facilitam o empreendimento migratório e, portanto, estimula novas
migrações”. (MASSEY, 1987 p.17).

204 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


que a consolidação das redes trazem para o movimento migratório.
Goza (2003) ainda destaca que o acesso às redes sociais é diferenciado
segundo as relações de gênero, sugerindo que as mulheres brasileiras
começaram a formar suas próprias redes em resposta ao “machismo”
(grifos do autor) percebido no homem brasileiro. Segundo Goza devido
aos novos papéis que as mulheres tem assumido na América do Norte,
muitos conflitos tem ocorrido. Goza, no entanto, analisa mais os papéis
estabelecidos entre homens e mulheres do que as relações nas quais
essas masculinidades e feminilidades estão circulando, quais os outros
atributos de gênero que emergem e revelam mais do que papéis outras
posições de gênero nessas relações.
Esses estudos revelaram a importância das redes sociais na re-
cente migração de brasileiros para o exterior. As pesquisas realizadas
preocuparam-se em responder a questões como: quem são os imi-
grantes, de onde vêm, para onde vão como vivem a experiência de
migratória, como se constituem como grupo étnico, descrevendo as
várias faces desse movimento migratório. As redes sociais emergem
em decorrência do próprio desenvolvimento do processo migratório e
das conexões que passam a ser estabelecidas entre os locais de destino
e origem dos migrantes.
Nos primeiros trabalhos, conforme já observamos embora a tra-
ma estivesse presente, as redes apareciam como “pano de fundo” ou
contexto no qual se desenvolviam as relações. Portanto, os trabalhos
referem-se às redes, mas estas não eram objeto central de análise. Os
trabalhos mais recentes incorporaram a perspectiva teórica das redes
sociais na análise dos fluxos de brasileiros para o exterior e procuram
analisar a configuração, as ambigüidades, bem como as mudanças nas
redes sociais tecidas ao longo do tempo.
A cidade de Criciúma, assim como Governador Valadares, de-
senvolveu uma complexa rede de relações que conecta algumas cida-
des da região de Boston à vida cotidiana dos criciumenses. Assim, são
importantes para podermos desenhar o fluxo e compreender como
se articula para a Itália ou para os Estados Unidos. As relações estabe-
lecidas entre os dois lugares evidenciam-se através dos telefonemas,
das cartas, da internet, das várias idas e vindas ao Brasil, dos presentes
enviados aos pais e familiares mais próximos ou ainda do financia-
mento da viagem dos pais para os Estados Unidos com a finalidade

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 205


de dar uma força (expressão muito recorrente nas cartas e entrevistas
dos emigrantes jovens) ou assistir ao casamento dos filhos ou ao nas-
cimento dos netos (através da web), envolvendo pessoas que nunca
pensaram em ir para os Estados Unidos nesta experiência de cruzar
fronteiras. Portanto, as redes sociais também revelam que a migração é
um projeto econômico, familiar e afetivo, o qual envolve aqueles que
partiram e aqueles ficaram no processo.
Por fim, ao centrar a análise na construção e na consolidação das
redes sociais dos emigrantes valadarenses e criciumenses, não se preten-
deu desconsiderar os fatores estruturais que motivam a migração, mas
ressaltar as múltiplas relações construídas entre a origem e o destino, nos
dois lugares ao longo do processo. A discussão da configuração dessas
redes e suas mudanças ao longo do tempo permitem compreender esse
movimento relativamente autônomo ao Estado e às forças macroestru-
turais. Ao compararmos as trajetórias dos migrantes brasileiros com a de
outros emigrantes nos Estados Unidos, percebemos que também nesse
caso a consolidação de um fluxo contínuo para os Estados Unidos está
diretamente relacionada à construção e à consolidação de redes sociais.

A emigração de valadarenses e criciumenses no contexto das redes

3 - 0 Emigrações internacionais em Governador Valadares

3.1 - Fatores que configuraram o fluxo migratório de Governador


Valadares para os EUA

A cidade de Governador destaca-se como o local geográfico,


onde, no Brasil, teve início o fluxo de migração internacional. Quais
os fatores que definiram o surgimento desse fluxo? Os pesquisadores
que se dedicaram a estudar o fenômeno na região identificaram fatores
históricos que possibilitaram a aproximação dos nativos com os estran-
geiros, principalmente americanos, na década de 1940, no período da
exploração da mica e posteriormente da ampliação da estrada de ferro
Vitória a Minas (SALES, 1999; ASSIS, 1999, ESPÍNDOLA, 2005). Contu-
do, outras cidades e regiões receberam imigrantes que chegaram com
objetivo de explorar as riquezas minerais e, no entanto, o fluxo migra-
tório não se configurou.

206 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Consideramos que esse fluxo é resultado de um conjunto de fa-
tores e a presença dos americanos na cidade, é apenas um dos fatores,
tendo em vista que possibilitou a criação no imaginário popular da idéia
sobre os EUA como um lugar de grandes possibilidades e riquezas.
Destacamos quatro outros fatores igualmente decisivos na con-
figuração desse movimento migratório que nos anos de 1980 atinge
seu ápice. O primeiro deles é a existência de um mercado de trabalho
secundário no país de destino, desprezado pelos trabalhadores ameri-
canos devido ao baixo status e baixa remuneração, mas atrativo para
o emigrante devido à possibilidade de ganhar mais do que em seu país
de origem (PIORE, 1979). O segundo é a crise de emprego e a que-
da no poder aquisitivo da classe média no Brasil, nos anos de 1980,
resultado da reestruturação econômica que eliminou vários postos de
trabalho no Brasil.
O fluxo de emigração de valadarenses para os EUA aumenta,
exatamente, no período de 1985 a 1990 (SOARES, 1995), quando
ocorre uma redução dos postos de trabalho devido a reestruturação
produtiva que tem lugar na economia brasileira. Temos, portanto, fa-
tores de expulsão na origem e atração no destino (PIORE, 1979) que
constituem um quadro promissor, para a implementação do fluxo mi-
gratório de Governador Valadares para os EUA. Porém esses fatores
ainda são insuficientes para explicar o fluxo, pois nenhum deles foi
exclusivo da cidade e região.
O terceiro fator a ser considerado é o surgimento, na origem, de
mecanismos facilitadores para emigrar. Esses mecanismos são agências
de turismo que colocavam à disposição da população serviços, para
conseguir o visto de turista para entrar nos EUA. Oferecem serviços
como: agendar entrevista no consulado, organizar a documentação ne-
cessária, informar como deve se vestir e proceder na hora da entrevista
e providenciar transporte até o consulado, Além desses mecanismos,
existem os agenciadores, denominados cônsul , que organizam grupos
de pessoas e providenciam todos os meios necessários para a travessia
pela fronteira do México e outras formas de entrada ilegal nos EUA.
O Quarto fator é o que consideramos o definidor que, junta-
mente com os outros, configurou esse fluxo migratório – a consti-
tuição das redes sociais. Com a ida dos primeiros valadarenses, na
década de 1960, deu início ao que é denominado na literatura de

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 207


rede, ou seja, um grupo de pessoas que possuem os mesmos objeti-
vos e são da mesma região e por isso se apóiam. Na década de 1980
as redes estão bem consolidadas em determinadas regiões dos EUA.
Conforme afirmam Massey (1997), Boyd (1986) os migrantes vão para
lugares específicos e para setores específicos do mercado de trabalho
do país de destino, para isso acessam os recursos das redes sociais.
São as redes que, quando configuradas, direcionam esses fluxos para
determinados espaços geográficos e para certos setores específicos
do mercado secundário. Assim, os emigrantes do sexo masculino da
região de Governador Valadares, geralmente, se direcionam para a
construção civil e as mulheres para as faxinas na região da Nova In-
glaterra, nos EUA (SIQUEIRA, 2009).
Graças a essas redes, é possível para uma pessoa que não sabe
inglês, nunca viajou para além de 500 km de sua cidade natal, não
conhece as grandes cidades brasileiras como São Paulo, Rio de Janeiro
e Belo Horizonte, desembarcar no aeroporto de New York, chegar a
Summerville e dois dias depois estar trabalhando como housecleaner ou
na construção civil. Esta rede começou nos anos de 1960 e nos anos de
1980 possibilitou o boom imigratório da região para os EUA.
Quem eram os primeiros emigrantes? O que motivou os primei-
ros emigrantes a empreenderem a aventura de emigrar? Como as redes
se consolidaram? Essas são questões importantes que foram respondidas
a partir dos dados levantados e que veremos no item a seguir.

3.2 - A origem das redes sociais: os primeiros emigrantes

Os primeiros dezessete jovens que emigraram na década de


1960 para os Estados Unidos da América com o objetivo de traba-
lhar eram de classe média alta, possuíam o segundo grau completo
e estavam na faixa etária de 18 a 27 anos. Emigraram não por razões
econômicas e sim pela aventura e pela curiosidade de conhecer um
país que consideravam rico, desenvolvido e cheio de grandes opor-
tunidades. Como esta idéia sobre os EUA foi construída? Através dos
relatos ficou evidenciado que no imaginário da juventude dos anos de
1960, na cidade de Governador Valadares, estava presente a idéia de
que lá aconteciam as coisas mais importantes do mundo, a música, os
filmes e a guerra do Vietnam.

208 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


“Nós rapazes daquela época gostávamos muito de músicas,
acompanhamos a fase de muitos cantores como: Elvis, Beatles e
outros, então a gente vibrava com isto e eu tinha um sonho de
conhecer a Broadway e quando eu cheguei perguntei onde era
a Broadway e disseram que eu estava nela, fiquei muito emocio-
nado e também tive sorte de morar na Rua 42 bem no centro de
New York”. (Enrevistado 1, emigrou em 1964)
“Toda vida a situação financeira da minha família foi boa, quando
resolvi emigrar a família me chamou de doido, falou que eu era
aventureiro. Ninguém sabia, mas eu queria ir para lutar na guerra
do Viatnan. Todas as notícias que chegavam mostravam a aventu-
ra que era aquela guerra”. (Entrevistado 05, emigrou em 1967).

Um elemento importante neste processo, presente nos relatos, foi a


escola de inglês IBEU e os intercâmbios dos primeiros estudantes valada-
renses para os EUA que trouxeram notícias mais concretas da sociedade
americana. A imprensa local noticiava as viagens e as maravilhas vividas
por esses intercambista, que eram amigos dos primeiros emigrantes.

Foto 1: Noticiando viagem de um intercambista valadarense para os EUA


Fonte: Diário do Rio Doce, 1962

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 209


Foto 2: Noticiando o retorno do Intercambista
Fonte: Diário do Rio Doce, 1962.

Foto 3: O casal Simpson


Fonte: Arquivo da família Simpson

210 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Esta escola foi fundada em 1960 pela esposa do Mister Simpson,
Dona Geraldina Simpson. Mister Simpson era um dos engenheiros ame-
ricanos que vieram para Governador Valadares em 1942 para trabalhar
na ampliação da Estrada de Ferro Vitória a Minas. Finda as obras to-
dos os trabalhadores americanos deixaram a cidade, contudo a família
Simpson aqui permaneceu. Mister Simpson viveu em Governador Va-
ladares até sua morte em 1969. A foto abaixo é do ano de chegado do
casal Simpson à cidade de Governador Valadares8.
Ao retornar, o primeiro intercambista relatou as grandes possibili-
dades de trabalhar e estudar nos EUA
Quando cheguei fazia fila na minha casa para ver o álbum de
fotografia e para eu contar como era a vida lá. Durante muitos
meses eu não consegui falar de outra coisa, meus amigos só que-
riam ouvir sobre a vida lá. (primeiro intercambista, 1963).

No mesmo ano, de posse das informações concretas os dois pri-


meiros emigrantes partiram para os EUA com visto de trabalho.
Tinha um programa da Dona Geraldina Simpson que era de in-
tercâmbio. O Coelho foi o primeiro e quando ele retornou me
deu informações sobre os EUA, que se eu conseguisse o visto
de trabalho para lá que não teria problema nenhum, trabalharia
vinte horas e estudaria numa escola normalmente e o que eu
ganhava dava para me sustentar o mês todo sem problema. Aqui
em Governador Valadares tinha eu, e outros três [...] que queriam
emigrar para os EUA. [...] conseguimos o visto de trabalho e par-
timos. (Entrevistado 01, emigrou em 1964)
[...] com intercâmbio de estudantes que vinham para o Brasil e
iam para os EUA. A idéia de ir para os EUA ficou mais atraente,
assim [...] que fez o intercâmbio estudantil nos EUA me passou
as informações que eu precisava que era a de que lá conseguia
sobreviver e que era possível emigrar para lá com o visto de traba-
lho e não ter problemas e assim o sinal ficou verde para nós. [...]
não decidimos emigrar por questões financeiras mais pelo desejo
de conhecer e estar em mais contato com a música americana
que era nossa paixão. (Entrevistado 02 - emigrou em 1964).

Os quatro primeiros emigrantes foram os pontos iniciais da rede,


partiram em 1964. As cartas acompanhadas de fotos eram enviadas com

8 Foto cedida pela família, na ocasião da realização da entrevista, com consentimento de publi-
cação.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 211


freqüência relatando as oportunidades e maravilhas da terra, difundin-
do assim a grande aventura que era emigrar. Esses primeiros emigrantes
davam o suporte necessário para os que desejavam emigrar. Além das
informações emprestavam dinheiro para o depósito, buscavam no aero-
porto, ofereciam estadia ou moradia, arrumavam o primeiro emprego,
compravam roupas adequadas ao clima dos EUA, etc.
“Sempre ajudei a quem chegava lá, comprando remédio, le-
vando no médico, buscando no aeroporto, minha casa vivia
cheia de pessoas que chegavam lá, arrumando emprego. Tam-
bém fui muito ajudado no tempo em que vivi lá”. (Entrevistado
03, emigrou em 1965)
“Ajudei muitas pessoas, em especial, minha família, levei mãe,
irmã, irmão, cunhada (o) sobrinha (o) primos e amigos, mais ou
menos umas 20 pessoas da família e com amigos umas 30 pes-
soas e por intermédio de mim imagino que foi umas 50 pessoas.
Nos dois primeiros anos levei mais ou menos 15 pessoas e cada
uma delas levou pelo menos uma pessoa [...] eu organizava toda
a ida deles buscando no aeroporto, com moradias já arrumadas e
na maioria das vezes até com serviço no jeito. Emprestei dinheiro
para os que queriam ir”. (Entrevistado 09, emigrou em 1968).

As redes sociais emergem em decorrência do próprio desenvol-


vimento do processo migratório e das conexões que passam a ser esta-
belecidas entre os locais de destino e origem dos imigrantes. As redes
formadas nos países que recebem emigrantes são um dos principais fa-
tores da permanência destes por lá, pois tornam a migração mais segu-
ra na perspectiva do emigrante. Ao encontrarem um grupo de amigos
receptivos, estes imigrantes sentem-se menos sozinhos e desprotegidos.
As redes são formadas por interesses em comum e laços de amizade
ou parentesco de seus participantes. Neste sentido podemos considerar
que o fluxo migratório para os EUA definiu-se a partir de um contexto
histórico que criou, no imaginário popular, a idéia da existência de um
lugar onde era fácil ganhar dinheiro e teve como fator determinante a
formação das redes sociais.
Nos relatos acima podemos destacar como as redes se consti-
tuíram e sua importância para explicar e entender como os brasileiros
chegam aos EUA, pois elas ajudam, sobretudo, a diminuir os custos psi-
cológicos, sociais e econômicos da migração.
Esses dezessete primeiros emigrantes foram os pontos iniciais da
212 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
rede migratória de Governador Valadares para os EUA. Segundo os de-
poimentos a maioria deles auxiliou mais de 30 pessoas, entre parentes
e amigos a emigrarem, estes por sua vez foram pontos de apoio para
outros tantos. A partir dos quatro primeiros emigrantes que chegaram
a New York em 1964 com visto de trabalho a rede foi se formando no
decorrer dos anos de 1960 e 1979 dando origem ao boom emigratório
da segunda metade dos anos de 1980.

4 - A comunicação entre a origem e o destino. As novas tecnologias


de comunicação e a consolidação das redes

O primeiro intercambista que trouxe as informações para seus


amigos de como emigrar afirma que só quando chegou pode relatar
em detalhes para os amigos sua estadia e as grandes possibilidades da
emigração. Escrevia cartas e enviava fotos para a família e os amigos
que demorava mais de um mês para chegar. Relata que no dia do seu
aniversário ganhou de presente da família americana uma ligação tele-
fônica para a família em Governador Valadares.
O Jornal de Governador Valadares colocou a seguinte manche-
te na primeira página: “Intercambista fala com seus pais dos Estados
Unidos da América”.
“Fiquei o dia todo esperando a ligação que era péssima se com-
parada com as de hoje, mas para mim foi uma emoção enorme
ouvir a voz de meus familiares [...] tão distante [...]”. (primeiro
intercambista, 1963).

As poucas notícias enviadas por carta para os amigos sobre a


vida nos Estados Unidos só puderam ser explicadas quando retornou
para Governador Valadares e trouxe as fotos e todas as informações.
Relata que durante meses foi interrogado pelos amigos sobre detalhes
da vida nos Estados Unidos e como era possível trabalhar e ganhar
dinheiro em New York.
Maria Emigrou em 1969, relata que recebia informações de seus
amigos que haviam emigrado para os Estados Unidos através de comu-
nicação por rádio amador.
“Eu tinha um amigo que sempre me dizia sobre como era o traba-
lho e que se eu fosse ele me ajudaria. A gente conversava por radio
amador”. (Maria, emigrou em 1969 e vive até hoje nos EUA).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 213


Foto 4: Primeiro intercambista falando dos EUA com a família
em Governador Valadares
Fonte: arquivo pessoal (cedida para publicação).

Nesses relatos dos emigrantes da década de 1960 fica eviden-


ciado que as dificuldades de comunicação delimitavam, um pouco,
a circulação mais rápida das informações, contudo ao longo dos anos
de 1960 e 1970 as redes sociais de emigração foram se formando e
se consolidando.
As informações enviadas, inicialmente, exclusivamente por car-
tas, já na década de 1980, com a melhoria do serviço de telefonia,
os emigrantes começam a utilizar com mais freqüência este meio de
comunicação.
“Tinha sempre o horário marcado para ligar uma vez por mês,
mandava a carta dizendo que ia ligar dia tal em tal horário
[...] a família toda ia para casa de meu tio e ficava esperando
[...] tinha que falar um pouquinho com todo mundo.” (Mario
emigrou em 1980).

214 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Com o surgimento da internet e a popularização de seu uso
a comunicação entre os dois lugares começa a acontecer em tempo
real. O emigrante que recebia um jornal de sua cidade de origem com
duas semanas de atraso passa a ter acesso on line ao jornal no dia e
hora de sua edição.
“Quando alguém recebia o Diário do Rio Doce, com duas ou três
semanas de atraso, ele lia e passava para frente, o jornal circulava
vários dias entre os amigos. Agora toda manhã é só abrir na internet e
eu posso ler no mesmo horário que lá”. (Joana, emigrou em 1982).
“Eu falo e vejo minha família e amigos todo dia, às vezes mais de
uma vez por dia”. (Elisa, emigrou em 1998).
“Já tem 4 anos que estou aqui, mas converso com minha esposa e
meus filhos todos os dias [...] ensino o mais velho a fazer os deveres
de matemática, ele tem dificuldades em matemática. No Domingo
eu fico o dia todo com ele na net”. (Carlos, emigrou em 2003).

A partir desses depoimentos podemos considerar que as novas


tecnologias de comunicação, possibilitaram a comunicação entre os dois
lugares com muito mais freqüência e rapidez. Sendo assim, as informa-
ções passam a circular mais rapidamente, tornando as redes mais sólidas
entre a origem e o destino, pois permitem a circulação das informações,
sensações mais rapidamente.
Segundo Harvey (1993) essas novas tecnologias possibilitam a
compressão do tempo e do espaço. Pessoas distantes geograficamente,
se junta através de vídeo conferências, MSN, etc. e assim, casamento,
nascimento e aniversários são comemorados conjuntamente, em tempo
real, mas em pontos geográficos diferentes, unindo a origem e o destino.

4.3 - Impactos da emigração na origem

O projeto de emigrar passa geralmente pelo desejo de ir, fazer


poupança, adquirir bens na cidade de origem e retornar em situação
socioeconômica melhor, contudo vale lembrar que a definição tanto do
projeto como da direção do fluxo migratório tem fortes componentes
sociais, culturais e históricos.
A região de Governador Valadares é marcada socialmente, cul-
turalmente e economicamente pelo fenômeno da emigração interna-
cional. Aqueles que retornaram vieram com o projeto de investir em
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 215
imóveis para aluguel ou tornarem-se pequeno empresário nas suas ci-
dades de origem. O principal motivo declarado para emigrar (53,7%)
foi a possibilidade de ganhar dinheiro, retornar e investir no Brasil. É
interessante ressaltar que 46,3% afirmaram que emigraram porque foi
uma possibilidade que surgiu para conseguir atingir seus objetivos mais
facilmente e em menor tempo (SIQUEIRA, 2008a).
A emigração possibilitou um aumento da renda mensal, uma vez
que antes de emigrar a maioria (69,4%) tinha uma renda mensal de até
três salários mínimos e depois de se estabelecerem como empresários
38,2% passa a ter uma renda em torno de seis salários mínimos, e outros
20,8% de mais de dez salários mínimos.
A maioria dos emigrantes que se tornaram empresários (82,7%)
emigrou exatamente no período de aumento do fluxo, ou seja, na déca-
da de 1980. Permaneceram de 3 a 10 anos (75,7%). Conforme assinala
Fusco (2006), as redes sociais ajudam os seus componentes a conseguir
acesso aos recursos financeiros e sociais que possibilitam seu ingresso
numa sociedade sobre a qual não têm ou têm poucas informações.
Esses emigrantes empreendedores configuram o mercado de tra-
balho local, pois além de abrir novos empreendimentos contratam mão
de obra. A maioria deles (48%), com seus investimentos criaram de 1 a 4
postos de trabalho e 23% de 5 a 10. Destaca-se que 48% contratam seus
empregados com base na CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas).
O fenômeno da emigração internacional reconfigura o espaço
urbano, principalmente, no que se refere à arquitetura dos bairros onde
residem. Reformam ou constroem casas maiores e com acabamento
melhor do que o padrão das casas do bairro e ampliam o seu consumo
de bens duráveis. Nas cidades da Microrregião de Governador Valadares
é fácil, em alguns bairros, distinguir as casas reformadas ou construídas
pelos emigrantes. Segundo Soares (1995) a partir da segunda metade
dos anos de 1980 o setor imobiliária da cidade de Governador Valada-
res apresentou um crescimento vertiginoso. Novos bairros surgiram com
o investimento dos emigrantes.
Uma conseqüência desse investimento imobiliário dos emigran-
tes é a supervalorização do preço do imóvel em toda a região. Uma casa
é vendida por três vezes o seu valor real, porque o emigrante que está
nos EUA paga este valor; o mesmo acontece com as propriedades rurais.
Para o emigrante, além do valor de mercado existe um valor simbólico

216 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


que é comprar a casa na rua onde morava de aluguel, a fazenda onde era
vaqueiro. É a possibilidade de mostrar para si e para os outros que seu
projeto de emigrar foi bem sucedido. Entretanto, o valor monetário, por
ser irreal na perspectiva do mercado, não se mantém por muito tempo.
“[...] comprei o lote, a casa que tinha era velha [...] joguei no chão
e construí essa, do jeito que eu queria [...] no mesmo bairro que
eu nasci e vivi [...]” (Jorge, emigrou em 1976)

Os investimentos em imóveis para alugar é outro efeito da emi-


gração, porém, este setor já sente os efeitos da oferta maior que a pro-
cura. Na cidade de Governador Valadares já é sentida pelos proprietá-
rios de imóveis para aluguel, a queda no preço dos aluguéis.
“[...] o preço dos alugues estão caindo, isto é resultado da oferta
maior que a procura. Tantos investimentos em imóveis para alu-
gar provocou isso [...]” (proprietário de imobiliária na Região de
Governador Valadares).

As remessas de moeda estrangeira enviadas para as cidades de ori-


gem se constituem em outro elemento que reconfiguram as cidades de
origem dos emigrantes. Segundo dados do Inter-American Development
Bank (2006) as remessas enviadas para o Brasil, vindas principalmente
dos EUA, Europa e Japão, superam US$ 6,4 bilhões. Deste valor US$ 2,7
bilhões são provenientes dos EUA. Este valor representa 1,1% do PIB bra-
sileiro. Ressaltamos que parte desse valor não é contabilizada pelo Banco
Central porque entra no país por vias ilegais (as agências de turismo9).
Só para a cidade de Governador Valadares a remessa repre-
senta 60% da arrecadação do município prevista R$ 274 milhões em
200610. O principal meio de envio desse dinheiro declarado pelos en-
trevistados é através das agências de turismo (59,9%). O volume dessas
remessas atraiu o sistema bancário nacional. Em 2000 o Banco do
Brasil, em parceria com a Western Union e posteriormente, em 2003
e 2004 o Banco Itaú em parceria com a Money Grant e o Bradesco
em parceria com o Bank of America e mais recentemente em 2005 a
Caixa em parceria com o Banco Português BCP inauguraram serviços
de remessas de dólares para o Brasil.

9 Lojas de brasileiros, cuja principal atividade é o envio de remessas para o Brasil, mas também
vendem outras coisas como jornais, revistas brasileiras.
10 Folha de São Paulo, 25 de dezembro de 2005, Caderno B p.7.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 217


As instituições da região também começaram a operar com re-
cebimento de remessas. A SICOOB (Cooperativa de Crédito do Vale
do Rio Doce Ltda.) fez convênio em julho de 2005 com o Banco Ren-
dimento11 com aval do Banco Central e passou a receber remessas de
dinheiro do estrangeiro. Segundo o diretor administrativo e financei-
ro12, no período de julho a dezembro de 2005 a cooperativa recebeu,
só para as 16 cidades da Microrregião de Governador Valadares que
possuem agencias, o total de R$4.684.548,00 de remessas do exterior.
Deste montante, 90% provêm do EUA. Destaca que em torno de 60%
das remessas são para a cidade de Governador Valadares.
Outra instituição local que trabalha com o recebimento de
remessas é a cooperativa de crédito AC Credi, ligada à Associação
Comercial de Governador Valadares. Segundo seu presidente13, a
instituição recebe depósitos do Banco Rendimento, desde 2004 e
trabalha somente com ordens de pagamento para seus cooperados.
Só começou a fazer propaganda deste produto em novembro de
2005. Recebe em média duzentos mil reais por mês, de ordens de
pagamento para as 10 agências que possui na região. Afirma que
depois da queda do dólar os valores diminuíram, contudo o número
de ordens continua o mesmo.
“As remessas são fundamentais para a região, elas dinamizam o
comércio. A queda do dólar afeta diretamente o comércio da
cidade. Diferente do Vale do Aço, onde o dinheiro que circula
é todo formalizado porque as grandes empresas como Cenibra,
Usiminas, exigem a formalização dos contratos, em Valadares o
dinheiro que circula é informal, vindo principalmente do envio
de remessas, grande parte vem informalmente. Só em fevereiro
de 2006 o dinheiro em depósito à vista, prazo e poupança nos
18 bancos da cidade somava um total de duzentos e oitenta mi-
lhões de reais, segundo o Banco Central. São poucas as cidades
que atingem este montante, a não ser as que têm grandes in-
dústrias como Ipatinga. Todo este dinheiro foi gerado informal-
mente, mas está nos bancos. Por isso é que eu considero que os
dados oficiais não representam a realidade da cidade e região.
Nosso IDH é baixo, mas a qualidade de vida é bem melhor do
que a indicada pelos índices oficiais, isto porque a circulação de

11 É o segundo Banco em volume de remessas de moeda estrangeira para o Brasil.


12 Entrevista realizada em 28/04/2006.
13 Entrevista realizada em 02/05/2006.

218 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


dinheiro é informal. Veja só a frota de veículos da cidade, é uma
das melhores de Minas para cidades do porte da nossa. Nossa
cooperativa é a maior do interior de Minas. Tudo isso mostra
que as remessas oficiais e as não oficiais dão sustentação à nossa
economia”. (Diretor Financeiro da AC Credi).

Outra face desse fenômeno que também configura as cidades de


origem é o fato dos emigrantes que retornam e investem serem mal
sucedidos e retornam a condição de emigrantes. Na pesquisa realizada
em 2005 na Região da Nova Inglaterra nos EUA foram entrevistamos
35 emigrantes nesta categoria. Os resultados demonstraram que inves-
tiram, predominantemente, no comércio, agronegócio e serviços. Não
fizeram nenhuma pesquisa de mercado, não buscaram informações em
órgãos competentes e não fizeram nenhum tipo de treinamento na área
administrativa (SIQUEIRA, 2009).
Definiram em que investir, a partir de informações dadas por pa-
rentes e amigos, ou porque consideraram que era um bom negócio, ou
uma ótima oportunidade. Não possuíam experiência no ramo em que
investiram e nunca tinham sido proprietários de algum negócio, não
tendo, portanto, nenhuma experiência em como administrar uma em-
presa. Muitos foram à falência ou fecharam, por causa da baixa lucrati-
vidade, que impossibilitava a manutenção de um bom padrão de vida
no Brasil. O retorno à condição de emigrante foi a solução encontrada.
Hoje, vivem nos EUA e reconhecem os erros cometidos. A maioria con-
tinua com o projeto de novamente retornar para a cidade de origem.
Um dado que chama a atenção nesse grupo que investiu e retor-
nou à condição de emigrante nos EUA, é que 31,4% consideravam que
seus investimentos tinham um ótimo retorno financeiro e davam uma
renda suficiente para viverem no Brasil, mas não conseguiram permane-
cer no Brasil por não se readaptarem. Aqueles que se tornam documen-
tados nos EUA passam a viver nos dois lugares, trabalham nos EUA e
passam um ou dois meses no Brasil. Mantêm casa e carro no Brasil, para
aqui desfrutarem o descanso. Tornam-se moradores de dois lugares. Di-
videm suas vidas, investimentos e trabalho nesses dois espaços. Como a
perspectiva teórica baseada na transnacionalização preconiza, passam
a viver em dois mundos diferentes, estabelecendo conexões entre as
duas sociedades, entre o local e o global. Tornam-se transmigrantes num
mundo globalizado (SIQUEIRA, 2009).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 219


4.4 - Redes acionadas para o retorno

Se para emigrar, as redes sociais no destino amenizam os custos


sociais, psicológicos e econômicos, além de possibilitar a difusão das
informações necessárias para empreender o projeto migratório, as redes
sociais tanto no destino como na origem, são, também, fundamentais
para concretizar o projeto de retorno.
O desejo e a insegurança quanto aos aspectos econômicos
tornam o retorno, muitas vezes dramático. Os amigos e familia-
res, ou seja, a rede social se constitui elemento fundamental para
concretização do projeto de retorno, seja informando sobre inves-
timento, situação econômica do país ou das vantagens de viver em
sua própria pátria.
“[...] planejamos o retorno juntos. Minha mulher conseguiu mon-
tar a loja e deixar tudo no ponto prá quando eu chegasse já co-
meçasse a trabalhar”. (Armando - emigrou em 1992).

Aqueles que ficam na origem, são pontos fundamentais para a


manutenção dos laços afetivos e dão sustentação ao projeto de retor-
no. Os familiares são os principais pontos dessa rede (esposa, pai mãe,
irmãos), contudo vizinhos e amigos também são pontos importantes.
Atualmente a maioria dos emigrantes possui internet e fazem
uso de e-mails, MSN, Orkut como forma de estarem contato con-
tínuo a origem. Assim o projeto de retorno é acalentado com as
informações que chegam através dessa redê. Que imóvel comprar?
Em que região? Qual a melhor forma de pagamento? O preço está
de acordo com o mercado? O imóvel é bom? Vale o preço? Estas são
algumas questões que o emigrante procura responder através das
redes que mantém na origem.
“ [...] tudo que fiz aqui antes de voltar eu primeiro conversava
com amigos, parentes que estavam aqui. Lá a gente fica muito
fora da realidade, é só trabalho e casa. [...] meu irmão viu os pre-
ços do caminhão, escolheu a melhor máquina e o melhor preço
[...]”. (Jorge – emigrou em 1979).

A rede social de emigração no local de origem não só mantém


o migrante informado sobre os aspectos econômico, mas também dão
apoio e suporte na chegada.

220 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


SIQUEIRA (2008b) demonstra que o retorno é marcado pelo es-
tranhamento. O emigrante espera encontrar o mesmo local e pessoas
que deixou, contudo, quando retorna seus filhos cresceram, seus ami-
gos, vizinhos e parentes mudaram e a turma da cerveja, do futebol, da
igreja já não são os mesmos. Os entrevistados relatam a dificuldade não
só de organizar a vida econômica, mas também social e afetiva.
“Quando cheguei fiquei desnorteado, achei tudo estranho [...]
as crianças olhavam para mim com receio e eu não sabia o que
fazer [...] até com minha mulher eu achei estranho[...]. Os amigos
tinham casado, tinham interesses diferentes e o papo não rolava
mais como antes [...]”. (Inácio - emigrou em 1992).

Neste sentido as redes no local de origem são importantes para


que o emigrante possa sentir-se bem em sua cidade de origem.
“É muito difícil acostumar novamente na cidade da gente, ta tudo di-
ferente, a gente fica zonzo e não sabe o que fazer e para onde ir [...]
a ajuda do meu irmão e toda a minha família foi muito importante
para eu conseguir me adaptar novamente”. (retornado em 2000)
“[...] a ajuda que recebi foi em todos os sentidos, uma amigo
que é corretor ajudou milha mulher na hora de comprar a casa;
minha mãe ajudou demais cuidando dos meus filhos e quando
cheguei foram os amigos e os parentes que me deram força para
eu me sentir em casa novamente [...]”. (retornado em 2005)

O retorno tem implicações de ordem econômica e emocional.


As redes familiares e sociais amenizam o estranhamento e auxiliam na
organização da vida social e afetiva, contudo muitos não conseguem e
acabam por reemigrar. Todos os emigrantes entrevistados, da década
de 60, 70 e 80 relatam seu retorno e as dificuldades de se estabelecer
novamente em seu local de origem. Dentre os que permaneceram, as
dificuldades relatadas são as mesmas, contudo, por diferentes razões
conseguiram superá-las e permanecer em suas cidades.
O projeto de emigração e retorno é familiar e social, o resultado
positivo ou negativo é compartilhado por todos. As redes possibilitam ma-
ximizar os benefícios e minimizar seus custos tanto social, afetivo como
econômicos. Vale ressaltar que as condições e contradições de emigração
traduzem os intricados aspectos desse fenômeno. O retorno é uma dessas
dimensões que se concretiza dependendo das várias formas como as rela-
ções se estabelecem entre o emigrante e seu local de origem.
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 221
5 - Emigração internacional em Criciúma

5.1 - Fatores que configuram o fluxo migratório para os EUA

Criciúma, assim como Governador Valadares (MG), é uma cidade


de importância na econômica para a região. Está localizada ao sul do
Estado de Santa Catarina e distante de Florianópolis 190 Km (via BR
101). Criciúma foi fundada em 1880, por um contingente de 22 famílias
de imigrantes que vieram, sobretudo, da região norte da Itália, especial-
mente de Treviso, Beluno e Cremona. A partir de 1890 chegaram a Cri-
ciúma, em torno de 12 a 15 famílias de imigrantes poloneses e algumas
famílias de imigrantes alemães. Estes imigrantes se dirigiram para a zona
leste/nordeste da vila de Criciúma, que corresponde às comunidades
da Linha Batista, Linha Anta e Linha Cabral. Mais tarde, por volta de
1912, os imigrantes alemães dirigiram-se para a região de Forquilhinha
(Fundação Educacional de Criciúma, 1976).
Nos relatos sobre a fundação da cidade foram se construindo nar-
rativas onde a imagem do imigrante pioneiro era valorizada e destacada,
pois são representados como aqueles que vieram colonizar a região e
trazer a civilização. É importante observar que os relatos sobre a história
da cidade enfatizam a imagem heróica do pioneiro.
A partir do desenvolvimento da mineração, no início do século XX,
a narrativa étnica de formação da cidade aparentemente foi deixada de
lado e a cidade passou a ser representada como a cidade do carvão.
Nos anos que se seguiram à colonização, segundo Volpato
(1989, p.56),
Aos imigrantes italianos, poloneses e alemães, juntaram-se novos
grupos étnicos: os lusos e negros vindos de Imbituba, Laguna e
Tubarão, que vieram como operários na estrada de ferro e depois
foram os primeiros trabalhadores nas minas de carvão. As famílias
mais pobres de agricultores, aquelas que não tiveram sucesso no
comércio, também trocaram a agricultura pela mineração. A par-
tir da década de 1920, o carvão está definitivamente associado
à história da cidade e, a partir dos anos 30, é a principal base de
desenvolvimento de Criciúma e da região.

Ao analisarem o processo de desenvolvimento da cidade, a partir


da mineração, Volpato (1989) e Teixeira (1996) criticam a historiografia
local. Destacam o contingente populacional que imigrou para a cidade,

222 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


isso significou não apenas a urbanização e o crescimento, mas também
o surgimento de uma classe operária que, juntamente com os pequenos
agricultores que não conseguiam manter-se no campo, tornaram-se a
marca de um desenvolvimento que ocorreu de maneira desigual, privi-
legiando as elites econômicas locais.
O crescimento da cidade atraiu imigrantes que, em função da
proliferação das minas, chegavam à cidade em busca do “eldorado do
ouro negro”. Eram famílias de pequenos agricultores ou pescadores ori-
ginários de pequenos vilarejos da região sul do estado, homens e mu-
lheres que constituíram a classe operária mineira. Tais imigrantes eram,
em grande parte, provenientes de outras regiões do estado e ampliaram
o contingente da população negra e açoriana que havia na região. De-
vido à forte mobilização dos mineiros e da constituição de um movi-
mento sindical consolidado, a região foi considerada por alguns autores
o ABC14 de Santa Catarina.
Com isso, o panorama econômico e social da cidade, que mais
tarde seria conhecida como a “Capital Nacional do Carvão”, tornou-
se bastante diversificado. A economia pôde contar com o apoio do
Estado, que se comprometia com a compra de grande parte do carvão
extraído; a cidade, por sua vez, recebeu um considerável fluxo migra-
tório de trabalhadores vindos de toda a região sul do estado para o
trabalho de extração nas minas.
Em meados da década de 1980, o setor carbonífero deu os pri-
meiros sinais de uma crise, a qual se agravaria na década de 1990 com o
governo de Fernando Collor (1990-1992). Segundo Teixeira (1996) a crise
ocorreu por um conjunto de fatores, como a queda da produção, a retira-
da dos subsídios por parte do governo e o fim do protecionismo estatal e
a concorrência internacional, o que teria reduzido o mercado em mais de
30 %, causando, assim, uma alta taxa de desemprego na região.
A crise econômica enfrentada pela cidade, iniciada no final da dé-
cada 1980 e agravada na década de 1990, aponta para uma das razões
que tornaram a cidade ponto de partida de inúmeros emigrantes em bus-
ca de trabalho nos Estados Unidos ou na Itália, embora não possamos
reduzir a migração às motivações econômicas. A emigração para a Itália

14 Teixeira (1996) refere-se à comparação com a região siderúrgica do ABC, no estado de São
Paulo, que se caracterizou no final da década de 1970 e início da década de 1980 por um forte
movimento sindical.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 223


e para os Estados Unidos também está associada ao imaginário presente
na cidade, o qual constrói uma conexão entre os imigrantes do passado e
os emigrantes do presente, mas principalmente ao desenvolvimento e ao
amadurecimento de redes sociais ao longo do processo migratório.
A cidade de Criciúma, ao longo destes 120 anos, foi reconstruindo
os significados para os imigrantes e a migração. No entanto, é a partir de
meados dos anos 1980 que se intensifica o movimento de revalorização
das várias etnias que formam a cidade, particularmente da etnia italiana.
Nas décadas de 1980 e 1990, através de convênios com algumas regi-
ões da Itália, os descendentes dos imigrantes realizam um movimento
de busca pela cidadania européia e, por isso, vários deles partem para
a Itália a fim de reencontrar seus parentes, tal como os italianos vêm
conhecer “um pedacinho” da Itália no Brasil. A dupla cidadania abre o
mercado de trabalho para os descendentes dos imigrantes na comuni-
dade européia. Esse “retorno” à terra dos nonos e nonas pode ser consi-
derado o início do movimento migratório de Criciúma (ASSIS, 2004)
A partir dos anos 1990, o fluxo diversifica-se, e os criciumenses
passaram a utilizar a dupla cidadania para emigrar para os Estados Uni-
dos. O passaporte europeu dispensa a solicitação de visto para a en-
trada no país, entretanto, diferentemente da migração para a Itália, os
migrantes não partem para os Estados Unidos com uma documentação
que lhes permita trabalhar, tornando-se, assim, imigrantes indocumen-
tados no país de destino.
Criciúma tornou-se um ponto de partida de emigrantes para a Eu-
ropa e para os Estados Unidos. Embora grande parte desses emigrantes
informe que tem ascendência italiana, o movimento de criciumenses, as-
sim como os migrantes valadarenses, dirige-se majoritariamente para os
EUA nas regiões da grande Boston (MA), concentrando-se nas cidades de
Lowell, Somerville e Everett e para algumas cidades da Itália.
Como demonstram os relatos dos emigrantes, a emigração para
a Itália e para os Estados Unidos também está associada ao imaginário
presente na cidade, o qual constrói uma conexão entre os imigrantes do
passado e os emigrantes do presente, mas principalmente ao desenvol-
vimento e ao amadurecimento de redes sociais ao longo do processo
migratório. É interessante observar que Governador Valadares também
construiu desde final da década de 1960 uma cultura migratória rela-
cionada aos primeiros valadarenses que foram para os EUA para estudar

224 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


inglês, trabalhar, ganhar uns dólares e voltar falando inglês e com algum
dinheiro – era quase uma aventura. (MARGOLIS, 1994; SALES, 1999;
ASSIS, 2004; SIQUEIRA, 2009). Essas narrativas em torno dos primeiros
emigrantes e de suas conexões entre os EUA e o Brasil configuram esse
campo de relações entre os dois lugares como veremos a seguir.

5.2 - A origem das redes sociais de emigração Criciúma-EUA

No período pós-guerra (1945), um novo modelo produtivo agro-


pecuário foi implantado no Brasil, sob o comando do capital, com forte
influência norte-americana, visando superar o “atraso” na agricultura.
Para “educar” os agricultores a utilizar novas técnicas produtivas e au-
mentar a produção, foi implantado aqui em Santa Catarina um projeto
chamado Clubes 4-S. A sigla significa “Saber, Sentir, Servir e Saúde”,
e os clubes foram implantados no estado a partir de 1957, através da
ACARESC, órgão responsável pela implantação e desenvolvimento das
atividades extensionistas da agricultura no Estado de Santa Catarina.
Estes clubes que atingiram seu auge em 1970 eram voltados
à educação de jovens agricultores, e promovia o intercâmbio desses
com outros jovens agricultores americanos, assim os brasileiros podiam
aprender novas técnicas nos Estados Unidos, e os jovens americanos
que vinham aqui morar podiam passar as técnicas conhecidas às pesso-
as que os estavam recebendo.
No sul de Santa Catarina o Clube 4-S trouxe os americanos e seu
estilo de vida ainda mais perto dos criciumenses, criando vínculos, além
de servir como um painel de divulgação da modernidade americana,
como é possível observar no jornal Tribuna Criciumense, de 21 a 28 de
agosto de 1965, que conta a história de Bob Harter, um americano que
antes de ir embora disse que nunca esquecerá Criciúma e seu povo.
No mesmo jornal, na edição de 11 a 18 de setembro de 1965,
encontramos a história de Ilma Arns, uma criciumense que foi estudar
técnicas agrícolas nos EUA. Além dessas viagens promovidas pelos 4-S,
havia ainda os intercâmbios estudantis promovidos pelo Rotary Club,
que tornaram-se comuns a partir de 1960 (SANTOS, 2007).
Na década de 1960 houve ainda uma difusão da cultura norte-
americana no Brasil, que foi cuidadosamente elaborada pelo governo
estadunidense com o objetivo de aproximar e fazer a classe média bra-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 225


sileira consumir os produtos da cultura norte-americana (Santos, 2007).
O american way of life passou a ser difundido para as massas logo após
o fim da Segunda Guerra Mundial.
Ainda na década de 1960 a economia da cidade se torna mais di-
nâmica, graças à implantação da indústria cerâmica, gerando algo em tor-
no de 15.000 empregos na época (AMREC, 1999 apud SANTOS, 2007).
Percebe-se aí também um incremento das viagens aos Estados Unidos,
mas é claro que apesar do fascínio pelo avião, nem todos tinham as con-
dições financeiras para fazer tais viagens. Mas na cidade existia uma nova
elite carvoeira e cerâmica, além de uma classe média urbana, que podia
adquirir os bens da modernidade e viajar como turistas aos EUA e esse es-
tilo de vida de classes mais abastadas era difundido pela mídia às demais
classes. Para se ter uma idéia de como foi se formando um imaginário
na cidade sobre os Estados Unidos, uma “proximidade”, uma falta de
estranhamento em relação àquele país, num desfile de 7 de setembro em
1976 um menino foi fantasiado de Mickey Mouse (CAMPOS, 2003).
Jaci Carminati, é considerado como o pioneiro nessa emigração
para os EUA. Jaci estudou em um seminário em Minas Gerais e lá ficou
amigo de um rapaz que posteriormente migrou para os EUA. Jaci, então,
foi para os EUA em 1966, buscando a ajuda desse amigo para encontrar
trabalho. Já estabelecido naquele país, Jaci encontrou emprego para seu
irmão, Dino Carminati, que foi em 196915.
Dino relata na época era muito fácil conseguir um Green Card e
ficar em situação legal no país, bastava comprovar que tinha um emprego
nos EUA para ganhar o visto. Dino conta na entrevista que na época que
ele chegou nos EUA, ele já tinha conhecimento de 5 brasileiros morando
só naquela cidade, Manchester, no Estado de New Hampshire, vizinho
de Massachussetts, próxima a Boston (80 km), sendo que um deles havia
sido levado por Jaci. Dino também dá detalhes de uma viagem que ele e
seu irmão fizeram de carro dos EUA até Criciúma em 1970.
[...] eu tinha um Mustang zero [...] meu irmão o Jaci, e me disse:
“Dino: vamos pro Brasil de carro [...] nós saímos no dia 5 de de-
zembro de 1970, chegamos, tinha um mês [...] era começo de ja-
neiro [...] mas também, foi assim mil milhas por dia. [...] Nossa, é
pra matar! [...]. Nos saímos do México, pra Honduras, nos anda-
va duas, três milhas, dois três quilômetros aí tinha que parar pra

15 Relato de Dino Carminati em entrevistarealizada na cidade de Lowel em junho de 2008

226 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


escovar a borboleta do radiador [...] era época da borboleta ali,
a coisa mais linda do mundo[...]. Passamos lá no centro de Chile,
pegamos os Andes [...]. Atravessamos a Argentina toda, depois
chegamos na Capital, Buenos Aires. Em Buenos Aires botamos o
carro no barco, fomos pra Montevidéu, aí entramos no Brasil pelo
Chuí, aí chegamos na alfândega, cadê o fiscal lá da alfândega, não
tava. Tivemos que ir lá na praia buscar o cara, pra ele carimbar
o passaporte pra entrar no Brasil. Aí chegamos em Porto Alegre
domingo de manhã morto de cansado [...]. (Entrevista realizada
com Dino Carminati nos EUA em Lowell, julho de 2008).

A chegada em Criciúma com o carro importado foi noticiada nos


jornal e rádio local, causando grande interesse entre os jovens que vi-
ram as grandes possibilidades de sucesso no projeto de emigrar para os
Estados Unidos.
Ao longo dos anos de 1970 e 1980 outros criciumenses emigra-
ram formando assim pontos iniciais da rede que no início dos anos de
1990 dará suporte ao boom da emigração para os EUA.
Com o passaporte italiano na bagagem o caminho que grande
parte dos emigrantes criciumenses, portanto, não é de “retornar” à terra
dos seus nonos, mas “fazer a América”, mobilizando, muitas vezes, as
lembranças e memórias dos imigrantes que vieram para o Brasil na vira-
da do século XIX. Como relata Anita Baily16
A maioria dos imigrantes que estão aqui tem alguma coisa dis-
so com eles [nonos] [...] Hoje nós estamos aqui [Estados Unidos]
como imigrantes da mesma forma quando eles estavam lá [Brasil].
É diferente, porque aqui é um país de Primeiro Mundo, nós vie-
mos para a cidade, eles foram para o mato, para a colônia. Nós
deixamos o Terceiro Mundo para vir para o Primeiro. Mas isso
não muda o fato de sermos emigrantes. (47 anos, descendente de
imigrantes italianos, quatro anos nos Estados Unidos. Entrevista
realizada nos EUA, 2008),

O relato de Anita e de outros descendentes nos Estados Unidos


revelam como o passado migratório é acionado pelos migrantes, o que
demonstra uma conexão com o presente. Embora atribuam um signi-
ficado ao fato de migrarem para o chamado “Primeiro Mundo”, fica
evidente no relato a percepção da condição de trabalhador migrante.

16 Como se trata de uma migração indocumentada, para preservar a identidade das entrevista-
das, todos os nomes que aparecem nas entrevistas são fictícios.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 227


A dupla cidadania torna-se uma estratégia de migração para os criciu-
menses e ressalta a ligação com os imigrantes do passado, valorizando a
migração no presente como um recurso, uma possibilidade de batalhar
por uma vida melhor. É assim que Anita, depois da separação de um
casamento de mais de 20 anos, decidiu migrar para mudar de vida e se
encontrar com a filha nos Estados Unidos.
Anita decidiu emigrar no final da década de 1990, momento em
que há um crescimento significativo da migração de criciumenses para
a região de Boston, construindo em Criciúma, assim como em Gover-
nador Valadares na década de 1980, uma nova conexão.
Os primeiros criciumenses partiram rumo aos Estados Unidos em
meados da década de 1960, mas é no início dos anos 1990 que esse fluxo
torna-se significativo tanto para aqueles que partiram quanto para aqueles
que ficaram na cidade, criando-se, assim, um campo de relações transna-
cionais que começa a ser observado no cotidiano da cidade.
O período que compreende de 1970 até 1989 corresponde a
apenas 5% do total das viagens dos criciumenses em direção aos Estados
Unidos ou à Europa. Foi na virada dos anos de 1990 que eles come-
çaram a voar em direção ao exterior, ocorrendo um crescimento con-
tínuo do número de primeira viagem nos anos de 1993 (com 4,9%) e
1994 (com 6,0%) do total das viagens17. Esses dados foram os primeiros
indicativos de que a migração esporádica estava tornando-se um movi-
mento contínuo de migrantes. Esse período corresponde exatamente da
“crise do setor carbonífero”, período em que o setor perdeu os subsídios
governamentais e enfrentou a concorrência com o carvão mais barato e
de melhor qualidade vindo do exterior.
Ao analisarmos o período de 1998 a 2000, percebe-se que 48,4%
do total realizaram sua primeira viagem nesse período, assim distribuí-
do: 12,5% em 1998, 17,2% em 1999 e 18,7% em 2000 (ASSIS, 2004)
Assim, diferentemente dos emigrantes de Governador Valadares,
que realizaram 40,8% das primeiras viagens nos períodos de 1987 a
1989 (FUSCO, 2000), poderíamos dizer que o “triênio da desilusão”18,
na região de Criciúma, ocorreu 10 anos depois. Como os dados de

17 Dados coletados nas agências de viagem da cidade de Criciúma.


18 Sales (1999a) denominou “triênio da desilusão” o período - entre os anos de 1987 a 1989 -
quando milhares de brasileiros deixaram o país decepcionados tanto com a política econômi-
ca, quanto com a situação política.

228 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


2001 referem-se apenas ao primeiro semestre, não representam o
ano, mas indicam a tendência ascendente da emigração na cidade,
pois são computados apenas o período de janeiro a julho encontram-
se 13,4% do total das viagens.
Na década de 1980 a cidade de Governador Valadares, já desen-
volvia uma complexa rede de relações que a conectava a algumas cidades
da região de Boston. Em Criciúma, também observamos a configuração
desses laços que conectam a origem e o destino - as redes sociais – sen-
do utilizadas nos anos de 1990. Essas redes foram formadas na década
anterior e são elementos essências na direção do fluxo, pois, constroem
vínculos emocionais e as trocas de informações e ajuda entre as pessoas
que já estão no local de destino e aquelas que estão partindo.
Os emigrantes são apoiados por algum parente ou amigo. Desde
os preparativos para a viagem até a chegada ao país de destino. No de-
poimento de Dino Carminati a ajuda aos conterrâneos é explicitada da
seguinte forma:
“[...] depois o meu irmão trouxe várias pessoas e você sabe como
é o negócio, um vai trazendo o outro”

Nas teorias migratórias discute-se que no mundo globalizado não


se torna mais possível explicar esses fluxos de pessoas simplesmente
como um resultado de uma crise econômica, sendo que a decisão de
migrar deixou de ser “solitária” para se tornar uma decisão tomada em
conjunto com amigos e familiares, tanto daqueles que já partiram quan-
do daqueles que aqui já ficaram (ASSIS, 2004). Essa migração em rede é
uma maneira de minimizar os riscos dessa empreitada, que muitas vezes
acaba em tráfico de pessoas, violências, estupros, caminhadas, e mortes
no deserto da fronteira.

5.3 - A consolidação das redes, redes de retorno e os impactos da


emigração na origem

Ao longo das duas últimas décadas do século XX, os valadarenses


e criciumenses residentes no exterior foram construindo múltiplas rela-
ções econômicas, culturais e familiares, o que sugere que os imigrantes,
mesmo ausentes no exterior, continuam em contato com as suas cida-
des de origem (ASSIS, 1999; SALES, 1999, SIQUEIRA 2009).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 229


O que se pode observar pela ampliação da presença nos dados
abaixo sobre a presença de emigrantes nos domicílios criciumenses.
Tal contato é traduzido em investimentos nas cidades de origem que
movimentam o comércio local - notadamente a construção civil, que
movimenta o mercado imobiliário - e também fazem surgir microem-
presas movimentadas pelos dólares que os familiares recebem. Tais in-
vestimentos têm movimentado a vida de cidades que se tornaram ponto
de partida de emigração, como Governador Valadares.
As cidades que ao longo das últimas décadas construíram múltiplas
relações entre a sociedade de origem e a de destino. Os investimentos
demonstram que os migrantes têm projeto de retornar ao país e que se
mantêm em contato com ele. Somados às remessas enviadas para manter
os familiares que permaneceram no país, os investimentos representaram,
em 2002, a entrada de US$ 2,6 bilhões de dólares no país19.
“[...] agora estamos investindo nesse negócio [...], acreditamos que
em dois anos podemos voltar para Criciúma [...] é o nosso sonho
[...]” (Primo, 32 anos entrevista realizada em julho de 2008).

Também é visível o impacto da emigração dos brasileiros no co-


tidiano das cidades de destino. O surgimento de lojas que vendem
exclusivamente produtos brasileiros, além de jornais, rádios, canais de
televisão brasileiros voltados aos brasileiros e até um CTG (Centro de
tradições gaúchas) foi criado em Somerville, cidade da grande Boston
com muitos brasileiros, que inclusive faz apresentações e dá aulas de
danças típicas rio-grandenses. Para se ter uma idéia, em 2007 o Con-
sulado Geral Brasileiro em Boston estimava um número de 300.000
mil brasileiros morando no estado de Massachusetts, para efeito de
comparação, a população de Boston em 2007 era de 599.351 mil
pessoas (BUREAU, 2006).
A história de Ronaldo é muito semelhante aos retornados estu-
dado por Siqueira (2009) na Região de Governador Valadares. Após
retornar e montar seu negócio no Brasil tive que retornar aos EUA de-
vido ao insucesso no investimento. Criciúma ainda não conta como em
Governador Valadares de associações de migrantes que procuram atuar
no destino e nem com interesse da Associação comercial ou do SEBRAE
em montar cursos para capacitarem migrantes retornados sobre como

19 Folha de São Paulo, 18/08/2002.

230 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


investir seus recursos, o que faz com que histórias como essas sejam
recorrentes (SIQUEIRA, 2008a).
Outro impacto da migração na cidade é o investimento na construção
civil. Em torno de 20% de todo o faturamento da Construtora Fontana era
proveniente de dinheiro ganho por emigrantes20. Na cidade de Criciúma,
algumas imobiliárias abriram filais na região de Boston, na cidade de
Somerville, para vender casas e apartamentos para os emigrantes brasileiros.
Proprietária de uma imobiliária em Somerville relatou que grande
parte de suas vendas são de imóveis em Criciúma.
[...] os emigrantes olham o projeto de apartamento ou casa pron-
to ou na planta, mas é o parente que ficou no Brasil, em geral os
pais, que acompanha as obras e manda os retratos ou filmagens
mostrando o andamento da obra. Assim, muitos migrantes quan-
do retornam para o Brasil já encontram a casa ou o apartamento
pronto. (Entrevista realizada com proprietária de imobiliária em
Criciúma, setembro de 2008)

Embora os dados sobre os investimentos em Criciúma sejam es-


timativos as informações ressaltam a importância das remessas para o
local de origem e revelam a constituição de uma rede de agências de tu-
rismo e imobiliárias que se inserem nessa rede migratória. Nesse ponto,
as redes de parentes se cruzam com as redes de agências de turismo e
imobiliárias na realização do projeto migratório, num negócio bastante
lucrativo para as empresas.Como disse uma migrante retornada ao mos-
trar sua casa construída em Criciúma
“[...] se nossos patrões vissem o que fazemos com cada US$
50,00 dólares”. (Entrevista realizada com retornado em Criciú-
ma, agosto 2008)

Estes dados demonstram que se para emigrar as redes sociais no


destino são fundamentais, para retornar as redes na origem, também
são fundamentais, pois além de orientar e efetivamente realizar o inves-
timento também amenizar as incertezas do retorno.
“[...] lá tem minha família [...] sei que não é fácil voltar [...] mas
tenho eles que posso contar. [...], vai ser bem melhor criar meu
filho lá, pois sei que posso contar com eles. [...] estão contando os
dias para a nossa volta”. (Renata, 27 anos, emigrou em 2004)

20 Jornal a Gazeta Mercantil, 2 de agosto de 2001, p.1

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 231


Alguns dados apresentados por (ASSIS, 2004) em relação às re-
messas, demonstram como as redes sociais na origem são importantes.
O homens emigrantes que mandam dinheiro dos EUA para Criciúma,
40% deles envia o dinheiro para as esposas administrarem e/ou aplica-
rem em algum bem na cidade. Os dados também revelam que os che-
fes de domicílios, seguidos dos cônjuges, são os que têm maiores obri-
gações com aqueles que permaneceram no Brasil, motivo pelo qual,
enviam mais remessas para aqueles que ficaram, principalmente seus
parentes. Somadas as remessas enviadas para manter os familiares que
permaneceram no país, os investimentos vindos do exterior represen-
taram, em 2002, uma entrada de US$ 2,6 bilhões de dólares no país21.
Os migrantes criciumenses, assim como outros migrantes internacionais,
partem com o projeto inicial de trabalhar e juntar dinheiro a fim de
melhorar o padrão de vida no Brasil. Nesse sentido, as remessas são um
importante indicativo da realização desse projeto (ASSIS, 2004).
O novo caráter desses movimentos migratórios está intrinseca-
mente ligado ao fato de que tais fluxos ocorrem num mundo cada vez
menor, com compressão do espaço pelo tempo como conseqüência
do desenvolvimento dos meios de comunicação, transporte e infor-
mática. Desta forma, as relações entre aqueles que partiram e aqueles
que permaneceram, os investimentos na terra natal, os movimentos de
mão-de-obra se processam de maneira mais intensificada e complexa
apontando para o contexto transnacional destes novos fluxos. Portanto,
as migrações contemporâneas são uma expressão contundente da re-
articulação entre o global e o local criando um campo social entre os
dois lugares-transnacionais.
Nos relatos, tanto dos primeiros emigrantes, como dos emigrantes
depois da década de 1990 estão evidentes que o principal motivo da
emigração é a motivação econômica. O desejo de uma vida melhor
revela a tentativa de inserir-se no mundo de consumo e no tipo de cida-
dania que esse mundo oferece a cidadania do consumo. Para realizar o
projeto de “fazer a América” e participar do sonho americano, homens
e mulheres imigrantes submetem-se ao trabalho no mercado secundário
em serviços que não realizavam no Brasil, trabalham longas horas por
dia e são em sua grande maioria indocumentados.

21 Folha de São Paulo de 18/08/2002

232 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Como os emigrantes valadarenses, os emigrantes criciumenses
também emigram com o projeto de retornar. Ao longo do tempo de
permanência nos EUA, muitos adiam indefinidamente o retorno, outros
retornam definitivamente ou periodicamente. Para o retorno é aciona-
do as redes familiares e sociais que deixaram na cidade de origem.
Dino Carminati relata sobre uma agência de viagens próxima de
Boston que segundo ele, somente no ano passado (2007) esta agên-
cia vendeu 27.000 passagens só de ida para o Brasil. Entre os motivos
apontados pelo entrevistado para esse retorno em massa estão a maior
vigilância americana em relação aos imigrantes ilegais, a queda do dó-
lar, o aumento do desemprego nos EUA e a própria crise da economia
americana. Sobre a emigração para os EUA hoje ele relata:
Já aconselhei muita gente a vim, hoje, se a pessoa não tem um
trabalho garantido e uma boa base aqui [EUA] eu acho que não é
uma boa coisa. (Entrevista realizada nos EUA em julho de 2008).

Os relatos dos emigrantes criciumenses nos permitem considerar


que como os valadarenses eles reconfiguram o espaço socioeconômico
de sua cidade. Contam com as redes sociais de emigração para empreen-
der o projeto de emigrar e ao retornar também contam com a rede social
na origem para amenizar as incertezas e possibilitar a readaptação.

6 - Conclusão

O objetivo central dessa pesquisa foi verificar como se formam,


articulam, e mantém as redes sociais no processo migratório nas cidades
de Governador Valadares e Criciúma. Com base nos relatos orais dos
primeiros emigrantes que formaram os pontos iniciais das redes sociais
de emigração concluímos que nas duas cidades (Governador Valadares
- MG e Criciúma – SC) o início da conexão se dá, primeiramente, com a
difusão da idéia do estilo de vida americano como o mais desejado pela
elite da cidade, na década de 1960.
Governador Valadares apresenta um dado diferente, que é a pre-
sença de trabalhadores norte americanos na cidade, na década de 1940
até o final dos anos de 1950, que chegaram para ampliação da estrada
de ferro e exploração e beneficiamento da mica. Este foi um período de
grande desenvolvimento econômico que criou no imaginário popular a
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 233
idéia de que os EUA era um lugar de grandes possibilidades e reforçou
a admiração pelo estilo de vida daquele povo.
O intercâmbio de jovens da elite para estudar inglês, patrocinado
pelo Rotary, está presente nos relatos dos primeiros emigrantes valadaren-
ses e criciumenses, que informam as notícias trazidas por eles. Os primei-
ros emigrantes valadarenses partiram em 1964 com visto de trabalho e os
criciumenses em 1966 com passaporte italiano. Nas décadas seguintes as
redes vão se formando. Governador Valadares tem o boom emigratório
na segunda metade do ano de 1980 e Criciúma nos anos de 1990.
Assim como os mineiros de Governador Valadares, os catarinen-
ses partiram em direção à “América” com um projeto migratório co-
mum: comprar uma casa, um carro, montar um negócio. Esse fato re-
vela um aspecto interessante das redes sociais que atuam na migração,
pois uma parcela dos novos migrantes criciumenses é descendente de
italianos e, portanto, têm a cidadania italiana o que abre o mercado
de trabalho na Europa. No entanto, em vez de fazerem o caminho
inverso dos nonos, migrando para a Itália, a maioria segue o caminho
aberto pelos mineiros partindo rumo à região da grande Boston. As-
sim, um século depois, os criciumenses repetem a trajetória de seus
nonos e nonas, continuando num certo sentido o projeto de “fazer a
América”, partindo em direção aos Estados Unidos.
Os criciumenses, assim como os migrantes valadarenses, partem
para onde há melhores oportunidades de trabalho, mas fundamental-
mente para onde possam encontrar uma rede de apoio para recebê-los
tecendo as redes sociais na migração. Esse movimento, relativamente au-
tônomo ao Estado e às forças estruturais, é caracterizado por ser de difícil
apreensão, pois é fundamentalmente baseado em laços informais, cons-
truídos entre parentes, amigos e conterrâneos, muitas vezes distantes, mas
que em terras estrangeiras tornam-se uma referência fundamental.
Desse modo, as redes sociais acionadas no contexto da migração
foram analisadas como práticas sociais que envolvem tipos diferentes
de ajuda material, logística, emocional e simbólica que possibilitam aos
futuros migrantes partirem com referências de onde ir, qual o trabalho
que irão fazer e com quem vão morar.
Enquanto seus filhos/as e netos/as trabalham pelo mundo, seus/
suas “nonos/as” e mães/pais (quando não são eles próprios migrantes)
tocam sua vida, preparam a casa para recebê-los, muitas vezes adminis-

234 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


trando o dinheiro que é enviado. Tais questões sugerem vários arranjos
familiares em que as mulheres assumem um status peculiar. O contato
com o Brasil entre os que emigram e os que ficam é mantido por meio
das cartas, fotos, telefonemas, remessas e, mais recentemente, por meio
da internet, atualizando e reforçando a idéia do projeto familiar, econô-
mico e afetivo que é a imigração.
Assim, as redes sociais no destino e origem são elementos fun-
dantes do projeto emigratório. No destino ela direciona o fluxo e ame-
niza os custos psicossociais, afetivos e econômicos e na origem, para
concretização do projeto de retorno essas redes possibilitam a realiza-
ção dos investimentos e a diminuição do impacto do reencontro com
o seu local de origem.
As novas tecnologias de comunicação são peças importantes no
projeto emigratório, pois possibilitam a participação diária do emigrante
no cotidiano de suas cidades e famílias e dos que ficam na origem da
vida e trabalho do familiar que emigrou. Através do MSN, Orkut, Skype
mantêm contato diário e as decisões relacionadas ao cotidiano são com-
partilhadas entre os dois lugares em tempo real. Isso possibilita a difu-
são das informações, uma presença marcada pela distância física, mas
amenizada pela voz e imagem que aproximam esses pontos distantes no
mapa, mas próximo virtualmente. O imigrante pode acompanhar em
tempo real a construção de seu imóvel, o crescimento dos filhos, enfim
o cotidiano da família, amigos e lugar.
O fenômeno da emigração redimensionou o cotidiano das duas
cidades. No setor imobiliário, os investimentos dos emigrantes aquece-
ram o mercado de venda de imóveis e a grande procura inflacionou o
mercado. Além disso, a abertura de novos empreendimentos deu novo
dinamismo à economia. Contudo, este se apresenta como um aspecto
perverso da emigração22. Muitos emigrantes fazem investimentos inade-
quados, sem avaliar as leis do mercado e acabem perdendo todo seu
investimento. Na cidade de Governador Valadares esta questão preocu-
pou a sociedade civil que criou, a partir da organização dos familiares
dos emigrantes ONGs e associações que buscam esclarecer ajudar o
emigrante tanto no retorno quanto no investimento. Além disso, procu-
ram, também, esclarecer sobre os riscos de emigrar.

22 Discussão mais detalhada sobre esta questão ver Siqueira (2006).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 235


As conexões possíveis entre os imigrantes e os emigrantes do pre-
sente evidenciam-se através dessas redes familiares que demonstram que
este projeto individual, em geral está sustentado nas relações familiares,
que são muito importantes para todo o projeto desde o momento de pre-
parar para a partida, o apoio emocional e financeiro, até as viagens que os
pais fazem para os EUA para matar as saudades, ou as ajudas para arranjar
emprego nos locais de destino. Nessas redes as mães, esposas, namora-
das, irmãs são muito importantes, pois fazem circular as informações en-
tre os demais membros das famílias. O que se constata tanto daquele que
partiram quanto daqueles que ficam é uma tentativa de manter seus laços
com o Brasil, com os familiares o que aponta pra uma transnacionalização
das relações familiares que se constroem entre os dois lugares.
Portanto, em Criciúma, assim como em Governador Valadares,
construíram-se diversos laços que conectam a cidade nos Estados Uni-
dos. É a partir dessa perspectiva que podemos compreender como essas
cidades da região sul e do leste Mineiro se tornaram pontos de partida.
Nesse sentido podemos considerar que valadarenses e criciu-
menses constroem conexões transnacionais criando um singular cam-
po social envolvendo os que partiram e os que ficaram numa com-
plexa rede de relações. Essas redes auxiliam tanto no momento da
partida, quanto na chegada no destino, bem como na administração
dos investimentos na cidade de origem.

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TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 239


240 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
A representação do imigrante valadarense
na mídia impressa local
Juliana Vilela Pinto 1
Sueli Siqueira2

Introdução

A
comunicação é um elemento essencial para os processos
de sociabilidade humana, dentre os quais é importante
destacar a construção da memória e da identidade. O pas-
sado pode ser observado, compreendido e, conseqüentemente,
narrado de formas diversas. Os jornalistas retratam este passado e
os jornais servem de fonte quando precisamos resgatar ou estudar
um determinado assunto, como é o caso da imigração de valada-
renses para os Estados Unidos.
A comunicação também é agente ativo no processo de constru-
ção histórica, deixando marcas ao longo de toda a trajetória da huma-
nidade. Desta forma, se comporta como um elemento potencial da me-
mória, que pode ser recuperada como traço distintivo de identidades
coletivas e individuais acerca do passado instituído. Em uma realidade
midiatizada, a comunicação é cada dia mais relevante no eterno jogo
entre memória e esquecimento, que marca a existência humana.
Os últimos séculos acompanharam uma evolução tecnológica de-
senfreada com a criação dos telégrafos, do cinema, do rádio, da tele-
visão e, mais recentemente, da internet, capaz de conectar, em tempo
real, pessoas espalhadas nos mais diversos rincões do mundo. Haesbaert
(2004) destaca a fragilização das fronteiras e a mobilidade constante,
seja ela concreta ou simbólica, em que se transformou a nossa vida.
Neste contexto, a comunicação de massa emerge como um território
simbólico, ou seja, produto da apropriação simbólica de um grupo em
relação ao seu espaço vivido.

1 Jornalista, graduada pela Universidade Vale do Rio Doce, mestranda do Programa de Mestrado
em Gestão Integrada do Território da UNIVALE.
2 Doutora em Sociologia e Ciência Política, professora do Programa de Mestrado em Gestão
Integrada do Território da UNIVALE.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 241


No caso da cidade de Governador Valadares, o tema da mi-
gração foi abordado pela mídia impressa das mais diversas formas,
principalmente a partir da segunda metade dos anos de 1980, fase
em que é registrado um verdadeiro boom migratório. Este artigo sur-
ge com base em uma pesquisa realizada no arquivo do jornal Diário
do Rio Doce, o principal e mais antigo periódico da cidade. A partir
da observação e leitura de todo o conteúdo sobre o tema publica-
do entre 1960 e 2009 foi possível encontrar reportagens, crônicas,
charges e até mesmo suplementos especiais com circulação no Brasil
e Estados Unidos, cujo conteúdo traz reportagens para manter os
imigrantes informados sobre a terra natal e também mostrava aos
moradores de Governador Valadares como era a vida dos conterrâ-
neos na terra do Tio Sam.
Dentre todo o conteúdo analisado, uma seqüência de histórias
em quadrinho sobre o tema da imigração chamou a atenção. No dia
11 de julho de 1990 foi lançado o personagem “Capitão Dólar”, cria-
do pelos publicitários Clóvis Moreira Costa e Marcondes Tedesco. Em
reportagem publicada pelo jornal no dia 31 de janeiro de 1991 os
criadores definem o “herói” como um valadarense que volta dos Esta-
dos Unidos cheio de si.
A proposta deste artigo é fazer uma análise de conteúdo destas
“tirinhas” que circularam diariamente no jornal entre julho de 1990 e
setembro de 1991. Em um ano e três meses foram publicadas 375 tiras,
cujo conteúdo trabalha de forma irônica a relação existente entre a co-
munidade valadarense e o fenômeno migratório na era global.

2 - O novo contexto migratório no cenário da globalização

Para que possamos compreender o conteúdo das tirinhas e a rela-


ção existente entre Governador Valadares e a Terra do Tio Sam é preciso
voltar no tempo e analisar o processo de territorialização e o histórico da
cidade, fortemente marcada pelo fenômeno da migração internacional.
No caso do Brasil, o cenário recente contraria a história, pois
acontecia, até o início do século XX, o inverso do processo migratório
registrado nos dias de hoje. O Brasil era um país marcado pela imigração
e caracterizado pela aptidão acolhedora e a chegada destes imigrantes
provocou mudanças consideráveis na formação do território brasileiro.

242 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Quando abordamos o conceito de território é importante fazer
uma distinção no que se refere ao espaço. Estes não são termos equi-
valentes. Raffestin (1993) define que um território é formado a partir
do espaço3 e compreende o resultado de uma ação conduzida por ator
sintagmático4 – quando o espaço é apropriado, seja de forma concreta
ou abstrata (por uma representação, por exemplo), ocorre o processo
de territorialização. O território é entendido como o espaço socialmen-
te apropriado, produzido, dotado de significado. Neste território são
firmadas as relações de poder estabelecidas pelos homens e o espaço é
constantemente modificado.
O território (...) [é] um espaço onde se projetou um trabalho, seja
energia e informação, e que, por conseqüência, revela relações mar-
cadas pelo poder. O espaço é a “prisão original’’, o território é a
prisão que os homens constroem para si. (RAFFESTIN, 1993: 2)”.

Deleuze e Guattari (apud HAESBAERT, 2004) propõem uma no-


ção mais ampla de território, como um dos conceitos chave da filosofia,
em dimensões que vão do físico ao mental, do social ao psicológico e
de escalas que vão desde um galho de árvore desterritorializando até
as reterritorializações absolutas do pensamento. É necessário ver como
cada um, em qualquer idade, nas menores coisas, como nas maiores
provações, procura um território para si, suporta ou carrega desterrito-
rializações e se reterritorializa.
Já Santos (2002) compreende que o território é formado no de-
senrolar da história, a partir da apropriação humana de um conjunto
natural pré-existente, sendo configurado pelas técnicas, meios de pro-
dução, objetos e coisas: pelo conjunto territorial e a dialética do próprio
espaço. O autor destaca a importância dos aspectos sociais, econômi-
cos, políticos e culturais que se entrelaçam de acordo com o movimento
na sociedade no decorrer da história
No Brasil, por exemplo, a chegada dos imigrantes trouxe modifi-
cações profundas na estrutura social, econômica e demográfica e tam-
bém teve papel importante na formação da composição da população
brasileira, marcando um processo constante de territorialização e reter-

3 O espaço é anterior ao território. O território se apóia no espaço, mas não é o espaço. É uma
produção, a partir do espaço.
4 Ator que a realiza um programa.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 243


ritorialização do espaço. Ao chegarem os indivíduos ocupam pontos no
espaço e são distribuídos a partir de modelos que podem ser aleatórios,
regulares ou concentrados.
Nos dias de hoje a chegada de brasileiros também provoca alte-
rações consideráveis na estrutura territorial dos países de destino, nesse
sentido podemos citar a cidade de Framingham na Região de Boston,
essa localidade depois da reestruturação da economia perdeu sua vita-
lidade econômica. As empresas fecharam suas portas e a região ficou
abandonada. As cidades próximas possuíam mercado de trabalho se-
cundário atrativo o que levou muitos brasileiros a viverem nessa loca-
lidade. Downtown de Framingham foi ocupado por um mercado de
produtos brasileiros (SIQUEIRA, 2008)
Os novos fluxos migratórios apresentam características muito di-
ferentes do processo que trouxe milhares de estrangeiros para o Brasil O
mundo global, contexto em que estão inseridos os novos fluxos, exige a
reavaliação de paradigmas e teorias.
Ianni (1996) destaca que com o advento da globalização o mapa
do mundo se embaralha e a história entra em movimento. As forças
produtivas ultrapassam as fronteiras geográficas, históricas e culturais,
em um processo “[...] que desafia, rompe, subordina, mutila, destrói ou
recria outras formas sociais de vida e de trabalho, compreendendo mo-
dos de ser, pensar, agir, sentir e imaginar” (IANNI, 1996, p.2)
De acordo com Giddens (1999) a globalização, promoveu a com-
pressão do tempo e espaço, derrubou as fronteiras geográficas ligando
economias, mercados e sociedades, contudo essas barreiras permane-
cem para as pessoas. Graças às novas formas de interação social, lan-
çadas com o advento das novas tecnologias de comunicação, mesmo à
distância, um agente social de um determinado país pode influenciar na
política, economia ou até mesmo nos costumes em escala planetária.
Neste contexto, estão inseridos os novos fluxos migratórios. Como
destaca Assis (1995), eles se dão em um mundo cada vez menor e mais
conectado, graças ao desenvolvimento dos meios de comunicação, dos
transportes e da informática. Desta forma, evidencia-se um contexto de
migrações transnacionais, que amplia possibilidade de relações sociais
entre a origem e a sociedade de destino, entre o local e o global.
O surgimento das chamadas cidades globais, provoca a “disper-
são das atividades econômicas pelo mundo” (IANNI, 1996: 3), as fron-

244 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


teiras nacionais são rompidas em um processo de desterritorialização e
reterritorialização de pessoas, coisas e idéias. Há uma disjunção espaço-
temporal e o conseqüente surgimento de espaços transnacionais, que
transformam certas cidades e regiões em um “empório de mercadorias
do mundo” (SASSEN, 1998).
Mas é importante destacar, como ressaltam as pesquisadoras Assis
e Siqueira (2009), que esta globalização, apesar de conectar o mundo
em tempo real, também tem sua face excludente. Ao passo em que o
dinheiro, as mercadorias têm a possibilidade de circular livremente en-
tre os países os imigrantes já não encontram a mesma facilidade na hora
de cruzar a fronteira, fato demonstrado pelos moradores da Região de
Governador Valadares que buscam a emigração indocumentada, sem
nunca ter tentado a documentação por acreditarem que não consegui-
ram o visto, principalmente na embaixada americana.
Patarra (2006: 8) destaca que neste contexto global os movimen-
tos migratórios devem ser compreendidos como uma denúncia.
[...] os movimentos migratórios internacionais representam
a contradição entre os interesses de grupos dominantes na
globalização e os Estados nacionais, com a tradicional óptica
de sua soberania; há que tomar em conta as tensões entre
os níveis de ação internacional, nacional e local. Enfim, há
que considerar que os movimentos migratórios internacionais
constituem a contrapartida da reestruturação territorial plane-
tária intrinsecamente relacionada à reestruturação econômico-
produtiva em escala global.

Nesse sentido, a globalização traz diferenciação e fragmentação


sendo atravessada por um desenvolvimento desigual e contraditório,
pois as mesmas forças que promovem integração desagregam, gerando
tensões tanto no destino como na origem como afirma Ianni (1996). Na
origem, os trabalhadores buscam encurtar o tempo de concretização
de seus projetos e desejos socialmente impostos por essa nova ordem
através do projeto de emigrar. Nas cidades globais, eles irão ocupar os
ninhos de trabalho no mercado secundário e assim suprir a demanda de
trabalho em diferentes setores do sistema.
A cidade de Governador Valadares é palco desse movimento mi-
gratório desde a década de 1960. Esse fluxo deixa marcas no território
reconfigurando relações, espaço e cultura.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 245


3 - O território valadarense e o fenômeno migratório

A globalização e a reestruturação produtiva apresentam uma nova


dinâmica nesses fluxos migratórios internacionais e promovem uma re-
configuração da estrutura territorial mundial.
Entre estes novos fluxos migratórios destacam-se os pioneiros valada-
renses, que começaram a migrar para os Estados Unidos ainda na década
de 1960. Amorim (2008) aponta que, dadas as características assumidas
pela migração na cidade, é possível dizer que ela faz parte do imaginário
coletivo não apenas uma saída para a crise financeira, mas também, como
um projeto simbólico com o quais muitos cidadãos se identificam.
Como destaca Almeida (2003) a cidade de Valadares revela uma
longa história de ocupação e exploração que remonta o século XVII com
a descoberta de ouro na região. Localizada em um ponto estratégico em
relação às fontes produtoras de minérios e pedras semipreciosas, a ci-
dade atraiu muita gente para executar atividades de apoio à mineração,
conferindo à cidade papel de entreposto comercial.
E esta característica é um dos fatores que ajudou a formar na
cidade um quadro propicio à imigração. Assis (1995) divide a conexão
entre Governador Valadares e os Estados Unidos em três etapas. O inte-
resse dos valadarenses pela terra do Tio Sam começou ainda na década
de 1940, mesmo antes dos primeiros imigrantes desembarcarem em
território americano. Na época da II Guerra Mundial, a mica era um
produto essencial para a indústria bélica5 e a abundância deste mineral
na região chamou a atenção de empresas americanas, interessadas da
extração e comercialização da substância.
Trabalhadores estrangeiros, de maioria americana, chegaram à
cidade para trabalhar com a exploração do minério e posteriormente
na ampliação da estrada de ferro Vitória - Minas6. Também a partir de
uma parceria entre os dois países foi criado o Serviço Especial de Saúde
Pública (SESP) para o tratamento de água e combate a doenças como

5 O mineral era utilizado como material de isolamento pelas indústrias bélicas.


6 Na década de 50, os americanos que trabalhavam para a Morrison-Knudsen (um consorcio de
empresas entre EUA e Canadá) estiveram em Governador Valadares para trabalhar e prestar
consultoria na modernização da estrada de ferro Vitoria Minas, que pertence a Vale. Data
deste período a construção de um acampamento com um conjunto de casas de padrão ameri-
cano, que hoje é um bairro residencial da cidade e já não apresenta mais as características de
construção americanas.

246 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


a malária. Espíndola e Oosterbeek (2008) destacam que nesta época,
nos anos de 1940 e 1950, a abertura de estradas e o saneamento fa-
voreceram a ocupação da floresta tropical e a expansão das atividades
extrativista, transformando a cidade em um pólo regional.
A partir das diversas formas de contato entre os valadarenses e
os norte-americanos foi criada no imaginário local a idéia dos Estados
Unidos como uma terra promissora, com vasta oportunidade de em-
prego e ascensão social.
Os Estados Unidos da América passam a ser, do "mundo estran-
geiro", a referência mais concreta; tornam-se parte da vida e re-
duto de esperança, cujas raízes assentam-se nesses contatos que
têm início na década de 40. Com mais propriedade, pode dizer-
se que esse espaço específico (Estados Unidos da América) incor-
pora-se à extensão do conhecimento geográfico da sociedade va-
ladarense, torna-se "conhecido", facilitado, mais presente; já não
faz parte de um mundo qualquer, ganha contornos definidos nas
relações que se estreitam comercialmente. (SOARES, 1995:95).

Siqueira (2009) destaca que a presença americana na cidade pode


ser considerada como fator contribuinte para fixar na memória popular
a idéia dos Estados Unidos como um país de grandes oportunidades.
Nos anos 1960, a cidade constituída, basicamente de imigrantes, a idéia
de emigrar não era algo estranho, pois já fazia parte das alternativas de
ganhar dinheiro e melhorar de vida dessas pessoas.
A partir da década de 1960, a cidade enfrentou um período de es-
tagnação econômica. O desmatamento contínuo levou à introdução da
prática da pecuária extensiva, mas a inserção da nova atividade não foi
suficiente para absorver o excedente de mão-de-obra. (ALMEIDA, 2003).
A região é historicamente marcada por ciclos econômicos baseados
no extrativismo predatório. Essas atividades apresentam no decurso
do seu desenvolvimento sinais de esgotamento dado a sua incapa-
cidade de manter um curso auto-sustentável. A substituição de uma
atividade predatória por outra, acabou por gerar o declínio dessas
atividades e a impossibilidade de as mesmas continuarem existindo
como base econômica da cidade e região. (AMORIM, 2008:08).

Neste contexto de estagnação que os primeiros valadarenses emi-


gram. A migração começou de forma discreta ainda na década de 1960,
mais precisamente no ano de 1964. Dezessete jovens, com idade entre
18 e 27 anos, todos com visto de trabalho e com boa condição financei-
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 247
ra, foram para os Estados Unidos ganhar dinheiro e retornar. Estes pio-
neiros valadarenses, oriundos da classe média não migravam por razões
puramente econômicas, mas também motivados pela curiosidade de
conhecer a terra das grandes oportunidades. (SIQUEIRA, 2008).
A escola valadarense de inglês IBEU (Instituto Brasil Estados Unidos)
levava brasileiros para participar de programas de intercâmbio nos Estados
Unidos. Os relatos dos intercambistas encantados com o estilo de vida norte
americano impulsionaram os primeiros imigrantes, que partiram com visto
de trabalho, constituindo os primeiros pontos da rede social, que impulsio-
nou e facilitou a chegada de outros valadarenses aos Estados Unidos.
As cartas acompanhadas de fotos eram enviadas com freqüência
relatando as oportunidades e maravilhas da terra, difundindo as-
sim a grande aventura que era emigrar. Esses primeiros emigrantes
davam o suporte necessário para os que desejavam emigrar, além
das informações emprestavam dinheiro para o depósito7, busca-
vam no aeroporto, ofereciam estadia ou moradia, arrumavam o
primeiro emprego, compravam roupas adequadas ao clima dos
EUA. (SIQUEIRA, 2008:12)

Como já foi descrito anteriormente, a migração interna já é co-


mum em terras brasileiras, também por esta tradição a migração in-
ternacional era entendida como “um projeto possível e relativamente
fácil de concretizar (SIQUEIRA, 2006, p. 62). Estas supostas facilidades
ajudam a compreender a saída dos primeiros migrantes.
Na década de 60, com uma população constituída basicamen-
te de imigrantes, a idéia de ‘fazer América’ era uma ‘aventura’,
assim como a vinda dos imigrantes para Valadares na boléia de
caminhão, ou diretamente de um porto no Rio ou São Paula para
esta cidade (ASSIS, 2002: 46).

Os anos de 1980 também ficaram conhecidos no Brasil como a


década perdida, em decorrência do fracasso dos planos de estabiliza-
ção econômica. Neste período, hiperinflação dificultava a manutenção
do padrão de vida da classe média brasileira Com a crise, a emigração
ganha característica de fluxo e altera tanto o país de origem quanto o
de destino. Margolis (1994) destaca alguns números desta crise: Nos
anos de 1990, a inflação chegou a atingir média anual de 1.795%. No

7 Neste período era necessário fazer um depósito de mil dólares no consulado americano para
receber o visto de trabalho.

248 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


primeiro ano do mandato do então presidente Collor, em 1990, a eco-
nomia sofreu retração de 4,6%, maior queda desde 1947.
Os países mais pobres, como o Brasil, viveram na década de 80
tentativas malsucedidas de ajuste econômico e financeiro, visan-
do à nova realidade do capitalismo internacional e à necessidade
de saldarem os compromissos com os pagamentos das dívidas
externas. O resultado foi uma década de crise econômica com
uma profunda dimensão social, em que as taxas de desemprego
se aproximaram dos 15% e a miséria se generalizou para 20% da
população (BRITO, 1996:11)

A partir da segunda metade dos anos de 1980 é registrado um


verdadeiro boom migratório8. A crise, que derrubou o otimismo eco-
nômico e empobreceu a classe média, associada ao ideal dos Estados
Unidos como nação próspera e a existência de uma rede que funciona
como elo entre origem e destino deram origem a um fluxo intenso de
valadarenses para os Estados unidos. O número de migrantes internacio-
nais passou de 75 milhões em 1965 para 120 milhões em 1990, o que
representa, neste ano 2,3% da população mundial. (SORES, 1995:1).
Ao analisarmos a relação entre os valadarenses e a migração tam-
bém não podemos deixar de lado a existência das redes sociais, for-
madas por parentes e amigos que vivem nos Estados Unidos e de uma
forma ou de outra contribuem para a chegada de novos imigrantes. De
acordo Siqueira (2008) estas redes representam um poderoso capital
social que ajuda as pessoas com baixa escolaridade e recursos na expe-
riência migratória de longa distância.
As cartas, as fotos, os telefonemas, os investimentos e a ascensão
social daqueles que retornam marcam significativamente o território. A
mídia impressa registra o significado e as representações desse movi-
mento migratório. O jornal impresso local de maior circulação é o Diá-
rio do Rio Doce que no período de julho de 1990 a setembro de 1991
a publicou tiras humorística que tratavam exatamente desse fenômeno.
No item seguinte iremos apresentar essas tiras e discutir sobre o a sua
representação em relação ao fenômeno migratório.

8 De acordo com os dados apresentados por SALES (1999, p.18), 49% dos brasileiros que che-
garam à região de Boston entre 1967 e 1995, desembarcam entre 1985 e 1989; entre 1990
e 1995 foram 28,6%. Já entre 1967 e 1984, um período de 17 anos, chegaram 22,4%, uma
quantidade bem menor dada a proporção de tempo. Estes dados evidenciam o boom migra-
tório compreendido entre 1985 e 1995.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 249


4 - Capitão Dólar - A representação irônica de um imigrante “cheio de si”

O personagem “Capitão Dólar” foi criado em julho de 1990 pe-


los publicitários Marcondes Tedesco e Clóvis Moreira Costa. As tirinhas
circularam diariamente, durante um ano e três meses, deixando de cir-
cular em setembro de 1991. Ao todo, foram veiculadas 375 histórias,
que retratam com humor e um pouco de ironia o imigrante valadarense
retornado e o fenômeno migratório em suas diversas facetas.
Para a realização da análise o material foi fotografado com câmera
digital e descarregado no computador. Além das tirinhas todo o conte-
údo relacionado ao fenômeno migratório publicado entre 1960e 2009
foi pesquisado. O material coletado foi divido segundo três categorias:
Conteúdo Jornalístico (reportagens, artigos, crônicas e matérias sobre o
assunto); State News, suplemento especial encartado no jornal que circu-
lava no Brasil e nos Estados Unidos nos anos de 1980 e 1990; Conteúdo
Humorístico, charges e tirinhas que retratam o imigrante valadarense; Pu-
blicidade, material publicitário (anúncios) relacionados à questão.
No entanto, para a realização deste artigo específico foi utilizada
a parte do banco de dados referente às tirinhas, que trazem as histórias
do personagem “Capitão Dólar” e seu amigo engraxate, o valadarense
Johnny. Neste item vamos analisar estas histórias e ver de que forma o
fenômeno da migração internacional de Valadarenses para os Estados
Unidos aparece representado sob a perspectiva do humor.
Um estrangeiro em seu próprio país. Assim pode ser definido o
personagem “Capitão Dólar”. Apesar de ser um personagem fictício e
do humor contido nas histórias, a verdadeira mensagem transmitida por
esta seqüência de quadrinhos é uma denúncia com relação à situação
dos brasileiros que vivem nos Estados Unidos e do sentimento de não
pertencimento quando retornam à terra natal.
Foram selecionados os dois primeiros meses, pois apresentam um
conteúdo cujas mensagens realçam bem a postura do imigrante retorna-
do, o deslumbre dos valadarenses com a possibilidade de conseguir um
visto de entrada e algumas situações típicas que mostram a forte relação
existente entre a cidade e os Estados Unidos. Nem todas estão reprodu-
zidas, mas o conteúdo de todas foi avaliado e está representado neste
item do artigo. Foi utilizada a análise do conteúdo para compreensão do
significado e representação dos conteúdos presentes no impresso.

250 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Para a análise das tiras nos atentamos à importância que a ima-
gem exerce no universo opinativo da comunicação. Como destaca Ca-
valcante (2002) este é um recurso fundamental capaz de influenciar um
público amplo, que muitas vezes não se interessa pelos gêneros opinati-
vos clássicos, como o editorial e a crônica. “Ela tem o mérito de produzir
um impacto muito maior na cabeça do leitor, pois se utiliza da evidência
e do humor, na apreensão do dia-a-dia” (CAVALCANTE, 2002:130).
Nicolau (2007) classifica as tiras publicadas nos jornais como um
gênero opinativo do mesmo nível que um editorial. O autor destaca
ainda a importância social que as tiras adquiriram a partir dos anos de
1970, pois, apesar do humor, trazem um conteúdo quente e crítico ca-
paz de retratar com aguçada ironia os paradoxos da nossa sociedade.
Este gênero surgiu nos Estados Unidos, a partir da necessidade de
os jornais diversificarem o seu conteúdo. De forma sucinta, as tirinhas
trabalham com a pluralidade de sentidos e trazem um desfecho ines-
perado. As histórias têm como base uma piada curta e envolvem, na
maioria das vezes, personagens fixos e estereotipados, como o Capitão
Dólar e seu amigo engraxate.
As tiras jornalísticas configuram-se como pequenas narrativas
estruturadas por intermédio dos códigos verbais e icônicos,
cujos elos são os balões.Elas propiciam análises em diferen-
tes perspectivas, aproveitando a combinação entre falas, ex-
pressões e gestos das personagens, e privilegiando a situação
contextual das tiras pelo seu aspecto interacional. São textos
encontrados na vida diária que operam em determinados con-
textos (MELO, 2008:63)

Figura 01
Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em 11/07/1990

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 251


A tira acima (Tira 01) foi a primeira da saga “Capitão Dólar”. O
recém retornado imigrante chega à redação do jornal e se apresenta ao
diretor da publicação como sobrinho do Tio Sam, fazendo uma alusão
aos Estados Unidos. Essa afinidade, sobrinho, se deve ao fato de ter
vivido nos Estados Unidos, mesmo que como trabalhador no mercado
de trabalho secundário9, destino dos emigrantes, sente-se próximo, não
como filho daquela terra, mas reivindica o direito de ser parente. Esse
é um diferencial dele para com seus compatriotas, que nunca pisaram
no solo da terra prometida. Tenta firmar sua identidade a partir dessa
experiência migratória10. Com a intenção de mostra seu diferencial, o
“Capitão” se veste ao melhor estilo norte-americano, com calça rasga-
da, colete e vários cordões pendurados.
Após uma temporada longe da terra natal, o imigrante volta
com a necessidade de reconstruir sua auto-imagem. Não tem ne-
nhum interesse de realçar as dificuldades, o sofrimento vivido no
estrangeiro, precisa demonstrar seus ganhos com essa aventura. É
muito comum encontrar na cidade e região as casas construídas
pelos emigrantes pintadas de cores vivas e chamativas, exatamente
para distinguir e demonstrar que seu projeto migratório de ir para o
exterior, trabalhar, ganhar muito dinheiro e retornar foi bem suce-
dido. (SIQUEIRA, 2009).
Ao desembarcar no Brasil, com a mala repleta de dólares, o pro-
tagonista destas histórias faz amizade com Johnny, um rapaz negro,
morador do morro do Carapina11, que trabalha como engraxate e tem
um sonho: conseguir o visto de entrada para os Estados Unidos. O va-
ladarense, com nome de americano, então, se alia ao Capitão Dólar,
pois acredita que ele pode ajudá-lo a conseguir seu objetivo e, enfim,
melhorar de vida.
Na cabeça do jovem engraxate, o Capitão é o exemplo que um
valadarense que, com a imigração, conseguiu dar a volta por cima,
fortalecendo a imagem dos Estados Unidos como uma nação prospe-
ra marcada pelo progresso e o desenvolvimento. A representação da
emigração como herói está presente na percepção popular e nos órgãos
públicos. Um exemplo é a placa na Praça dos Ferroviários em home-

9 Sua atividade profissional e condições de trabalho será revelada nas tira número 2.
10 A mesma reivindicação de status de emigrante o personagem reafirmará na tira número 7 e 9.
11 Favela mais central da cidade de Governador Valadares.

252 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


nagem ao emigrante com dizeres que se refere ao mesmo como herói
(SIQUEIRA, 2009). A emigração é uma possibilidade para os aventu-
reiros e heróis que buscam uma forma de conseguir a ascensão social
em curto espaço de tempo ou mesmo realizar um projeto que jamais
poderia ser executado sem a aventura de emigrar.
As tirinhas foram publicadas no início dos anos de 1990, épo-
ca em que o Brasil vivia uma forte crise econômica, com índices in-
flacionários que ultrapassavam 1.000%12. De acordo com informa-
ções publicadas no próprio jornal “Diário do Rio Doce” no dia 31
de janeiro de 1991, estimava-se que cerca de 12% da população
residia em terras norte-americanas. Se cada um destes imigrantes
enviasse para o Brasil a quantia de 200 dólares por mês, a cidade
receberia uma remessa de aproximadamente 6 milhões de dólares
ou 1,308 bilhões de cruzeiros13.
As cifras altas impressionam e fazem com que o capitão se
torne uma verdadeira celebridade. Mas, na verdade, a história re-
vela um homem de pouca instrução que executava trabalhos des-
qualificados como lavar defuntos e pratos. Desta forma, os cartu-
nistas revelam a realidade da vida dos valadarenses nos Estados
Unidos, trabalhos desqualificados no mercado secundário. As tiras
2 e 3 ilustram bem o tipo de trabalho dos valadarenses nesse país,
condição que muitos procuram esconder dos seus amigos e paren-
tes. Ao enviarem fotos, jamais revelam essas condições de trabalho,
moradia e a qualidade da vida que levam. Enviar fotos em frente a
carros de marcas, casas bonitas e fotos da neve, sem revelar que a
neve machuca e dificulta seu trabalho. Nessa tira, o personagem se
arrepende de dizer a verdade “Acho que fiz mal em contar aventu-
ras fortes para ele”.
Na visão de Margolis (1994), o grande poder de atração, que faz
com que os imigrantes troquem o Brasil pelos Estados Unidos, está na
oferta de empregos de baixo nível, que requerem pouca fluência de
inglês, mas oferecem ao imigrante uma remuneração muito maior do
que a recebida no país de origem.

12 De acordo com dados disponíveis no Almanaque Virtual do Jornal Folha de São Paulo, a infla-
ção acumulada do ano de 1990 foi de 1.476,56%
13 Valor da cotação do Dólar referente ao dia 25 de janeiro de 1991, em matéria publicada no
jornal no dia 31 de janeiro do mesmo ano.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 253


Como destaca Brito (1996) quando o brasileiro deixou de optar
pela migração interna e escolheu o exterior como alternativa, ele depa-
rou com condições adversas, pois no estrangeiro a inserção do migran-
te, mesmo aquele que tem escolaridade, se dá em um espaço secundá-
rio em que muitas vezes é preciso competir com os moradores locais.
No entanto, a possibilidade de uma melhor condição financeira, acaba
compensando a perda de status e a submissão a trabalhos que no país
de origem seriam vistos como degradantes.

Figura 02
Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em13 de julho de 1990.

Figura 03
Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em 18 de agosto de 1990

Contudo, Johnny quer ir de qualquer forma para os Estados Uni-


dos, pois na perspectiva daqueles que ficam o sucesso dos que retorna-
ram é aparente e marcante. O rapaz usa uma camiseta com o símbolo
“U$” que representa a moeda americana e ensaia algumas palavras em
inglês para que, com a ajuda do amigo recém retornado consiga o visto,
chave para entrar na terra do Tio Sam.

254 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Figura 04
Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em 14 de julho de 1990.

O idioma americano, o inglês também é explorado pelos auto-


res. O Capitão tenta ensinar algumas palavras para o seu amigo, pois
acredita que o inglês é mais sofisticado e assim vai atrair mais clientes
para Johnny, por isso ele propõe que ele substitua o termo engraxate
por shoe cleaner. Impressionado eira do capitão, Johnny aceita, mas a
novidade não é bem recebida pelos moradores do morro. Independen-
te dos constrangimentos, Johnny segue admirado com o inglês do seu
herói e acalentando o sonho de ir para “América”.

Figura 05
Fonte: Diário do Rio Doce, publicado em 19 de julho de 1990.

Devido à ascensão social que vive no momento, concretizado


pelos dólares que trouxe e pelo status de emigrante, o Capitão Dó-
lar acredita que o dinheiro, ou melhor, o dólar é capaz de comprar
tudo, inclusive a boa forma física, como destacado jocosamente na
tira 06. Essa tira revela o poder mágico de ter estado na terra pro-
metida, ter vivido num país de primeiro mundo e conseguido ganhar
dinheiro, mas revela também a falta de conhecimento que anos num
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 255
país de primeiro mundo não lhe proporcionou. Conseguiu “Fazer a
America” o que na linguagem do emigrante significa ganhar dinheiro
e retornar numa condição econômica superior, mas não conseguiu
adquirir conhecimento, nesse sentido o dinheiro que ganhou é sua
única fonte de identidade, de diferenciação, que justifica os anos de
trabalho e luta na América.
Essa tira representa exatamente a situação de muitos emigrantes
que ao retornar distribuem presentes, fazem churrasco e festas para os
amigos e parentes para demonstrar a sua nova condição financeira e
com isso acabam perdendo boa parte e muitas vezes toda a poupança
que levou anos para juntar.

Figura 06
Fonte: Diário do Rio Doce, publicado em 22 de julho de 1990.

O passaporte autêntico com visto carimbado, a partir dos anos


de 198014, raridade, entre os Valadarenses, também é motivo de
orgulho para o Capitão Dólar. As crônicas e notícias dos exemplares
dessa década15 mostram como ainda nos dias de hoje, eram raros os
nascidos em Governador Valadares que conseguiam voltar do con-
sulado com uma resposta positiva, também cresciam, a cada dias, as
denúncias de esquemas ilícitos envolvendo valadarenses para conse-
guir entrar nos Estados Unidos.

14 Margolis (1994) comenta sobre a dificuldade encontrada pelos brasileiros na hora de conse-
guir um visto. De acordo com a pesquisadora, os brasileiros não tinham problemas na hora
de conseguir visto, pois eram considerados autênticos turistas, mas ao longo dos anos 1980 a
situação começa a mudar. Devido ao crescente número de brasileiros overstayers (pessoas que
excedem o tempo de permanência do visto de turismo) eles são vistos como qualquer outro
imigrante transgressor.
15 Esse artigo utiliza o banco de dados referente as tirinhas, contudo a pesquisa possui um banco de
dados com todas as crônicas, notícias e reportagens sobre a emigração no período de 1960 a 2007.

256 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Como destaca Silva Filho (2008), os jornalistas, ao explorar estas
denúncias, criam uma imagem deturpada dos valadarenses, quase sem-
pre associada a ida ilegal para os Estados Unidos e a falsificação de pas-
saportes. A dura realidade dos imigrantes é deixada em segundo plano.
Neste contexto, o Capitão se sente um verdadeiro herói, privilegiado
pelo seu visto: possibilidade restrita a uma minoria, como ilustram as
tiras 07, 08, 09 e 10.
Essas tiras revelam também o estranhamento e a incapacidade do
emigrante de compreender as normas formais e informais do seu país
de origem. Tem sempre a necessidade de comparar e supervalorizar o
que é estrangeiro. O passaporte com visto é um diferencial em relação
aos nativos que considera que pode abrir todas as portas.

Figura 07
Fonte: Diário do Rio Doce, publicada no dia 24 de julho de 1990.

Figura 08
Fonte: Diário do Rio Doce, publicada no dia 26 de julho de 1990.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 257


Figura 09
Fonte: Diário do Rio Doce, publicada no dia 05 de agosto de 1990.

Figura 10
Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em 22 de agosto de 1990.

Siqueira (2009) também destaca que o Brasil é o segundo maior


receptor de remessas da América Latina, sendo que grande parte delas
é destina à microrregião de Governador Valadares, valeu o apelido de
“Valadólares”. Antes, as remessas chegavam pelas agências de turismo,
mas a partir do ano 2000, o sistema bancário nacional em parceria com
bancos americanos criou um sistema legal para o envio do dinheiro.
Antes da regulamentação do envio das remessas era comum o
cambio ilegal da moeda norte-americana, que ganhava espaço nos jor-
nais. O personagem criado pelos publicitários do Diário do Rio Doce
também se arrisca nesta empreitada ilícita, como mostra a tira 11.

258 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Figura 11
Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em 20 de julho de 1990.

Os imigrantes retornados, ao voltar, conseguiam comprar alguns


bens de consumo que antes não tinham acesso e faziam questão de re-
verenciar a terra do Tio Sam como uma espécie de Eldorado. Não apenas
os imigrantes, mas também os meios de comunicação de massa. Como
destaca a pesquisadora Margolis (1994), a mídia ajudou a reforçar a ima-
gem dos Estados Unidos como uma espécie terra prometida. A salvação
para a espécie humana, como uma nação não divida pelo estresse social
e econômico provocado pelo que se tem ou não tem, como um lugar em
que o governo se preocupa com as pessoas e não é corrupto.

Figura 12
Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em 1 de agosto de 1990.

Além do mais os brasileiros são bombardeados pela música e pelo ci-


nema americano, fato que gera uma admiração e curiosidade pelo que vem
dos Estados Unidos. Essa fixação país norte-americano e o desejo de emigrar
a qualquer custo também são evidenciados nas histórias do Capitão Dólar.
No caso da “tirinha” 12 Johnny se aproveita do desejo de emigrar dos Valada-
renses para conseguir mais fregueses. Assim, os cartunistas acabam ajudando
a firmar a imagem do valadarense como um povo desenraizado e obcecado
pela idéia de migrar como única alternativa para melhorar de vida.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 259


A supervalorização do que é estrangeiro em relação ao nacional
é uma Tonica das falas do Capitão Dólar, para ele, o povo brasileiro
pensa pequeno e precisa ampliar suas perspectivas. Nesta tira (12)
o protagonista não se contenta com a simplicidade do protesto pela
duplicação de uma rodovia e busca uma alternativa à altura da sua
condição americanizada: uma estrada com cinco vias, sendo que uma
delas tem como destino os Estados Unidos. Essa estrada é a solução de
todos os Governador Valadares.

Figura 13
Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em 17 de agosto de 2010.

A tira 13 mostra o Capitão Dólar como um homem alienado, que


só consegue ver o lado negativo do Brasil e o lado positivo dos Estados
Unidos. Vale a pena destacar também nesta tira a barraquinha de troca
de dólar, as bandeiras com cifrão, a utilização de termos em inglês na
faixa de protesto do Capitão e as múltiplas possibilidades de acesso ao
país de destino que contempla, até mesmo, objetos não identificados.
E nem mesmo a paixão nacional escapou de sua americaniza-
ção, o futebol, escolhe o time para torcer pelo nome que é o mesmo
de seu país adotivo – América, ou melhor, a forma como denomina
esse país. Na hora de escolher o time de futebol preferido o Capitão
deixou o Democrata, principal equipe de Governador Valadares de
lado, e preferiu equipes que levassem América no nome, como uma
forma de homenagear os Estados Unidos, conhecido pelos Valadaren-
ses simplesmente como “América16”.

16 Como destaca Almeida (2003) Os primeiros imigrantes que saíram de Governador Valadares
tinham como o objetivo de “fazer a América” – expressão usada para identificar todos os que
buscam nos EUA a oportunidade de ganhar dinheiro, fazer um capital em pouco tempo e
voltar para o Brasil, onde o dinheiro será investido.

260 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Figura 14
Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em 24 de agosto de 1990.

E por falar em futebol, no Brasil este é um dos principais motivos


que despertam o sentimento de patriotismo na população. De quatro em
quatro anos, com a realização do principal torneio futebolístico mundial,
a Copa do Mundo, é comum ver o verde e o amarelo estampado pelas
ruas. Em outras ocasiões, são raras as demonstrações de amor à pátria.
Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, onde os americanos
ostentam com orgulho e das mais variadas formas a bandeira nacional.
E parece que este sentimento tomou conta do nosso herói dos
quadrinhos. Mas, ao invés de despertar o amor pela pátria mãe, ele vol-
tou completamente fissurado pela terra do Tio Sam, estando disposto,
inclusive a arriscar sua vida na Guerra em favor dos norte-americanos.

Figura 15
Fonte: Diário do Rio Doce, publicado em 08 de agosto de 1990.

Como foi dito anteriormente o Capitão Dólar não se sente per-


tencente à cidade de Governador Valadares depois que volta dos Es-
tados Unidos. Siqueira (2007) compreende que para o emigrante a
empreitada do retorno é ainda mais complicada do que a decisão de
migrar para um país estrangeiro.
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 261
(...) quando emigram estão cheios de esperança e quando re-
tornam são acometidos pelo estranhamento de seus lugares de
origem e das pessoas que habitavam seu universo social. Isto
ocorre porque, durante o tempo de afastamento,idealizaram as
relações sociais e o espaço onde viviam e quando retornam não
reconhecem. (SIQUEIRA, 2007:10)

Na tira abaixo (Tira 16) a placa indicando a direção de algu-


mas cidades brasileiras e confunde o Capitão Dólar, que sente fal-
ta da indicação de cidades americanas. Como destaca Hall (2003)
não se sente em casa na sua cidade natal, pois após a experiência
migratória é como se ele pertencesse a dois lugares, estando lá e
cá simultaneamente.

Figura 16
Fonte: Diário do Rio Doce, publicado em 27 de julho de 1990.

5 - Considerações finais

A cidade de Governador Valadares é conhecida como o primeiro


e, até os dias atuais, o principal ponto de partida de emigrantes para o
exterior. Esse movimento populacional impacta a cidade em diferentes
aspectos. Assim como afirma Sayad (2000), a imigração não acontece
sem deixar marcas, que afetam o país de origem, o de destino e, princi-
palmente, os seres humanos envolvidos na empreitada migratória, tanto
aqueles que vão quanto aqueles que ficam.
Essas marcas estão representadas em diferentes setores da so-
ciedade valadarense como no comércio, construção civil e mesmo no
cotidiano das pessoas, das famílias e da sociedade de modo geral. A
mídia local apresenta um registro desse fenômeno através dos editoriais,
reportagens, crônicas, charges, e as tiras de humor, que retrataram a
questão em suas várias dimensões e significados.
262 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
O presente artigo tem a proposta de fazer uma análise de con-
teúdo de uma das modalidades de informação sobre a emigração, as
“tirinhas” que circularam diariamente no jornal entre julho de 1990 e
setembro de 1991, demonstrando as representações sobre a emigração
presentes nesse gênero jornalístico.
As tiras retratam o migrante retornado valadarense com humor e
certa dose de ironia e sarcasmo. O personagem Capitão Dólar sugere
um homem deslumbrado, de pouca instrução que retorna cheio de si
e acredita que seus preciosos dólares são capazes de comprar qualquer
coisa, mesmo aquelas cujo preço não é possível calcular.
Nas tiras estão presentes as representações do emigrante na cida-
de de origem, ou seja, é um sujeito que “fez a América”, pois, consegui
fazer uma poupança e retornar em condição econômica melhor. Passa
a valorizar tudo que é americano em detrimento ao que é nacional e vê
na sua condição de emigrante um diferencial em relação àqueles que
não empreenderam a aventura de emigrar.
O fato de possuir o visto americano, que possibilita a entrada pela
porta de frente nos Estados Unidos e é desejo de todos, se transforma
em uma grande conquista para o Capitão Dólar, pois ele acredita que
esse trunfo também pode abrir portas no Brasil. Nesse sentindo, anun-
cia, em situações inesperadas, sua condição de ex-emigrante, preten-
dendo assim, receber um tratamento diferenciado.
Apesar de os quadrinhos serem uma obra de ficção e da ima-
gem estereotipada, retratam uma realidade dos anos de 1990: o inte-
resse dos valadarenses pela terra do Tio Sam. No entanto, o persona-
gem, com sua paixão pelos Estados Unidos é apresentado como um
sujeito que, no decorrer do processo migratório vivenciado, adquiriu
dólares, mas não conseguiu mudar sua condição de desinformado e
pouco instruído. Ele é apresentado como um homem alienado e com
baixa escolaridade.
Desta forma, a mídia, nesses quadrinhos em particular, apresenta
uma imagem negativa da migração e dos migrantes valadarenses, que
estão sempre associados ao cambio ilegal da moeda americana, à fal-
sificação de passaportes e uma série de outros esquemas ilícitos. Além
disso, a cidade acaba fadada com uma terra sem oportunidades, cuja
melhor saída para uma vida melhor é o aeroporto. A imagem passada é
de uma identidade fragmentada e, sobretudo, desterritorializada.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 263


Referências Bibliográficas

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266 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Impactos da emigração sobre as vivências
da mulher do emigrante1
Agnes Rocha de Almeida2
Carlos Alberto Dias3
Emilliane de Oliveira Matos4
Lucas Nápoli dos Santos5

Nossa, eu tenho pavor, tem um casal amigo meu, que o marido


dela falou que ia, eu falei o que eu falo pra todo mundo. A mu-
lher que é casada que preza pelo seu casamento, não permita
que seu marido vá. Ou você vai com ele ou ele não vai, porque
não existe. Depois que ele sair de casa e você ficar, não vai existir
mais casamento. (M., 41 anos).

Introdução

A
cidade de Governador Valadares tem como traço marcan-
te em sua cultura a emigração internacional que a torna
conhecida nacional e internacionalmente. As famílias re-
sidentes na cidade frequentemente possuem um parente no ex-
terior na condição de emigrado. Essa curiosa cultura inspirou o
estudo sobre emigração na região envolvendo todo tipo de in-
formação. Informações estas que nos ajudam a entender melhor
o que fez e ainda faz com que tantos valadarenses migrem em
grande quantidade para o exterior.
Este fenômeno faz parte da história de Governador Valadares, ini-
ciado desde a década de 1960, tendo seu ápice na década de 1980.
Segundo Assis (1999), a cidade foi ampliando suas redes envolvendo

1 Trabalho apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG
2 Psicóloga, Pós-graduada em Dependência Química e Outros Transtornos Compulsivos e em
Gestão de Território e do Patrimônio Cultural pela Universidade Vale do Rio Doce.
3 Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de Picardie Jules Verne/França, professor adjunto
da Universidade Vale do Rio Doce.
4 Graduanda em Psicologia pela Universidade Vale do Rio Doce, bolsista de Iniciação Cientí-
fica da FAPEMIG.
5 Psicólogo, Mestrando em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
bolsista da Capes.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 267


outras cidades da região. Este fenômeno veio marcando sua identidade,
sua história, a história daqueles que partiram e daqueles que esperaram
o retorno do parente. Segundo Siqueira (2006), os países com maior
fluxo de valadarenses são Estados Unidos, Canadá e Portugal respec-
tivamente, sendo sua maior concentração no primeiro. Sendo assim,
o Brasil deixou de ser receptor de mão de obra estrangeira e passou a
exportar o trabalho migrante.
O fator determinante, que impulsiona e faz com que muitas pes-
soas migrem para o exterior, é o desejo de melhorar suas condições fi-
nanceiras obtendo salários superiores àqueles recebidos em seu próprio
país. Num estudo realizado por Siqueira (2007), emigrantes relataram
que seria impossível conseguir salários e melhores condições financeiras
no Brasil, trabalhando nos mesmos empregos que no exterior em um
período consideravelmente reduzido.
Um facilitador deste processo, visando o cumprimento dos objeti-
vos, isto é, ganhar dinheiro e melhorar as condições financeiras – embo-
ra nem todos consigam – são as redes sociais. Essas redes foram identifi-
cadas a partir de estudos que averiguaram de que forma o valadarense
se inseria no exterior e de que forma iniciava sua vida na América. A
existência da conexão entre emigrados, parentes e amigos forma um
tipo de rede social denominada por Soares e Fazito (2008) como rede
migratória. “Essa rede migratória é um tipo específico de rede social que
agrega redes sociais existentes e enseja a criação de outras redes, consis-
te, portanto, em rede de redes sociais” (SOARES e FAZITO, 2008: 32).
Nesse misto de relações entre emigrado e as outras pessoas en-
volvidas, existe uma participação direta da família no que tange a ma-
nutenção do processo emigratório. Essa participação é percebida em
dois momentos. Primeiramente na construção do projeto de emigrar
e no planejamento do período necessário para que os objetivos finan-
ceiros sejam atendidos, e, em seguida, no gerenciamento dos recursos
enviados pelo emigrante. Por isso, no dizer de Assis (1999), “Aqueles
que ficaram auxiliam os filhos(as), namorados(as), amigos(as) a realizar
este projeto evidenciando que a migração transformou-se num projeto
econômico, afetivo e familiar de grande impacto na cidade” (p. 3).
O fluxo emigratório é constituído, em grande parte, de trabalha-
dores jovens do sexo masculino entre 20 e 34 anos. Essa informação nos
remete a uma situação em que acredita-se que haja um grande número

268 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


de filhos e esposas que passem a aguardar o retorno do pai e do par-
ceiro. A promessa inicial é a de que com o passar do tempo o parceiro
emigrado adquira, por meio de trabalhos realizados no exterior, recur-
sos financeiros suficientes para que a esposa e filhos se juntem a ele no
país de destino. Mas, na realidade, essa meta vai ficando cada vez mais
distante. Muitos emigrantes acabam por permanecer no exterior por vá-
rios anos e as parceiras e filhos lentamente são forçados, pelas circuns-
tâncias, a conviverem com a distância do parceiro ou pai resignando-se
à solidão (ALMEIDA, 2008; SCUDELER, 1999).
Fusco (1997:4) retrata que “muitos elaboram seus planos segundo
uma estratégia familiar, e partem com a clara expectativa de voltar para
aqueles que deles dependem e esperam”. Essa é a vontade da maio-
ria daqueles que partem para o exterior. O desejo de fazer a América6
(SIQUEIRA, 2006:5) indica que muitos vão com o desejo de um dia
retornar para suas casas, suas famílias.
A pessoa que agora se encontra na condição de emigrado é porta-
dora de uma história construída até então na cidade de origem. A partir
da emigração, existe uma necessidade de adaptação ao ambiente para
que ele melhor se integre ao novo contexto cultural. Seu repertório de
comportamento e cotidiano sofre mudanças significativas envolvendo
desde a linguagem até o modo de manifestar suas emoções.
A família, por sua vez, também passa por adaptações, sobretudo
pela ausência de uma das partes. Em muitos casos, a ausência é a da
figura masculina, do pai e provedor da casa que parte em busca de
descobrir novos caminhos que facilitem seu conforto financeiro e de
sua família. Alguns autores, como Wall e Lobo (1999) nomeiam a nova
situação familiar, onde um dos cônjuges está ausente, como família mo-
noparental. O termo tem sido definido por muitos sociólogos em seus
estudos, em que o foco são famílias cujo núcleo familiar onde vive um
pai ou uma mãe só (sem o cônjuge) e com um ou vários filhos solteiros.
Esses autores explicam que a expressão “família monoparental” surgiu
na França no início dos anos 70.
Esse pai e parceiro bem como sua família dependerão agora do
seu progresso financeiro no exterior para, então, retornar a sua terra de

6 Terminologia usada pelos imigrantes, que significa trabalhar muito, economizar o máximo,
para depois voltar.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 269


origem e se juntar novamente a sua família. Até o retorno, a família bus-
ca meios de manter uma comunicação na tentativa de não permitir o
enfraquecimento das relações. São vários os mecanismos utilizados pela
família, dentre eles o telefone, a internet e outros meios de comunicação.
O uso de modernos instrumentos de comunicação se transforma num ato
quase compulsivo como necessidade de se manter a unidade familiar.
Além da comunicação como recurso de manutenção das rela-
ções familiares, a própria remessa de dinheiro sinaliza que o parceiro
está comprometido com sua família, como salienta Machado (2007).
Em resposta, a qualidade da administração desses recursos pela mulher
certifica ou não seu comprometimento.
Ainda no intuito de manter uma relação familiar positiva, essas mu-
lheres que dividem uma vida conjugal com seu parceiro comportam-se
de maneira peculiar evitando o surgimento de motivos para que o par-
ceiro dê fim ao relacionamento conjugal. Machado (2007) relata ainda
que muitas delas adotam a estratégia de morar nas casas ou no terreno
dos sogros, para manterem-se conscientemente vigiadas, ou ainda trazem
para morar consigo suas próprias mães, sinalizando que a casa não está
vazia. Uma justificativa para tal comportamento é a vigilância da mulher e
da casa onde vive, pelos vizinhos, amigos e parentes do emigrado.
Um fato significativo e que causa medo e repulsa nessas mulheres
diz respeito à fofoca. A necessidade de mudarem seus comportamentos
diante da sociedade se faz necessária de modo a evitar constrangimen-
tos e discussões entre os parceiros. Segundo a pesquisa realizada por
Machado (2007), foram relatados casos em que as esposas que ficaram
mudaram suas rotinas por completo, das mais variadas formas, com o
intuito de evitar que a fofoca acabasse com o casamento.
Tais medidas fazem com que esposas de emigrantes vivam sob con-
dições de isolamento afetivo, sexual e social, significativamente elevados e
rotineiros. Isolamentos estes que se tornam cada vez mais perniciosos às
mulheres, considerando que os contatos com os parceiros se limitam aos
meios de comunicação como telefone e internet. Embora esses mecanis-
mos possibilitem uma forma de contato íntimo entre os cônjuges, essas mu-
lheres deixam de usufruir da presença e dos benefícios gerados pela vida a
dois, garantidos pelo matrimônio. Tais benefícios são as relações nas quais
ela possa sentir prazer junto ao parceiro e a presença, através da qual tem
no parceiro o suporte para os momentos difíceis e a educação dos filhos.

270 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Inúmeras são as consequências do distanciamento entre os parcei-
ros, dentre elas a redefinição dos papéis. Aquelas que antes contavam
com o parceiro na tomada de decisões, passam a tomar para si mesmas
essa tarefa. Aquelas que se viam dedicadas a atividades profissionais
percebem-se diante da necessidade de voltar sua atenção preferencial-
mente para questões domésticas e cuidados dos filhos.
Outro fator relevante faz menção ao fato de que, apesar de se en-
contrar atualmente novos padrões de relacionamento amoroso e novos for-
matos de relacionamento conjugal influenciados pela contemporaneidade
(CECCARELLI, 2002), o perfil da maioria das mulheres de emigrantes da
microrregião de Governador Valadares é de uma mulher que se apresen-
ta como dependente emocional e financeiramente do parceiro. Mesmo
exercendo uma nova posição na família devido à ausência do parceiro –
liderança, administração da casa, das finanças e investimento do dinheiro
enviado – elas ainda permanecem numa posição de submissão.
Em decorrência das decisões tomadas para a manutenção da
união do casal, do bem-estar dos filhos e para que se cumpra o projeto
de obter o sucesso financeiro, as parceiras dos emigrados se desdobram
para que de alguma forma o objetivo seja consolidado o mais rápido
possível e o parceiro volte para a família. Mas nem sempre as decisões
e os comportamentos adotados por elas são satisfatórios para sua saúde
física e emocional. Estudos realizados por Almeida e Dias (2008) reve-
lam que os impactos do isolamento social e afetivo na vida da esposa do
emigrante são significativos.
Essa questão aborda um fato negativo decorrente do “provisó-
rio” período de distanciamento: em função da ausência do parceiro,
à mulher não é permitida uma efetiva vivência de sua sexualidade. Al-
meida e Dias (2008:2) afirmam que “ainda em função do consequente
isolamento sexual, não se sabe por quanto tempo é possível à mulher
continuar adormecida, quando tudo o que se constrói no mundo cha-
ma a atenção para o fato de que homens e mulheres dificilmente se
acomodam à castidade”.
Os autores colocam ainda em questão o primeiro sentimento vi-
venciado por elas após a partida do parceiro: a solidão. A consciência
de que este sentimento não se extinguirá e irá acompanhá-las até o dia
em que seu parceiro retorne se torna presença constante no cotidiano
dessas mulheres. A mulher, por sua vez, procura de formas diversas,

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 271


encontrar alternativas para suavizar tal sentimento, principalmente nos
momentos em que se torna mais acentuado. Em tais momentos a par-
ceira sente falta da voz de seu parceiro, de momentos que passaram
juntos, bem como situações que os uniram afetiva e sexualmente.
Os sentimentos se constroem e se misturam no decorrer do tem-
po em que a mulher do emigrado permanece só, apenas com os fi-
lhos, caso os tenha, e com as lembranças e a esperança do retorno do
parceiro. Sentimentos como angústia, tristeza, saudade e ansiedade
são presença constante em suas vidas, afetando diretamente seus pen-
samentos, seu desempenho diário como mãe e como mulher. Uma
consequência a ser ressaltada diz respeito aos filhos, que são atingidos
de certa forma por esse turbilhão de sentimentos que assolam a vida
dessas mulheres. A esse respeito, Dantas e Jablonski (2004:352) fazem
o seguinte comentário: “[...] mães infelizes e insatisfeitas podem trans-
mitir esses sentimentos aos seus filhos”.
As consequências na vida cotidiana para a parceira do emigra-
do são incontáveis. Sentimentos adversos são experimentados por essas
mulheres que vivem na condição de “viúvas de maridos vivos”. Além
da vigilância de parentes e amigos de emigrados, os prejuízos na saúde
psicológica da mulher também devem ser considerados. Essas mulheres,
uma vez longe de seus parceiros, não vivem a sexualidade em sua ple-
nitude como vivem os casais que estão juntos fisicamente. A união que
por ora é apenas sentimental, sendo afetada pela distância, impede a
vivência do relacionamento diário entre os parceiros, colaborando para
um possível rompimento conjugal.
Almeida e Dias (2008) ainda nos trazem uma importante informa-
ção acerca dos mecanismos de compensação para os desejos sexuais de
tais mulheres. Muitas se refugiam na religião, de maneira a buscar con-
solo, força e, de certa, forma alívio para desejos não realizados devido à
ausência do parceiro. A utilização de tal subterfúgio é improdutiva, visto
que constantes insatisfações nesse campo produzem como consequên-
cias efeitos colaterais, muitas vezes, graves. Os sentimentos de desva-
lia, autopercepção e autoestima empobrecidos assolam a vida dessas
mulheres. De uma maneira ou outra, ao fugirem de seus sentimentos e
desejos sexuais, acabam por fazer emergir sentimentos negativos, como
frustração, angústia e, algumas vezes, sentimento de culpa por terem
participado da decisão do parceiro de emigrar.

272 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


O segundo ponto negativo na vida dessas mulheres aponta
para o recolhimento e isolamento da vida social. Seja por dese-
jo próprio ou por consequências do ambiente onde vivem sem o
parceiro, mulheres de emigrantes tendem a sentir necessidade de
dar satisfação à sociedade. As saídas que antes possivelmente eram
constantes, agora não são mais. O parceiro não estando presente
facilita a reclusão de sua mulher no lar, limitando seus espaços de
lazer à igreja e casa de parentes.
Machado (2004) mostra que isso é culturalmente comum entre
as famílias cujos parceiros se encontram no exterior como emigrantes e
que não é uma novidade para aqueles que optam por este caminho. A
exposição de sua família se torna mais pública, pois, ao saírem de casa,
a mulher permanece só, o que já chama a atenção para um aspecto
diferente: na casa existe agora mulher e crianças, sem presença de um
homem, do chefe da família. Essa exposição sensibiliza toda a família
de forma que os pais, tanto do emigrado como da parceira, querem
resguardar a família de qualquer comentário e conversas que atentem
contra a moral do grupo familiar.
As esperanças e sacrifícios vivenciados por essas mulheres possi-
bilitaram a realização de um estudo que procura conhecer em profun-
didade suas vidas cotidianas. Sacrificar o relacionamento conjugal em
função de um futuro melhor faz com que essas mulheres tenham que
experimentar situações desconhecidas e inimagináveis. O grande nú-
mero de mulheres residentes na região que vivenciam essa realidade
indica a pertinência de se averiguar de que forma elas lidam no dia a
dia com a ausência do parceiro, com os desejos a serem reprimidos e
com os sentimentos gerados pelo desfecho familiar a partir da partici-
pação no processo emigratório.

Metodologia

Este estudo tem por objetivo conduzir uma reflexão sobre a vi-
vência de mulheres que possuem ou possuíram parceiros residentes no
exterior como emigrantes enfocando suas expectativas e impactos do
isolamento conjugal e social em seu cotidiano.
Os dados aqui apresentados foram coletados através da realiza-
ção da pesquisa intitulada “Impactos do processo emigratório sobre a

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 273


sexualidade da esposa do emigrante”. Esta pesquisa, realizada em duas
fases (Fase I e Fase II) teve início em 01 de março de 2006 e foi conclu-
ída em 28 de fevereiro de 2010.
Trata-se de um estudo descritivo do tipo exploratório, no
qual utilizou-se tanto uma abordagem quantitativa quanto quali-
tativa. A combinação das duas abordagens pode produzir resul-
tados de melhor qualidade, sem esforços excessivos adicionais e
ser um meio eficiente de aumentar a compreensão do objeto de
estudo (SANTOS, 1999).

População do estudo e critérios de inclusão e exclusão

O universo do estudo é constituído por mulheres casadas ou que


possuíam algum vínculo conjugal e residiam na cidade de Governador
Valadares, tendo seus parceiros resididos no exterior como emigrantes
ou estando residindo há pelo menos três meses.
Foram incluídas na amostra mulheres que tinham no período de
realização da pesquisa ou que já tiveram o marido ou parceiro fixo re-
sidindo no exterior por um período mínimo de três meses; bem como
aquelas que tinham marido ou parceiro fixo com sucessivos períodos
de permanência no exterior com durabilidade média de um ano. Fo-
ram excluídas mulheres com algum déficit cognitivo ou que se sentiram
profundamente angustiadas diante da questão em estudo, bem como
aquelas que se recusaram a participar.

Coleta de dados

Visando testar o método de trabalho, os processos técnicos en-


volvidos na execução do projeto e os instrumentos utilizados pela
coleta de dados, foi realizado um estudo piloto com 20 mulheres
na primeira fase da investigação e com quatro na segunda fase utili-
zando-se os critérios de inclusão e exclusão. Porém estas não foram
consideradas pelo estudo principal. O Estudo piloto permitiu avaliar
a clareza e objetividade da entrevista.
Para a coleta dos dados, na primeira fase, as seguintes etapas
foram realizadas:
1. Inicialmente foram mantidos contatos com as diretoras de es-
274 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
colas da rede pública e privada de Governador Valadares e
discutida a possibilidade de realização da palestra “Dicas para
a educação dos filhos que possuem o pai no exterior” para as
mães de alunos cujo parceiro fosse emigrante.
2. Após a autorização da direção da escola, foi agendado o dia
do encontro por meio de um convite formal às mães em ques-
tão, para participarem do evento.
3. Ao final da palestra, cuja duração foi em torno de 60
minutos, fez-se uma apresentação da pesquisa e convite
para participação. De acordo com o interesse das mulhe-
res, foi possível a criação de um cadastro com identifica-
ção e telefone de mães que estivessem dispostas a fazer
parte da pesquisa.
4. A partir do cadastro, foi realizado o contato telefônico e agen-
damento do dia e horário para a entrevista domiciliar.
5. No domicílio das mulheres cadastradas, fez-se inicialmente
uma reapresentação dos objetivos da pesquisa, do instrumen-
to de coleta de dados e orientação para a leitura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
A entrevista foi realizada em um local da residência que apresen-
tasse boa iluminação, tranquilidade e silêncio, procurando assegurar a
privacidade da participante. As respostas foram anotadas em formulário
próprio para posterior alimentação do banco de dados. Cada entrevista
teve duração média de 60 minutos.
Na segunda fase da pesquisa, foram realizadas entrevistas do-
miciliares com 32 mulheres residentes na cidade de Governador Va-
ladares. Para a composição desse grupo de mulheres, utilizou-se do
método Bola de neve, tomando-se como referência inicial as partici-
pantes da Fase I da pesquisa. O método consistiu em identificar al-
guns sujeitos com as características exigidas para compor a amostra.
Esses primeiros indicaram outros, que por sua vez, também fizeram
outras indicações, até chegar a um número em que as informações e
indicações começaram a se repetir. “Segundo Becker (1993) a indi-
cação feita pelos próprios indivíduos que compõem o universo pes-
quisado é um elemento importante para assegurar uma seleção mais
impessoal e aumentar a relação de confiança do entrevistado para
com o pesquisador” (SIQUEIRA b, 2006:19).
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 275
Instrumentos de coleta

Para a coleta de dados ocorrida na primeira fase da pesquisa,


cujo objetivo central foi de conhecer a realidade vivida por mulheres
que possuem os parceiros no exterior, enfocando o modo como vivem
suas sexualidades, bem como identificar as diversas mudanças físicas,
psíquicas e sociais influenciadas pelo isolamento sexual, realizou-se
uma entrevista baseada num roteiro específico desenvolvido para este
estudo. Tal roteiro buscou, na primeira fase, identificar as mudanças na
vida diária, afetiva e sexual ocorridas a partir da ausência do parceiro.
O roteiro norteador da entrevista continha vinte e seis questões para
as quais não eram indicadas alternativas, deixando as entrevistadas
livres para expressarem-se de acordo com suas vivências e expressões.
As variáveis consideradas foram as seguintes: 1) idade, 2) escolaridade,
3) estado civil, 4) tempo de relacionamento, 5) tempo de isolamento
conjugal, 6) motivação para emigrar, 7) reação da mulher diante da
decisão da partida do parceiro, 8) providências tomadas pelo parceiro
a partir da chegada no exterior, 9) o sentimento diante das providên-
cias tomadas pelo parceiro, 10) atitudes tomadas pela mulher a partir
do envio de remessas de dinheiro, 11) as atitudes tomadas pela mu-
lher diante da falta do parceiro, 12) opções de lazer na ausência deste,
13) sentimentos diante de outros casais, 14) frequência anual de visitas
médicas, 15) medicação utilizada pela entrevistada, 16) existência de
prescrição médica, 17) sintomas apresentados, 18) tempo de uso do
medicamento, 19) auto-estima a partir da ida do parceiro, 20) sua
avaliação sobre o distanciamento; 21) representação individual de ca-
samento 22) com quem a entrevistada reside, 23) religião, 24) situação
quanto a libido, 25) atitudes frente ao desejo sexual, 26) percepção
quanto à traição feminina.
Na segunda fase, os dados foram coletados através de uma en-
trevista semi-estruturada realizada em domicílio, com o objetivo de
conhecer os sentimentos das entrevistadas gerados pelos múltiplos des-
fechos da vida conjugal, motivados pela participação do parceiro no
processo emigratório. Por desfecho entende-se aqui a continuidade
ou não do relacionamento conjugal, associado ao fato de o parceiro
ter retornado ou não e ter atingido ou não o objetivo de melhorar a
condição financeira da família.

276 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Análise dos dados

A apuração dos dados qualitativos foi realizada segundo a téc-


nica de Análise de Conteúdo (BARDIN, 2009). Nesta foram avaliados
fragmentos do discurso das entrevistadas, enfocando suas percepções
relativas às expectativas experienciadas por ocasião da partida e perma-
nência do parceiro no exterior, os impactos da distância sobre o cotidia-
no da família, as dificuldades na educação dos filhos, e as expectativas
e desfechos decorrentes da experiência emigratória.
Já os dados quantitativos foram analisados com o auxílio do pro-
grama SPHINX, facilitando a elaboração das tabelas e estudo descritivo
das variáveis observadas neste estudo.

Aspectos éticos

Este estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em


Pesquisa da Universidade à qual o projeto está vinculado. Todas as par-
ticipantes leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Escla-
recido (TCLE). O TCLE assegurava-lhes o caráter confidencial de suas
respostas e seu direito de não-identificação, reforçando que a pesquisa
possui caráter voluntário.

Resultados

Na primeira fase da pesquisa, o estudo contou com a participação


de 247 mulheres cujos parceiros residiam no exterior como emigrantes.
As entrevistadas possuíam em média 34 anos, sobressaindo-se as que se
situam na faixa de 30-39 anos (40,1%) e 20-29 anos (32,0%). Quanto
à escolaridade, lideram aquelas que possuem o primeiro grau (47,4%)
seguidas das que cursam ou cursaram o segundo grau (39,3%).
Entre as entrevistadas, o tempo de relacionamento com o parceiro
emigrado varia consideravelmente (mínimo 01 e máximo 38 anos). Apesar
disso, sobressaem-se aquelas cujo relacionamento dura há pelo menos en-
tre 5 e 10 anos (30,4%), seguidas pelas de 10 a 15 anos (24,7%). O estudo
mostrou ainda que entre elas prevalecem as que possuem pouco tempo de
distanciamento conjugal, uma vez que as com menos de três anos (44,5%)
são seguidas pelas que possuem entre três a cinco anos (40,2%).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 277


Fato importante a ser mencionado e que chama a atenção diz
respeito ao tempo de permanência do parceiro no exterior, que aponta
diretamente para o distanciamento conjugal e a não vivência sexual da
mulher durante a ausência do parceiro. Essa não vivência afeta uma das
funções do casamento contemporâneo, que é a satisfação sexual do ca-
sal. Ceccarelli (2002) nos aponta que a união entre um homem e uma
mulher é reconhecida, sob o ponto de vista da cultura, como um fato
natural que ocorre a partir da escolha e para a satisfação de necessida-
des mútuas. Ainda sob o ponto de vista cultural, tal união deve cumprir
a função de perpetuação da espécie humana e criar condições para o
desenvolvimento da sociedade.
Nota-se que a segunda função foi cumprida por algumas das en-
trevistadas, isto é, contribuir para com a perpetuação da espécie uma
vez que do relacionamento conjugal houve o nascimento de filhos.
Contudo, a primeira função passa e passou a ser negligenciada a partir
da participação do parceiro no processo emigratório. Isoladas afetiva e
sexualmente, na maioria das vezes por tempo indeterminado, esposas
de emigrados aguardam que inúmeras circunstâncias se alinhem, crian-
do possibilidades para o retorno do parceiro ao país de origem.
A busca pela melhoria da situação financeira da família (71,7%)
constitui-se no maior motivo que levou a entrevistada e seu parceiro a
se envolverem no processo emigratório. O esforço para ganhar dinheiro
com o objetivo de adquirir a própria moradia (17,0%), também cami-
nha nesse mesmo sentido. Tais motivos estão em conformidade com as
providências tomadas pelo parceiro ao iniciar o trabalho no exterior.
Efetivamente, a maior parte deles (66,0%), rapidamente começou a en-
viar dinheiro para cobrir despesas da mulher e filhos, bem como para
auxiliar os parentes necessitados. Em segundo lugar, sobressaem-se os
emigrados que iniciaram um processo de poupança com o objetivo de
adquirir a casa própria (17,8%).
Residindo o parceiro no exterior, a mulher passa a viver uma situa-
ção particular no tocante ao apoio afetivo e social de que necessita. Sem
querer considerar aqui a adequação ou não da realidade vivenciada, os
dados indicam que a maioria das entrevistadas, na ausência do parceiro,
reside só ou com os filhos (71,7%), o que lhe permite, na intimidade, man-
ter algum nível de privacidade. As demais (28,4%) são compulsoriamente
forçadas a dividir suas vivências com os pais ou família do parceiro.

278 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Tabela 1
Características gerais das entrevistadas participantes da primeira fase, motivação e
providências do parceiro emigrado – 2007 (n=247)

Nos momentos de solidão, três atitudes positivas são tomadas por


grande parte dessas mulheres, a saber: sair para se distrair e visitar pa-
rentes e amigos (49,8%), apoiar-se na religião (48,6%) e manter contato
telefônico com o cônjuge (42,9%). Embora não sejam tão evidentes,
as atitudes negativas, redutoras da qualidade de vida e da saúde, aco-
metem um grande número de entrevistadas, aspecto que não deve ser

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 279


negligenciado. São mulheres que se deprimem, choram, tomam medi-
camentos e buscam compensação na alimentação.
Embora não seja esse o objetivo, a igreja é reconhecida pelas en-
trevistadas como local privilegiado de lazer (56,7%), seguida por ati-
vidades de leitura, assistir TV e ir ao cinema (44,1%), fazer compras e
passear no shopping (38,9%).

Tabela 2
Rede de apoio das entrevistadas – 2007

Homens e mulheres se unem no desejo de ficarem juntos e de


serem suportes ou suportados um pelo outro. Neste caso, a presença é
elemento significativo para a continuidade do relacionamento. A maior
presença e a soma de ações compartilhadas contribuem diretamente
para a melhoria da qualidade e continuidade do relacionamento con-
jugal. No contexto emigratório, as parceiras dos emigrados tendem
a ser acometidas por sentimentos diversos, sobretudo ao manterem
contatos ou verem casais que vivem sob o mesmo teto, enquanto elas
convivem diariamente com a ausência. Dentre tais sentimentos, os
mais vivenciados são a inveja, saudades e desejo de que o parceiro
volte (64,4%). Depois destes sentimentos, o conformismo gerado pela
ideia de que o parceiro certamente retornará (26,3%) é vivido por
significativo número dessas mulheres.

280 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Na medida em que aumenta o distanciamento, ocorrem mu-
danças na autopercepção de tais mulheres. Perceberam-se mais an-
siosas, impacientes e irritadas (45,7%) foi relatado pela maior parte
das entrevistadas. Embora existam aquelas que se sintam mais bonitas,
magras, livres, felizes e inteligentes (19,1%), dominam as percepções
negativas, sobretudo ao se somarem aquelas que se perceberam mais
tristes e sozinhas (17,8%).

Tabela 3
Sentimentos diante de outros casais e autopercepção atual – 2007

Embora distantes de seus parceiros, não há como desconhecer o


fato de que antes da partida elas tinham uma vida sexual ativa. Assim,
mesmo na impossibilidade de vivenciarem a sexualidade junto dos par-
ceiros, o desejo apresenta-se como um companheiro, sobretudo nos
momentos de maior solidão. Excluindo-se aquelas que raramente ou
nunca sentem desejo sexual (16,6%), sobrará a grande maioria que às
vezes (45,3%) ou sempre (38,1%), é acometida por ele. Nessas circuns-
tâncias, várias atitudes são assumidas.
Apesar do desejo, algo deve ser feito para que tais mulheres pos-
sam encontrar um equilíbrio para sentirem-se bem em seu dia-a-dia.
Para isso, grande número procura desqualificar seus próprios senti-
mentos ao tentar ignorar a vontade (40,1%), fazem orações (14,5%) ou
tomam medicamentos (3,3%). Efetivamente, através dessas ações pas-
sam a desenvolver comportamentos neuróticos, com o único objetivo
de aplacar sentimentos que deveriam ser atendidos de alguma forma.
Aquelas que não conseguem desqualificar seus próprios sentimentos
procuram fazer amor com seus parceiros ao telefone (24,0%) ou assis-
tem a filmes eróticos e se masturbam (11,5%). Essas mulheres buscam
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 281
formas de resguardar a todo custo o relacionamento conjugal. Poucas,
diferente disso, colocam em risco a vida conjugal ao se relacionarem
sexualmente com outro homem (2,0%).
Embora pareça justificável devido ao longo período de inativida-
de sexual, o relacionamento extraconjugal não encontra eco favorável
na sociedade, sobretudo quando praticado pela mulher. Mesmo sujeitas
à inatividade sexual, aquelas que pretendem dar continuidade ao rela-
cionamento e acreditam no retorno do parceiro ao seio familiar tendem
a discriminar as mulheres que não conseguem se manter fiéis, relacio-
nando-se com outro homem. A ampla condenação da traição feminina
justifica o fato de que poucas se envolvam em tais relacionamentos,
durante a ausência do parceiro. Relacionar-se com outro homem é per-
cebido como uma fraqueza daquelas que o fazem e como uma mancha
que se instala na vida conjugal. Em outros termos, pode-se dizer que no
momento em que a mulher busca o prazer com outro que não seja seu
parceiro, rompe, com este, o compromisso anteriormente firmado. Aos
olhos da sociedade, o parceiro está trabalhando para sustentar a família
que deixou no Brasil e está vivendo única e exclusivamente essa prática
diária no exterior, com o intuito de dar melhores condições de vida para
a esposa e filhos. Seguindo este raciocínio, para a sociedade, cabe a es-
posa do emigrante, exclusivamente, a função de cuidar dos filhos e da
casa e aguardar o retorno do marido, do contrário ela des-substancializa
as relações do relacionamento conjugal. A esse respeito, vale citar Ma-
chado (2007) quando diz:
[...] parece que a desonra que ela implica também des-substanciali-
za violenta e rapidamente aquelas relações do casamento: é como
se o sêmen alheio fosse uma substância que contaminasse definiti-
vamente um conjunto de relações, desonrando o marido e levando
ao fim imediato daquelas relações (MACHADO, 2007:18).

Os resultados apresentados nos últimos parágrafos incitam a uma


reflexão sobre a condição da mulher no que diz respeito ao que co-
mumente se denomina “sexualidade feminina” ou “feminilidade”. Tal
ponderação se faz necessária com vistas a compreender, por exemplo,
para-além da representação social da traição feminina, por que ape-
nas 2% das mulheres recorrem, como saída para a solidão, ao início
de um novo relacionamento. Para tanto, faremos uso das ferramentas
conceituais freudianas.
282 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
Em sua conferência de 1932 sobre “Feminilidade”, Freud
(1933/1996) afirma que existem três destinos possíveis para o desen-
volvimento da mulher a partir do momento em que se estabelece o
reconhecimento da diferença entre os sexos, isto é, que o menino pos-
sui o pênis e a menina não. A primeira vicissitude é a inibição sexual
ou a neurose. A menina, ao dar-se conta de sua “castração” (para usar
o termo freudiano) renuncia à atividade sexual e à sexualidade como
um todo, adotando uma posição passiva em relação ao ato sexual. Ela
passa a conceber a atividade sexual como um atributo exclusivamente
masculino – daí a idéia bastante comum há décadas atrás, segundo a
qual a mulher não deveria sentir prazer no intercurso sexual. Com a
passividade, advém a substituição do desejo de ter um pênis (como os
homens) e, por conseguinte, de ter sexualidade, pelo desejo de ter um
filho. Nesse sentido, o filho é esperado como uma compensação pela
ausência do pênis. Esse é um dos perfis pelos quais uma mulher pode se
apresentar, segundo Freud (1933/1996).
O segundo perfil é o da mulher que, como reação à castração, de-
senvolve o que Freud chama de “complexo de masculinidade”. A menina
não “aceita” a realidade da castração e recusa-se a adotar uma atitude
passiva, aferrando-se na satisfação sexual via clitóris, primeira zona eróge-
na feminina e com função análoga à do pênis. Isso não significa que todas
as meninas que reagem dessa forma à castração, tornar-se-ão lésbicas,
embora essa seja uma possibilidade. Significa que mesmo no relaciona-
mento com homens, elas adotarão uma postura ativa e comportamentos
comumente atribuídos à masculinidade (FREUD, 1933/1996).
O terceiro e último destino sexual da mulher, de acordo com Freud,
é o que o médico vienense chama de “feminilidade normal”. Nesse caso,
a mulher, ao contrário do primeiro perfil, não renunciaria à sexualidade.
Em vez disso, o que ocorreria seria uma substituição de uma zona eróge-
na por outra: se inicialmente a menina se satisfazia sexualmente através
do clitóris, após dar-se conta de que esse não se transformaria em pênis
(castração) ela converge seu erotismo para a vagina, preparando-se, as-
sim, para a satisfação sexual mediante a introdução do membro masculi-
no. Tampouco, a mulher que se encaminha para a “feminilidade normal”
reage à castração se identificando com o pai e se tornando masculina,
como no segundo perfil. Ao contrário, ela toma a mãe como modelo e
o homem como objeto sexual. Semelhantemente à mulher inibida sexu-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 283


almente, a mulher desse terceiro perfil também substituirá o desejo por
um pênis pelo desejo por um filho. No entanto, ela não renuncia a sua
sexualidade em função disso (FREUD, 1933/1996).
Toda essa digressão se faz relevante uma vez que as proposições
em pauta permitem entender porque é menos dispendioso para a mu-
lher substituir sua satisfação sexual por atividades de lazer, contatos com
familiares e amigos, etc., o que não ocorre com igual facilidade no caso
do homem. Sabe-se que nas prisões, por exemplo, é muito comum que,
na ausência de mulheres, um grande número de homens tome a seus
companheiros de detenção como parceiros sexuais. Isso evidencia que é
muito mais complicado para o homem abdicar da satisfação sexual pelas
chamadas “vias de fato”. No caso feminino, como vimos, a substituição é
um elemento presente desde o início de seu desenvolvimento sexual. No
entender de Freud, para que a “feminilidade normal” se estabeleça, são
necessárias, no mínimo, três substituições. Em primeiro lugar, a substitui-
ção do objeto sexual: em vez da mãe, objeto original em virtude do cui-
dado materno, o pai. Concomitantemente, a mudança de zona erógena:
do clitóris para a vagina e, posteriormente, a substituição do desejo de ter
um pênis pelo desejo de ter um filho (FREUD, 1933/1996).
Além disso, a ausência do pênis torna as vias de circulação da libido
(que é como Freud denomina a força motriz da sexualidade) muito mais
abertas para a mulher do que para o homem, pois nesse a libido está con-
centrada no órgão genital. É a partir dessa premissa que Freud explicará
um aspecto bastante característico da feminilidade, a vaidade:
Assim, atribuímos à feminilidade maior quantidade de narcisismo,
que também afeta a escolha objetal da mulher, de modo que, para
ela, ser amada é uma necessidade mais forte que amar. A inveja do
pênis tem em parte, como efeito, também a vaidade física das mu-
lheres, de vez que elas não podem fugir à necessidade de valorizar
seus encantos, do modo mais evidente, como uma tardia compen-
sação por sua inferioridade sexual (FREUD, 1933/1996, p. 131).

Evidentemente, quando Freud utiliza o termo “inferioridade sexu-


al” não está se referindo a um aspecto moral. O autor está apenas des-
crevendo como a castração é amiúde concebida na realidade psíquica
da mulher. Vemos, portanto, que a ausência do pênis, faz com que a
imagem do próprio corpo se afigure como um veículo ideal de descarga
da libido, no caso das mulheres. Mas não só a imagem corporal.

284 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Freud, no artigo metapsicológico “Os Instintos e suas Vicissitudes”
(FREUD, 1915/1996) cita outro possível destino de nossa sexualidade,
além da satisfação com o próprio eu (narcisismo). Tal vicissitude desig-
naria o uso da energia sexual (libido) para fins deveras distantes da sexu-
alidade, mais particularmente para intenções relacionadas a realizações
culturais. Ou seja, adotando tal “estratégia”, por assim dizer, o sujeito,
em função da impossibilidade de descarga da libido pela via sexual, o
faria através de empreendimentos de cunho cultural. Tais realizações
não caracterizam apenas a criação de obras de arte ou a produção de
um livro, por exemplo. Têm a ver muito mais com o uso da linguagem,
na medida em que essa se constitui em condição sine qua non de exis-
tência da cultura. Assim, podem ser caracterizados exemplos de subli-
mação, visitar parentes e amigos, ir à igreja, fazer orações, ler, assistir
TV, ir ao cinema ou ao shopping, etc., isto é, todas essas atividades que
nossas entrevistadas alegaram praticar como saída para a solidão.
O próprio contato telefônico com o parceiro no exterior não pode
ser encarado apenas como uma conversa normal entre um casal. Mui-
to mais do que em outras ocasiões, cada palavra dita nesse intercurso
está carregada de libido que, não podendo ser “dissolvida” no corpo,
se imiscui nos intervalos de cada significante pronunciado. Em alguns
casos, como mostram os resultados, a libidinização da fala ocorre de
forma bastante explícita como entre aquelas mulheres que fazem o cha-
mado “sexo por telefone” com o parceiro.

Tabela 4
Frequência e atitude diante da ocorrência do desejo sexual – 2007

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 285


Embora vários autores afirmem que o emigrar é um projeto de
família, há que se atentar para o fato de que grande parte das entrevis-
tadas não concordou que o parceiro fosse para o exterior (38,1%) ou
ficou em dúvidas da viabilidade do empreendimento e não deu opinião
(11,7%). Mesmo não concordando com a partida do parceiro, as en-
trevistadas deixam transparecer que acabaram acatando a decisão por
acreditar que seria um meio de dar um futuro melhor aos filhos, inde-
pendentemente das situações adversas a que seriam submetidas.
Inegavelmente, um significativo número dentre as entrevista-
das foi solidário com a decisão do parceiro e o incentivou a emigrar
(35,2%). A estas que viam a inserção no processo emigratório como po-
sitiva, somam-se as que acreditavam que a vida melhoraria (10,1%) e as
que consideravam o emigrar do parceiro como uma possibilidade de se
sentirem mais livres sem ter que romper com o relacionamento (4,9%)
que já apresentava desgaste.
É comum que, por ocasião da decisão de partir, o parceiro afirme
ter interesse em levar a mulher com ele para o exterior. Num primeiro
momento, diante do convite muitas das entrevistadas fizeram a escolha
de permanecer no país. Entendem que tal escolha era a que mais po-
deria contribuir para o alcance dos objetivos que justificavam o envolvi-
mento da família no processo. Pelo bem da melhoria das condições da
família ou por motivos particulares, o viver esse distanciamento seria,
num primeiro momento, a melhor opção.
Os relatos abaixo atestam que a decisão de permanecer no País
aguardando o retorno do parceiro era normalmente motivada pela
preocupação com o bem-estar dos filhos. Segundo elas, as crianças
não teriam com quem ficar e elas não gostariam de deixá-las com
parentes ou outras pessoas. O relato de duas entrevistadas deixa a
entender que deixar os filhos para trás seria praticamente impossível,
apesar da insistência do parceiro. De alguma forma, entre a função
materna e a função de companheira, sacrificar a segunda seria menos
doloroso ou a decisão mais acertada:
Pra eu estar indo depois, ele tem vontade (o marido), mas eu já
desisti, porque de primeira a gente acha que vai ser fácil, tipo
assim ele “tá indo a gente vai”, mas depois a gente fica pensan-
do que os filhos ficam sozinhos, porque pra levar todo mundo
já fica difícil (E. 41 anos).

286 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Tive vontade de ir várias vezes, depois eu desisti. Não fui por-
que eu mesma desisti. Meu marido apoiava, ele me ajudou
muito a pensar, mas eu desisti por causa das meninas. Tenho
quatro filhas (D. 36 anos).
Teria coragem de ir, e me sentiria muito bem em estar lá. Mas eu não
gosto muito da idéia de ir e deixar a família para traz (S. 28 anos).

A decisão do parceiro de emigrar exige uma tomada de posição


importante na vida dessas mulheres. Emigrar junto do marido, implica-
ria viver distante dos filhos e ter suspensa a função materna. Para elas,
o sacrifício de tal função seria mais difícil de aceitar, por questões so-
ciais ou pessoais. Em decorrência, era preferível abrir mão de emigrar
para viver junto do parceiro no exterior a abrir mão de ficar junto dos
filhos e aguardar o retorno do parceiro. Tal opção subtrai a presença
da figura masculina da vida dessas mulheres. Apesar da ausência do
parceiro, elas deveriam dar continuidade à vivência do “ser esposa”
durante a permanência dele no exterior, embora por desejo ou ironia,
não mais estariam cumprindo a função de mulher ou, pelo menos, de
amante do parceiro. Na vida cotidiana das entrevistadas, a preocu-
pação com o papel de mãe permanece mais presente na consciência
dessas mulheres do que a preocupação com o papel de esposa, redu-
zido em decorrência da ausência do parceiro. Suas responsabilidades
ficaram limitadas ao gerenciamento do lar, cuidado e educação dos fi-
lhos. Garantir o cumprimento dessa opção implica não mais pensar na
possibilidade de unir-se ao parceiro no exterior deixando seus filhos
para trás. Tal atitude é descrita na citação que se segue:
Lacan (1974/1975) mostra que a mãe ocupar-se-á de seus filhos,
em vez de gozar às custas deles, ao se oferecer como causa do
desejo para um homem. Por não poder responder ao enigma do
feminino, uma mulher pode tentar respondê-lo sendo A mãe. É
a introdução da versão do pai que permitirá a limitação do gozo
materno, pois a criança funciona como um condensador de gozo.
É essa limitação ao gozo que assinala a transmissão da função
paterna, da versão do pai, a père-version (LIMA, 2002).

Esse comportamento é comum no que consiste o distanciamento


conjugal e a não vivência afetiva e sexual com nenhum outro homem
como nos mostra o estudo em questão, para a maioria das entrevistadas.
A não presença tanto física quanto simbólica do parceiro deixa uma

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 287


lacuna na vida da mulher, permitindo, assim, que preencha esse vazio
exercendo a função de mãe, entregando-se por completo a essa dedi-
cação, deixando apagadas suas experiências de mulher. A não presença
do pai permite ainda que a criança e mãe regridam para a primeira con-
dição de relação mãe e filho, onde não existe uma terceira pessoa.
Ainda na conferência sobre “Feminilidade” Freud faz uma refle-
xão sobre as relações da mulher com a maternidade. Para o autor, como
vimos anteriormente, o nascimento de um filho significa, na realidade
psíquica da mulher, uma compensação por sua falta de pênis. Por conta
disso, pode-se entender a preferência das entrevistadas por permanecer
no Brasil em função dos filhos não apenas do ponto de vista ingênuo
que alegaria uma colocação em ato de um suposto “instinto materno”.
Pode-se enxergar a situação sob outra ótica. Na medida em que, na
realidade psíquica da mulher, o filho equivale ao pênis, logo preferir a
distância do marido à distância dos filhos significa também um exercício
de narcisismo, como se a mulher dissesse: “Agora que já me deste o que
eu tanto desejava, a compensação por minha inferioridade sexual, já
não preciso tanto de ti. Prefiro permanecer completa, ao lado de meus
filhos/pênis do que ir contigo”. É justamente em função dessa nova di-
nâmica conjugal introduzida pelo nascimento dos filhos que Freud vai
refletir sobre uma saída possível para a manutenção do equilíbrio entre
o casal, o que, em outras palavras, implica na superação da inveja do
marido pela atenção maior dispensada pela mulher aos filhos. A solu-
ção, para Freud, é que o próprio marido se converta também em filho!
Nas palavras do psicanalista:
Uma mãe pode transferir para seu filho aquela ambição que teve
de suprimir em si mesma, e dele esperar a satisfação de tudo
aquilo que nela restou do seu complexo de masculinidade. Um
casamento não se torna seguro enquanto a esposa não conseguir
tornar seu marido também seu filho, e agir com relação a ele
como mãe (FREUD, 1933/1996, p. 133).

A vivência em torno do processo emigratório gerou significativas


mudanças no modo como tais mulheres passaram a perceber a par-
ticipação nesse empreendimento. A partir da experiência, a maioria
(79,0%) passou a considerar que o melhor é que o parceiro permaneça
no País, entendendo que o mais importante é que o casal esteja junto
nos bons e maus momentos.

288 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Por ocasião das entrevistas, a maioria das mulheres aguardava o re-
torno do parceiro. O percentual daquelas que confiam no sucesso finan-
ceiro, mesmo aceitando que ele ainda demore algum tempo para retornar
(49,0%), não é muito distante daquelas que preferem tê-lo perto do que se
preocupar em ganhar dinheiro trabalhando no exterior (39,7%), somadas
àquelas que gostariam que eles as ouvissem e voltassem para casa (7,3%).

Tabela 5
Desejo de emigrar, prioridade conjugal e sentimentos gerados pelo distanciamento - 2007

O grande tempo de distanciamento demonstra que a percepção


dessas mulheres mudou de acordo com fatos e acontecimentos singula-
res e particulares do relacionamento e da vida de cada uma delas. A idéia
sobre emigração traz para essas mulheres sentimentos e pensamentos
que as remetem a lembranças tristes e aspectos ligados principalmente
ao enfraquecimento das relações familiares, que, segundo elas, é a área
mais atingida e prejudicada pelo processo emigratório. Percebe-se uma
mudança de axioma: se antes se pensava positivamente na emigração
como uma forma de obtenção de bens materiais e melhoria da quali-
dade de vida familiar, atualmente o processo é percebido como vilão,
tornando-se a presença e a co-habitação contínua dos parceiros, valores
prioritários a serem resguardados pela família. Isto pode ser constatado
através de fragmentos do discurso das entrevistadas.
Ah tem que ser muito forte pra resistir, se não for não consegue
manter a estrutura de constituir uma família sozinha não. Se a
pessoa não tiver assim cabeça e não pensar bem no que é que

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 289


faz então é melhor não ir não. Eu acho que sinceramente todo
mundo sente né, muito difícil, agente gostar e saber que um tá
tão longe do outro é complicado (D., 36 anos).
Tenho muita tristeza, tenho agonia, só de pensar que a pessoa
vai, tudo bem que é pra melhoria de vida, mas que é muito triste
é, que a pessoa ta deixado tudo pra trás, pra tentar outra vida,
e chega lá você não sabe se vai dar certo, nem tanto a vida que
ele deixou aqui, e nem a vida que ele deixou lá, então é muito
complicado (A., 24 anos).
Eu fico mal, vou te falar a verdade, não me passa nada bom, eu
fico com aquele sentimento de um vazio, aquela coisa ruim den-
tro de mim (E., 30 anos).
Eu tenho pena, porque você separar um casal, um pai da família
é muito triste né. A pessoa que é amorosa sente demais da conta.
Não é fácil você largar tudo pra trás e ir pra um país estranho,
casal novinho é pior quando a pessoa já ta mais velha ainda pensa
melhor, mas novinho não deve resistir não (S., 51 anos).

Conclusão

Tomando como referência o relato das entrevistadas, a participa-


ção do parceiro no processo emigratório gera prejuízos emocionais e
familiares, impactando negativamente sobre as possibilidades de con-
tinuidade do relacionamento conjugal. A decisão de emigrar em busca
de oportunidades que favorecessem a melhoria financeira da família
acarreta mudanças significativas na vida da mulher. Estas se tornam dife-
rentes em relação ao que eram antes de participarem do processo, tanto
as que aguardam o retorno do parceiro, quanto as que, em função de
novos acontecimentos, não vivem mais tal expectativa.
O isolamento social e sexual se torna parte do cotidiano de mulhe-
res de emigrados, sobretudo no intuito de se evitar uma série de fatores,
tais como ciúmes do parceiro, vigilância familiar e social e o controle da
moral da mulher por parte das famílias. No processo de preservação do
casal, cria-se para a mulher do emigrado uma sensação constante de es-
tar sendo fiscalizada e inspecionada. Sensação esta que, mesmo apoiada
pelas famílias, torna-a cada vez mais refém de sua própria solidão.
À luz da teoria freudiana, no entanto, não se pode atribuir apenas
à vigilância familiar e social as limitações sofridas por tais mulheres no
tocante às suas atividades sociais. Há um elemento muito próprio da
290 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
condição feminina que é, como vimos, uma maior resiliência para a
adaptação a situações em que o parceiro está ausente. O desenvolvi-
mento psicossexual feminino evidencia que a mulher já está, por assim
dizer, “acostumada” a fazer concessões em sua vida sexual e a substi-
tuir suas expectativas originais. Isso, evidentemente, não justifica e torna
aceitável o olhar perscrutador dos familiares e vizinhos. No entanto, é
preciso assinalar a ressalva de que é muito mais fácil para uma mulher
viver sob tais condições do que um homem, cuja sexualidade não se
presta à mesma capacidade metamorfótica que a da mulher.
Apesar da sobrecarga de responsabilidades, da angústia da distân-
cia, das saudades que ora se tornam mais presentes, da sexualidade não
vivenciada, o relacionamento persiste graças ao que Orwell (1984:36)
chamou de “duplipensar”. De fato, essas mulheres são capazes de “es-
quecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória pron-
tamente no momento preciso, e depois tornar a esquecê-lo”. No pró-
prio dizer das entrevistadas, “quando ele viaja não sinto que tô casada,
mesmo sem pôr o pé na rua. Casamento é casal junto”.
O isolamento social vivenciado pela mulher do emigrado e os
impactos dele decorrentes não são opções, mas efeitos colaterais da
escolha por uma solução para dificuldades financeiras enfrentadas pela
família. São efeitos colaterais, por serem consequências negativas resul-
tantes de uma opção de distanciamento que, a princípio, seria a solução
para os problemas da família.
A importância de se investigar tais efeitos deletérios da emigração
na vida das parceiras de emigrantes reside, para-além da ciência, no for-
necimento de dados para que possa ser possível a criação de redes de
apoio social e psicológico não só para as mulheres como também para
seus filhos. Como os resultados mostraram, muitas mulheres podem não
deter os recursos necessários para vivenciar de forma saudável o distancia-
mento do marido, podendo apresentar quadros mais graves de transtorno
psicológico. Com efeito, só conhecendo tal realidade, será possível a for-
mulação de estratégias específicas de atenção a esse grupo de pessoas.
Do ponto de vista da continuidade da pesquisa científica, os re-
sultados e conclusões do presente estudo estimulam a elaboração de
outras pesquisas que, para fins comparativos, poderiam investigar como
se dá a experiência de distanciamento conjugal entre os homens que
emigraram, isto é, o que pensam sobre a experiência de emigrar, quais

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 291


estratégias adotam para lidar com a solidão e a saudade da parceira e
dos filhos etc. Tais estudos se fazem necessários com vistas a demonstrar
que o processo emigratório afeta emocionalmente não apenas aqueles
que permanecem no país, mas também os que aderiram à aventura de
fazer a América, a Europa, o mundo...

Bibliografia

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TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 293


294 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
Política Linguística no Brasil: para ser o que é
Nádia D. F. Biavati1

Introdução

O
s eventos históricos caracterizam a formação do Portu-
guês Brasileiro, refletindo na consolidação do idioma
ressignificado no Brasil. Como parte de um conjunto
de elementos na formação de uma nação, a língua, no território
brasileiro, orienta-se a partir de uma memória que se reinventa,
distinguindo-se do olhar, dos valores e das práticas do coloniza-
dor. Um dos aspectos significativos dessa reinvenção se relaciona
à política linguística do país em seu aporte histórico.
Entendo Política Linguística como um conjunto de acontecimen-
tos, de atitudes e de práticas oficiais e não oficiais emanadas do Estado
e do povo, o que indica uma jurisprudência provocada ou não sobre o
idioma. Além disso, constitui e interpela o povo e os governantes sobre
a língua, nesse caso, o Português do Brasil. A ideia é que o idioma se
configura a partir de definições – algumas provenientes de uma relação
cotidiana entre os falantes, na interação; outras concentradas em práti-
cas originadas do governo local ou pelo mando do colonizador no terri-
tório brasileiro, seja no início da colonização, no império ou na repúbli-
ca. Dessa forma, percebe-se um mosaico de valores, crenças e práticas
o qual cerca o idioma, influenciando a forma como ele se consolida ao
longo do movimento sócio-histórico desse lado do Atlântico.
Nessa perspectiva, existem representações sobre o dizer, a regra e
o fato (uso), e outros elementos de gramatização, os quais indicam cami-
nhos para que a língua portuguesa se “redesenhe” no Brasil e constitua-
se por um conjunto de valores que, até certo ponto, seriam incompatí-
veis entre si. Em um estudo teórico-discursivo sobre o idioma brasileiro,
baseado na História das Ideias Linguísticas e na Historiografia Linguística
no país, destacam-se, a seguir, eventos que refletem a preocupação, no

1 Doutora em Linguística pela UFMG. Professora do Programa de Mestrado em Gestão Integrada


do Território da Universidade Vale do Rio Doce.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 295


território simbólico brasileiro2, entre dois caminhos: a persistência no
acompanhar as tendências de uma política linguística de Portugal e a
consolidação do idioma ressignificado no território brasileiro, a partir de
suas especificidades.
Embora o senso-comum retrate a consolidação de um idioma
único no país, sabe-se de uma implantação do português cercada de
eventos que, de forma pacífica ou conflituosa, interferem no curso da
língua e indicam reflexos de valores do colonizador para a nação brasi-
leira. Ou seja, ao contrário do que em muitos momentos é enunciado,
houve uma intervenção significativa do colonizador, às vezes, por força
de leis, para a constituição do Português no Brasil.
Faz-se interessante expor, através de um estudo teórico sobre a
gramatização no país, alguns aspectos importantes sobre a entrada do
idioma do colonizador, bem como o papel do docente nas relações
sociais, ao se encarregar de aulas do idioma da colonização. Ainda que
o professor tolere, por vezes, as entradas de outros elementos lexicais,
sintáticos e semânticos dos portugueses e de outros povos que chegam
e estão no país, cabe a ele difundir o idioma, ao modo brasileiro, aju-
dando a consolidar o território simbólico da língua.

Considerações teórico-metodológicas

Para investigar com o olhar crítico a consolidação do Português


no território brasileiro, consideram-se importantes duas abordagens
temáticas: a história das ideias linguísticas e a historiografia lingüística.
Ambas explicam e ajudam a compreender algumas práticas discursivas,
responsáveis por ações e por eventos que influenciaram na efetivação
da língua Portuguesa no Brasil.
Ratifica-se, nesse sentido, que o conceito de território se postula
como aquele constituído de elementos de uma exterioridade que se
dá a partir de relações simbólicas, as quais cercam a língua. Raffestin
(1993: 53) trabalha com essa acepção, revelando a manifestação es-
pacial do poder fundamentada em relações sociais. Tais relações ocor-

2 Entendo território como conjunto de valores que, a partir das relações de poder,consolidam a
construção simbólica da nação em seu próprio aporte, ainda que sob as influências dos meca-
nismos de colonização, com a entrada da língua, da cultura, de valores e práticas de Portugal
e em menor influência elementos de outros países.

296 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


rem a partir de uma apropriação do idioma colonizador, no sentido
de se apoderar desse idioma e de “torná-lo apropriado” às condições
socioculturais brasileiras. Isso significa que o Português brasileiro se
fixa como fato e regra no território simbólico de uso do Português
Brasileiro. Em Minas Gerais e em Governador Valadares, por exemplo,
há a presença do idioma ressignificado nas condições brasileiras, ainda
que existam condições de migração, da fala de quem vai e volta do
exterior, como “cidadão global”.
Há, portanto, um conjunto de relações simbólicas permeado por
um poder que impõe a língua do colonizador e tolera, até certo ponto,
inserções linguísticas de outros modos. Dessa forma, entende-se que
território se constitui simbolicamente por atitudes de aceitação e impo-
sição, não só fundamentadas geograficamente, mas também por duali-
dades de apropriação e de imposição de práticas.
Seguindo essa dualidade, existem a expressão e a normatização
de uma língua sob o viés histórico, descontínuo e sucessivo (BASTOS;
PALMA, 2004), com formas que o saber linguístico tomou no Brasil, na
relação com o sujeito, a língua, as línguas e o saber sobre as línguas ao
longo da história brasileira (ORLANDI, 2000: 21).
Para a História das Ideias Linguísticas, a Análise de Discurso3 é
importante, pois permite “pôr em relação diferentes ordens de dis-
curso: a do saber ‘sobre’ a língua e a do saber ‘a’ língua” (ORLANDI,
2000: 20). Nesse viés, muitas das manifestações, das atitudes e dos
valores do chamado professor-mosaico4 se explicam por um conjunto
de elementos disseminado sobre a língua e o “saber-a-língua” na his-
tória – elementos que devem ser avaliados criticamente. Assim, tanto
o “saber” a língua quanto o saber “sobre” a língua resgatam aspectos
que, ao longo do processo histórico, instauram ou efetivam uma me-
mória discursiva sobre o “dar aulas de Português” no Brasil, seguindo
as características do “apropriar-se” de um modelo e de torná-lo apro-
priado (reinventado) – adaptando ou seguindo adaptações do idioma
de acordo com as influências na construção do Português Brasileiro. A
seguir, concentra-se o olhar sobre pontos na história que marcam, de

3 Para o momento, considero Análise de Discurso e Análise do Discurso como sinônimas.


4 O conceito de professor-mosaico se desenvolve a partir da definição de que o professor se
mostra uma identidade cujas práticas seriam bricolagens de valores e crenças até certo ponto
incompatíveis entre si (BIAVATI, 2009).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 297


alguma forma, as relações que configuram o caminho dos falantes, o
que é observado pelo professor, influenciando sua prática.

Memória discursiva e historicidade: saberes que atravessam o fazer


do professor de Português

Ainda que se considere a história da língua de forma linear, a


diferença entre as posições mencionadas acima passa despercebida;
entretanto, não há como negar a importância de se tomar a história da
língua e a dos sujeitos que a ensinam como discursos, caracterizados
como versões. Ao se voltar à década de 1980, indica-se a importân-
cia do movimento denominado “revolução historiográfica” e do olhar
de Foucault sobre “a descontinuidade”. Nesse movimento, a ideia de
História Tradicional é desconstruída, já que, vista sob o viés linear, ela é
“uma forma de proteger a soberania do sujeito”.
Com o olhar de analista do discurso, Foucault propõe a relevância
de se perceber a dispersão e a descontinuidade para problematizar os
eventos da História. No mesmo movimento, a Nova História propõe
uma história-para, indicando que os documentos são monumentos, na
medida em que é criado um “efeito de realidade” a partir do relato
histórico. Nesse ponto, a fase genealógica de Foucault é especialmente
importante, já que existe o propósito metodológico de tematizar a dis-
cursividade que cerca o fato histórico. Desse modo, a compreensão dos
fatos de uma forma não linear, em que há uma discursividade permean-
do a gramatização, no país, é crucial, uma vez que existe uma memória
discursiva importante. Entende-se por memória discursiva um conjun-
to de formações discursivas que se constituem pelos deslocamentos de
sentidos, que se fazem, no caso, “entre o Português e o Português bra-
sileiro”, os quais alimentam a institucionalização das ideias linguísticas
sobre Português brasileiro e a maneira fragmentada como essas povoam
o imaginário dos professores, influenciando seus valores e suas práticas
ao ensinar “Português”.
Mencionar o processo de consolidação do idioma brasileiro con-
diz com o que se descreve sobre a seleção de elementos os quais com-
põem a historicidade que atravessa o ensino, trazendo implicações e
efeitos. Há, portanto, uma discursividade entrelaçada nesses conceitos,
compondo os “arquivos” que regem o ser/fazer dar aulas de Português.

298 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Em relação a isso, entende-se “arquivo” no sentido foucaultiano, como
sendo gestos de interpretação que se fazem pelos sentidos-para, sobre
os movimentos constituintes da memória coletiva da profissão “profes-
sor de Português”, o que merece atenção.
Na confluência entre os estudos foucaultianos e pecheutianos, há
de se considerar a importância da “escuta dos saberes dominados” e
“da história não linear” da discursividade. Por isso, a relevância dos au-
tores, pois tanto o projeto de Pêcheux quanto o de Foucault caminham
para descortinar relações existentes e não aparentes (naturalizadas) en-
tre proposições e saberes que regem a profissão do professor-mosaico.

A exterioridade na constituição do professor de Português

Compreende-se exterioridade como um conjunto de fatores que


orientam as práticas e os valores do professor. São eles que influenciam
seu conjunto de decisões, de dizer e o seu fazer na profissão. A fim de
investigar a identidade profissional do docente, faz-se necessário des-
vendar os conflitos por que passam as concepções ou os saberes norte-
adores da sua formação. Nesse contexto, a política linguística aparece
como determinante interdiscursivo às representações que cercam o uni-
verso do professor de Português, influenciando a forma de compreen-
são dos valores defendidos em sua prática. É relevante destacar que as
ideologias interpelam a consolidação do idioma pelo viés histórico, em
que se configuram dicionários, modos de dar aulas e valores a serem
defendidos ao se ensinar o idioma.
Na verdade, apresentam-se, a seguir, aspectos marcantes de
“arquivos”5 que constituem a memória, cujos caminhos são percorridos
através de discursos disponíveis sobre os saberes metalinguísticos que
norteiam o professor-mosaico no ensino de Língua Portuguesa. Nesse
ínterim, é interessante frisar que, no ensino, o mercado editorial e o
Estado definem valores e influenciam professores, ao defender determi-
nadas filiações teóricas. Os docentes, por sua vez, influem na maneira
como o Estado vê o ensino, nas obras publicadas e nos valores a serem
defendidos na formação do aluno em língua materna.

5 A noção de arquivo é discutida por Pêcheux e Foucault e revela os gestos de interpretação


percebidos através da escuta de sentidos.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 299


Entre os aspectos significativos que afetam a formação e a prática
do professor de Português, destaca-se o que Orlandi (1990; 2002) cha-
ma de política linguística no país. A respeito do caso brasileiro, a autora
(2002: 76) observa que a língua é um lugar “politicamente significado
da articulação da ciência com a religião e o poder”. Entendo política
linguística como um conjunto de ações e decisões linguísticas formais
ou informais sobre o tratamento (estatal ou não estatal, oficial ou não
oficial) da língua e dos objetos linguísticos. Segundo Fiorin (2002: 108),
trata-se de uma escolha explícita entre as alternativas dos níveis de utili-
zação para caracterizar os usos oficiais ou públicos da língua. A política
linguística constitui e é constituída por ideias e por valores que traçam
a relação do ensino com norma e gramática e com o processo de le-
tramento, estabelecendo rumos para a convergência disso na prática
social, com o Estado, com a sociedade e com as escolas.
Ainda que, atualmente, regiões como o Vale do Rio Doce/MG
detenham, por décadas, as influências das condições de migração de
chegada e saída de brasileiros para o espaço estrangeiro, a interação
lingüística acontecerá em Português Brasileiro, levando-se em conta a
historicidade dessa língua no espaço brasileiro, já consolidado por gera-
ções, com suas características. Nesse sentido, acredito que o professor
de língua materna é o maior veículo institucional da política linguística
em um país. No caso do Brasil, que historicamente traz as marcas histó-
ricas de séculos da colonização e carrega as fortes marcas da coloniza-
ção na língua, essa situação não é diferente.

2.2 A formação do Estado brasileiro e a língua nacional: “nós e eles”

Assume-se que o modelo brasileiro de língua nacional se reinven-


ta e, conforme Orlandi (2001:13), mostra-se peculiar, porque houve
o que a autora descreve como formação da língua nacional antes da
efetivação do Estado brasileiro independente de Portugal. Desde o fim
do século XVI, a língua falada no Brasil já não era mais a mesma que se
falava no território português e, com a independência, apresentou-se a
questão da língua nacional, embora as variações já existissem e fossem
consideradas invisíveis para o domínio político.
Orlandi e Guimarães (2001), no livro História das Ideias Linguís-
ticas, resultado de estudos desenvolvidos no Grupo de Estudos sobre a

300 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


História das Ideias Linguísticas no Brasil, observam que as ideias linguís-
ticas no país se constroem em dois eixos:
• De um lado, no fato de que há condições determinadas em
que se inscreve a constituição da língua nacional;
• De outro, no fato de que o saber metalinguístico se inscreve
em um jogo complexo entre o papel legislador do Estado e o
papel regulador da instrução gramatical.
O processo de colonização pode ser compreendido tanto a partir
do olhar do colonizado quanto do colonizador, mas com um ponto
comum, que é o da percepção de que existe a reinvenção e a ressigni-
ficação de práticas na chamada política de sentidos organizada a partir
da língua de metrópole. Para Orlandi (2001), o projeto de gramática, no
Brasil, articula-se ao projeto de organização da nação brasileira. Essa
política de sentidos envolve dois momentos significativos: em um deles,
as gramáticas são elementos de relação entre portugueses e brasileiros;
no outro, entre brasileiros e brasileiros.
Chama atenção o fato de que, em uma encruzilhada, os valores da
gramática portuguesa ou gramática brasileira se fazem por deslocamentos:
• Deslocamentos do constituir-se como prolongamento das re-
gras de uma gramática lusitana, que reivindica a “lei”.
• Deslocamentos do idioma constituindo-se um conjunto de
elementos como recorrência do fazer linguístico por uma gra-
mática brasileira, com o Português ressignificado.
Ideologicamente, esses deslocamentos representam dois cami-
nhos que se fazem paralelamente ou se chocam em uma formação
do mosaico: pensar e pesar a regulação (a regra) e a regularidade (o
fato linguístico) no uso.

2.3 Os eventos históricos constituindo eventos discursivos

A efetivação do idioma, no Brasil, acontece a partir de aspectos


históricos que marcam a política linguística brasileira. Os aspectos his-
tóricos, em relação ao dizer, fazem-se também como eventos discursi-
vos, uma vez que as relações linguísticas constituem as relações sociais.
Nesse viés, os eventos históricos marcam a relação entre portugueses e
brasileiros na constituição do idioma. Já a relação dos portugueses com
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 301
a sua língua, no início da colonização, é marcada por uma política guar-
diã da identidade portuguesa. No que diz respeito aos instrumentos que
potencializam essa política, vale lembrar que o ensino de língua por-
tuguesa, nessa época, vem de uma tradição baseada no modelo ecle-
siástico, de observância aos preceitos da fé, e no modelo latinista, ao
lado dos valores de “apego ao espírito, acima dos desejos mundanos”
(CASAGRANDE, 2004: 32-33).
Na verdade, como um conjunto de eventos discursivos pautados
na tradição, o modelo latinista se faz a partir de deslizamentos de senti-
dos: valores de uma língua “melhor” em detrimento de uma “pior”, uma
língua já consolidada, “perto dos valores de Deus”, em vez de uma língua
ressignificada. Casagrande (2004) destaca que ainda há uma mentalidade
medieval na produção lusitana do século XII ao século XV, com a tendên-
cia teocêntrica no tratamento das questões relativas à cultura. Existem
registros, coletados por essa autora, de professores avulsos (profissionais
não ligados ao sacerdócio), com formação baseada na tradição da época,
que ministravam as primeiras letras em Évora, no ano de 1439. Também
existem relatos da não valorização do profissional, inclusive com negocia-
ção para baixar o pagamento desses professores laicos.
Casagrande (2004: 39) enxerga a coroa portuguesa, no século
XVI, como usufrutuária da condição de “conquistadora” de novos do-
mínios. Há, portanto, um papel semelhante ao que foi reservado aos
romanos, na condição de dominadores, ao disseminar o uso da língua
latina. A política linguística, na época da colonização, com as chamadas
grandes navegações, marca reflexos dos “preceitos de dominação por
meio da imposição da língua do dominador” (CASAGRANDE, 2004:
43). Já o sucesso nas navegações, com a descoberta de novas terras para
a exploração, garante forças ao império português em uma ação que
atinge a todos os povos os quais “conquistam” territórios: o direito de
sustentar, como demonstração de forças no domínio, a valorização da
língua dominadora — a lusitana, no caso — em seu caráter social, cultu-
ral e político, papel que equivale à condição de tratamento do latim até
então. Assim, o caráter normativo se constitui uma forma de ideologia
que interpela os colonizadores no tratamento da língua como objeto de
ensino: é a “língua boa”, pois é a língua dos mais fortes e ousados.
Vale lembrar que, na época da colonização, segundo Mariani
(2004: 26), consolidam-se documentos normativos escritos organiza-

302 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


dos em Portugal. As gramáticas de Fernão de Oliveira e de João de
Barros se tornam fontes importantes no tratamento da língua. Em es-
tudo sobre a gramática de Fernão de Oliveira, Casagrande (2004: 38)
afirma que esse compêndio sistematiza as regras da língua portuguesa,
mesmo que nele seja perceptível uma volta constante aos clássicos
do latim. Além disso, indica categorias para efetivação de um saber
linguístico a ser ensinado e apreendido; descreve o interesse pela im-
posição do Português como forma de proporcionar a língua “aos gen-
tios”; e salienta e sustenta a argumentação de que “aos conquistados”
cabe aprender e “aprimorar” o idioma. Na essência dessa gramática,
símbolo de afirmação de identidade, o Português é tratado por Fernão
como uma língua que não se deve curvar às outras, devido o tratamen-
to reivindicado ao colonizador. Portanto, nem sempre as mudanças
são bem-vistas, pois, ao assumir empréstimos, a língua poderia se cor-
romper, destituindo-se “de sua identidade primeira”.
A forma de política linguística defendida por Fernão se torna
inviável no que diz respeito ao tratamento de uma língua que chega
a um espaço em que já existem centenas de outras em plena ativida-
de. Remetendo-se aos aspectos históricos que marcam a formação da
língua e do Estado brasileiro pós-chegada dos portugueses, Orlandi
e Guimarães (2001: 22-30) relatam as condições do funcionamento
dessa língua, refletindo sobre momentos nos quais essa história pode
ser problematizada.
Segue-se a separação cronológica sugerida pelos autores. Aos
cinco momentos são acrescentados fatos importantes que influencia-
ram, de alguma forma, a consolidação da língua no espaço nacional,
constituindo eventos da política lingüística brasileira e trazendo refle-
xos ao ensino no país.
Primeiro momento (início da colonização até 1654 - expulsão
dos holandeses): A língua portuguesa é falada pelos senhores de en-
genho, funcionários da coroa. Entre a população, fala-se a língua geral
(franca). A esse respeito, há um contexto em que, segundo Teyssier (2001:
94), os colonos fazem uso do Português com traços específicos que vão
se acentuando com o tempo. Assim, a língua geral é um tupi simplificado,
gramaticalizado pelos jesuítas. É o nheengatu, nas palavras de Dias (1996).
Já na visão de Mariani (2004: 22), a língua é o tupi jesuítico, resultado da
transformação do tupinambá falado na costa brasileira para fins catequé-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 303


ticos. Por um lado, a gramatização do tupi, no sentido de torná-lo forma
de comunicação sistematizada, proporcionou o ensino e a escrita e, em
última instância, o avanço da evangelização. Por outro, o não controle da
língua tornou-se inibidor da colonização nos moldes como queria Portu-
gal, nesse momento, pois o Português e o Tupi conviveram lado a lado
como língua de comunicação. Nesse contexto, uma política linguística
(não oficial) de silenciamento das línguas do colonizado se faz presente.
A visibilidade então recai sobre a língua do colonizador, em um processo
que Mariani (2004: 31) qualifica como uma “pressuposta hierarquização
linguística” em curso, nas relações entre colonizador e colonizado. Cunha
(1985: 75) relata que “não havia espaço para o ensino do vernáculo”.
Ressaltam-se, dessa forma, movimentos de significação da língua para o
colonizado, os quais revelam uma prática discursiva de resistência dos
índios à chamada “conquista” ou “dominação” linguística. Mariani (2004:
32), novamente, relata episódios em que o índio simula um aprendizado:
“[os índios]... fingem que aprendem a língua ou aprendem para discutir
com comerciantes ou para refutar a legislação que se estabelece a seu res-
peito; aprendem a língua portuguesa e mentem valendo-se dessa mesma
língua”. Nos documentos oficiais, percebe-se a prevalência do Português,
que é ensinado aos brancos nas escolas católicas. Entretanto e, apesar das
gramáticas lusitanas que começam a surgir, seguir o modelo educacional
da época indicava a aprendizagem do6 latim e através do latim, segundo
relata Soares (2002:158-159). O espaço de comunicação entre coloni-
zado e colonizador se faz por uma oralidade em que as duas memórias
discursivas se modificam em função da condição dos povos e das línguas
nesse espaço – o brasileiro.
Segundo momento (1654-1808): Aumenta o número de negros
no Brasil e chegam mais portugueses de diferentes regiões de Portugal, o
que faz com que as variedades de uso do Português se efetivem também
no espaço brasileiro. Dias (1996: 11) relata que João de Barros, em sua
obra Diálogo em louvor da nossa linguagem, ainda no século XVI, prega-
va junto à corte portuguesa a necessidade de uma política da língua nas
colônias. Entretanto, só a partir do século XVIII, passa-se a ter um inte-
resse pela situação linguística, que se concretizou com a carta régia de
12 de setembro de 1727. Nela, determina-se que os jesuítas ensinem a

6 Grifos da autora.

304 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


língua portuguesa aos índios. Com a descoberta de ouro, aumenta o in-
teresse pela colônia brasileira. Assim, em 1757, implanta-se a legislação
sobre a língua, com o decreto do Marquês de Pombal. Nesse momento,
é oficialmente implantado e imposto o ensino de Português nas escolas
do Brasil. Pelo decreto ocorre também proibição do ensino de línguas
indígenas nas escolas dos jesuítas, o que reforça o ensino de Português
(esse fato marca o processo de regulação linguística no país). Teyssier
(2001) relata que a língua dos índios prevalece nos espaços privados,
enquanto o Português é a língua dos espaços públicos, aquela que os
meninos vão aprender na escola. Outro fato interessante marca a ques-
tão do ensino nessa época: a expulsão dos jesuítas em 1759. Confor-
me Teyssier (2001: 95), “a expulsão dos jesuítas, em 1759, afastava da
colônia os principais protetores da língua geral”, o que significou uma
reestruturação do sistema escolar. Por fim, a institucionalização do ato
político-jurídico denominado Diretório dos Índios oficializa, em 1759,
de modo impositivo, que apenas a língua portuguesa deveria ser falada
(MARIANI, 2004: 33). Passa-se, então, ao silenciamento da língua geral
e de seus falantes, a partir da caracterização da mesma como “invenção
diabólica”. Nos 50 anos seguintes, a língua geral seria eliminada como
língua comum, restando preferencialmente, no nível do léxico, vocá-
bulos integrados ao Português. Põe-se em curso uma nova organização
escolar, baseada no esforço do uso incondicional da língua portuguesa.
Terceiro momento (1808-1826): A vinda da família real provoca
o fortalecimento do Português como língua nacional e o projeto de lín-
gua portuguesa como língua oficial. É a época da criação da imprensa
no Brasil e da fundação da Biblioteca Nacional, consolidando o proces-
so de gramatização no país. Com a família real na colônia, ocorre o que
Teyssier (2001: 96) chamou de relusitanização do Rio de Janeiro, então
capital da coroa. Franco (2004: 95) relata que, nessa época, houve pou-
cos estudos gramaticais formalizados, a exemplo do Breve Compendio
da Grammatica Portugueza, tratado gramatical escrito por Frei Caneca
entre 1817 e 1819, que só viria a ser publicado no quartel final do sé-
culo XIX. No período compreendido entre 1808 e 1821, o país vive a
condição de colônia administrada por D. João VI, e, após, por D. Pedro
I. Tanto um quanto outro possuía interesse nas realizações culturais no
país, seguindo o modelo europeu. Já na Constituição de 1824 (art. 179),
propunha-se instrução primária gratuita a todos. No entanto, o sistema

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 305


não se organizava para dar conta dessa realidade. Também não havia
pessoal preparado para o magistério: as aulas de Português, segundo
Franco (2004: 98), negavam a língua falada no país e privilegiavam,
sobretudo, o padrão de Portugal como base para o ensino.
Quarto momento (1826): Consoante Dias (1996), nesse mo-
mento, propõe-se uma discussão linguística com a sugestão de que os
diplomas fossem redigidos em “linguagem brasileira”. Para esse autor, a
língua nacional ganha sentidos que se constituem em dois eixos enun-
ciativos: o da língua “brasileira” com identidade a ser valorizada e o da
língua “brasileira” como “idioma corrompido”. Usa-se a terminologia
“língua nacional” e determina-se em lei que professores devem ensinar
a ler e a escrever utilizando a dita língua. Em 1837, funda-se o Colégio
Pedro II, instituição que, nas palavras de Orlandi (2001) e de Franco
(2004), tornar-se-ia, ainda no século XIX, modelo para o ensino de Lín-
gua Portuguesa, mostrando-se também poderoso auxiliar no processo
de gramatização no país. Nesse entremeio, registra-se que profissionais
do ensino ora confirmam, ora resistem aos preceitos e iniciativas das
lideranças político-educacionais (FRANCO, 2004).
Quinto momento (final do século XIX, início do século XX): Há
nova onda de migração para o Brasil, principalmente a partir do últi-
mo quartel do século XIX, o que, mais uma vez, traz à tona a relação
língua(s) interna(s) e língua externa, garantindo movimento de hibridi-
zação no contato entre os falares. Teyssier (2001: 97) relata que, mais
tarde, sobretudo durante o período de 1870-1950, ocorre a migração
europeia para cá, partindo de uma iniciativa do aparelho estatal, con-
tribuindo para “branquear” o Brasil contemporâneo e trazendo valores
europeizantes ao Estado brasileiro. Payer (2001: 235), na mesma pers-
pectiva, relata eventos de interdição da prática da língua de imigrantes
na década de 1930, com uma legislação que implantou oficialmente o
Português como língua nacional nas áreas de colonização estrangeira.
Há relatos de política de nacionalização das comunidades migrantes,
com professores para ensinar Português. Da mesma forma, existe pre-
ocupação com a unidade nacional, por meio de uma “política de inte-
gração”: a “nação” se efetivaria com a língua como “instrumento de so-
berania nacional”, em uma unidade prevalecendo na diversidade. Uma
política para o ensino se delineia a partir da Nomenclatura Gramatical
Brasileira na segunda metade do século XX: os preceitos da classificação

306 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


são seguidos nos instrumentos de gramatização desde então. Acentua-
se uma preocupação a partir daí, com a ordem do classificar, estruturar
“a língua” no ensino de Língua Materna.
A questão da língua como espaço de comunicação, que Teys-
sier (2001: 99) relata, diz respeito ao povoamento inicial no Brasil,
com a elaboração de “uma koiné por eliminação de todos os modos
marcados dos falares portugueses do Norte e por generalização das
maneiras não marcadas7 do Centro-Sul” de Portugal. Esse é o primeiro
reflexo das situações discursivas em que há o apagamento relativo das
línguas do espaço dominado. Além disso, há a inserção de elementos
linguísticos ou mesmo discursivos de outros povos que vieram para
cá. Portanto, fica clara a existência de um trabalho de reinvenção da
língua no espaço brasileiro, que produz efeitos de sentido de unidade
ora próxima, ora afastada do colonizador.
Percebe-se, pelo breve recorte das informações acima, que, con-
forme afirmam Orlandi e Guimarães (2001: 33), o processo de efetiva-
ção do Português brasileiro é circunscrito na diferença observada entre
transporte e transferência da língua. Em um país de modelo colonizado,
mostra-se um esforço para que a língua se consolide como reflexo de
um deslocamento da língua do colonizador para o espaço colonizado.
Para os autores, no Brasil, não existe simplesmente o transporte de pro-
cessos; tais processos de significação se inscrevem na história e negam a
simples cristalização de situações discursivas e de sentidos. Isso significa
que a construção simbólica do território linguístico brasileiro se faz pelo
idioma reinventado, seguindo a política linguística do país. Ao mesmo
tempo em que o processo de gramatização se fundamenta nos valores
do colonizador, evidenciam-se eventos discursivos que salientam a con-
solidação do idioma nas condições brasileiras. Reforça-se essa afirma-
tiva com o fato de, no Brasil, ter havido o processo de transferência de
língua, marcado por um trabalho de consolidação de memória local e
do saber discursivo que produz sentidos.
A desterritorialização do Português se faz por diferentes situações
enunciativas, pois existe a historicização da língua, que se consolida
de diferentes formas no espaço colonizado, refletindo, ainda hoje, ele-
mentos diferentes do uso lusitano – com a entrada de vários elemen-

7 Grifos do autor.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 307


tos léxicos de origem diferente; a consolidação de elementos sintáticos
típicos, como o uso da dupla negação; e um sistema pronominal que
se solidifica à moda brasileira. Por isso, o funcionamento discursivo se
sobrepõe às regras formais de regulação da língua desde quando havia
simplesmente um espaço colonizado.
Na percepção de que há uma realidade própria da língua no es-
paço brasileiro, a expressão “língua nacional” é posta em questão, a
partir do processo de gramatização brasileiro, iniciado na segunda me-
tade do século XIX. Para Auroux (1992: 65), gramatização é “o processo
que conduz a descrever uma língua na base de duas tecnologias ainda
consideradas os pilares do nosso saber metalinguístico: a gramática e
o dicionário”. Para Orlandi (2002), o processo de gramatização con-
siste no estabelecimento de uma gramática própria da língua. No caso
brasileiro, esse processo só se inicia no século XIX, época também da
independência do estado brasileiro. Para a autora (2002, p. 163), a gra-
matização resulta na construção de instrumentos linguísticos, tais como
gramáticas normativas e dicionários.
Em conformidade com Guimarães e Orlandi (2001), a gramati-
zação apresenta duas facetas: uma é a de universalização, que consiste
na ideia de unidade imaginária, da língua colonizada, instrumentalizada
a partir da cultura ocidental; outra, diz respeito a deslocamentos, que
pressupõem a influência de outras línguas, de variedades.
Há, portanto, um processo de ambivalência de unificação no
Português brasileiro. Teyssier (2001), filólogo francês, em 1980, na His-
tória da língua portuguesa, obra traduzida por Celso Cunha, admite a
consolidação de uma norma brasileira elaborada “nas camadas socio-
culturais superiores”. Citando Ortega y Gasset, também Celso Cunha
(1964), em plena ditadura, observa que a norma não se reduz ao espaço
do colonizador. Para o autor, reduzir o colonizado ao colonizador era
tirar-lhe condições para crescer. Como professor de Português do tradi-
cional Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, Celso Cunha produziu, nessa
década, vários manuais de ensino de língua, observando o “casticismo”
arcaizante (CUNHA, 1964: 22), os recursos intocados do idioma e a
gramática como “código de impedimentos ao uso dos meios expressi-
vos de que nos servimos na fala e na escrita”. Na defesa e no esforço da
unidade da língua portuguesa, publicou A nova gramática do português
contemporâneo, em co-autoria com o lusitano Lindley Cintra.

308 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Foram escolhidos, acima, apenas alguns aspectos que marcam a gra-
matização do país e a construção histórica do idioma pelo cunho discursi-
vo. É necessário, portanto, que seja mais bem divulgada a implantação do
idioma no Brasil, desmistificando a ideia de que a Língua Portuguesa teria
sido simplesmente transportada pacificamente para essa nação.
Vale ressaltar, por fim, eventos discursivos, ou seja, eventos histó-
ricos em seu viés linguístico, que não se esgotam com os citados nesse
texto. Atualmente, em Governador Valadares, Minas Gerais, por exem-
plo, o fenômeno migratório de ida e vinda do exterior para países como
os EUA é praticado por brasileiros e filhos de brasileiros (migrantes de
2ª. geração), refletindo possibilidades diferentes de trabalho para os
professores da região. Não raro, são recebidos nas escolas os filhos de
brasileiros que foram alfabetizados em Língua Inglesa norte-americana,
porque moraram nos Estados Unidos até a adolescência. Para lidar com
essa realidade, o próprio curso de Letras da Universidade Vale do Rio
Doce criou a disciplina intitulada “Português para estrangeiros”, dadas
as diferenças que se notam no letramento do aprendiz que só teve até
um dado momento da vida, o contato escolarizado com a Língua Ingle-
sa. Esse fenômeno marca apenas uma das facetas dessa atividade que
se tem com o exercício de ensino de línguas no mundo nas condições
globais. Sente-se, portanto, sempre, a necessidade de trilhar novos ca-
minhos, e ainda que a língua não tenha sido afetada, o sistema de ensi-
no dessa região foi em alguma medida por essa realidade específica de
ensino do Português Brasileiro no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais.

Considerações Finais

O processo sócio-histórico do ensino marca referências discursi-


vas para formular e indicar posições sobre como ensinar Língua Portu-
guesa. Os professores, portanto, em suas práticas, devem considerar o
fazer histórico sobre a língua, os processos de significação do idioma e
do ensino, bem como o território e o processo de gramatização no país.
Saber sobre os processos da colonização linguística no Brasil e o modo
como se deu a política linguística é crucial para compreender a dualida-
de língua e gramática que o docente enfrenta na profissão, uma vez que
as duas posições são válidas: considerar as regularidades da língua no
território brasileiro, bem como as regras do uso padrão. Ambas são po-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 309


sições decisivas para que se possa desvelar a forma institucional através
da qual se orientam a nossa política linguística e a nossa sociedade.
São várias as intervenções que podem sofrer o idioma e as for-
mas de ensino. É necessário, portanto, que se observe a realidade que
atravessa o território, pois as influências sociais e políticas são decisivas,
tanto para a construção discursiva do idioma, quanto para a política do
ensino de línguas. No caso do Brasil, a consolidação da política lingüís-
tica se fez sob o jugo do colonizador, mas se fez também sob as várias
influências aqui presentes, tanto no passado, há gerações atrás, quanto
ainda hoje, com a condição de mobilidade dos brasileiros, em seus pro-
cessos individuais. Cabe dizer, então, que a língua se faz, refaz, se ressig-
nifica sempre, mesmo que os resultados sejam visíveis após tempos.
Ainda que se considere o mosaico do fato e da regra na formação
do idioma e nas práticas institucionais de ensinar, o professor, enquanto
identidade investida socialmente e como autoridade investida pelo sa-
ber das instituições de ensino, representa a educação, constrói e repro-
duz o papel de disseminar e efetivar tais saberes.

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TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 315


316 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
Ensino Superior e EaD: reflexões acerca da
formação a distância contextualizada
num pólo educacional emergente
Leonardo Gomes de Sousa1
Carlos Alberto Dias2

Introdução

A
constituição territorial da Microrregião de Governador Va-
ladares (MGV)3 forjou-se ao longo das décadas amparadas
em ciclos extrativistas não sustentáveis. Foram lutas pelo po-
der onde oligarquias exerceram uma dominação em detrimento do
refugo populacional que se estacionava nas periferias. Dominação
constituída de estratégias que contribuíram para a criação de um
povo sem o sentimento de pertencimento a este território.
Os ciclos econômicos que se destacaram foram o da Madeira,
da Extração Mineral e da Pecuária. Estes constituíram-se em movimen-
tos não-sustentáveis que arrasaram a terra e fizeram brotar o desespero
entre aqueles que se amparavam neles como única fonte de sustento.
Finalizados tais ciclos, não havendo mais nenhum recurso a ser explo-
rado, a MGV vê evadir, através do processo emigratório, um dos bens
mais preciosos que aqui existe, o grande número de sujeitos em idade
socialmente produtiva.

1 Especialista em Design Educacional para EaD Virtual e em Informática em Educação, Mestran-


do em Gestão Integrada do Território e Professor da Universidade Vale do Rio Doce.
2 Doutor em Psicologia pela Universidade de D´Amiens – França, Professor da Universidade
Vale do Rio Doce.
3 Por Microrregião entende-se um agrupamento de municípios limítrofes. Essa forma de terri-
torialização visa integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de
interesse comum. Efetivamente o termo é muito mais conhecido em função de seu uso prático
pelo IBGE. Este órgão procura utilizar essa forma de divisão dos estados da federação, para fins
estatísticos baseando-se em similaridades econômicas e sociais. A microrregião de Governador
Valadares é composta por 25 municípios, a saber: Alpercata, Campanário, Capitão Andrade,
Coroaci, Divino das Laranjeiras, Engenheiro Caldas, Fernandes Tourinho, Frei Inocêncio, Gali-
leia, Governador Valadares, Itambacuri, Itanhomi, Jampruca, Marilac, Mathias Lobato, Nacip
Raydan, Nova Módica, Pescador, São Geraldo da Piedade, São Geraldo do Baixio, São José da
Safira, São José do Divino, Sobrália, Tumiritinga e Virgolândia.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 317


Pode-se considerar que o fluxo migratório tão marcante nesta re-
gião possui efeitos análogos aos dos ciclos extrativistas não-sustentáveis
como mencionados acima. Ele traz à tona a denúncia da falta de condi-
ções de vida dada na origem, que forçam inúmeros cidadãos a buscar,
em outras terras, fontes que garantam para si e sua família a manuten-
ção de seus status social.
Neste artigo, a emigração é tratada como um fenômeno cujas
consequências são comparáveis aos ciclos exploratórios por constituir-
se numa alternativa não-sustentável que não é adequadamente ampa-
rada pelos órgãos públicos. Segundo dados do IPEAD e UFMG (2004),
72% da população da Microrregião possui entre 0 e 39 anos de idade.
Ligado a este fato, um survey realizado na região em 2005 aponta que
cerca de 58% dos que migram possuem entre 20 e 40 anos (SIQUEIRA,
2006). Estes dados indicam que a região é constituída por uma popula-
ção jovem em idade produtiva, que, mesmo tendo o Estado investido
na educação e saúde destes, por ineficiência do próprio Estado, tal in-
vestimento não se torna efetivo na geração de desenvolvimento para o
País e a Região. A esse título, vale citar Sales (1997:14), quando afirma
que os emigrantes (cidadãos valadarenses) “no momento mais precioso
de suas vidas, vão realizar alhures um trabalho geralmente aquém de
sua qualificação profissional”.
Entretanto, o que vale destacar é que a Microrregião de Go-
vernador Valadares é também um forte pólo agropecuário, turístico
e educacional. Neste último, por exemplo, estão instaladas na região
oito Instituições de Ensino Superior abrigando cerca de 15.000 es-
tudantes distribuídos em níveis de Graduação e Pós-Graduação. A
cada dia percebe-se a consolidação deste território como pólo edu-
cacional não apenas da Micro como da Mesorregião do Vale do Rio
Doce. Além da produção do conhecimento necessário para a quebra
de paradigmas, essa atividade é também econômica gerando gran-
de movimentação financeira. Destaca-se o fato que, dos estudantes
que recorrem a crédito educacional para financiar seus estudos, 78%
deles compõem a primeira geração de sua família num curso de gra-
duação (CALEJON, 2009).
Tal fato contribui diretamente para uma mudança das lideran-
ças sociais, reduzindo a força das oligarquias. É notável que exista
ainda na região uma predominância de ‘sobrenomes’ tradicionais

318 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


ocupando os cargos de liderança. O incremento de uma Educação
de qualidade para os habitantes da Microrregião de Governador Va-
ladares cria possibilidades de renovação de uma identidade social
marcada por crises, para o surgimento de uma sociedade identifica-
da com o espaço que ocupa e com a crença de que esse território
pode se converter numa terra de promissão.
Neste sentido, faz-se mister uma análise sobre o Ensino Superior
e suas aplicações no contexto da MGV. Analisar-se-á também a prática
de ensino na condição de processo contraditório e político, que mol-
da relações e que, segundo Olschowsky (2001:10), “ajuda a formar a
personalidade e difunde idéias políticas”. Na busca pela construção de
uma identidade territorial que reflita uma concepção de construção
individual em prol do desenvolvimento coletivo por parte dos habitan-
tes desta região, o processo educacional se apresenta como uma viável
possibilidade de transformação. Segundo a mesma autora, é na escola
que a transmissão do saber ocorre objetivando a qualificação para o
trabalho e para a reprodução de ideologias, constituindo-se, assim,
“num espaço de resistência e luta no qual as ideias são questionadas e
repensadas” (OLSCHOWSKY, 2001:10).
Disposta na condição de formação complementar após a Gradua-
ção, o ensino de especialização busca o aperfeiçoamento e a discussão
de saberes em uma área específica. Esta formação direcionada, quando
aplicada aos problemas relevantes e recorrentes de uma determinada
problemática regional, torna-se uma estratégia para aprimorar o saber e
influenciar diretamente na construção/reconstrução de postura em rela-
ção a ações promotoras do desenvolvimento regional.
Entretanto, na atualidade, um novo contexto de mobilidade social
ascende em função do grande número de indivíduos que se encontram
conectados através Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs),
não dispondo de espaço-tempo para a realização de uma solução edu-
cacional em nível de especialização que seja presencial. Uma formação
direcionada que ocorra na modalidade a distância promove situações
que vão além do aprendizado específico de uma proposta de ensino.
Tal formação ilustra a perspectiva educacional sob um prisma atual que
possibilita olhar os desafios para a constituição do saber através de prá-
ticas educacionais que visem a uma abordagem subjetiva e, ao mesmo
tempo, técnica, científica e política.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 319


Atualmente, a modalidade de Ensino a Distância apresenta uma
crescente evolução no cenário educacional. A evolução tecnológica e
a sociedade da informação têm espontaneamente transformado esta
modalidade em uma força mais intensa e ampla no cenário educa-
cional. A flexibilidade de tempo e a facilidade de acesso tornam a
implantação e aceitação da EaD um passo necessário para o acesso
multidimensional da educação.
É preciso entender a Educação a Distância como modalidade
de ensino que precisa, como as outras modalidades, de projetos bem
contextualizados e aplicados para atingir seus objetivos educacionais.
A elaboração de um Design Educacional Contextualizado, que tenha
seu foco nos habitantes da MGV em todas as suas etapas, é o ponto de
partida para a inserção adequada de um projeto educacional que verse
a utilização das tecnologias acessíveis para este público específico com
as bases educacionais que mais se adaptam a este contexto.
Este estudo conduz uma reflexão acerca da qualificação profissio-
nal dos habitantes da MGV em nível de especialização através da Edu-
cação a Distância. Acredita-se que a oferta de soluções educacionais
contextualizadas pode maximizar a aplicação do conhecimento adqui-
rido na região e possibilitar alternativas de reconstrução de uma nova
identidade territorial. Conforme definido por Moran, uma educação à
distância de qualidade é capaz de “promover a experimentação e o
desenvolvimento de atividades que visam a inserção no ambiente de
trabalho, a partir da intervenção e modificação de uma realidade social
de criação de contextos” (MORAN, 2006, sp).

MGV: de ciclos exploratórios ao nascimento de um pólo educacional

A Microrregião de Governador Valadares é uma região do Estado


de Minas Gerais constituída de uma grande vocação logística, tendo
posição territorial privilegiada no Estado. Por suas terras transpassam
estradas e ferrovias que dão acesso às principais capitais e rotas de ex-
portação do Brasil. Trata-se de um território aparentemente capaz de
abarcar, na ação de seus habitantes, um processo de territorialização
que contribua para o contínuo desenvolvimento regional.
Entretanto, essa região é midiaticamente conhecida no cenário na-
cional e internacional devido a ocorrências situadas em torno do processo

320 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


emigratório. Os escândalos referentes à venda de passaportes adultera-
dos, o grande número de “cônsules”4 e “coiotes”5 que atuam na região
e a permanência de Valadarenses no exterior de forma indocumentada
pouco contribuem para o fortalecimento de uma imagem positiva da re-
gião. Compreender como surgiu o fluxo emigratório nesta microrregião,
comparável aos diversos ciclos exploratórios que devastaram suas terras,
contribui para o entendimento de como seus habitantes foram desterrito-
rializando este espaço durante toda sua construção histórica.
A Microrregião de Governador Valadares é uma das oito microrre-
giões que compõem a Mesorregião do Vale do Rio Doce. Com uma área
total de 11.327,403 km², esta microrregião é considerada uma das maio-
res de Minas Gerais. Ela corresponde a 27% do Vale do Rio Doce, cuja
área total é de 41.809,873 km² (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2002).
Segundo dados do IBGE (2007), a Microrregião de Governador
Valadares possui aproximadamente 412 mil habitantes, sendo que
63% desse conglomerado reside na cidade de Governador Valadares.
Esses dados apontam para a referida cidade como o foco do desenvol-
vimento da região.
No Estado de Minas Gerais, a cidade de Governador Valadares
constitui-se num pólo com grande vocação logística. Sua localização ge-
ográfica é estratégica, por ser um ponto no qual se entrecruzam três im-
portantes rodovias, sendo elas a BR-116, BR-381 e BR-259. Essas rodovias
dão ou facilitam o acesso a grandes centros, tais como, Belo Horizonte,
Vitória e Rio de Janeiro. A Estrada de Ferro Vitória-Minas que viabiliza
considerável fluxo das importações e exportações do País, não só cruza o
território como também tem em sua história uma dívida para com a cida-
de. Uma atenção especial será dada a esse tema nesse estudo.
Essa região tornou-se um pólo comercial e de serviços das mais
variadas espécies, fazendo com que os habitantes da Microrregião de
Governador Valadares vejam essa cidade como uma grande praça co-
mercial para se fazer bons negócios. Na condição de centro ativo e
mantenedor da região, Governador Valadares tem cerca de 5,5 mil es-
tabelecimentos comerciais que equivalem aproximadamente a 80% da
economia local (FELÍCIO, 2009). Isso seria um bom indicativo, se não

4 Cônsules são agenciadores que auxiliam o emigrante a entrar ilegalmente nos EUA, eles pro-
movem meios que vão desde a produção de documentos falsos à contatos com coiotes.
5 Coiotes são os responsáveis por realizar a travessia ilegal das fronteiras com os emigrantes.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 321


fosse uma explícita denúncia de que ao longo dos anos a região foi ex-
plorada de diversas formas até o esgotamento de seus recursos naturais.
A não preocupação em criar uma economia autossustentável deixou a
cidade empobrecida tornando a exploração comercial a maior alternati-
va em termos de investimentos individuais ou coletivos. De certa forma,
a criação de uma identidade regional foi marcada por estes atos.
Durante toda a sua história, a MGV foi alvo de ciclos extrativistas
não-sustentáveis. Do ciclo do ouro entre os séculos XVI e XVII até o
estouro da bolha imobiliária internacional em 2008, sua população foi
marcada pelos efeitos de uma história centrada nas relações de poder
das classes dominantes. Os movimentos contínuos e, ao mesmo tempo,
desconexos contribuíram para que fossem estabelecidos entre os habi-
tantes dessa região, sentimentos de não pertencimento a esse território.
Para muitos, a microrregião tornou-se uma terra de passagem, que, após
a extração dos recursos desejados, o habitante deveria galgar para ou-
tros horizontes (ESPINDOLA, 2005).
Historicamente, a exploração dos recursos da região tem-se refle-
tido na identidade social de seus habitantes. Os ciclos econômicos que
existiram no decorrer de sua história, com destaque para o da Madeira,
da Extração Mineral, da Pecuária, fizeram deste território um ponto de
extração despreocupado com a sustentabilidade de seus recursos natu-
rais. Além destes ciclos, destaca-se também o fenômeno da Emigração,
que se tornou um fenômeno rotular da região. Todos estes aspectos são
fragmentos de uma história baseada em estratégias de desenvolvimento
regional que não se manteve nem evoluiu com o passar do tempo.
Com efeitos análogos aos ciclos extrativistas, cabe destacar o fe-
nômeno da emigração de residentes da Microrregião de Governador
Valadares. Este evidencia e serve de denúncia das precárias condições
de vida dadas na origem. É certo que um nativo não deixa seu lar se
nele consegue tudo que se busca, o desejo de migrar deste ator sempre
está envolvido com algum problema na base que o faz tomar a decisão
de deixar sua terra.
Desde sua descoberta, essa Microrregião vive momentos marca-
dos pela extração de seus recursos sem a preocupação com sua sus-
tentabilidade. Os sujeitos que nela vivem possuem em sua identidade
marcas profundas de um habitat que é usado para o benefício de alguns
em detrimento de muitos. Movimentos como a busca pelo ouro, a de-

322 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


vastação da floresta para a venda da madeira e, posteriormente, para a
pecuária, o tráfico de mão de obra para os EUA são problemas relevan-
tes que fugiram do controle da sociedade. Entender estes ciclos como
propulsores de crises para habitantes da região são subsídios básicos
para a elaboração de projetos de desenvolvimento regional que não
permitam que a história se repita.
A Microrregião de Governador Valadares pode ser considerada
hoje um território marcado pela exploração e sentimentos de não per-
tencimento. Seus habitantes viveram ao longo da história momentos
que os levaram, em seu imaginário, a criar a idéia de ser aqui apenas
uma terra sem oportunidades. Nesse contexto, o estar na região é uma
etapa na qual muitos procuram reunir recursos para ir em direção à
terra de seus sonhos.
O esgotamento da terra, decorrente dos sucessivos ciclos explo-
ratórios, contribuiu para que cristalizasse no pensamento dos atores da
MGV a ideia de não ser este um lugar acolhedor, capaz de fornecer a
seus habitantes condições de trabalho e desenvolvimento. Por esse pro-
cesso, o estabelecimento de íntimas relações do homem com o lugar
ficou seriamente comprometido. Relações de pertencimento necessá-
rias para que possam acontecer na região uma valorização que parta de
dentro para fora, do sujeito para com o lugar, despertando nos envol-
vidos o desejo e a vontade de contribuir, de alguma forma, para com o
desenvolvimento desse lugar.
Em um ensaio preliminar6 objetivando verificar o comprometi-
mento de estudantes de uma Universidade com a região, foi levantada
a questão sobre a possibilidade de continuarem vivendo na Microrre-
gião de Governador Valadares após concluírem o Curso de Graduação.
Mais de 50% dos entrevistados declararam o desejo de migrar para uma
região que oferecesse melhores condições de trabalho e qualidade de
vida. Apesar de se tratar de um ensaio, este levantamento aponta para a
inexistência ou frágil relação identitária dos respondentes para com sua
região. Assim, apesar de estarem se preparando para atuar como atores
de mudanças, reduzida é a intenção de envidar esforços para a supera-

6 No fim de 2008, foi realizado um ensaio preliminar com 4 turmas de cursos de graduação
(duas turmas de Design Gráfico, uma de Produção Audiovisual e outra de Jornalismo), em que
foram levantadas questões, através de um questionário, com o objetivo de analisar as perspec-
tivas de mercado destes futuros profissionais.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 323


ção dos problemas regionais e contribuir para a melhoria da qualidade
de vida da sociedade de origem.
O sentimento de não pertencer a um determinado território con-
tribui para a estagnação e o esvaziamento econômico da região, uma
vez que não há a preocupação com a manutenção e ampliação dos
recursos que existem nesta terra. Dados da pesquisa de Soares (1995)
apontam que o PIB per capita, a renda média e os índices demográ-
ficos da região do Rio Doce a situam como a segunda mais pobre do
estado de Minas Gerais. A Microrregião de Governador Valadares está
no epicentro de um quadro de concentração de pobreza cujo reflexo é
diretamente assimilado à identidade de seus habitantes.
Entretanto, em decorrência da adaptabilidade de seu povo às si-
tuações adversas, a MGV têm se constituído como um forte polo agro-
pecuário, turístico e educacional. No tocante à Educação Superior, vale
apontar a presença de nove Instituições de Ensino Superior, além de
duas outras que abrirão suas portas em 2011. A partir de um convênio
com a Prefeitura da cidade, a Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF) funcionará a partir de 2011 com cursos nas áreas da saúde e
humanas. A segunda que ainda não está em funcionamento é uma uni-
dade da Rede Pitágoras de Ensino, que atualmente aguarda o aval do
Conselho Nacional de Educação (CNE) para o início das atividades. Es-
tes empreendimentos são percebidos pela comunidade como um coro-
amento do esforço regional pela formação superior de seus habitantes,
cuja história é importante relatar.
Pioneira na região no âmbito educacional, o Minas Instituto de Tec-
nologia (MIT) surgiu em 1967 como embrião da Universidade Vale do Rio
Doce (UNIVALE). Esta foi reconhecida como Universidade pela portaria
1037 do MEC publicada em 9 de julho de 1992. Atualmente a UNIVALE
oferta grande número de Cursos de Graduação, Extensão e Ação Comu-
nitária, além de soluções em Pós-Graduação lato e stricto sensu.
Um ano após a abertura desta primeira Instituição de Ensino
Superior (IES) da região, é criada a Faculdade de Direito do Vale do
Rio Doce (FADIVALE). Fundada em 13 de agosto de 1968, a Fadivale,
desde o início, busca oferecer o ensino jurídico de qualidade em nível
de Graduação e, posteriormente Pós-Graduação. Entretanto, seu re-
conhecimento se deu apenas em 1974, através do Decreto 74.922 de
21 de novembro de 1974.

324 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Seguindo na história, em 1975, amparada por um grupo da so-
ciedade civil intitulado “Mater et Magistra”, formado por instituições de
ensino e membros influentes da população, surge a Faculdade de Ad-
ministração de Governador Valadares (FAGV). Sua criação foi amparada
pela demanda de pessoal especializado nessa área, vindo a preencher,
desta forma, uma lacuna na oferta regional de profissionais de Nível
Superior. Sua autorização foi emitida pelo Decreto Federal n° 75.513,
de 19 de março de 1975, assinado pelo então Presidente da República,
Ernesto Geisel e pelo Ministro da Educação, Ney Braga.
Em 2003, foi instalada em Governador Valadares a Universidade
Professor Antônio Carlos (UNIPAC), cuja criação se deu na cidade de
Barbacena no ano de 1963. Seu reconhecimento como Universidade
se deu através da Portaria do MEC nº 366, de 12 de março de 1997.
Recente no mercado Valadarense, essa instituição oferece cursos em
níveis de Graduação e Pós-Graduação nas áreas das Ciências Sociais
Aplicadas, Educação e Saúde.
Além dessas IESs privadas, outras duas atuam como polos semi-
presenciais oferecendo Cursos de Graduação e Especialização em diver-
sas áreas do saber, sendo elas a Universidade de Uberaba (UNIUBE) e o
Grupo Educacional Fatec e Facinter.
Funcionando desde janeiro de 2010 em Governador Valadares,
o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais
(IFMG/GV) é uma opção pública na oferta de Cursos de Graduação para
os habitantes da região. Soma-se a esta, o Centro de apoio à Educação
a Distância da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com Cur-
sos de Graduação e Pós-Graduação e cursos vinculados à Universidade
Aberta do Brasil (UAB), oferecidos também pela Universidade Federal
de Ouro Preto (UFOP) e Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Considerando este amplo cenário educacional na região, que
abriga atualmente cerca de 15.000 estudantes distribuídos em níveis
de Graduação e Pós-Graduação, vislumbram-se articulações para a re-
conhecimento da MGV como polo educacional capaz de desenvolver
projetos educacionais contextualizados e aplicáveis ao seu desenvol-
vimento. O incremento de uma Educação de qualidade para os habi-
tantes desta região cria possibilidades de renovação de uma identidade
social até então marcada por crises. Almeja-se a formação de cidadãos
identificados com o espaço que ocupam e convictos de que esse terri-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 325


tório constitui-se também numa terra de promissão. Assim, entender a
gênese do ensino superior, bem como as articulações acerca do avanço
nos estudos através de cursos de Pós-Graduação, justifica-se na busca
de soluções para o desenvolvimento regional.

Ensino Superior no Brasil: um longo caminho

O início do Ensino Superior no Brasil deu-se em 1808 com a che-


gada da família real portuguesa ao país. Contudo, a iniciativa privada
e a "expansão" desta modalidade somente aconteceram muito tempo
depois com a Constituição da República de 1891 que descentralizou
a oferta do Ensino Superior, permitindo que os governos estaduais e a
iniciativa privada criassem seus próprios estabelecimentos.
Segundo Colossi et al. (2001), algumas datas ilustram a trajetória
da educação superior no Brasil. Em 1827, foram criados os Cursos de
Ciências Jurídicas em São Paulo e Olinda. No ano de 1889, o ensino
na República se desenvolve com a criação de 14 Escolas Superiores. A
Universidade de Manaus, criada em 1909, mostrou a força do ciclo da
borracha e, em 1912, a Universidade do Paraná, no contexto do ciclo
do café. Posteriormente foram criadas a Universidade do Rio de Janei-
ro em 1920, de Minas Gerais em 1927, de São Paulo em 1937 e, em
1961, a Universidade de Brasília.
Segundo dados do Ministério da Educação, atualmente o País con-
ta com 280 Universidades, sendo 97 públicas, 55 federais, 36 estaduais, 6
municipais e 86 privadas. Além de Universidades, o Brasil abarca também
2151 IESs que se classificam como Centros Universitários, Faculdades In-
tegradas, Faculdade, Faculdade Tecnológica, Instituto Superior ou Escola
Superior e Centro de Educação Tecnológica (MEC, 2008).
Considerando o grande número de IES no Brasil, o Governo Federal
tem buscado soluções cujo objetivo maior é ampliar, qualificar e permitir
o acesso ao Ensino Superior no país. Neste sentido, alguns projetos mere-
cem destaque, tais como: PROUNI - Programa Universidade para Todos;
UAB - Universidade Aberta do Brasil; e REUNI - programa de apoio a
planos de Reestruturação e a Expansão das Universidades Federais.
O PROUNI é um Programa do Ministério da Educação, criado
pelo Governo Federal em 2004, que oferece bolsas de estudos em ins-
tituições de educação superior privadas, em Cursos de Graduação e

326 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


sequenciais de formação específica a estudantes brasileiros, sem diplo-
ma de nível superior (MEC, 2008). Uma característica importante deste
programa é permitir ao aluno de baixa renda e que possui bom rendi-
mento escolar o acesso ao Ensino Superior, através do fornecimento de
bolsas de estudos parciais (50% de desconto) e/ou integrais (100% de
desconto), concedendo às IESs privadas, em contrapartida, a isenção de
alguns tributos fiscais.
A UAB é um programa do Ministério da Educação criado em
2005, no âmbito do Fórum das Estatais pela Educação, e possui como
prioridade a capacitação de professores da educação básica. Seu obje-
tivo é estimular a articulação e a integração de um Sistema Nacional de
Educação Superior, sendo um sistema formado por instituições públicas
de ensino superior, as quais se comprometem a levar o ensino superior
público de qualidade aos municípios brasileiros (MEC, 2008).
Através desta iniciativa, o Governo possibilita a qualificação dos pro-
fissionais da Educação Básica, de modo que este incentivo se reflita em
ações positivas não só ao próprio professor, mas também a toda a comuni-
dade administrativa e discente que forma a rede educacional de ensino.
Já o REUNI, segundo o Governo Federal (2007), tem por objetivo
criar condições para a ampliação do acesso e permanência na Educação
Superior. Nesse esforço, focaliza-se a Graduação no tocante ao aumento
da qualidade dos cursos e melhor aproveitamento da estrutura física e re-
cursos humanos existentes nas Universidades Federais. Apesar de ser um
projeto nacional, pretende-se respeitar as características particulares de
cada instituição e estimular a diversidade do sistema de ensino superior.
A concepção destes e outros programas por parte do Governo Fe-
deral tem proporcionado um crescente exponencial referente ao acesso
ao Ensino Superior. Destaca-se o dado que, no período de 1999/2000,
o Brasil apresentou uma baixa taxa de escolarização bruta (15%) na
Educação Superior. Entretanto, Pinto (2004) afirma que essa situação já
apresentou quadros mais desanimadores. Efetivamente em 1960, a taxa
de escolarização bruta na Educação Superior era de apenas 1%.
No ano de 1933, as primeiras estatísticas sobre a educação conta-
vam com 64,4% de instituições na iniciativa privada, o que praticamen-
te não se alterou até meados de 1960. Esse espaço ocupado por tais
instituições decorre do fato de o Estado não ter sido capaz de absorver
a demanda. Daí tornam-se extremamente necessárias as medidas que

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 327


visam permitir a entrada de alunos no Ensino Superior, com auxílio de
bolsas, na tentativa de preencher essa demanda do ensino privado que
cresce significativamente.
Segundo Pinto (2004), ao longo dos 40 anos que se seguiram,
as matrículas cresceram de forma distinta entre as redes públicas e
privadas. No mesmo período, as matrículas da rede privada cresce-
ram praticamente três vezes mais do que as da rede pública. Essa
ocorrência tornou o Brasil um dos países com maior grau de privati-
zação desse nível de ensino.
Em 2001, o Ensino Superior no Brasil contava com cerca de 900
Instituições de ensino, sendo que pouco mais de uma centena era cons-
tituída como Universidade (COLOSSI et al., 2001). Apesar do conside-
rável número de instituições de ensino, dados coletados nas principais
regiões metropolitanas do Brasil pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE 2007) indicaram que apenas 6% da população com
mais de 20 anos possui ensino superior e que menos de 1% adquire o
título de Mestre ou Doutor.
Indicadores tão baixos refletem a dificuldade em se ampliar o tem-
po de estudo e avançar na construção do conhecimento após a Gradu-
ação. A busca por uma formação específica através da Pós-Graduação
busca articular saberes e práticas na elaboração de novos conceitos e
ações. Ao abrir novas possibilidades de reconstrução do conhecimento,
o ensino de Pós-Graduação lato sensu surge como alternativa viável de
mecanismo propulsor do desenvolvimento do território da MGV. Para
um melhor entendimento, faz-se necessário aprofundar na investigação
sobre esta modalidade.
Baseada na estrutura das Universidades Americanas, a Pós-Gra-
duação no Brasil origina-se da necessidade da elaboração de novos co-
nhecimentos a partir das atividades de pesquisa e da impossibilidade da
Graduação de abarcar uma formação específica em determinadas áreas
do conhecimento. Assim, segundo Olschowsky (2001:37), na Gradua-
ção o estudante “obtém os conhecimentos e uma preparação básica e
geral de sua profissão e a complementação dessa formação viria com os
estudos pós-graduados”.
A Pós-Graduação foi instituída no país pela Lei nº 4.024/61-Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), sendo aprovada no Pa-
recer nº 977/65 do Conselho Federal de Educação (CFE). Dois tipos de

328 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Pós-Graduação foram previstos: a “stricto sensu”, com nível de mestrado e
doutorado, e a “lato sensu”, envolvendo os cursos de especialização (Pare-
cer nº 977/65). O Parecer 997/65 conceitua Pós-Graduação como todo e
qualquer curso que se segue após a finalização da Graduação e promove
uma diferenciação entre as modalidades stricto sensu e lato sensu.
Os Cursos de Pós-Graduação lato sensu têm um objetivo técnico-
profissional específico sem abranger o campo total do saber em que se
insere a especialidade, em que sua meta é o domínio técnico e cien-
tífico de uma certa área limitada do saber ou da profissão para formar
um profissional especializado. A Especialização é sempre estudada no
contexto de uma área completa de conhecimentos e, quando se tra-
ta do profissional, o fim é fornecer ampla fundamentação científica à
aplicação de uma técnica ou ao exercício de uma profissão. Trata-se de
um sistema de cursos que se superpõe à Graduação com objetivos mais
amplos e aprofundados de formação científica e cultural, e que, por
sua vez, podem se apresentar sob a forma de Cursos de Especialização,
Aperfeiçoamento e Atualização.
Por sua vez, os Cursos de Pós-Graduação stricto sensu são desti-
nados à formação de pesquisadores e docentes para os cursos superio-
res. Sua essência está na natureza acadêmica e de pesquisa e, mesmo
atuando em setores profissionais, tem objetivo basicamente científico.
Atualmente, a oferta de Cursos de Pós-Graduação lato sensu tem
sido altamente propagada pelas IESs com o discurso de permitir o apri-
moramento de específicos campos do saber. Entretanto, o que se per-
cebe é uma grande industrialização desta modalidade, criando modelos
pasteurizados e descontextualizados com a realidade do participante.
Estes e outros fatores têm contribuído para a banalização e descrédito
de propostas ligadas a este tipo de curso.
Na tentativa de ampliar a gama de “clientes”, diversas IESs têm
buscado, na oferta de cursos de especialização a distância, uma possi-
bilidade para maximizar seu campo de atuação. Apesar de abarcar um
público carente de tempo e espaço para realizar um aprimoramento
educacional, ao criar propostas educacionais que não são adequadas
a um determinado contexto, cria-se também uma lacuna no tocante à
aplicabilidade da proposta que está sendo oferecida ao aluno.
Em um cenário distorcido, antagonicamente surgem alternativas
positivas para o acesso à educação que, ao mesmo tempo que promova

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 329


a qualificação, contribua para o desenvolvimento específico de uma
região. Através da oferta de cursos de Pós-Graduação, por meio de mo-
dalidades não-presenciais, podem-se criar instrumentos de dominação
e reprodução das relações de produção e/ou força política. Estes cursos,
ao promover a cooperação dos habitantes dos municípios limítrofes que
compõem a Microrregião do Vale do Rio Doce através de um ambiente
de aprendizado, passam a atuar como elemento importante de neutra-
lização das representações regionais estigmatizantes. Além disso, como
define Gramsci (1991), estas propostas educacionais servem também
como importante ferramenta de mobilização social para alterar a função
hegemônica da classe no poder, sendo instrumento de divulgação, per-
suasão e penetração da concepção de mundo na classe dominante.
Com base nas asserções que compuseram esse tópico, pode-se
dizer que, em nível de Pós-Graduação e, sobretudo, da Pós-Graduação
a Distância, existe um processo educacional a ser construído para a
MGV. Um processo que permita ao aluno dar novo sentido a seu papel
social e estar apto a interagir de forma local e global. No dizer de Moran
(2008), a educação deve ser capaz de auxiliar na aquisição e (re)cons-
trução do conhecimento.
A escola precisa partir de onde o aluno está, das suas preocu-
pações, necessidades, curiosidades e construir um currículo que
dialogue continuamente com a vida, com o cotidiano. Uma esco-
la centrada efetivamente no aluno e não no conteúdo, que des-
perte curiosidade, interesse. Precisa de bons gestores e educado-
res, bem remunerados e formados em conhecimentos teóricos,
em novas metodologias, no uso das tecnologias de comunica-
ção mais modernas. Educadores que organizem mais atividades
significativas do que aulas expositivas, que sejam efetivamente
mediadores mais do que informadores. É uma mudança cultural
complicada, porque os cursos de formação de professores estão,
em geral, distantes tanto das novas metodologias como das tec-
nologias (MORAN, 2008:1).

Com base no exposto, pode-se dizer que uma Educação a Dis-


tância de qualidade deve, segundo Moran, ser capaz de “promover a
experimentação e o desenvolvimento de atividades visando a inserção no
ambiente de trabalho, a partir da intervenção e modificação de uma reali-
dade social, de criação de contextos” (MORAN, 2006, sp). Neste sentido,
faz-se necessário analisar o contexto da Educação a Distância (EaD) em

330 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


detalhes, buscando trazer um olhar além da utilização das Novas Tecnolo-
gias de Informação de Comunicação (NTICs), que valorize a participação
das pessoas através dos processos de afetividade e interação.

Educação a Distância: contextos e descontextos

A Educação a Distância (EaD) é uma inovação trazida pela LDB


que promoveu um grande impacto sobre a oferta de vagas para a
Educação Superior. Com tecnologias que buscam a cada dia dar tons
de realidade à experiência não presencial, a EaD tem sido alvo de
constantes análises e aplicações metodológicas. Sua inegável aceita-
ção se dá em razão da realidade pós-moderna, em que os indivíduos
carecem de soluções flexíveis em todas as dimensões. Segundo Nunes
(2002), essa modalidade:
[...] pressupõe um processo educativo sistemático e organizado
que exige não somente a dupla via de comunicação, como tam-
bém a instauração de um processo continuado, onde os meios
ou os multimeios devem estar presentes na estratégia de comu-
nicação. A escolha de determinado meio ou multimeios vem em
razão do tipo de público, custos operacionais e, principalmente,
eficácia para a transmissão, recepção, transformação e criação do
processo educativo. (NUNES, 2002:3)

A EaD é mais antiga do que parece. Esse modelo possui mais de um


século de existência. O primeiro registro data de 1881 quando William R.
Harper, primeiro Reitor e fundador da Universidade de Chicago, ofereceu
com absoluto sucesso um Curso de Hebreu por correspondência. Em 1889
o Queen’s College do Canadá deu início a uma série de cursos a distân-
cia. Devido principalmente a seu baixo custo e às grandes distâncias que
separavam os centros urbanos, tais ofertas foram alvo de grande procura.
Desde então, a EAD vem se desenvolvendo, utilizando-se das mais variadas
estratégias, ferramentas e tecnologias (LOYOLLA & PRATES, 1999).
Atualmente, a EaD encontra na internet uma plataforma capaz
de promover soluções inovadoras que encurtam as diferenças com o
ensino tradicional. Pautada na autonomia e interação dos atores, a EaD,
através da Internet ou Educação on-line, tem sido base de inúmeros
estudos e metodologias que buscam cada vez mais esculpir este meio e
transformá-lo em uma fonte confiável de transmissão de conhecimento.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 331


Assim, apesar das frentes tradicionais que defendem a utilização única
e plena do ensino presencial, a EaD tem apresentado excelentes resul-
tados quando bem aplicada e, sobretudo, como uma possibilidade de
encurtar diferenças sociais.
Uma aplicação efetiva da Educação on-line sempre estará ampa-
rada por profissionais qualificados, metodologias responsáveis e investi-
mentos capazes de subsidiar a realização plena do projeto educacional.
Uma das áreas que se destaca como peça chave nesse processo é o
Design Instrucional (DI), que envolve todo o planejamento, organização
e execução do projeto.
Esta ciência cria pontes entre o professor e seus alunos numa
modalidade educacional em que não estão fisicamente ligados.
Filatro(2007:32) define o Design Instrucional como sendo “[...] o
planejamento, o desenvolvimento e a utilização sistemática de mé-
todos, técnicas e atividades de ensino para projetos educacionais
apoiados por tecnologias”. Esta ciência é responsável pela maximi-
zação do processo de ensino-aprendizagem a distância, fazendo uso
dos mais variados recursos e estratégias educacionais. Em tempos de
constante evolução tecnológica e com uma sociedade cada vez mais
conectada, o DI se torna uma ferramenta chave no sucesso de um
aprendizado não presencial.
Várias são as formas de se aprender a distância. Desde o sécu-
lo XX, a grande diversidade de mídias disponíveis possibilitou a pro-
pagação do conhecimento. Com o advento tecnológico, bem como a
disponibilidade de computadores e conexão com a internet acessíveis
às diversas camadas da sociedade, a Educação on-line, tem ganhado
visibilidade e aceitação por parte de toda a sociedade da informação.
Tal fato contribui diretamente para o crescente número de profissionais
e metodologias que visam ampliar e tornar cada vez mais agradável e
efetivo o ato de aprender a distância.
Os Ambientes Virtuais de Aprendizagem possibilitam a comuni-
cação sob duas formas básicas, a síncrona e a assíncrona. A comunica-
ção síncrona ocorre quando existe a troca imediata de informações e a
participação simultânea de dois ou mais alunos em uma determinada
aplicação. Já a assíncrona, possibilita a participação atemporal, em que
todos os alunos podem participar de acordo com a sua flexibilidade de
tempo. Esta última vem sendo muito utilizada e amparada por inúme-

332 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


ros recursos de produção de conteúdo multimídia como slides, vídeos,
faixas de áudio, web conferências, hipertextos e outros.
Um instigante e complexo desafio na concepção destes projetos
tem sido a construção de processos e metodologias que estabeleçam
a interação e a comunicação entre seus participantes. Apesar de to-
dos os avanços tecnológicos, tem-se percebido que a participação de
pessoas é essencial e a única capaz de garantir um tratamento contex-
tualizado e humano.
A história nos mostra que, desde os primórdios da humanida-
de, a comunicação se encontra atrelada ao processo de aprendiza-
gem. A comunicação constitui-se em ferramenta básica no desenho
instrucional em qualquer modalidade – presencial ou a distância.
No entanto, na EaD, a qualidade da comunicação que sustenta o
processo educativo pode ser determinante para o sucesso do empre-
endimento, uma vez que professor e aluno não estão frente a frente
para eliminar “ruídos” inerentes ao meio e aos múltiplos contextos
dos sujeitos da comunicação.
A via que sustenta a Educação a Distância é a comunicação exer-
cida em suas mais variadas formas. Em relação aos meios que utiliza e
ao processo em si, Pierre Levy (1999a:147) observa que:
Comunicar não é de modo algum transmitir uma mensagem ou
receber uma mensagem. Isso é a condição física da comunicação,
mas não é comunicação. É certo que para comunicar, é preciso
enviar mensagens, mas enviar mensagens não é comunicar. Co-
municar é partilhar sentido.

Ainda, de acordo com o autor, o homem pensa em rede onde a


aprendizagem, o ensino, a relação professor-aluno, a relação de equipe
de trabalho estão em permanente construção. Para o autor, o ciberes-
paço possibilita um novo campo visual onde a representação gráfica, so-
nora e pictória integram uma nova forma de conhecer, a um só tempo,
cognitiva e sensitivo-sensória (LEVY b, 1999).
O “partilhar sentido” de Levy é o mesmo que, sob o nosso olhar, a
afetividade nos relacionamentos virtuais. Segundo Ballone (2003, apud
XAVIER, 2007:7), a afetividade “confere o modo de relação do indivíduo
com a vida, e será através da tonalidade de ânimo que a pessoa perce-
berá o mundo e a realidade”. Ela contribui como meio e fim na apren-
dizagem, caracterizando-se através de comportamentos que expressam
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 333
emoções que favorecem a interação do indivíduo com o meio.
Freire (1967) destaca que não podemos falar de educação sem
falar de amor. De acordo com o autor, a relação professor-aluno é um
fator fundamental para o sucesso e a realização de ambos. Por essa
razão, a relação entre os atores da educação deve ser marcada pela
parceria, diálogo, aceitação dos limites e pela valorização do poten-
cial de cada um. Assim, aplicando esta relação para a EaD, a ausência
física dos atores pode ser amenizada pelas diversas mídias e estraté-
gias de comunicação e interação estabelecidas no projeto educacional
contextualizado.
O professor/tutor também necessita sentir a presença, o sorriso,
a aceitação e o comprometimento com a aprendizagem por parte de
seus alunos, pois a afetividade não tem lado. É preciso eliminar “ruídos”
inerentes ao meio e/ou aos contextos multidimensionais dos sujeitos da
aprendizagem, uma vez que a troca de afetos, considerada nas teorias
interacionistas de Piaget e Vygotsky, é condição para o avanço da apren-
dizagem (FRANCO et al, 2009).
A aprendizagem a distância pode ocorrer das mais variadas for-
mas, pois parte do pressuposto básico de que as pessoas possuem rit-
mos, bases e formas de aprender diferentes. Numa perspectiva huma-
nista, a Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI criou
um Relatório da UNESCO em que se baseia o conceito de Educação
em quatro pilares: aprender a conhecer, aprender a conviver, aprender
a fazer e aprender a ser (GIUSTA & FRANCO, 2003). A aprendizagem
ocorre a todo instante e nas mais variadas instituições com que o sujeito
contracena. Franco et al. (2009), citando Almeida (2006), destaca que é
preciso ter consciência de:
[...] como estes fatores nos afetam, conhecer nossos próprios pro-
cessos de aprendizagem e aprendermos como aprender, devem
ser nossas principais armas para conseguirmos a flexibilidade ne-
cessária a essa nova realidade, porém o caminho para atingirmos
este objetivo é tão individual quanto o processo de aprendizagem
em si (ALMEIDA, 2006, apud FRANCO et al. 2009 sp).

Neste sentido, destaca-se a importância do Cognitivismo no pro-


cesso de ensino-aprendizagem frente a tão variados estilos de apren-
dizagem, definidos por Felder e Silvermann (1988) como aprendizes:
Ativos x Reflexivos; Racionais x Intuitivos; Visuais x Verbais; Sequenciais

334 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


x Globais e Indutivos x Dedutivos. Uma pessoa pode naturalmente na-
vegar entre estilos diferentes, mas subjetivamente tem seu aprendizado
maximizado quando algo é apresentado de acordo com seu estilo.
A Aprendizagem Significativa, definida por David Ausubel, é
uma representante do cognitivismo e entende a aprendizagem como
um processo de armazenamento de informação que é incorporada a
uma estrutura na mente do indivíduo. Masini e Moreira (2001), base-
ando-se nas assertivas de Ausubel, definem a aprendizagem significa-
tiva como “um processo pelo qual uma nova informação se relaciona
com um aspecto relevante da estrutura de conhecimento do indiví-
duo” (MASINI & MOREIRA, 2001: 17). Assim, segundo os autores, o
sujeito absorve a informação e trata de acordo com o seu cotidiano,
disponibilizando-a na mente de forma organizada e formando uma
conceituação a partir de sua experiência.
Considerando o desenvolvimento crescente das teorias da
aprendizagem, bem como a própria necessidade imposta por uma so-
ciedade carente por práticas educacionais compatíveis a ela, o Design
Instrucional se engaja em conciliar, da melhor forma possível, uma
relação entre a teoria e a prática educacional. Segundo Filatro (2007),
o Design Instrucional precisa ter uma visão transdisciplinar capaz de
aliar as mais diversas áreas do saber com os avanços tecnológicos.
Destaca, ainda, a adoção de uma perspectiva de diversidade, conside-
rando os pontos de interseção positivos e viáveis que podem ocorrer
nessa junção entre teoria e prática (FILATRO, 2007).

A importância do contexto em projetos de ensino não presenciais

Atualmente as Instituições de Ensino do Brasil enfrentam desafios


que podem ser sintetizados na revisão de suas formas de organização
e relacionamento com alunos, com o objetivo de dar novo sentido ao
seu papel social e proporcionar uma interação entre o local e o glo-
bal. Compete às atuais Instituições de Ensino Superior (IESs) entender e
apontar soluções para problemas que as transformações colocam a toda
sociedade. Como enfatizado por Gondim (2002), o desenvolvimento
científico e o tecnológico são suportes fundamentais para o processo de
globalização. Esse posicionamento está em acordo com a UNESCO que
se expressa da seguinte forma:

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 335


A experiência comum de numerosos países é que o Ensino Su-
perior não é mais uma pequena parcela especializada ou esoté-
rica da vida de um país. Ele se encontra no próprio coração das
atividades da sociedade, é um elemento essencial do bem-estar
econômico de um país ou região, um parceiro estratégico do se-
tor do comércio e da indústria, dos poderes públicos, assim como
das organizações internacionais (UNESCO, 1999:256).

Nos últimos anos, muito se tem estudado e publicado sobre a


emergência de um novo paradigma educacional em resposta às trans-
formações econômicas, políticas e sociais decorrentes do desenvolvi-
mento científico e tecnológico da, assim chamada, era da informação
ou era do conhecimento (FILATRO, 2007).
A emergência de modalidades de ensino não presencial mediadas
pela tecnologia justifica-se como forma de equacionar a diferença entre
o número restrito de vagas da rede de ensino e a necessidade de incluir
socialmente uma maior parcela da população. Trata-se de uma busca
que seja capaz de integrar as exigências individuais e sociais às novas
demandas do mercado globalizado.
Estatísticas oficiais asseguram que as Tecnologias de Informa-
ção e Comunicação estão, de fato, cada vez mais presentes nos am-
bientes universitários. A incorporação das novas tecnologias de infor-
mação e comunicação, além de permitir uma adequação ao antigo
modelo, possibilita também uma reavaliação no modo de pensar e
praticar a educação.
Entretanto, a tendência da industrialização do ensino cria mo-
delos educacionais pasteurizados, baseados na construção de projetos
educacionais que visam principalmente o alcance e o lucro. Os currí-
culos baseados em novos moldes precisam contribuir efetivamente para
o desenvolvimento integral de todos os envolvidos. Neste sentido, é
importante destacar que, além da integração midiática, devem-se con-
siderar os estilos e ritmos diferenciados de aprendizagem, assim como
as características regionais, buscando fazer um elo entre as informações
compartilhadas e as experiências externas do aluno. Wilson & Myers
(1999), por considerar o contexto importantíssimo para o paradigma
educacional, fazem a seguinte afirmativa:
Pensar e aprender só faz sentido dentro de situações particulares.
Qualquer pensamento, aprendizagem ou cognição é situado em

336 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


um contexto particular. Não existe algo como uma aprendizagem
não-situada. Em decorrência, uma abordagem educacional deve
ser mais sensível às condições locais e adaptadas às circunstâncias
de situações específicas (WILSON e MYERS, 1999:71).7

Considerando todo esse panorama, a intervenção pedagógica as-


sumida pelas Instituições de Ensino Superior (IES) é de fundamental im-
portância no desenvolvimento de cidadãos empreendedores, capazes
de aprender a aprender. A necessidade sempre foi e continua sendo
de uma educação para a vida, ou seja, uma formação continuada que
prioriza a ética e os valores sociais, econômicos e culturais da sociedade
(SANTOS et al., 2005). A valorização da problemática regional tende
a estimular a sociedade valadarense para a construção natural de uma
identidade territorial comprometida com o seu desenvolvimento.
Diversos autores convergem ao reconhecimento de que os pro-
jetos educacionais precisam estar adaptados ao contexto de aplicação.
Neste sentido, Filatro (2007:104) destaca que este processo compre-
ende “a ação intencional de planejar, desenvolver e aplicar situações
didáticas específicas incorporando mecanismos que favoreçam a con-
textualização”. Jonassen (1999) defende a importância da inserção de
fatores contextuais para uma implementação bem-sucedida de um pro-
jeto educacional. Segundo ele:
As concepções construtivistas da aprendizagem assumem que o
conhecimento é construído individualmente e socialmente re-
construído pelos alunos com base nas interpretações de suas ex-
periências no mundo. Uma vez que o conhecimento não pode ser
transmitido, a instrução deve ser composta de experiências que
facilitem a construção do conhecimento. (JONASSEN, 1999:217)8

A criação de ambientes de aprendizagem baseados em tecnologia


precisa promover aos alunos interações significativas que lhes permitam
interpretar e construir o conhecimento com base em suas experiências

7 “Thinking and learning make sense only within particular situations. All thinking, learning, and
cognition is situated within particular contexts. There is no such thing as nonsituated learning. Con-
sequently, an approach situated instructional design should be more sensitive to local conditions
and adapt to circumstances localized to specific situations” (WILSON & MYERS, 1999:71).
8 “Constructivist conceptions of learning, on the other hand, assume that knowledge is individually
constructed and socially coconstructed by learners based on theis interpretations of experiences
in the world. Since knowledge cannot be transmitted, instruction should consist of experiences
that facilitate knowledge construction” (JONASSEN, 1999:217).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 337


e interações. Assim, os educadores precisam lançar mão de uma abor-
dagem construtivista que adapte as estratégias educacionais em prol do
envolvimento dos alunos, permitindo a eles a exploração, experimenta-
ção, construção, colaboração e reflexão do que estão estudando.
O conceito do construtivismo enfatiza que o estudante deva ser
um aprendiz ativo, desempenhando um papel central na mediação e
controle de aprendizagem (Jonassen, 1999). Esta ênfase no contexto do
aluno permite a apropriação fluida da experiência da aprendizagem.
Assim, quando ele se apropria dos conceitos, a aprendizagem ativa fo-
cada nos estudantes permite que a construção do conhecimento ocorra
de forma natural (GREENING, 1998).
Jonassen (1999) e Filatro (2007) defendem o modelo contextual
desenvolvido por Tessmer e Richey (1997) que constitui-se num conjun-
to de processos para analisar e mapear o contexto físico, organizacional
e sociocultural em que os problemas ocorrem. O mesmo problema em
diferentes contextos sociais se apresenta de forma diferente. A elaboração
de projetos educacionais deve contemplar a declaração de todos os fa-
tores contextuais que cercam uma determinada problemática. O modelo
proposto por estes autores caracteriza o contexto em termos temporais e
em níveis de abrangência. Filatro (2007) vai ilustrá-los da seguinte forma:
Em termos temporais: a) contexto de orientação: anterior à
aprendizagem, influencia a motivação futura do aluno e o pre-
para cognitivamente para aprender; b) contexto de instrução:
geralmente determinado temporalmente pelo evento instrucio-
nal (curso, programa, aula), envolve os recursos físicos, sociais e
simbólicos que fazem parte da situação didática; c) contexto de
transferência: posterior à aprendizagem, envolve basicamente o
ambiente ou a situação em que a aprendizagem será aplicada. Es-
tes três contextos se expressam em três níveis de abrangência: a)
a perspectiva individual; b) a perspectiva imediata, característica
do entorno; c) a perspectiva cultural ou institucional, caracterís-
tica de uma organização, instituição ou da sociedade (FILATRO,
2009:106-107).

A prática da Informática na Educação requer uma reflexão cons-


tante, permitindo-se descobrir estratégias para utilizar o computador
de maneira Construcionista, Contextualizada e Significativa (CCS). É
preciso fazer com que os alunos sejam ativos e reflexivos, capazes de
elaborar conceitos e implementá-los fazendo uso de uma aprendizagem

338 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


colaborativa assistida por computador9. Cabe ao professor, neste pro-
cesso, saber articular o uso das Tecnologias de Informação e Comunica-
ção (TIC´s) e de todos os benefícios potencializadores que trazem para
uma educação de qualidade a todos envolvidos.
Existem diversas inquietações em relação às metodologias da Edu-
cação a Distância com auxílio do computador. Essas se devem, sobre-
tudo, quanto às formas em que os alunos encaram o uso desse tipo de
ferramenta. Conforme destacado por Schlünzen (2000), em função dos
objetivos que se pretende alcançar, duas abordagens são largamente
aplicadas no processo educacional não presencial: a abordagem instru-
cionista e a construcionista.
Na abordagem instrucionista, o computador exerce a função de
transmissor da informação para o aluno por meio de um programa (sof-
tware). Ele cumpre um papel semelhante ao de um professor que passa
as informações específicas aos seus alunos, como o que é realizado nos
métodos tradicionais de ensino. Desta forma, o professor pode sentir que
será facilmente substituído pela máquina, já que as informações são trans-
mitidas pelo computador. Assim, se o professor utiliza o computador para
passar as informações aos alunos, não há necessidade de uma formação
mais complexa para o exercício do magistério (FRANCO et al, 2006).
Contrapondo-se a essas idéias, a abordagem construcionista não
espera que o aluno apenas receba informações. Conforme preconiza-
do por Papert (1985), ela caracteriza-se como uma abordagem de uso
educacional do computador, voltado para o processo de aprendizagem
do aluno. Assim, o aluno interage com o computador na busca de infor-
mações significativas para a compreensão, representação e resolução de
uma situação problema ou para a implementação de um projeto.
Nessa abordagem, o computador é usado como suporte para
que o aluno resolva problemas ou construa algo de seu interesse, ba-
seado em situações reais de seu cotidiano. Assim, segundo Schlünzen
(2000:4), “ele insere sua realidade nos conceitos envolvidos no proble-
ma que está sendo resolvido”, testando idéias, hipóteses e estratégias.

9 Aprendizagem colaborativa assistida por computador ou (CSCL - Computer Supported


Collaborative Learning) pode ser definida como “[...] estratégia educativa em que dois ou mais
sujeitos constroem o seu conhecimento através da discussão, da reflexão e da tomada de de-
cisões, e onde os recursos computacionais atuam (entre outros) como importantes e eficazes
mediadores do processo de ensino-aprendizagem (COSTA, 2005:7)

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 339


Nesse processo de ensino, são oferecidas condições para que ele tenha
um aprendizado personalizado e contextualizado. É dessa forma que o
sujeito acaba por descobrir uma maneira mais prazerosa de aprender,
de dar significado ao seu aprendizado, formalizando e contextualizando
os conceitos (SCHLÜNZEN, 2000).
Entretanto, a prática da contextualização do ensino não é algo que
as IESs estejam preparadas para aplicar em seu cotidiano, apresentam de
forma excessivamente previsível, burocrática e pouco estimulante para
os bons professores e alunos (MORAN, 2008). Elas precisam se tornar
instituições efetivamente significativas, inovadoras e empreendedoras. Ao
envolver um tempo de produção maior e uma ampliação na equipe ela-
boradora dos projetos educacionais, esta prática é vista por muitas insti-
tuições como uma despesa injustificada e um complicador em termos de
cumprimento de prazos (FILATRO, 2007). Moran (2008) também consi-
dera que, em sua maioria, as instituições existentes têm sido previsíveis e
burocráticas em demasia e pouco estimulantes para professores e alunos.
Eis porque se torna necessário que as IESs busquem quebrar alguns para-
digmas na busca por aproximar a sociedade das demandas atuais revendo
seus métodos, procedimentos e currículos.

Considerações finais

A Microrregião de Governador Valadares teve sua história impulsio-


nada por diversos ciclos exploratórios e por um peculiar fluxo migratório,
que conspiraram para a construção de uma identidade regional desterri-
torializada. Identidade anômala, que faz com que os habitantes deste ter-
ritório tenham como ideal econômico e social trabalhar no exterior como
emigrantes para construir um melhor futuro para suas famílias. Identidade
constituída ao longo da história em função das interações dos sujeitos
com os contextos que fizeram parte da formação desta região.
O grande número de Instituições de Ensino Superior existentes
na região contribui para a consolidação de um polo educacional com
poder de direcionar investimentos e diretrizes políticas voltadas para o
estabelecimento de qualificações especializadas. Não se trata aqui de
qualificações tradicionais, mas daquelas capazes de melhorar a quali-
dade de vida não apenas dos participantes das propostas educacionais,
mas de todos os sujeitos residentes na MGV.

340 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Geralmente, na busca por se especializar através de cursos de Pós-
Graduação a distância, os habitantes da MGV buscam a aplicação dos
conhecimentos adquiridos em outras terras. Obviamente que políticas
públicas precisam ser instauradas na intenção de potencializar a aplicação
destas especialidades, mas estas soluções em EaD precisam promover a
experimentação e a modificação do contexto regional, sendo aplicável
para a melhoria da qualidade de vida de todos os envolvidos.
A Educação a Distância é mais antiga do que parece. Entretanto,
vale lembrar que ela atravessa atualmente uma revolução tecnológica
comparável à revolução industrial e à cultural que existiram na primeira
metade do século XX. Os computadores têm adquirido cada vez mais
recursos capazes de ampliar possibilidades de interação e, consequen-
temente, tratar a experiência adquirida na modalidade a distância em
algo cada vez mais real. Aborda-se aqui a EaD mediada pelo computador
não como mais uma possibilidade da educação, mas, sim, como uma
evolução natural do processo de ensino aprendizagem pós-moderno.
Ao promover caminhos diferenciados aos alunos, de forma que
cada um possa potencializar seu aprendizado de acordo com sua identi-
dade, os projetos educacionais contextualizados percebem que a chave
para o sucesso está na valorização das variáveis locais, sem abrir mão
das condições gerais. Neste sentido, a oferta contextualizada de cursos
de Pós-Graduação a distância por parte das IESs localizadas na Micror-
região de Governador Valadares constituem uma alternativa viável para
o aprendizado e sua consequente aplicação em nível local e global. A
utilização desta modalidade de ensino contribui para a geração e de
mão de obra especializada e para o desenvolvimento regional.

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344 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Considerações sobre os estudos que abordam
o fenômeno da violência: reflexões a partir do
caso de Governador Valadares
Cristina Salles Caetano1

I - A abordagem histórico-social da violência e suas implicações

N
este início de século XXI, a violência compõe uma das
questões sociais que adquire grande importância no
imaginário dos cidadãos e agencia um montante consi-
derável dos investimentos governamentais no Brasil e em grande
parte do mundo. Entendida como “[...] um dispositivo de poder,
em que se exerce uma relação específica com o outro mediante
o uso da força ou da coerção [...]” (SANTOS, 2002, p. 23), não
há como negar o dano social causado por ela, seja o seu alvo o
sujeito particular, as instituições sociais ou uma massa indiscrimi-
nada de cidadãos.
Para entender a maneira como a violência é socialmente perce-
bida nos dias atuais, faz-se necessária uma análise do processo histórico
que conduziu a essa compreensão e uma reflexão do impacto dela na
organização social. O primeiro movimento nesta direção deve buscar
o significado do termo “violência” e, aí, tem-se a primeira elucidação a
respeito deste fenômeno, comum às sociedades humanas.
A definição do que é violência subordina-se a alguns princípios
inerentes à manifestação desse fenômeno: a noção de coerção ou força,
que pode alcançar as dimensões material, física e/ou simbólica; a sua
configuração em contextos histórico-culturais específicos; a racionalida-
de embutida em sua prática; a dimensão de desigualdade em que se
instaura, estabelecendo uma relação fundada no binômio dominação-

1 Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atua na área de violência
e criminalidade, tendo trabalhos de análise da distribuição de crimes violentos na cidade de
Governador Valadares. É professora de Sociologia e Metodologia da Pesquisa Científica na
Universidade Vale do Rio Doce – UNIVALE e é responsável pela linha de Pesquisa “Violência
e Criminalidade” do Núcleo Multidisciplinar de Estudos Regionais – NEDER/UNIVALE.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 345


submissão (SANTOS, 2002). Segundo Zaluar (1999, p. 13), a violência
deve ser entendida como “[...] um instrumento, e não como um fim
[...]”, e este argumento se aproxima ao que Santos (s.d. apud ZALUAR,
1999) denomina como uma forma de sociabilidade que, uma vez legiti-
mada por parcela da sociedade, possibilita o controle social aberto, con-
tínuo. Neste sentido, ela se faz presente no cotidiano das sociedades,
em todos os tempos e espaços historicamente constituídos, podendo se
manifestar em várias instâncias sociais.
“As primeiras formas de violência (que vem de cima para baixo)
são as propiciadas pelas estruturas sociais iníquas... Quem defi-
ne o ato violento? Os que detêm o poder. Como definem o ato
violento? Como transgressão das regras criadas pelo mesmo po-
der. Assim, se entre essas regras existem regras violentas, não são
caracterizadas como atos violentos, por exemplo, salários injus-
tos; castiga-se como ato violento o roubo de 100 cruzeiros (sic),
porque é um ato violento, mas ficam impunes violências muito
maiores, como todas as formas de iniqüidade social. É uma vio-
lência silenciosa... Ninguém pode responsabilizar ninguém pelas
dezenas de milhares de crianças subnutridas, famintas, retarda-
das, tuberculosas, bestificadas. Mas ninguém ignora que elas tam-
bém foram vítimas de assaltantes, aqueles que deram um salário
de fome a seus pais, que obrigaram suas mães a se prostituírem,
que sonegaram impostos, que burlaram a previdência social”
(D’AVILA s.d apud ZALUAR, 1999, p. 10-11).

Minayo (1990, p. 09-10), em sintonia com o conceito proposto


anteriormente, identifica três tipos de violência: a estrutural, a revolu-
cionária e a delinqüência e afirma que
[...]. Por violência estrutural entende-se aquela que nasce no
próprio sistema social, criando as desigualdades e suas consequ-
ências, como a fome, o desemprego e todos os problemas so-
ciais com que convive a classe trabalhadora. Estão aí incluídas as
discriminações de raça, sexo e idade. Cuidadosamente velada, a
violência estrutural não costuma ser nomeada, mas é vista antes
como algo natural, a-histórico, como a própria ordem das coisas
e disposição das pessoas na sociedade.
[...] a delinqüência [...] compreende roubos, furtos, sadismos, se-
qüestros, pilhagens, tiroteios de gangues, delitos sob o efeito do
álcool, drogas, etc. Essa é a forma mais comentada pelo senso
comum como violência. É importante entender que a delinqüên-
cia não é um fenômeno natural e muito menos pode ser explica-

346 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


da pela conduta patológica dos indivíduos e muito menos ainda
como atributo dos pobres e negros. O aumento da criminalidade
se alimenta das desigualdades sociais, da alienação dos indivídu-
os, da desvalorização das normas e dos valores morais, do culto
à força e ao machismo, do desejo do lucro fácil e da perda de
referências culturais.

Se o conceito de violência é amplo e perpassa a experiência social


de todos os tempos e lugares, é inegável que na atualidade o fenômeno
é percebido socialmente em um sentido bastante específico. Quando se
fala em violência, geralmente está-se abordando o fenômeno identificado
como “criminalidade violenta”, ou seja, aquele conjunto de práticas vio-
lentas que foram progressivamente criminalizadas no contexto de cons-
tituição dos Estados Modernos, aqui entendidos como “Estados-nação”,
no sentido adotado por Giddens (2008). Segundo este autor, no processo
histórico de constituição da Modernidade a violência, até então social-
mente tolerável e objeto de práticas individuais ou comunitárias de re-
solução de conflitos, passa a ser definida como desvio – comportamento
socialmente indesejável, tendendo, por isso, à criminalização.
“[...] O ‘criminoso’, em específico, não é mais um rebelde, mas
um tipo de ‘desviante’ que deve ser ajustado às normas de com-
portamento aceitável como o definido pelas obrigações da cida-
dania. Nos tipos anteriores de sociedade as classes dominantes
não buscaram, ou exigiram, a necessidade da aquiescência re-
gularizada da população, com exceção de critérios demasiada-
mente restritos à submissão material. A manutenção da ‘ordem’
– um termo que não possui a mesma aplicação em qualquer caso
naqueles tipos de sociedade – foi o pretexto de uma combinação
de controle da comunidade local e de possibilidade de interven-
ção quando necessária. Mas no Estado-nação, o encarceramento,
mais o policiamento, substituem amplamente essas influências.
A ‘guerra civil’, onde ocorre, normalmente é distinguida mesmo
das confrontações violentas, bastante significativas entre as auto-
ridades de Estado e agrupamentos de classe rebeldes ou outros
grupos dissidentes organizados” (GIDDENS, 2008, p. 205).

Giddens (2008) afirma que a nova percepção da violência e a


prática socialmente instituída de controle dela é parte de um processo
histórico-social preciso. Analisando as condições de desenvolvimento
do Ocidente, e mais especificamente da Europa, este autor observa que,
no processo de modernização, o Estado se organiza territorialmente, de-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 347


limitando claramente as suas fronteiras e criando uma unidade cultural
nos limites do seu território - situação até então inalcançável pelos mo-
delos de Estado anteriormente estabelecidos. A isso é acrescentado um
considerável desenvolvimento industrial e o processo de burocratização
das instituições sociais, agora denominadas “organizações”.
As sociedades caracterizadas como Estados-nação seriam “pacifi-
cadas”, ou seja, internamente organizadas para o controle da violência.
Isso significa dizer que, a partir da formação desse tipo de sociedade, há
uma tendência à diminuição das manifestações violentas, na experiên-
cia cotidiana. A pacificação se dá sobretudo no contexto interno, pois a
violência torna-se prerrogativa da função administrativa do Estado – só
esta instituição pode praticá-la, e com o objetivo de garantir a ordem ou
defender os interesses da nação.
Segundo Giddens (2008), o processo de pacificação interna dos
Estados-nação decorreu das condições histórico-sociais relacionadas
com o desenvolvimento do Capitalismo e Industrialismo, no século XIX,
da centralização do poder político e da urbanização. O papel do Estado
foi importante neste processo, pois territorialmente organizado tomou
para si a responsabilidade do controle da violência. Antes da emergên-
cia dessa nova estrutura organizacional, a violência era administrada
difusamente por nobres e seus representantes comunitários, que tinham
ampla autonomia em relação à regulação das leis e das medidas puni-
tivas. Na nova estrutura política, o Estado torna-se um poder adminis-
trativo que possui as seguintes atribuições: controlar a comunicação e o
armazenamento das informações; garantir a ordem interna; e defender
os interesses nacionais, no contexto internacional. Para isso, desenvolve
processos de elaboração, disseminação e aplicação das leis e elabora
estatísticas oficiais que têm como função orientar as ações do Estado.
Para o bom desempenho dessas atribuições, o Estado se articula
com as outras instituições sociais que, agora como organizações no
sentido burocrático do termo (argumento weberiano), compõem um
sistema, uma vez que elas se tornam interdependentes e se articulam
em função de um projeto comum (GIDDENS, 2008). Isso se impõe
como uma exigência decorrente da unidade territorial que marca a
formação dos Estados-nação e da responsabilidade assumida por es-
tes, que se tornam um power-container, por assumir atribuições que
são de natureza administrativa, política e social.

348 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


A pacificação interna não ocorreu aleatoriamente ou como parte
de um processo natural de evolução humana, mas resultou da capaci-
dade de vigilância possibilitada pelo controle da comunicação e arma-
zenamento de informações pelos Estados-nação. Ao se tornarem um
território nacional, coube aos novos Estados a unificação formal das leis
e o desenvolvimento da capacidade de fazê-las cumprir (processo de
legitimação delas). Isso contribui para a disseminação de um poder dis-
ciplinatório, que se faz presente em várias instituições sociais. A conse-
quência direta da criação de um sistema de vigilância social e da impo-
sição do poder disciplinatório é o controle da violência, possível através
da vigilância das condutas individuais. Isso se dissemina entre todas as
instituições sociais, entre elas as empresas e os locais de trabalho.
O conflito aberto e o espírito guerreiro cedem espaço para a
negociação e a conciliação de interesses divergentes (argumento de
SPENCER, 1979 apud GIDDENS, 2008), pois “[...] considerando que
as sociedades pré-industriais são predominantemente guerreiras, as
sociedades industriais [...] são por natureza pacíficas, dependendo
mais da cooperação conciliatória do que do antagonismo entre as co-
munidades humanas” (GIDDENS, 2008, p. 48). Neste sentido, pode-
se afirmar que o alcance do comportamento pacificado dependeu, em
grande parte, do reconhecimento do direito à liberdade individual e
do exercício da cidadania.
É neste contexto que as leis consolidam a noção de desvio, criam a
figura do criminoso e o princípio da privação da liberdade como o prin-
cipal recurso contra o desviante (GIDDENS, 2008). Ao fazê-lo, adota-se
um modelo disciplinatório de punição, em que o que é importante é o
reconhecimento social de que a ordem se alcança através da adequação
dos membros da sociedade à lei.
“[...] ‘A privação da liberdade’ torna-se o principal meio punitivo.
[...] A privação forçada da liberdade é, de alguma forma, uma ex-
pressão da centralização que os direitos ‘democráticos’ ou de cida-
dania vieram a assumir dentro do Estado. O debate [...] sobre quão
longe a tendência relativa ao confinamento como uma sanção
punitiva corresponde aos ideais humanos é, em alguns aspectos,
equivocado. A questão não é apenas se ocorreu uma transição de
um tipo de punição (violenta, espetacular, aberta) para outra (disci-
plinatória, monótona, escondida), mas que um novo complexo de
relações coercitivas foram estabelecidas onde poucas estavam lo-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 349


calizadas antes. A criação de uma necessidade pela ‘lei e ordem’ é
o lado reverso da emergência de concepções de ‘desvio’ reconhe-
cidas e categorizadas pelas autoridades centrais e por especialistas
profissionais. Estas são intrínsecas à expansão do alcance adminis-
trativo do Estado, penetrando nas atividades diárias – e à aquisição
de um monopólio efetivo da violência nas mãos das autoridades
do Estado.” (GIDDENS, 2008, p. 204-205)

A conseqüência direta da expansão do poder disciplinatório como


base da estrutura organizacional das instituições sociais é a diminuição
da violência no contexto dos Estados-nação. Estas sociedades, pacifica-
das, não são isentas de conflitos ou oposição de interesses, ou seja, não
são por natureza não violentas. A diferença que se estabelece entre elas
e os modelos de instituições político-sociais até então desenvolvidas re-
side no fato de que nelas os sujeitos regulam a sua conduta tomando
como referência o princípio da “liberdade” (WALLERSTEIN, 1979 apud
GIDDENS, 2008), e, por isso, alinham-se aos pressupostos do exercício
da cidadania, em particular nas obrigações geradas por ela. Neste senti-
do Giddens (2008, p. 181-182) afirma que
[...] No capitalismo industrial há o desenvolvimento de um novo
tipo de sistema de classe no qual a luta de classes é predominan-
te, mas em que também a classe dominante – aqueles que detêm
ou controlam grande volume de capital – não têm ou não pedem
acesso direto aos meios de violência para manter o seu domínio.
Ao contrário dos sistemas anteriores de dominação de classe, a
produção envolve relações próximas e contínuas entre os prin-
cipais agrupamentos de classes. Isso presume uma ‘duplicação à
vigilância’ os modos de vigilância tornando-se um aspecto chave
das organizações econômicas e do próprio Estado.[...]”

O processo de pacificação ou acomodação mais efetiva dos indi-


víduos à lei cria um sentimento de segurança ontológica – porque pen-
sada como inerente à vida em sociedade, e a rotinização da vida, base
para a estabilidade social e pleno funcionamento das “organizações”.
Giddens (2008, p. 216) observa que
[...] Em relação aos sentimentos de segurança ontológica, os mem-
bros de sociedades modernas são particularmente vulneráveis à
ansiedade generalizada. Isso pode se intensificar quando, como
indivíduos, têm de confrontar dilemas existenciais corriqueiros
omitidos pela segregação, ou quando as rotinas da vida social
são, por alguma razão, substancialmente interrompidas. O vazio

350 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


das rotinas seguido pela vida social moderna engendra uma base
psicológica para a incorporação de símbolos que podem tanto
promover solidariedade quanto causar separação. [...]

Neste ponto, a tese de Norbert Elias (1993; 1994; 1997) sobre o


processo civilizador que culminou na configuração da “modernidade”
apresenta-se como complemento às reflexões de Giddens. Abordando
o processo histórico que conduziu às sociedades urbano-industriais (Ci-
vilização em Elias e Estados-nação em Giddens), Elias trata o tema na
perspectiva das implicações das transformações políticas, econômicas
e culturais na configuração do que ele denomina de uma nova “per-
sonalidade social”. Para ele, o processo se inicia na transição entre o
feudalismo e o capitalismo, passando pelos Estados Absolutistas e de-
sembocando nas revoluções liberais e seu principal desdobramento, a
Revolução Industrial (ELIAS, 1993). Na análise desse processo histórico,
confere especial atenção às mudanças que todas estas transformações
produzem no comportamento dos indivíduos, para ajustarem-se às no-
vas exigências decorrentes das mudanças em curso, gerando neles no-
vas formas de relacionamento, integração e interdependência.
A centralização política, a circulação da moeda, o estabelecimen-
to de relações internacionais e a nova ordenação social proporcionada
pelo surgimento da burguesia foram decisivos para a decadência da or-
dem consolidada na Idade Média européia. À medida que estas mudan-
ças se processam, novos padrões de relacionamentos são estabelecidos
entre os membros da sociedade (ELIAS, 1993). As relações sociais se
tornam mais complexas devido ao renascimento comercial, pois as al-
terações geradas pelo processo de produção e comercialização exigem
o concurso de muitos braços para a sua efetivação. À medida que estas
mudanças ocorrem, os seres humanos se entrelaçam no desempenho
das funções sociais, submetendo-se mais à vigilância uns dos outros,
especializando-se em determinadas atividades econômicas e competin-
do entre si no novo mercado de trabalho.
Para Elias (1993), a sociedade se torna uma “rede”, no sentido de
se caracterizar como um sistema em que os indivíduos, organizados em
funções sociais especializadas, vinculam-se a estruturas maiores – as orga-
nizações. Portanto, embora ajam individualmente, suas ações dependem
do concurso de vários outros indivíduos, gerando o princípio da interde-
pendência das funções sociais. Neste sentido, progressivamente o livre
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 351
curso das emoções e dos impulsos naturais, nos indivíduos, é substituído
pela racionalidade da precisão da ação e do autocontrole. No novo con-
texto histórico-social, a mudança nos padrões de comportamento ou con-
duta humana gera nos indivíduos uma maior vigilância mútua, que tende
a tornar-se autovigilância. São nestes termos que a pacificação pode ser
entendida como uma compulsão para o autocontrole, em decorrência do
aumento do controle social sobre e entre os indivíduos.
Segundo La Bruyére (1922 apud Elias, 1993, p. 226), “O homem
que conhece a corte é senhor de seus gestos, de seus olhos e expres-
são. É um homem profundo, impenetrável. Dissimula as más ações que
comete, sorri para os inimigos, reprime o mau-humor, disfarça as pai-
xões, rejeita o que quer o coração, age contra os sentimentos”. Este
é o padrão de comportamento individual socialmente imposto como
desejável no contexto que Elias denomina como “processo civilizador”
do Ocidente. Nele, o indivíduo ajustado é aquele que se caracteriza
pelo comportamento racionalizado, comedido, capaz de controlar as
suas emoções e canalizar os seus sentimentos para as questões definidas
como relevantes para a sociedade. Aos que não conseguem alcançar
este padrão de comportamento, cabem o estigma de “desviantes” e a
punição processual, como meio de fazê-los cumprir a lei – que por sua
vez tem a função de ajustá-los socialmente.
O processo de pacificação exige dos indivíduos uma autodiscipli-
na que só pode ser mantida à medida que as condições sociais impostas
a eles sejam incorporadas como significativamente válidas, ou seja, se-
jam justificadas pelo “valor” que carregam. Isso impõe como contrapar-
tida do Estado e das instituições sociais a capacidade de garantirem um
nível mínimo de satisfação individual, que lhes possibilitem a identifica-
ção com a ordem estabelecida (ELIAS, 1997). À medida que isso não é
possível, instaura-se um vazio existencial que cria a possibilidade da ex-
plosão da violência como um discurso, uma vez que a sua manifestação
demarca a incapacidade da sociedade de ser efetivamente significativa
para os seus membros. Analisando os confrontos alemães das décadas
de 1960 e 1970, e particularmente a ação dos jovens neste contexto,
Elias (1997, p. 186) afirma que
“[...] se um considerável número de jovens teve sufocadas suas
oportunidades de expressão, como ainda hoje ocorre com freqü-
ência, então existe uma emergência na sociedade, um potencial

352 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


explosivo que, sob condições favoráveis, encontrará repercussão,
repetidas vezes, em movimentos que se colocam em pronuncia-
da oposição às instituições políticas estabelecidas [...]”

Neste ponto do texto, devem-se tecer considerações acerca da


violência, da sua progressiva criminalização no contexto ocidental, do
sentimento socialmente construído em relação a este fenômeno e das
representações sociais relacionadas à sua manifestação na atualidade.
Para fazê-las, serão desenvolvidos alguns argumentos.
Em primeiro lugar, deve-se considerar que, embora haja uma
tendência a se generalizar o processo de modernização do Ocidente
como um fenômeno global, deve-se considerar que o que é global é a
proposta de internacionalização dos ideais ocidentais, sobretudo para
garantir os interesses do capitalismo e do industrialismo. Neste sentido,
observa-se que, apesar da incorporação de padrões de desenvolvimen-
to e organização social, grande parte do mundo alinhado aos interesses
do Ocidente o faz marginalmente, no sentido de ajustarem-se aos in-
teresses das potências mundiais, modernizando-se sem, contudo, con-
seguir incorporar, stricto sensu, seus modelos organizacionais, embora
idealmente persigam isso. Não se pode dizer que o processo de pacifi-
cação seja homogêneo, embora também não se possa negar que haja
um esforço governamental e das instituições sociais nesta direção, na
maioria das nações modernas.
No que se refere especificamente ao padrão “civilizado” de com-
portamento, apesar de ser ele desejável, nem sempre é conseguido, so-
bretudo em países onde os ideais de liberdade e o exercício da cidadania
são limitados por Estados que fundamentam a sua autoridade em padrões
ditatoriais de governo – situação em que o Brasil se enquadra em grande
parte do seu percurso histórico2. Nestes, pode-se afirmar que, muito mais
do que o controle da violência, há o exercício dela pelo Estado – que legi-
tima a sua ação em nome da “ordem”, e o controle sobre as informações
relacionadas à sua manifestação, para disseminar o sentimento de segu-
rança proporcionada pelo Estado, garantindo, assim, a sua autoridade.
Além disso, o contexto moderno restringe o conceito da violência,
valorizando aqueles fenômenos que agridem ou ameaçam a integridade

2 Neste caso deve-se considerar o quão recente é o processo de redemocratização do Brasil –


década de 1980.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 353


física e os bens da vítima. Estão entre eles os crimes violentos deno-
minados Homicídio Tentado e Consumado, Roubo, Assalto, Seques-
tro e Latrocínio. Há de se considerar que a progressiva criminalização
deles decorreu da ameaça que representam em relação aos princípios
da liberdade individual valorizada no contexto da modernidade e isso
é legítimo. Porém, outras violências decorrentes da desigualdade so-
cial inerente ao processo de industrialização e urbanização também se
constituem ameaça à liberdade individual, sem que isso seja reconheci-
do como tal e gere punição aos transgressores.
Por fim, é necessário entender que, se as informações que se tem
produzido sobre a violência restringem-se predominantemente à sua
versão “criminalidade violenta”, esta abordagem focaliza o problema no
transgressor, que representa uma ameaça à sociedade. A maneira como
o problema é tratado tem a função de sanear o desvio e restabelecer a
“ordem” ameaçada, punindo exemplarmente o transgressor, na maioria
das vezes sem nenhuma consideração para com o contexto em que a
violência ocorre. Ademais, na atualidade a ocorrência desses fenôme-
nos conta com uma ampla divulgação nos meios de comunicação de
massa, que transformam o problema em mercadoria e formam opinião
sobre ele, disseminando na população o medo e incentivando a intole-
rância em relação aos agressores.
Estas questões levam a outras, específicas ao Brasil e que, por isso,
aplicam-se ao caso de Governador Valadares. No país, as discussões
em torno da violência se disseminam no processo de redemocratização
decorrente do fim da ditadura militar, na década de 1980, em função
do reconhecimento de que neste contexto houve uma “explosão” da
criminalidade violenta, tornando-a um problema nacional. Como con-
seqüência, os Governos federal e estaduais ampliam os investimentos
destinados à elaboração de informações oficiais que permitam dimen-
sionar o tamanho do problema e estabelecer estratégias de ação. É tam-
bém aí que uma série de estudos sobre a violência é desenvolvido por
grupos de pesquisa especializados na área, a maioria deles tendo como
fontes de informação dados oficiais.
Sem desconsiderar a importância dos investimentos, estratégias de
enfrentamento do problema e das pesquisas desenvolvidas na área, algu-
mas considerações devem ser feitas sobre este processo. Em primeiro lugar,
deve-se perguntar se os padrões de violência eram menores ou se eles foram

354 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


ocultados pela ditadura militar, com o objetivo de manutenção da ordem,
o que seria garantido pela censura à disseminação de algumas informações
por parte do Governo3. Depois, é necessário considerar que dados oficiais
são importantes e são as fontes mais seguras de análise, quando se preten-
de estabelecer estatísticas criminais, apesar do fato de que dependem da
adesão da sociedade ao processo de notificação de casos. Muitos crimes
não são registrados oficialmente ou o são parcialmente, em decorrência
de vários fatores: insegurança e desconfiança das vítimas em relação aos
agressores e aos setores administrativos responsáveis pelo registro, respec-
tivamente; desinteresse ou incapacidade técnica dos profissionais respon-
sáveis pelos registros; e avaliação, por parte das instâncias governamentais,
do impacto político e econômico de tais registros, situação que orienta a
decisão sobre a maneira mais adequada de fazê-los4.
Outra questão relacionada ao problema da violência no Brasil
refere-se à aceitação, por parte do Estado e de uma parcela conside-
rável da sociedade, de que a maneira como o fenômeno se manifesta
internamente e nos vários espaços territoriais do Brasil se identifica com
o que ocorre em outros países. Isso contribui para a aplicação interna
de políticas e medidas vindas de “fora”, como se a situação que ocorre
“aqui” fosse idêntica à de “lá”, os agressores e vítimas tivessem a mesma
experiência de vida e, como conseqüência, a mesma motivação5.
Além desses aspectos, deve-se considerar o limite do enfoque
centrado na criminalidade violenta urbana, amplamente difundida pe-
los meios de comunicação de massa, ocultando as muitas variáveis que
permeiam a ocorrência desse fenômeno e que são elementos explicati-
vos deles. Isso parece parte de um projeto político que focaliza o crime a
partir da figura do criminoso e não da estrutura social, deixando, assim,
de tocar o problema na sua raiz. Como conseqüência, muito do que se
produz em pesquisas e projetos políticos de controle e prevenção da
violência fortalece a estrutura social vigente e, consequentemente, não
produz uma mudança substantiva em relação ao problema.

3 Não se pretende, com esta discussão, desconsiderar o fato de que vários estudos demonstram
o crescimento das taxas de violência no Brasil, nas três últimas décadas.
4 Neste caso deve-se considerar o impacto que o registro de casos de violência tem, por exem-
plo, em Estados e cidades brasileiros com alto potencial turístico.
5 Aqui não se pode negar o caráter internacional de muitos crimes, especialmente aqueles liga-
dos ao tráfico de drogas, armas, etc. Porém, também não se pode cair no erro de se acreditar
que todos os crimes têm vinculação direta com eles e podem ser explicados a partir deles.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 355


Isso é observado na maneira como a violência é percebida e tra-
tada no Brasil. A seguir, serão relatados os resultados dos estudos de
base nacional, estadual e municipal que demonstram a situação de Go-
vernador Valadares nas estatísticas relacionadas com a violência. Antes
disso, porém, será realizada uma breve descrição da condição sócio-
econômica do município.

II - O município de Governador Valadares

Governador Valadares é uma cidade localizada no leste de Minas


Gerais. Emancipada politicamente em 1938, percorreu um processo
histórico que fez dela um pólo regional. Sede do município que rece-
be o mesmo nome, segundo o censo de 1991 se organizava em torno
de treze distritos, que naquela época comportava uma população de
230.524 habitantes (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DE-
SENVOLVIMENTO, 2003). Em 2000 esta população era de 247.131 ha-
bitantes, sendo que no distrito sede concentrava-se 93% dela, ou seja,
229.703 habitantes.
Inserido administrativamente na Região de Planejamento do Rio
Doce, Governador Valadares faz parte dos 102 municípios que integram
esta região administrativa, que, no intervalo entre 1991 e 2000, teve
uma taxa de crescimento de 0,5% ao ano e produziu um grau de urba-
nização correspondente a 75,9% da população regional6 (FUNDAÇÃO
JOÃO PINHEIRO, 2004, p. 118). Neste período, o crescimento rural do
município foi negativo, na proporção de –2,9% ao ano.
No contexto estadual, Governador Valadares se destaca por estar
entre os vinte municípios mais populosos de Minas Gerais (FUNDAÇÃO
JOÃO PINHEIRO, 2004). Nesta categoria, enquadram-se os territórios
político-administrativos com população maior que 100.000 habitantes.
Na região, Ipatinga é o outro município que, embora com uma popu-
lação menor – 212.496 habitantes7, divide com Governador Valadares
a posição de pólo regional. As características destes dois municípios co-
locam a Região de Planejamento Rio Doce em evidência no contexto
estadual, se considerados o tamanho da população, o grau de urbani-

6 Segundo a mesma fonte em 2000 a população da região de Planejamento Rio Doce era de
1.534.268 habitantes.
7 Dados referentes ao Censo de 2000.

356 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


zação que comportam e o produto interno bruto (PIB) que produzem,
pois, segundo Simão (2004), ela está entre as regiões mineiras que pro-
duzem um PIB superior a quinhentos milhões de reais por ano.
A análise cuidadosa desta informação, porém, revela as dispari-
dades que ocorrem no interior da sua organização, pois, de acordo com
Ferreira (1996) e Santana (2002), citados por Simão (2004, p. 23), este
PIB é extraído, majoritariamente, do complexo siderúrgico do Vale do
Aço. Por isso afirmam estes autores que “[...] se excluirmos os municí-
pios que compõem o Vale do Aço, a Região Vale do Rio Doce torna-se
problemática, pois os demais municípios, que não se localizam no com-
plexo, não são dinâmicos economicamente.”
O que é observado no âmbito regional expressa uma situação
comum ao Estado de Minas Gerais, que opõe dinamicidade e moderni-
dade, de um lado, e atraso e estagnação, de outro (Simão, 2004). Neste
caso embora a economia mineira ocupe o 3º lugar no ranking nacional,
encontram-se no seu interior “[...] regiões dinâmicas, modernas e com
indicadores sócio-econômicos de alto nível, com localidades atrasadas,
estagnadas, que não oferecem a mínima condição de vida para a popu-
lação[...]” (QUEIROZ, 2001 apud SIMÃO , 2004, p. 3)
A desigualdade entre as regiões de planejamento mineiras e no in-
terior delas se revela, também, no Índice de Desenvolvimento Humano
Municipal (IDH-M). Segundo a Fundação João Pinheiro (2004), embora
tenha havido um aumento deste índice no intervalo entre 1991-2000
no âmbito estadual, e, como conseqüência, isso tenha refletido nas re-
giões administrativas, a Região Rio Doce ocupa o 8º lugar no ranking
estadual, estando abaixo dela somente as regiões Norte de Minas e Je-
quitinhonha/Mucuri8. Por outro lado, o IDH-M de Governador Valada-
res é melhor do que o regional – expressando o desenvolvimento do
município, no período, e menor do que o da região metropolitana do
Vale do Aço (RMVA)9. Segundo a Fundação João Pinheiro (2004), con-
siderando-se os dois anos censitários em análise, o Vale do Aço apre-
sentou um IDH-M nos valores de 0,773 e 0,803, respectivamente. Os
valores da Região do Rio Doce são 0,656 e 0,739, respectivamente, e
de Governador Valadares são 0,717 e 0,772.

8 As outras regiões de planejamento são Triângulo, Central, Alto Paranaíba, Centro-oeste de


Minas, Sul de Minas, Mata e Noroeste de Minas.
9 Nela se encontram os municípios de Coronel Fabriciano, Ipatinga, Timóteo e Santana do Paraíso.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 357


As diferenças reveladas na variação dos índices dos IDH-Ms, no
interior da Região de Planejamento Vale do Rio Doce, são indicativas das
desigualdades sociais que permeiam o desenvolvimento do Estado de Mi-
nas Gerais. Esta situação permite a inferência de que estas desigualdades
se manifestam na forma de concentração de renda, pois, embora tenha
havido crescimento sócio-econômico do Estado, na década de 1990, isso
não produziu condições homogêneas para a totalidade das regiões que
o compõem. Essa situação pode ser observada, em Governador Valada-
res, através de outros indicadores sociais, que demonstram as condições
de desenvolvimento local. Eles revelam que a pobreza diminuiu, pois
o percentual da população com renda domiciliar per capita abaixo de
R$75,50 passou de 36,2% em 1991, para 26,8% em 2000. A renda per
capita média do município cresceu 45,23%; e houve um crescimento de
2,5% da parcela da população composta pelos 20% mais ricos. Em com-
pensação, cresceu a desigualdade social, pois o Índice de Gini, que em
1991 correspondia a 0,59, em 2000 ficava em torno de 0,62 (PROGRA-
MA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2003).
A desigualdade sócio-econômica é observada na organização do
espaço urbano. Segundo dados do UFMG/IPEAD e FAGV (2004), a ci-
dade de Governador Valadares era composta, em 2000, por 80 bairros,
alguns deles agregados, por serem recentes e não terem ainda clara-
mente definidos os seus limites territoriais. A população da área urbana
correspondia, naquela época, a 227.440 habitantes, ou seja, a 99% da
população da cidade, demonstrando o ajuste deste espaço ao que acon-
tece no país, onde se observa a tendência à concentração urbana.
Para compor o perfil sócio-econômico da cidade, foi realizada
uma pesquisa, que, baseada nos dados censitários de 2000, fez o levan-
tamento da renda e do nível de escolaridade dos chefes de domicílio
particulares permanentes. Observou-se que a renda mínima e máxima
desses chefes oscilava entre R$191,34 e R$2585,58, respectivamente.
Com base nestes dados, foram construídos os seguintes indicadores: ren-
da: baixa (R$191,34 a R$333.15); média-baixa (R$338,76 a R$446,15);
média-alta (R$472,15 a R$756,14) e alta (R4771,68 a R$2585,58). Na
variável escolaridade, tomaram-se como referência os indicadores: Sem
Curso; Alfabetização de Adultos; Fundamental Completo; Fundamental
Incompleto; Médio Completo; Médio Incompleto; Superior; Pós-Gra-
duado (UFMG/IPEAD e FAGV, 2004).

358 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


A pesquisa chegou à seguinte caracterização dos chefes de domi-
cílio: 71,50% deles são do gênero masculino; 62,28% enquadram-se na
faixa etária de 20 a 49 anos; 87,45% são alfabetizados, sendo que, den-
tre estes, 73,08% têm até o ensino fundamental completo ou incom-
pleto. O rendimento médio dos chefes de domicílio é de 4,21%, sendo
que 73,5% deles, recebiam, em 2000, de 0 a 5 salários mínimos. Outros
resultados conduzem à conclusão de que em sua maioria os chefes de
domicílio estão enquadrados nas categorias de renda baixa e média –
sendo que 51,25% deles estão nas classificações Renda Baixa e Média-
baixa, em oposição a 25% dos chefes de domicílio que enquadram-se
na classificação Renda Alta (UFMG/IPEAD e FAGV, 2004).
Compondo o cenário sócio-econômico de Governador Valadares,
outra variável surge como marca local: a violência e a criminalidade,
embora neste aspecto sejam enfatizadas, nas estatísticas nacionais, esta-
duais e locais, apenas as taxas de criminalidade violenta do município, a
partir da década de 1980. Este assunto será abordado a seguir.

2.1 - Caracterização de Governador Valadares nos estudos de base


local, estadual e nacional sobre a violência

Governador Valadares é um município que, desde a sua origem, car-


rega o estigma de ser um espaço violento. Vivendo a sua ascensão e apogeu
como pólo regional no período que se estende da década de 1940 à déca-
da de 1960, o seu desenvolvimento fundamentou-se, segundo o imaginá-
rio social dominante na cidade, entre o progresso e a violência.
Os registros escritos e a memória oral relacionam os crimes de
Homicídio como a marca mais característica da violência que reinava
no município, nos seus primeiros anos. Na atualidade, estudos reali-
zados sobre a distribuição de crimes violentos nas regiões de planeja-
mento de Minas Gerais revelam que, o Vale do Rio Doce e a cidade
de Governador Valadares, estão entre as áreas que apresentam as taxas
mais elevadas de crimes violentos no Estado.
Segundo o imaginário social dos moradores antigos de Governa-
dor Valadares, no primeiro momento a criminalidade local ajustava-se à
euforia em torno das possibilidades econômicas da cidade. Nos dias atu-
ais, ela se desenvolve em meio à relativa melhoria da qualidade de vida
da população, expressa no crescimento dos indicadores sociais apresen-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 359


tados pelos dados censitários dos anos de 1991 e 2000. Mas estes dados
também revelam a ampliação da desigualdade social e a vulnerabilidade
econômica do município, se considerado o desenvolvimento de outros
municípios e regiões de planejamento de Minas Gerais.
Se historicamente a cidade sempre se destacou no cenário mi-
neiro como produtora de inúmeros crimes, hoje ela se localiza, no con-
texto estadual e da nacional, entre os municípios com elevadas taxas
de crimes violentos. Neste sentido, um estudo relacionado à organi-
zação dessa categoria de crimes, ocorridos em Minas Gerais entre os
anos de 1980 e 1995, revelou que a Microrregião do Vale do Rio Doce
estaria entre as regiões mais violentas do Estado no que se refere às
taxas de Homicídio, e também entre aquelas de maiores taxas de Rou-
bos (ARAÚJO JR. E FAJNZYLBER s.d,). Em 1991 Governador Valadares
enquadrava-se entre os dez municípios mais violentos de Minas Gerais
(BEATO FILHO, 1998; FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, POLÍCIA MILI-
TAR DE MINAS GERAIS, UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS,
s. d.); e em 1998 o município se destacou por ocupar o 1º lugar no
ranking dos municípios da Região Rio Doce no que se refere às taxas de
Homicídio (RIGOTTI e AMORIM FILHO, s.d).
Dados sobre os crimes de Roubo, Assalto, Homicídio Consuma-
do e Homicídio Tentado, praticados em Governador Valadares, entre
os anos de 1998 e 2002, confirmam as análises produzidas por estu-
dos de base estadual. Agregando-se os crimes segundo as categorias
estudadas, observou-se que, considerando-se os anos limites do estu-
do, houve o crescimento das taxas em aproximadamente 50% (CAE-
TANO, SILVA E PINTO, 2005).
Outra conclusão produzida por este estudo informa que, parale-
lo ao crescimento das taxas de crimes interpessoais, há o crescimento
expressivo das taxas de crimes patrimoniais. Esta situação revelaria uma
nova dinâmica da criminalidade local, até então destacada pelas altas
taxas de Homicídio (CAETANO, SILVA E PINTO, 2005).
Em outro estudo, observa-se o crescimento do número de cri-
mes violentos, no período de 1998 a 2006 (CAETANO, 2007), pois a
comparação das taxas médias de índice de crimes/ano entre os perío-
dos de 1998-2002 e 2003-2006, revelou os valores de 566,9 crimes/
ano e 929,5 crimes/ano, respectivamente. A comparação entre as
taxas médias de crimes violentos ocorridos em Governador Valadares,

360 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


nos dois períodos de estudo, por crimes (CAETANO, 2007) demons-
trou que o crescimento percentual das taxas foi da ordem de 71%
para o Homicídio Consumado, 68% para Assalto; 66% para o Roubo,
e 35% para o Homicídio Tentado.
A relevância das taxas médias dos crimes de Homicídio Consuma-
do confirma as indicações comuns a outros estudos (RIGOTTI e AMO-
RIM FILHO, s.d.; BEATO FILHO, 1998; ARAÚJO JR. E FAJNZYBER, s.d.)
que apontam Governador Valadares não apenas como uma das dez
cidades mais violentas do Estado de Minas Gerais, mas também como
uma dentre as que apresentam taxas ascendentes de crimes violentos,
em particular no que se refere às taxas de Homicídio.
Estudos de base nacional também enfatizam a representação de Go-
vernador Valadares nas estatísticas da violência. Em um deles, Waiselfisz
(2008) analisa os números da mortalidade violenta no Brasil – incluindo aí
o que classifica como Acidentes de Trânsito, Homicídios e mortes por arma
de fogo, no período entre 1996 e 2006. Utilizando como fonte de infor-
mação o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), os resultados da
pesquisa demonstram que, no período em análise, houve o crescimento de
20% nos registros de caso de Homicídio, valor maior do que o percentual
de crescimento populacional, que ficou em torno de 16,3%.
Segundo o mesmo estudo (WAISELFISZ, 2008), 556 municípios
brasileiros (10% do número total de municípios) foram responsáveis, em
2006, por 73,3% dos casos de Homicídio no país. Em Minas Gerais esta-
riam 31 desses municípios, sendo que na escala dos municípios minei-
ros com as maiores taxas de Homicídio, Governador Valadares ocuparia
o 4º lugar. Quando os valores consideram as taxas de Homicídio juvenil,
por Estado, o município ocupa o 3º lugar entre os dez que apresentam
as maiores taxas do crime.
Considerando-se o índice de vitimização juvenil, Governador Va-
ladares ocupa o primeiro lugar no Estado e o 21º lugar no ranking dos
200 municípios do país que apresentam os maiores índices. O municí-
pio também se destaca na estatística dos Homicídios por arma de fogo:
está em 5º lugar no ranking mineiro (em relação a 12 municípios) e 45º
lugar no ranking nacional, em relação aos 200 municípios do país mais
violentos, nesta categoria (WAISELFISZ, 2008).
Em 2009, um novo estudo se dedicou à análise da distribuição
dos Homicídios nos 267 municípios do Brasil com população maior que

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 361


100.000 habitantes. Baseando-se na construção de um Índice de Ho-
micídios na Adolescência10 - IHA, os resultados da pesquisa localizam
Governador Valadares em 2º lugar no ranking dos 20 municípios que
apresentam os índices mais elevados (OBSERVATÓRIO DAS FAVELAS,
2009). Segundo a mesma fonte, há uma expectativa de que em um
período de sete anos, considerando-se o ano de 2006 como referên-
cia, ocorram no município 327 mortes por Homicídio, entre os adoles-
centes. Em Minas Gerais, outros quatro municípios se destacam neste
ranking: Contagem (13º lugar); Ibirité (17º lugar); Betim (19º lugar) e
Ribeirão das Neves (20º lugar).
Os dados demonstram a situação da violência, em Governador
Valadares. Orientadas por estas informações, novas pesquisas são pro-
postas no âmbito local e políticas públicas de prevenção e controle dos
crimes violentos são desenvolvidas pelo poder público estadual e muni-
cipal. Os programas e projetos voltam-se prioritariamente para a infância
e adolescência e são importantes instrumentos de combate à violência.
A reflexão aprofundada do problema demonstra, porém, a necessidade
de que novas pesquisas e políticas públicas sejam orientadas por me-
todologias mais elaboradas, que sejam capazes de produzir uma visão
ampliada do fenômeno da violência e da criminalidade urbana.

2.2 - Proposição de uma abordagem alternativa para a compreensão


do fenômeno da violência em Governador Valadares

As estatísticas sobre a violência ocorrida em Governador Valada-


res, nos anos recentes, revelam informações importantes sobre a dinâ-
mica da criminalidade violenta no município. Observa-se a coerência
entre os estudos desenvolvidos no âmbito estadual e local e isso pos-
sivelmente resulta do uso das mesmas fontes de dados, embora com
enfoques diferenciados.
Os estudos de base nacional também destacam os índices e taxas
de crimes violentos no município, enfocando particularmente a violên-
cia interpessoal – Homicídios Dolosos e Culposos, e a população adoles-
cente e jovem. Ao fazerem isso, prestam grande serviço à sociedade, à

10 Os dados de referência para a construção do IHA são oriundos do SIM e do IBGE e correspon-
dem, de maneira predominante, às informações do ano de 2006.

362 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


medida que demonstram a situação de vulnerabilidade desta parcela da
sociedade, pela condição de desenvolvimento em que se enquadram.
Além disso, proporcionam, com os relatórios de pesquisa, a orientação
de políticas públicas de prevenção e controle da violência.
Os limites das pesquisas se manifestam quando elas apresentam
uma visão reducionista do problema, fundamentada na apresentação
de dados de natureza tipicamente quantitativa. O que revelam são ín-
dices, taxas e percentuais que demonstram a evolução do fenômeno,
sem se dedicarem à contextualização dele, ou seja, à compreensão do
que ocorre a partir “de dentro” – aqui entendida como a comunidade
envolvida. Como conseqüência da adoção deste tipo de abordagem, as
estatísticas contribuem para a generalização de fatos marcados por histo-
ricidades distintas, que se perdem na descrição dos dados e contribuem
para a criação de muitos estigmas em relação a vítimas e agressores.
No que se refere especificamente ao caso de Governador Vala-
dares, observa-se que variáveis como tamanho populacional – o fato de
se inserir na categoria dos municípios brasileiros com população maior
que 100.000 habitantes; o processo de urbanização e a sua condição
sócio-econômica contribuem para que este município seja alvo dos es-
tudos nacionais que se dedicam ao levantamento dos municípios mais
violentos do país e de Minas Gerais.
Estes estudos, porém, deixam de abordar especificidades e inco-
erências internas ao desenvolvimento sócio-econômico, que podem se
transformar em importantes variáveis de explicação do fenômeno. Ao
descrever o ranking dos municípios brasileiros de maior incidência de
violência, Waiselfisz (2008) reconhece que, a partir de 1999, observa-
se uma mudança na dinâmica da criminalidade violenta. Segundo o
autor, se antes ela se concentrava nas grandes capitais e metrópoles,
nos anos recentes ela vem se interiorizando, exigindo, por isso, nova
abordagem técnico-científica e político-social do fenômeno. Esta deve
considerar as condições de desenvolvimento regional e o impacto dis-
so na organização da violência local.
[...] Isso parece resultar de uma dinâmica territorial específica que
ainda não é bem compreendida, mas que comporta provavel-
mente aspectos como a identidade regional, um clima favorável
ao espírito empreendedor, a existência de redes públicas e pri-
vadas ou a atração do meio cultural e natural. Essa nova dinâmi-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 363


ca territorial do desenvolvimento estaria também impactando a
distribuição geográfica da violência no país [...] (ABROMOVAY,
1998;1999 apud WAISELFISZ, 200,p. 8).

Diante das inúmeras variáveis que envolvem a questão da violên-


cia, entende-se que a abordagem quantitativa é frágil na sua capacidade
de explicar em profundidade o problema da violência e criminalidade.
Isso coloca a necessidade de que a abordagem qualitativa seja aplicada
aos estudos de problemas dessa natureza. Em relação à situação de Go-
vernador Valadares, o que se observa com a publicação dos resultados
das pesquisas é uma comoção social em torno das informações, que
oscila entre a indignação e a descrença, com predomínio da primeira.
Em ambos os casos há a tendência de se compreender que o problema
é de responsabilidade do Governo e que medidas enérgicas devem ser
tomadas para o enfrentamento dele. Além disso, espera-se que as medi-
das surtam efeito em curto prazo, o que é tecnicamente impossível.
A compreensão mais profunda do problema deve direcionar-se
tanto para a dimensão histórica dele, como para as condições de or-
ganização do município, na atualidade. No que se refere ao aspecto
histórico, observa-se que à adoção de uma estratégia violenta de ocu-
pação do território, no século XIX, seguiu-se a construção de um ima-
ginário sobre a violência, no município (ESPINDOLA, 2005; SIMAN,
1988). Isso deve ser objeto de análise, no sentido de explicitar em
que medida este imaginário colabora para a manutenção de padrões
elevados de violência local.
Além da análise histórica, é necessário que novos estudos, emba-
sados na configuração atual do município, focalizem não o fenômeno
da violência em si, mas a sociedade como um todo. Um dos pressu-
postos teóricos que motiva este olhar sobre o objeto em análise parte
da compreensão de que o espaço urbano é o resultado da interação de
indivíduos e instituições sociais que se localizam em lugares, sentimen-
tos e valores diferenciados, que, em confronto, formam a tessitura das
relações instituídas (TELLES, 2007). Nesta perspectiva, entende-se que
o urbano é caracterizado por
“[...] trajetórias habitacionais, percursos ocupacionais, desloca-
mentos cotidianos nos circuitos que articulam trabalho, moradia
e serviços urbanos. Três dimensões entrelaçadas nas trajetórias
individuais e familiares. [...] na ótica dos atores, essas formas

364 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


de mobilidades não são apenas interdependentes, mas diversas
facetas de um processo único de reorganização das condições
de existência. Seus eventos precisam, portanto, ser situados nos
tempos e espaços em que as histórias se desenrolam. É por essa
via que se deixam ver como pontes de condensação de tramas
sociais que articulam histórias singulares e destinações coletivas.
Tempos biográficos organizam trajetórias que individualizam his-
tórias de vida e estão inscritos em práticas situadas em espaços e
circuitos urbanos que as colocam em fase com tempos sociais e
temporalidades urbanas.” (TELLES, 2007, p. 23-24).

Este enfoque entende o problema da violência como parte do pro-


cesso cultural, no sentido que lhe é dado por Geertz (1989). Para ele, é
através do comportamento humano, que se manifesta na ação dos indiví-
duos, que se articula a cultura. Aquele – o comportamento, é, ao mesmo
tempo, estruturante e estruturado pelo padrão da vida corrente, fazendo
configurar um todo coerente que é o sistema cultural. Assim, pode-se de-
finir a cultura como um fenômeno público, que, de maneira consciente
ou inconsciente, faz-se presente em todas as mentes humanas.
“[...] São esses circuitos que as trajetórias urbanas permitem
apreender e que interessa compreender: a natureza de suas
vinculações, mediações e mediadores, agenciamentos da vida
cotidiana que operam como condensação de práticas e relações
diversas” (TELLES, 2007, p. 26).

Portanto, refletir sobre a violência comum ao espaço urbano exi-


ge a compreensão de que este ambiente caracteriza-se pela interseção
de diferentes categorias e agentes sociais, que, ao interagirem, cons-
troem sistemas e redes de relações (VELHO, 2003). Estas sustentam
a vida em sociedade e transformam as aparentes contradições e/ou
oposições de interesses em parte de um todo coerente e fundamental
ao funcionamento social.
O urbano é o espaço da heterogeneidade, onde os indivídu-
os e suas biografias demarcam o seu lugar no meio sociocultural
(VELHO, 2003), muitas vezes em oposição a outros indivíduos e às
instituições sociais. A experiência individual é o resultado de uma
construção histórico-social, que, ao interagir com outros indivíduos
e suas representações, contribui para a composição de uma rede de
significados que sustenta a vida em sociedade, configurando, assim,
a cultura (VELHO, 2003; KUPER, 2002).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 365


Ao compreender as cidades como “sistemas de redes e relações”,
reconhece-se a importância que os sujeitos sociais e suas trajetórias de
vida têm, como prerrogativa para a compreensão desses espaços:
[...] Dessa forma, os indivíduos, na sua singularidade, também
se tornaram matéria da antropologia, à medida que eram per-
cebidos como sujeitos de uma ação social constituída a partir
de redes de significados. Em lugar de considerar os indivídu-
os como determinados por instâncias englobantes anteriores,
passava-se a estudá-los como intérpretes de mapas e códigos
socioculturais, enfatizando-se uma visão dinâmica da socieda-
de e procurando-se estabelecer pontes entre os níveis micro e
macro (VELHO, 2003, p.16).

As identidades urbanas devem ser percebidas como uma com-


plexidade marcada pela multidimensionalidade do mundo real, onde
se manifestam diferentes níveis e províncias de significados (VELHO,
2003). Neste contexto, aplica-se o conceito de “Mapa Cultural” propos-
to por Ortiz (2000, p. 72): “[...] um espaço ocupado por unidades di-
ferenciadas, no qual a dinâmica global se faz a partir do movimento de
cada uma das partes”. Segundo este autor, os mapas culturais são espa-
ços demarcados territorialmente, sendo que as partes estão em contato
permanente, embora existam limites internos e externos a eles. Os pri-
meiros caracterizam-se pela demarcação das identidades que definem
cada “foco cultural”, e os externos expressam as fronteiras territoriais em
que podem se projetar socialmente.
Nesta perspectiva analítica, o pesquisador é motivado pela ne-
cessidade de compreender como os processos sociais se estruturam
(WEBER, 1991), a partir da interação de sujeitos que se localizam em
espaços ou territórios diferenciados e aparentemente antagônicos. En-
tende-se que estes, ao se posicionarem em lugares socialmente dife-
renciados, contribuem para a configuração de uma realidade que, ao
mesmo tempo que se impõe a eles, são produtos da inter-relação entre
as várias ações sociais de sujeitos subjetivamente motivadas.
A adoção da abordagem qualitativa na análise do fenômeno da
violência urbana é a condição para que ele seja não apenas entendido
em profundidade, mas possa produzir mecanismos eficazes de resolução
do problema, que tanto incomoda a sociedade e gera expressivos gastos
governamentais voltados para a sua prevenção e controle. Neste senti-
do, não se pode negar, no processo de construção de um saber sobre a
366 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
violência em Governador Valadares, como os sujeitos interagem entre si e
com as instituições sociais, e, a partir daí, constroem saberes relacionados
à tessitura do espaço em que habitam. Fenômenos como a emigração
internacional; a existência de 15 bolsões de pobreza no município (AVSI-
BRASILE; PREFEITURA MUNICIPAL DE GOVERNADOR VALADARES;
CDM, 2002); as condições de empregabilidade; a percepção social do
funcionamento do sistema de segurança pública; o sentimento de perten-
cimento; as características do sistema viário; e as condições de realização
de interesses individuais, entre várias outras questões, são variáveis impor-
tantes para a compreensão do problema da violência local.
Assim, é fundamental que o conceito de violência seja ampliado
para além do que se define como criminalidade violenta, e que se analise
se não há vínculos de continuidade entre as várias faces da violência, no
contexto local (MINAYO, 1990). Só assim será possível uma compreen-
são mais abrangente e menos reducionista e estigmatizante da violência.
Cabe a esta nova abordagem romper com a visão globalizante
do problema, que muitas vezes impõe a aplicação de modelos “estran-
geiros” de enfrentamento do problema, imaginando-se poder alcançar
os mesmos resultados em situações apenas aparentemente iguais. Mas,
para isso, deve-se romper com a idéia corrente, tanto no âmbito do
Estado como da sociedade em geral, de que o saber sobre a violência
tem como função primordial a ordem social, através do controle dos po-
tenciais ofensores. É só nesta perspectiva que os percentuais, taxas e ín-
dices se justificam como demonstrativos da situação. Por outro lado, ao
focalizarem o agressor como principal alvo das políticas públicas, e não
as estruturas sociais, que são ao mesmo tempo produtoras e produtos
da interação social dos vários indivíduos, as respostas governamentais e
sociais à violência produzem parcos resultados em relação às dimensões
reais do problema. O que deve ser objeto de análise, portanto, é o que
a violência tem a informar sobre as condições de organização da socie-
dade, nas várias territorialidades em que se manifestam.

Considerações finais

Este texto iniciou com a descrição do que é violência e de como


este fenômeno foi historicamente forjado no processo de modernização
das sociedades ocidentais. Com base nos estudos de Antony Giddens

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 367


e Norbert Elias, conclui-se que o sentimento socialmente estabelecido
em relação à violência, na atualidade, reside em grande parte no fato
de que as sociedades modernas são sociedades pacificadas, ou seja, as-
sentadas no efetivo controle da violência e fundadas em um sentimento
de segurança ontológica, segundo a qual a sociedade está protegida da
irrupção de fenômenos violentos.
Na perspectiva histórico-social, este sentimento fundamenta-
se na percepção de que cabe ao Estado-nação gerenciar a violência,
sobretudo através da aplicação rigorosa da lei aos indivíduos que pas-
sam a ser definidos como “desviantes”, por ameaçarem os princípios
da liberdade individual e da cidadania. Neste contexto, observa-se a
progressiva criminalização da violência, sobretudo quando os alvos
dos agressores são os indivíduos e os bens materiais. A representação
social da violência como algo negativo está disseminada internacio-
nalmente, principalmente se considerado o contexto ocidental.
Esta representação também contribui para que, a partir das úl-
timas décadas do século XX, sejam ampliados os estudos e discus-
sões sobre o problema da violência, em particular da sua manifestação
como criminalidade violenta. Com base na abordagem quantitativa
do problema, muitos deles têm revelado o crescimento das taxas de
crimes através dos tempos. No Brasil, as pesquisas focam especifica-
mente a manifestação do problema em municípios com população
maior de 100.000 habitantes. Os resultados, que, na maioria das ve-
zes, revelam taxas ascendentes, têm orientado políticas públicas de
prevenção e controle da violência.
Governador Valadares está entre os municípios que, no âmbito
estadual e nacional, produzem elevadas taxas de crimes violentos,
atingindo especialmente a população adolescente, tanto na condição
de agressores como de vítimas. Esta situação ocorre em meio a uma
trajetória que, segundo relatos históricos (ESPINDOLA, 2005; SIMAN,
1988), permeia o processo de formação da cidade e se configura, nos
dias atuais, como parte de um contexto sócio-econômico marcado
por desenvolvimento e ampliação da desigualdade social (PROGRA-
MA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2003;
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2004; SIMÃO, 2004). Observa-se
que os resultados das pesquisas desconsideram as especificidades dos
contextos em que a violência ocorre, embora haja muitas disparida-

368 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


des entre os vários municípios identificados como os mais violentos,
no Brasil. Além disso, as dimensões estruturais do problema não são
abordados, sendo o enfoque principal a vítima e o agressor, como se
eles não tivessem uma história e como se esta não tivesse vínculos de
proximidade com o contexto em que habitam.
O resultado da divulgação das estatísticas criminais é a disse-
minação do medo, da indignação e da intolerância em relação aos
agressores. No que se refere à circulação midiática delas, observa-se o
uso das estatísticas como mercadoria, forjando opiniões e contribuin-
do para a disseminação de discursos, na maioria das vezes, discrimi-
natórios. Diante deste fato, considera-se a importância de que novos
estudos sobre a violência e a criminalidade adotem a metodologia
qualitativa como modelos de análise. Dessa forma, poder-se-á alcan-
çar um resultado menos globalizante e mais profundo do problema,
o que contribui para a implementação de medidas mais efetivas de
enfrentamento dele, com projeções de médio e longo alcance.
Espera-se que em Governador Valadares a análise da violência
alcance uma visão mais aprofundada do problema, em que as inúmeras
variáveis que se colocam como elementos de investigação sejam alcan-
çadas. Na nova abordagem metodológica, deve-se ter como referências
as especificidades da trajetória histórica do município e as condições de
organização econômica e sócio-culturais locais.

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372 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


A nova questão social: uma proposta de análise
Rita Cristina de Souza Santos1

Introdução

P
obreza, vulnerabilidade, desigualdades sociais, direitos, ci-
dadania – questões de inquietação de tantos que se de-
bruçam sobre a realidade social brasileira, dentro das mais
diversas esferas políticas dos âmbitos federal, estadual ou muni-
cipal, na tentativa de obter respostas “para além do que os indi-
cadores mostram e por trás da soberana objetividade dos dados
estatísticos” (TELLES, 1999, p. 10).
Entretanto, como compreender a natureza dos problemas sociais
que hoje nos cercam, e também às nações avançadas? Como compre-
ender a natureza da “Nova Questão Social?” O que significa a expressão
“Nova Questão Social”? Como se caracteriza a “Nova Questão Social”?
Segundo Rosanvallon (1998), a expressão foi criada ao fim do sécu-
lo XIX, em referência às disfunções da sociedade industrial emergente. A
condição do proletariado, portanto, sofreu nessa época profundas trans-
formações a partir das conquistas das lutas sociais. O desenvolvimento do
Estado-Providência não chegou, contudo, a vencer a antiga insegurança
social e a eliminar o medo do futuro. Assim,
Ao fim dos Trente Glorieuses, terminada a década de 1970, a
utopia de uma sociedade livre das necessidades, de um indivíduo
protegido contra os principais riscos de existência, parecia estar
ao nosso alcance. No entanto, já no início da década seguinte, o
crescimento do desemprego e o surgimento de novas formas de
pobreza pareciam, ao contrário, afastar-nos desse ideal (p. 23).

Não existia apenas simples retorno aos problemas do passado.


As antigas categorias de exploração do homem não poderiam enqua-
drar os novos fenômenos da exclusão. Surgia, portanto, uma Nova
Questão Social, traduzida:

1 Psicóloga (UFRJ), Mestre em Educação (PUC-RIO), Doutora em Saúde Coletiva (IMS/UERJ). Pro-
fessora Adjunta e pesquisadora da Universidade do Vale do Rio Doce – UNIVALE – FHS - Progra-
ma de Mestrado em Gestão Integrada do Território. E-mail: ritacris.prof@yahoo.com.br

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 373


[...] pela inadaptação dos antigos métodos de gestão do social,
como testemunha o fato de que a crise do Estado Providência,
diagnosticada no fim dos anos 1970, mudou de natureza, inician-
do uma nova fase a partir do princípio da década de 1990 (p. 23).

Castel (2001) apresenta a “Questão Social” como uma inquieta-


ção quanto à capacidade de manter a coesão de uma sociedade. Coesão
esta que sofre ameaças de ruptura, em razão da existência de determi-
nados grupos de pessoas que dependem de intervenções sociais distin-
tas, de acordo com o critério de serem ou não capazes de trabalhar.
Velhos indigentes, crianças sem pais, estropiados de todos os ti-
pos – cegos, paralíticos, escrofulosos e idiotas – compõem um primeiro
perfil de população que não supre, por si mesma, suas necessidades
básicas, porque não pode trabalhar (CASTEL, 2001).
Caracteriza-se, assim, segundo o autor, uma teoria da desvanta-
gem, no sentido amplo do termo. Grande problema: onde, exatamen-
te, passaria a linha divisória entre a capacidade e a incapacidade de
trabalhar? Velhos cegos, por exemplo, teriam condições de sobreviver
por seus próprios meios? “Os infortunados sempre serão suspeitos de
quererem viver à expensa dos ricos.” (p. 41).
Deve-se, portanto, compreender a Teoria da Desvantagem no sen-
tido metafórico, pois embora a categoria seja heterogênea quanto às con-
dições que levam à situação de impossibilidade – deficiência física ou
psíquica, manifestada em virtude da idade, de enfermidades, situações
familiares ou sociais desastrosas –, existe coerência quanto ao tipo de tra-
balho qualificado por esse sentido metafórico. Prossegue Castel (2001):
Essas populações isentas de obrigação de trabalhar são os clientes
potenciais do social-assistencial. Tal assistência pode representar
problemas financeiros, institucionais e técnicos difíceis. Não cria
problemas de princípio. Desde que consiga fazer reconhecer sua
incapacidade, o indivíduo pode ser assistido, ainda que, na práti-
ca e amiúde, esse tratamento se revele insuficiente, inadequado,
condescendente e até mesmo humilhante. Porém, se sempre é
fonte de embaraços, a existência desse tipo de população não
questiona, de modo fundamental, a organização social (p. 42).

Um segundo perfil de grupo de assistidos apontado por Castel


(2001) é composto por aqueles que, apesar de revelarem a capacida-
de de trabalhar, não o fazem. Inicialmente apresentam-se sob a figura
de indigente válido, ou seja, carente, dependente de auxílio, embora
374 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
sem condições de beneficiar-se dos dispositivos concernentes aos as-
sistidos (isentos da obrigação de autossustento).
Sem trabalho e fora da área de assistência, o indigente válido
é colocado em situações contraditórias: se estrangeiro-forasteiro-sem
vínculos, não se beneficia das redes de proteção próximas, que as-
seguram aos autóctones o atendimento, ainda que mínimo, de suas
necessidades elementares.
Torna-se, portanto, o desfiliado por excelência, em situação de
vagabundagem na sociedade pré-industrial do ocidente cristão, a qual
vai da metade do século XIV às transformações do fim do século XVIII.
Entretanto, de acordo com Castel (2001), encoberta pelo rótulo
de vagabundagem, encontramos a realidade sociológica de um perso-
nagem trabalhador, que vive a instabilidade do emprego e caminha em
busca de uma ocupação que se esquiva: a questão da condição do as-
salariado. Condição esta que exprime, na visão do autor:
[...] a necessidade crescente de recorrer ao assalariamento e ao
mesmo tempo, a impossibilidade de regular uma condição sa-
larial, devido à persistência de tutelas tradicionais que compri-
mem o trabalho em redes rígidas de obrigações sociais e não
econômicas (p. 43, 44).

O caminho traçado desde as tutelas até o contrato de trabalho é lon-


go e vai desembocar na modernidade liberal, ao fim do século XVIII, como
nos aponta o autor. Percorrer esse caminho é, na visão de Castel (2001),
[...] embrenhar-se pelas formas complexas da organização do traba-
lho da sociedade industrial, o trabalho regulado, trabalho forçado,
desenvolvimento de núcleos esboçados e fragmentários, mas sempre
circunscritos e controlados, condição de assalariado livre (p. 44).

Dessa forma, as proteções vinculadas ao trabalho regulado não ga-


rantem a condição da maioria dos que vivem do trabalho de seus braços.
Condição caracterizada por uma vulnerabilidade de massa, que conjuga a
precariedade do trabalho, a fragilidade dos suportes de proximidade, e o
enfraquecimento das proteções, em substituição ao excesso de coerções.
Castel (2001) resume a construção da “Questão Social”, ao afir-
mar que inicialmente:
[...] havia as tutelas e as coerções que o Estado absolutista e a
organização tradicional dos ofícios conspiravam para manter. No
fim – final do século XVIII – dá-se o advento dos contratos e da

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 375


liberdade de empreender, que o princípio da governabilidade
liberal, modelado pelo Iluminismo, impõe aos fatos através da
revolução política [...] A tarefa de uma política social a partir do
século XIX será, realmente, ancorar esta estrutura muito friável do
livre contrato de trabalho (p. 44, 45).

Demasiadamente forte e selvagem, a liberdade que favorecia


apenas as empresas gerava uma face sombria para todos aqueles que se
encontrassem sem vínculos ou suportes, privados de qualquer tipo de
proteção e de qualquer reconhecimento: a individualidade negativa.
Como resposta a tal situação, construiu-se assim, na ótica do au-
tor, o Estado Social, segundo o qual é possível conjurar os riscos, por
meio de sólidos sistemas de garantias. Não tão sólidos, no entanto, por-
que vão perdendo gradativamente seus poderes integradores.
Logo, o acompanhamento das rupturas e recomposições repre-
senta o caminho mais rigoroso para chegar à problemática contemporâ-
nea, decorrente em especial da perda do poder integrador das regula-
ções tecidas em torno do trabalho.
Assim, através de Castel (2001), podemos compreender que se
opera uma reviravolta total da sociedade pré-industrial à sociedade pós-
industrial. Do excesso de coerções ao enfraquecimento das proteções,
constitui-se a vulnerabilidade.

A Nova Questão Social pela lente de Arendt

Ao discutir em seu livro, A Condição Humana, Arendt (2000)


afirma que a Era Moderna trouxe a glorificação teórica do trabalho,
resultando na transformação efetiva de toda a sociedade em uma so-
ciedade operária2.
Sociedade operária que abriga o sonho de libertar-se dos grilhões
do trabalho desenvolvido no interior das fábricas - visto como um fardo
e já escasso - e ingressar nas atividades que considera superiores e mais
importantes. Sonho que, no entanto, se revela ilusório, pois além de essa
sociedade desconhecer os mecanismos necessários para acesso a tais ati-
vidades, estas últimas na realidade mostram-se igualmente escassas.

2 Arendt (2000) frisa que a Era Moderna não coincide com o mundo moderno. A primeira come-
çou cientificamente no século XVII e terminou no limiar do século XX, ao passo que o mundo
em que vivemos, o mundo moderno, surgiu com as primeiras explosões atômicas.

376 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Trata-se de uma sociedade igualitária, porque:
[...] é próprio do trabalho nivelar os homens, já não existem
classes nem uma aristocracia de natureza política ou espiritual
da qual pudesse ressurgir a restauração das outras capacidades
do homem. Até mesmo presidentes reis e primeiros-ministros
concebem seus cargos como tarefas necessárias à vida da so-
ciedade; e, entre os intelectuais, somente alguns indivíduos
isolados consideram ainda o que fazem em termos de traba-
lho, e não como meio de ganhar o próprio sustento (ARENDT,
2000, p. 12, 13).

Depara-se, portanto, na visão da autora, com a possibilidade de


uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, única atividade que
lhes resta. Os novos supranumerários, os inúteis do mundo, na con-
cepção de Castel (2001).
Assim, a liberação da força de trabalho não se restringiu a cer-
tas classes da sociedade, nem a apropriação resultou em satisfação
das necessidades e desejos. O acúmulo de capitais infiltrou-se por
toda a sociedade, dando início a um fluxo constante de aumento
de riqueza, o qual se tornou possível porque o mundo e a própria
mundanidade do homem foram (e continuam sendo) sacrificados
(ARENDT, 2000).
Arendt (2000) classifica o sacrifício-alienação em estágios. O
primeiro é caracterizado pela crueldade, pela miséria e pela pobreza
material que atingiram os trabalhadores pobres, despojados da dupla
proteção da família e da propriedade – pedaço de mundo que, até o
advento da Era Moderna, lhes pertencia, bem como a todos os seus, e
abrigava em seu interior não só o processo vital individual, mas também
a atividade de labor sujeita às necessidades desse processo.
Cabe o questionamento: quem são os trabalhadores pobres na
atualidade? De um ponto de vista meramente descritivo, como aponta
Zaluar (2000), os trabalhadores pobres seriam todos aqueles incluídos
nas faixas de renda mais baixa.
Entretanto, o que poderia ser considerado como faixa de renda
mais baixa, em pleno século XXI, dentro da realidade brasileira? Diante
de tantas possibilidades de respostas, optei pelas informações do Atlas de
Desenvolvimento Humano no Brasil, publicação do Programa das Na-
ções Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, que nos fornece também
dados mais aprofundados sobre o perfil dos municípios brasileiros.
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 377
Através dessa publicação, obtém-se a informação de que a pobre-
za é medida pela proporção de pessoas com renda domiciliar per capita
inferior a R$ 75,50, equivalente à metade do salário mínimo vigente em
2000. Considera-se como renda mensal domiciliar a soma dos rendi-
mentos mensais dos moradores da unidade domiciliar, excluindo-se os
rendimentos das pessoas cuja condição no domicilio seja de pensionis-
ta, empregado doméstico, ou parente de empregado doméstico.
Embora a renda per capita média do município de Governador
Valadares (MG) tenha crescido 45,23%, passando de R$ 212,19 em
1991, para R$ 309,02 em 2000, e o percentual de pobres tenha dimi-
nuído 25,86%, passando de 36,15% em 1991, para 26,80% em 2000,
a intensidade da pobreza3, bem como a intensidade da indigência4,
aumentaram de uma década para outra – de 39,90% para 42,78%;
e de 31,17% para 47,78%, respectivamente. O índice de Gini passou
de 0,59 em 1991, para 0,625 em 2000. Esses números podem indicar
tendência ao aumento da desigualdade, caso persistam os mesmos fato-
res estruturais e conjunturais na economia local e nas políticas públicas
municipais e estaduais.
Segundo Rocha e Tolosa (1991), o rendimento oriundo do tra-
balho constitui a principal fonte de renda dos indivíduos, sejam estes
pobres ou não-pobres. Entretanto para os pobres, a dependência da
renda de trabalho é muito maior; além desse aspecto, o fato de ser
pobre resulta em inserção inadequada no mercado de trabalho, em vir-
tude das características deste último (subemprego, trabalho informal,
desemprego, trabalho precoce) e do próprio indivíduo (gênero, etnia,
nível de escolaridade). Características presentes também na realidade
do município em estudo.
Rocha (1992) esclarece que a crescente informalidade (percenta-
gem de empregados sem carteira de trabalho e trabalhadores por conta
própria não cobertos pela seguridade social) está intimamente associada

3 Intensidade da Pobreza é a distância que separa a renda domiciliar média per capita dos in-
divíduos pobres (com renda domiciliar per capita inferior à linha de pobreza – R$ 75,50) do
valor da linha de pobreza – medida em termos de seu percentual do valor. (PNUD – Atlas do
Desenvolvimento Humano no Brasil).
4 Intensidade da Indigência é a distância que separa a renda domiciliar média per capita dos in-
divíduos indigentes (renda familiar per capita inferior a R$ 37,75) do valor da linha de indigên-
cia. O indicador aponta o quanto falta para um indivíduo deixar de ser considerado indigente.
(PNUD / Atlas do desenvolvimento Humano no Brasil).

378 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


ao declínio do emprego nas indústrias, ou seja, no setor secundário, bem
como à terceirização em atividades de baixa produtividade e baixa remu-
neração, principalmente no comércio e nos serviços não especializados.
Voltemos aos estágios do sacrifício-alienação propostos por Arendt
(2000). O segundo estágio caracteriza-se pela transformação da socieda-
de em sujeito do novo processo vital, em substituição à família. Assim,
[...] a participação numa classe social substituiu a proteção que
antes era oferecida pela participação numa família, e a solidarie-
dade social passou a ser substituta muito eficaz da solidariedade
que antes reinava na unidade família. [...] Uma vez que a socie-
dade passa a substituir a família, os critérios de sangue e terra
devem governar as relações entre os seus membros; a homoge-
neidade da população e seu arraigamento ao solo passam a ser os
requisitos do estado nacional em toda parte (p. 268, 269).

O terceiro e último estágio é apontado pela autora como o de-


clínio do sistema de estados nacionais europeus; o encolhimento eco-
nômico e geográfico da Terra, transformando em fenômenos globais a
prosperidade, mas também a depressão; a transformação da humanida-
de em entidade existente, cujos membros podem se encontrar em curto
tempo, nas mais distantes pontas do globo.
Arendt (2000) alerta-nos, no entanto, para as consequências do
processo de alienação no mundo, desencadeado pela expropriação e
pelo crescente acúmulo de riquezas.
Os homens não podem ser cidadãos do mundo como são cidadãos
dos seus países, e homens sociais não podem ser donos coletivos
como os homens que têm um lar e uma família. São donos de sua
propriedade privada. A ascensão da sociedade trouxe consigo o
declínio simultâneo das esferas pública e privada; mas o eclipse de
um mundo público comum, fator tão crucial para a formação da
massa solitária e tão perigoso na formação da mentalidade, aliena-
da do mundo, dos modernos movimentos ideológicos de massa,
começou com a perda, muito mais tangível, da propriedade priva-
da de um pedaço de terra nesse mundo (p. 269).

Respostas para tamanha questão jamais deverão ter apenas por


base considerações teóricas ou a opinião de uma só pessoa, pois não
existe solução única possível. Impõe-se, portanto, a reflexão sobre o
que nós temos feito. Afinal, “a irreflexão – a imprudência temerária, ou
a irremediável confusão, ou a repetição complacente de verdades que
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 379
se tornaram triviais e vazias – parecem ser uma das principais caracterís-
ticas de nosso tempo” (ARENDT, 2002, p. 13).
Analisar os múltiplos olhares sobre a pobreza, bem como alguns
aspectos que caracterizam a população pobre valadarense serão os pró-
ximos passos neste artigo.

Afinal como se define e se mensura o fenômeno pobreza?


Quem são os pobres em Valadares?

La pobreza se encuentra directamente relacionada tanto com


los niveles y patrones de empleo como com lãs desigualdades
y processos de discriminación existentes em la sociedad. A su
vez, lãs diferentes formas que adopta la discriminación están
estrechamente asociadas com los fenômenos de exclusión so-
cial causantes de la pobreza. Son, además, responsables de la
superposion de distintos tipos de vulnerabilidad, así como de
la creación de poderosas barreras adicionales que impeden a
los personas y grupos discriminados superar su situción de po-
breza. Los sectores discriminados san más vulnerables frente a
la pobreza que otros y sus carências sociales y econômicas son
también más severas. (OIT, 2003. p. 84).5

O conceito de pobreza, para Tolosa (1991), deve ser definido e


mensurado de forma a evitar a exclusividade de sua dimensão econô-
mica, incluindo também os aspectos social, cultural e biológico. Assim,
em sentido mais amplo, “a cultura da pobreza refere-se a uma atitude
de vida adquirida em ambiente social e histórico, caracterizado pela
ausência de participação e integração nas principais instituições da so-
ciedade” (p. 108).
Na definição mais restrita, Tolosa (1991) propõe a idéia de que
pobreza estaria associada a restrições severas, impostas aos indivíduos e
suas famílias na escolha e no acesso a bens e serviços. Admite-se, nessa
linha de raciocínio, que a renda, ou melhor, a insuficiência de renda

5 A pobreza se encontra diretamente relacionada tanto aos níveis e padrões de emprego, quanto
às desigualdades e aos processos de discriminação existentes na sociedade. Por sua vez, as di-
ferentes formas adotadas pela discriminação estão estreitamente associadas aos fenômenos de
exclusão social causadores da pobreza. São, ademais, responsáveis pela superposição de dis-
tintos tipos de vulnerabilidade, assim como pela criação de poderosas barreiras adicionais que
impedem que pessoas e grupos determinados superem sua situação de pobreza. Os setores
discriminados são mais vulneráveis do que outros diante da pobreza, e suas carências sociais e
econômicas são também mais severas. (tradução nossa)

380 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


representaria adequadamente deficiências nutricionais e de acesso aos
serviços de infraestrutura social. Embora se admita que, do ponto de
vista metodológico, esse critério de associação de renda e pobreza seja
criticado por vários autores.
Abranches (1985) também caracteriza o fenômeno pobreza como
a destituição de meios de subsistência satisfatória; tal fenômeno apre-
senta como parâmetro estruturador, intrínseco à sua lógica de formação,
a privação absoluta. Assim, a pobreza “está intimamente associada ao
padrão vigente de consumo e aos mecanismos de distribuição de bens
e serviços fora dos circuitos normais do mercado, através das políticas
de cobertura social” (p. 46).
Expõe ainda Tolosa (1991) o fato de que a pobreza poderá ser
entendida em termos relativos, quando as desigualdades na distribuição
de renda forem medidas pelas diferenças entre as participações relativas
dos vários grupos na população total e na renda agregada.
Segundo as palavras do mesmo autor:
a representação gráfica é conhecida como curva de Lorenz. Nos
eixos coordenados são representadas as porcentagens (ou partici-
pações relativas) cumulativas dos vários grupos (geralmente decis)
na população total e na renda agregada. A distribuição eqüitativa
seria então representada pela diagonal principal, ou seja, quan-
do as participações relativas de vários grupos na população e na
renda forem rigorosamente iguais. Qualquer desvio em relação
àquela diagonal será representado por uma curva convexa defini-
da entre a origem e os 100% da população e da renda (p. 134).

O autor esclarece também que existem alguns indicadores de


pobreza, como o de Gini6 e o de Theil - este último mais difundido,
porque permite a decomposição em partes aditivas. O primeiro, o coe-
ficiente de Gini, nada informa sobre níveis absolutos de renda, apenas
sobre desigualdades relativas na distribuição.
Além dos termos relativos, a pobreza também pode ser explicada
em termos absolutos, apesar do alto custo das pesquisas de orçamentos

6 O coeficiente de Gini para determinada distribuição de renda medirá desvios em relação a


uma distribuição perfeitamente equitativa. Quanto mais elevado o Gini, maior a pobreza re-
lativa. O coeficiente mede a razão entre o numerador – área compreendida entre a curva de
Lorenz e a diagonal principal, e o denominador – área do triângulo equilátero definido pela
diagonal principal e pelo eixo das abscissas. Seu intervalo de variação está entre 0 (perfeita
igualdade) e 1 (desigualdade máxima). Fontes: Tolosa (1991), PNADs-IBGE-2003.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 381


familiares requeridas para tal tarefa. “A idéia é medir desvios da renda
dos indivíduos, famílias ou grupos em relação à linha de pobreza ge-
ralmente definida a partir de critérios nutricionais e antropométricos.”
(TOLOSA, 1991, p. 108, 109).
Segundo Abranches (1985), faz-se necessário explicar melhor esse
ponto de interpretação de números relativos e absolutos:
A melhoria nas proporções da pobreza relativa das popula-
ções carentes é significativa em si mesmo, pois indica que
uma parcela das pessoas e das famílias destituídas logrou
melhorar, ainda, que em pequena escala, suas chances de
vida. Entretanto, o número absoluto dos pobres também tem
relevância intrínseca: em primeiro lugar, porque diz respeito
a seres humanos em condições miseráveis; em segundo lugar,
porque as estratégias de erradicação da pobreza devem ter
como alvo esse número absoluto, tanto no sentido do com-
bate à pobreza, quanto no sentido do cálculo e programação
dos gastos necessários (p. 33).

Portanto, para o autor, existe grande diferença entre relativo e


absoluto, quando se comparam os meios rural e urbano, porque as mu-
danças relativas são mais eloquentes que as coincidências numéricas.
Existe, assim, forte predomínio de grupos empobrecidos no conjunto
de populações rurais, o que determina um contexto socioeconômico
e político mais deprimido, de maior destituição, e com mais escassas
estratégias de ação.
As características econômicas do meio rural, na visão de Abran-
ches (1985), são menos sensíveis à melhoria dos níveis de emprego e
renda, assim como ao acesso a bens e serviços essenciais (saúde, edu-
cação). Além desse aspecto, a forte concentração da pobreza nas áreas
rurais contribui progressivamente para o agravamento das condições de
vida. Marcantes desigualdades de oportunidades são reflexos das dife-
renças entre os meios rural e urbano.
Palavras de Abranches (1985): “disparidades relativas indicam desi-
gualdades reais e concretas entre as populações urbana e rural” (p. 33).
Estudos do CEPAL (2004) apontam o fato de que a maioria dos
pobres na América Latina vive nas cidades e, no entanto, a incidência
de pobreza continua mais elevada na zona rural. Países como Brasil,
Colômbia, México e Venezuela revelam aproximadamente metade da
população rural na situação de pobreza.
382 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
Constituem fatores apontados pelo CEPAL (2004) como geradores
de índices de pobreza rural, entre outros: os baixos níveis de produtivi-
dade da população ocupada em atividades agrícolas, influenciados pela
migração rural urbana – os jovens de maior nível educacional deslocam-
se para as cidades, e permanecem no campo os adultos com menor
grau de instrução; a falta de acesso a comunicações; a dificuldade de
acesso a serviços básicos; as atividades agropecuárias com deficiências
tecnológicas; a deterioração dos solos explorados pelos pobres.
La agricultura es el setor de la economia com mayor proporción
de empleo precário. Entre los asalariados agrícolas se encuentra
las tasas más elevadas de trabajadores sin contrato ni prevision
social. Junto com esto, se expande cada vez más la subcontra-
tación7 (p. 61).

Lessa, Salm, Soares e Dain (1997) também tecem críticas às abor-


dagens restritivas da discussão sobre pobreza e políticas sociais, as quais
se deixam fascinar pelos fetiches dos dados estatísticos e se limitam às
concepções setoriais das políticas; aos minimalismos das práticas bem-
sucedidas; ao reducionismo econômico; e, sobretudo, à submissão da
política social às prioridades de estabilização.
Não se devem ignorar os dados estatísticos, advertem os autores;
no entanto “caberia identificar um denominador comum aos estados
de pobreza” (p. 64), o qual escapasse ao raciocínio circular da definição
de pobreza e miserabilidade pelo que se é (se tem), ou não se é (não se
tem). Assim, “sua síntese, ou expressão mais geral, seria a precariedade
de inserção dos pobres em um ou mais dos seguintes circuitos: produ-
ção, consumo, acesso / fruição de bens públicos e cidadania”. (p. 64)
De acordo com a linha de raciocínio de Lessa, Salm, Soares e Dain
(1997) – segundo a qual as várias manifestações da pobreza são percebi-
das como formas diversas de expressão de precariedade, ou seja, como
fato heterogêneo, fenômeno muito complexo –, a população pobre
valadarense, segundo dados levantados no Atlas de Desenvolvimento
Humano no Brasil, (2000) e no Censo de 2000 – Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística - IBGE, estaria incluída entre:

7 A agricultura é o setor da economia com maior proporção de emprego precário. Entre os assala-
riados agrícolas encontram-se as taxas mais elevadas de trabalhadores sem contrato nem previ-
dência social. Junto com isso, expande-se cada vez mais a subcontratação. (Tradução nossa).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 383


a) os 10,80% de pessoas, em Governador Valadares, que detêm
renda per capita abaixo de R$ 37,75;
b) os 26,80% de pessoas, em Governador Valadares, que detêm
renda per capita abaixo de R$75,50;
c) os domicílios particulares permanentes por situação, tipo de
domicílio, tipo de esgotamento sanitário8 – 4,09% com fossa
rudimentar; 1,10% com esgotamento em vala; 3,31% com es-
gotamento no rio, e 2,51% sem banheiro e nem sanitário;
d) os domicílios particulares permanentes e moradores em domi-
cílios particulares permanentes por setor de abastecimento de
água – 4,74% que utilizam poço ou nascente na propriedade;
e 0,49% que não têm água canalizada;
e) os domicílios particulares permanentes por situação e desti-
no de lixo – 9,42% da população que queima o lixo na pró-
pria residência; 0,19% da população que enterra o lixo na
própria residência; 3,05% da população que joga o lixo em
logradouro ou terreno baldio; 0,17% da população que joga
o lixo no rio; e 4,5% da população que tem o lixo coletado
em caçamba;
f) as pessoas de 10 anos ou mais, segundo grupos de anos de es-
tudos9 – 8,34% da população sem instrução, e com menos de
um ano de estudo, exclusive curso de alfabetização de adul-
tos; 15,73% da população com 1 a 3 anos de estudos; 38,43%
da população com 4 a 7 anos de estudos.
Apresentam também como características não mais específicas à
condição de pobreza, mas à vulnerabilidade familiar, segundo informa-
ções do Atlas de Desenvolvimento Humano – PNUD (2000):
a) 0,11% de crianças do sexo feminino entre 10 e 14 anos com
filhos;
b) 7,10 % de adolescentes do sexo feminino entre 15 e 17 anos
com filhos;

8 Os serviços de esgotamento sanitário, abastecimento de água, coleta de lixo, entre outros não citados
aqui, continuaram a ampliar sua cobertura no país, segundo dados da PNADs-2003. O mesmo ocor-
reu em Governador Valadares, de acordo com os dois Censos Demográficos de 1991 e 2000.
9 Média de anos de estudos de pessoas de 10 anos ou mais de idade total que se encontravam
ocupadas durante a semana de referência, levantada na PNADs - 2003 – IBGE no Brasil >
1993(5,0 anos), 2003 (6,4 anos).

384 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


c) 17,83% de crianças residentes em domicílios com renda per
capita menor que R$ 37,75;
d) 39,33% de crianças residentes em domicílios com renda per
capita menor que R$75,50;
e) 4,41% de crianças residentes em Governador Valadares, que
estão fora da escola;
f) 5,25% de crianças residentes em Governador Valadares, que
trabalham;
g) 5,85% de mães chefes de família, sem cônjuge, com filhos me-
nores de 15 anos;
h) 13.34% de pessoas em Governador Valadares, com mais de 50%
de sua renda proveniente de transferências governamentais.
Na verdade, como nos apontam Rocha e Tolosa (1991), no deta-
lhamento de unidades de análise em nível submetropolitano como mu-
nicípio, só conta como fonte de informação o censo demográfico, “cuja
realização decenal inviabiliza um monitoramento da pobreza compa-
tível com a rapidez das mudanças estruturais que vêm ocorrendo” (p.
143). A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) constitui
uma fonte privilegiada de estudos sobre pobreza anual, porém só con-
sidera como áreas de análise as Unidades da Federação e/ou os estratos
urbano, rural e metropolitano.
Abranches (1985) ressalta também o fato de que a avaliação da
pobreza não é inteiramente suficiente, quando se utiliza apenas o crité-
rio de renda. Outras dimensões de destituição são importantes, embora
não apresentem relação direta e necessária com a renda individual ou
familiar. Dependem de uma série de fatores, como: saúde, condições
sanitárias e de habitação, alimentação, e educação. No entanto, a renda
sempre será um eficiente indicador aproximado de destituições.
Assim, segundo Abranches (1985):
[...] as famílias pobres são, em média, maiores (em torno de cinco
membros por unidade) e têm maior proporção de pessoas jovens
[...], apresentam maior incidência de desemprego e subemprego,
mobilizam para o trabalho os filhos em idade escolar e aqueles
membros em menor condição de trabalhar (velhos, inválidos) e
precisam submeter-se, no conjunto, a uma sobrecarga de traba-
lho para obter a renda parca que lhes garanta a subsistência pre-
cária. São as imposições da necessidade, que tolhem a liberdade,
pois consomem as energias exclusivamente na luta contra a mor-

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 385


te. Não podem cuidar senão de sua mínima persistência física,
material. [...] Para sobreviver, consomem mais horas de trabalho,
subtraídas ao estudo, ao descanso, ao lazer, à busca de opções de
trabalho e renda, ao exercício da criatividade, à ação política, aos
cuidados com a saúde (p. 34, 35).

Em relação aos aspectos de saúde, Abranches (1985) revela a


existência de grande desigualdade entre os grupos de menor e maior
renda. Vários fatores determinam o aumento de esperança de vida,
todos intimamente relacionados ao fenômeno mais geral da destitui-
ção: condições socioeconômicas das famílias; condições sanitárias
básicas e de habitação; nível de instrução das mães; e acesso a bens
e serviços básicos.
O autor apresenta como exemplo a taxa de mortalidade infantil,
que tende a decrescer com o processo de desenvolvimento, porém per-
manece elevada para as famílias mais pobres; os índices de mortalidade
infantil aos dois anos de idade, mais elevados nas famílias com mães
sem instrução do que naquelas com mães mais instruídas; e as barreiras
mais vigorosas de acesso aos serviços de saúde para os mais pobres, uma
vez que estes dependem exclusivamente da assistência governamental,
predominantemente usada em casos de doença manifesta10.
A lógica da destituição, para Abranches (1985), manifesta-se no
fato de que:
[...] privados de recursos mínimos, monetários e não-monetários,
materiais, culturais e políticos, os pobres terminam presos em ma-
lha espessa de carências, da qual não podem sair a não ser através
da ação específica e direta do Estado. São dependentes da (boa)
vontade pública (p. 37).

Os aspectos da saúde da população dependem também, segun-


do Abranches (1985), das condições de salubridade em que esta vive.
Existe, portanto, relação direta entre as condições de habitalidade e sa-
lubridade, e as taxas de mortalidade, complementadas pela associação
transparente entre nível de renda e esperança de vida.

10 Vale a pena ressaltar que o nível de abrangência do programa de saúde da família no municí-
pio de Governador Valadares, assim como em outros municípios brasileiros, ainda é pequeno.
Governador Valadares conta com 35 unidades de Estratégia de Saúde da Família, as quais
atendem 46,04% da população total; 22 Equipes de Saúde Bucal- modalidade I e 8 Equipes
de Saúde Bucal – modalidade II. Fonte: MINISTÉRIO DA SAÚDE / SAS/ DEPARTAMENTO DE
ATENÇÃO BÁSICA Sistemas de Informação em Saúde. 2010.

386 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Assim, segundo Abranches (1985):
[...] as condições de residência e salubridade, quando reforçadas
pela baixa renda, limitam drasticamente o horizonte de vida das
famílias despossuídas, nas quais os sobreviventes testemunham a
luta dos mais novos, em um ambiente em que os riscos superam
as oportunidades diariamente (p. 40).

Considerando que a condição material da sobrevivência é a ali-


mentação, o autor cita Coimbra (1984) para explicar que o déficit ali-
mentar no Brasil é mais calórico do que protéico. Logo, diz mais respei-
to à quantidade do que à qualidade dos alimentos. Consequentemente
a insuficiência calórica acompanha os níveis de renda, tornando mais
vulneráveis as famílias mais pobres, com menor poder de aquisição de
alimentos e, em alguns casos, de aquisição do mínimo considerado in-
dispensável pela ONU, em proteínas (2.400 calorias).
Calsing (1983), citado por Abranches (1985), aponta as conse-
quências danosas à saúde das crianças em idade escolar (5-15 anos),
produto da subnutrição das famílias pobres: comprometimento do de-
senvolvimento físico e cognitivo, em algumas situações levando à morte
por deficiências nutricionais profundas. Quadro também explicado, se-
gundo Abranches (1985), pelo fenômeno da destituição.
Acrescenta-se ainda um fator importante para a avaliação do fe-
nômeno pobreza: a educação, discutida à luz de sua magnitude como
recurso, ainda que parcial, para a luta por melhores oportunidades de
vida, sobretudo pelo fato de participar da liberdade e, portanto, da
cidadania. Afinal, conhecer a si mesmo, assim como às condições do
entorno, faz parte do direito do ser humano, como nos aponta a Consti-
tuição Federal de 1988: “Art 23 - É competência comum da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos municípios: V - proporcionar os meios
de acesso à cultura, à educação e à ciência”.
Um fato de suma importância, levantado por Abranches (1985)
para a caracterização da população pobre, inclusive a do município em
estudo, Governador Valadares, refere-se ao aspecto de tal população se
mostrar precocemente incorporada ao mercado de trabalho, com inter-
rupção da formação educacional; dessa forma, suas chances de mobili-
dade social reduzem-se sensivelmente. No entanto, a inserção precoce
através de programas de geração de renda e elevação da escolaridade
contribui para que a mobilidade social não seja apenas um sonho, mas
TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 387
uma possível realidade, não nos solos americanos ou europeus, mas no
território de Valadares.
No incremento da discussão, Rocha (1992) apresenta outras for-
mas de complementação de renda familiar em tempos de ausência de
crescimento econômico e diminuição de renda da maioria dos traba-
lhadores: subemprego; maior participação das mulheres na força de
trabalho; consequente diminuição do lazer com a família; e redução do
tempo dispensado aos cuidados com a família.
Assim, conclui Rocha (1992) que, nesse contexto, a diminuição
do nível de rendimento torna o emprego um luxo, até para os não-
pobres, pois faz com que estes últimos, ao perderem seus empregos,
tenham de buscar nova atividade no mercado de trabalho, mesmo que
inadequada quanto à habilitação ou à remuneração.
Acrescento as palavras de Lessa, Salm, Soares e Dain (1997):
Nunca parece excessivo reafirmar que, em situações de ex-
trema desigualdade social, uma parte significativa da melho-
ria das condições de sobrevivência, digna da população de
baixa renda depende de seu acesso ao circuito de cidadania.
Saúde e educação em primeiro lugar, sobretudo para garantir
melhores oportunidades às novas gerações, e complementa-
ções de renda. De prestação continuada, para os mais frágeis,
são elementos essenciais de qualquer formulação de direitos
sociais básicos. (p. 66).

Enfrentamentos da pobreza e das vulnerabilidades

Draibe (2002) aponta o fato de que, no campo dos programas de


assistência social e enfrentamento da pobreza, desde a década de 80
até a atualidade o Brasil tem enfrentado, no plano institucional, uma das
mais radicais mudanças, comparável talvez às mudanças na política de
saúde e, mais recentemente, na política educacional.
Ressalta a autora que o Brasil “vem de uma forte e antiga tradição
de política assistencial” (p. 266), e aqui esteve presente o reino da arbi-
trariedade, do clientelismo e do assistencialismo, no qual se desqualifi-
cavam os pobres.
Dois movimentos ou ondas de reformas são indicados como de-
flagradores das alterações nesse campo de intervenção pública: primei-
ramente, na década de 80, a formulação da Política Nacional de Assis-

388 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


tência Social com tonalidade universalista, definida na Constituição de
1988, a qual pretendia forte e complexa institucionalidade, como a
política do SUS – Sistema Único de Saúde –; posteriormente, o segundo
movimento, nos anos 90, que apresentou pela primeira vez como tema
central a temática da pobreza, presente na agenda pública brasileira,
com todos os seus créditos.
Alerta-nos Draibe (2002) para o fato de que, no entanto, a Política
Nacional de Assistência Social, definida na Constituição de 1988, não se
apresentava como política para o enfrentamento da pobreza.
O quadro apresentado abaixo ilustra as políticas assistenciais e de
combate à pobreza, e seus principais eixos e conteúdos de mudanças.

PRINCIPAIS CONTEÚDOS
EIXO DE MUDANÇA
DAS ALTERAÇÕES
Direito social como fundamen-
Na concepção: no fundamento to da política. Combinação de
da política; nos critérios de justi- programas universais com pro-
ça; no estilo de política/gestão. gramas focalizados. Redução do
clientelismo.

Introdução da participação do se-


Na Relação pública / privada: no tor privado empresarial. Reforço
financiamento; na provisão. das parcerias com o terceiro setor.
No fundo especial de pobreza.

Introdução e / ou reforço de: pro-


Na natureza dos programas imple- gramas de transferências monetá-
mentados rias, programas de tipo produtivo-
capacitação e crédito popular.

Descentralização do poder decisó-


Na armação institucional das
rio e de recursos. Delegação fede-
políticas: no sistema de financia-
rativa de funções.
mento; no sistema decisório; no
Ampliação e institucionalização
sistema de gestão; no sistema de
da participação social (forma con-
supervisão e controles.
selhista).
FONTE : DRAIBE , 2002, p. 267.

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 389


A Constituição Federal de 1988, conhecida como cidadã -
primeira a incluir os direitos sociais 11 como direitos humanos fun-
damentais, incorporando a Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos, bem como diversos pactos e convenções internacionais dos
quais o Brasil é signatário -, é considerada a mola propulsora de
todas essas mudanças.
Os artigos abaixo citados ilustram essa nova ótica, ou melhor, os
novos paradigmas:
Título I – Dos Princípios Fundamentais:
Art 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, cons-
titui-se em Estado Democrático de Direito e tem como funda-
mentos: I-a soberania, II-a cidadania, III-a dignidade de pessoa
humana, IV-os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa, V-o
pluralismo político.
Art 3º- Constituem objetivos fundamentais da República Fede-
rativa do Brasil: I-construir uma sociedade livre, justa e igua-
litária; II-garantir o desenvolvimento nacional; III-erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
e regionais; IV-promover o bem-estar de todos, sem precon-
ceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras for-
mas de discriminações.

Os direitos sociais são caracterizados no Título I – Capítulo II, a


partir da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000,
da seguinte forma:
Art 6º São direitos sociais: a educação, a saúde, o trabalho, a
moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção
à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na
forma desta constituição.

11 “Por direitos sociais, entende-se o conjunto das pretensões ou exigências das quais derivam ex-
pectativas legítimas que os cidadãos têm, não como indivíduos isolados, uns independentes dos
outros, mas como indivíduos sociais que vivem, e não podem deixar de viver, em sociedade com
outros indivíduos. O fundamento da forma de governo democrática, em oposição às várias formas
de governo autocráticas que dominaram grande parte da história do mundo, é o reconhecimento
da pessoa. Ora, o homem é ao mesmo tempo pessoa moral, em si mesmo considerado, e pessoa
social (recordemos o celebérrimo animal político de Aristóteles), já que vive, desde o nascimento
até a morte, em vários círculos, que vão da família à nação, da nação à sociedade universal, através
dos quais sua personalidade se desenvolve, se enriquece e assume aspectos diversos, de acordo
com os diferentes círculos em que vive. À pessoa moral referem-se especificamente os direitos
de liberdade, à pessoa social, os direitos sociais, que recentemente foram também chamados por
Gustavo Zagrebelsky de direitos de justiça.”(Bobbio, 2000, p. 501, 502).

390 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


Parafraseando Odalia (2003), devemos lembrar que escrever,
pensar ou falar sobre cidadania impõe a apreciação de uma lenta cons-
trução, que vem se fazendo a partir da Revolução Inglesa, no século
XVII, passando pelas Revoluções Americana e Francesa e pela Revolu-
ção Industrial – esta última muito especialmente por ter trazido à cena
histórica nova classe social: o proletariado.
Assim, para Odalia (2003), o proletariado como herdeiro da bur-
guesia não só adquiriu a consciência histórica do papel de força revolu-
cionária, como também buscou , nos séculos XIX e XX (e ainda busca), a
ampliação dos direitos civis conquistados pela burguesia com a sua ajuda,
por meio da Revolução Francesa. Abriu-se assim, “o leque de possibili-
dades para que as chamadas minorias” (p. 166) pudessem ser abrangidas
pelos direitos civis. Trata-se de uma história que ainda está sendo escrita.
Palavras de Mondaini (2003):
A história do desenvolvimento dos direitos do citadino, a evolu-
ção da cidadania na Europa centro-oriental transcorre há pelo
menos três séculos – de acirrados conflitos sociais – relacionada
à conquista de três conteúdos de direitos, diversos entre si: os
direitos civis, no século XVIII; os direitos políticos, no século XIX,
e os direitos sociais, no século XX. Junto a esses tipos de direitos,
novas formas de Estado também foram se constituindo nesses três
séculos, novas funções estatais indicadores de uma relação dinâ-
mica entre indivíduos, sociedade e aparelho estatal (p. 116).

Considera-se hoje, segundo Draibe (2002), que:


a) a pobreza, além de multidimensional, é altamente heterogê-
nea, envolvendo também aspectos materiais e imateriais;
b) as capacidades, o nível de acesso a ativos diferenciados, assim
como as capacidades do meio para superação da pobreza, de-
pendem das pessoas e de seus graus de autoestima;
c) sua superação, por constituir um problema societal12 e de re-
lações sociais, depende também das mudanças nas relações

12 Segundo Castel (2001) o social não deve ser entendido na discussão sobre social-assistencial
como “o conjunto das relações que caracterizam a humanidade enquanto espécie que se
define por viver em sociedade. Realmente ‘o homem é um animal social’, e a abelha também.
Entretanto, para evitar o embaraço de mera questão de vocabulário, estabelecer-se-á chamar
de ‘societal’ a qualificação geral das relações humanas enquanto se refere a todas as formas de
existência coletiva. O ‘social’, ao contrário, é uma configuração específica de práticas que não
se encontram em todas as coletividades humanas”(p. 48).

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 391


entre pobres e não-pobres, bem como das relações entre os
meios sociais pobres e não-pobres.
Na ótica de Draibe (2002), os resultados alcançados ao longo dos
anos 90, embora modestos, registraram razoável redução de incidência
da pobreza, amparada por melhorias significativas nos níveis de bem-
estar das populações mais novas: entre outras, redução da mortalidade
infantil; atendimento às necessidades nutricionais de crianças menores
de cinco anos; universalização do acesso ao ensino fundamental; me-
lhorias nos níveis de aprovação e terminalidade dos alunos; significativo
acesso de adolescentes ao ensino médio.
Contudo, afirma Draibe (2002) que os resultados em termos de
habitação e saneamento não se mostraram tão positivos, e muito menos
os níveis de desigualdade social, ainda escandalosos. “Nossos indica-
dores de desigualdade mantêm-se relativamente estáveis há mais de
quarenta anos registrando quase nula redução, salvo no tocante às desi-
gualdades de gênero, em termos educacionais.” (p. 268).
Como ressalta Draibe (2002), tais desigualdades constituem he-
ranças de nossa forte e antiga tradição de política assistencial, base-
adas em nosso limitado welfare state13. No contexto em questão es-
tavam presentes os seguintes fatores, apontados também como mitos
por autores como Kliksberg (2002), mas na verdade considerados por
Draibe (2002) como constituintes da nossa realidade: a superfluidez
dos programas; o reino da arbitrariedade e do clientelismo; o assisten-
cialismo e a desqualificação dos pobres; a fragmentação organizacio-
nal; e a forma arbitrária de fazer política.

13 Expressão de origem inglesa descrita no verbete Estado do Bem-estar do Dicionário de Política


de Bobbio, Matteucci e Pasquino (1993) – em primeira análise, com uma citação de H. L.
Wilensky (1975) – como Estado que garante “tipos mínimos de renda, alimentação, saúde,
habitação, educação assegurados a todo o cidadão, não como caridade, mas como direito po-
lítico” (p. 416). É comum associar a conceituação acima descrita com a política posta em prá-
tica na Grã-Bretanha, a partir da Segunda Guerra Mundial, quando logo após o debate aberto
pela apresentação do primeiro relatório Beveridge (1942), foram aprovadas as providências no
campo da saúde e da instrução, como forma de garantia de serviços idênticos a todos os cida-
dãos, independentemente de renda. Vincula-se o conceito de assistência pública ao das socie-
dades de elevado desenvolvimento industrial e de sistema político do tipo liberal-democrático
(sistema político contrário a uma visão limitativa do Liberalismo, encarada como mera garantia
de direitos individuais. Salienta o momento de participação democrática na direção da política
do país). Assim, a distinção entre o Estado assistencial e os demais tipos de Estado, “não é tanto
a intervenção das estruturas públicas na melhoria do nível de vida da população quanto o fato
de que tal ação é reivindicada pelos cidadãos como um direito” (p. 416).

392 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO


A superfluidez é explicada por Kliksberg (2002) como a visão dos
países da América Latina, segundo a qual a política social constitui uma
espécie de concessão forçada, um custo imposto que desvia recursos
do esforço central – o crescimento econômico. O autor cita a visão
sinteticamente verbalizada por alguns países: a única política social é a
política econômica.
Dessa forma, na visão do autor, ao ser colocada em situação de
deslegitimação contínua, a política social conserva limitadas possibili-
dades de existir, e se torna vítima fácil de cortes e ajustes, situada em
lugares secundários nos organogramas, sendo seus representantes 
principais interessados – afastados dos espaços de tomada de decisões
macroeconômicas.
Os próprios fatos demonstram (KLIKSBERG, 2002) que constitui
erro grave considerar a política social como supérflua. Primeiramente,
porque não se trata de concessão política, pois a política social repre-
senta a própria essência do funcionamento da democracia. Em segundo
lugar, porque a reivindicação prioritária da cidadania latino-americana
consiste na ação contra a pobreza, por meio de políticas sociais agressi-
vas, bem articuladas, bem gerenciadas e eficazes. Portanto, o seu aten-
dimento não significa concessão, mas respeito ao sistema democrático.
Acrescenta Kliksberg (2002) que as experiências mundiais das úl-
timas décadas têm mostrado que, além de responder a uma demanda
legítima, “a política social também é um aspecto fundamental da ação
em prol de um desenvolvimento sustentável” (p. 168).
Embora o crescimento seja imprescindível, e todo país deva se
empenhar para alcançá-lo no intuito de obter estabilidade, o progres-
so tecnológico e a competitividade não vão resolver, por si sós, o pro-
blema da pobreza.
Kliksberg (2002) ilustra suas considerações levantando o ques-
tionamento também apontado pelo Instituto de Pesquisa do Banco
Mundial (2000), em seu texto – A Qualidade do Crescimento: como se
explica o fato de países que tiveram praticamente os mesmos índices
de crescimento apresentarem resultados muito diferenciados quanto às
conquistas na melhoria da vida da população e quanto à sustentabilida-
de desse crescimento.
Existem, portanto, grandes diferenças entre dois tipos de cresci-
mento (Kliksberg, 2002):

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 393


a) o crescimento distorcido – que se reduz à função de apagar
grandes incêndios, pelo fato de beneficiar principalmente pou-
cos setores; concentrar ainda mais as oportunidades e a renda;
e ocorrer apenas em alguns centros urbanos, dificultando o
desenvolvimento de pequenas e médias empresas, bem como
o desenvolvimento de outras iniciativas econômicas de base;
b) o crescimento compartilhado – que potencializa a população
e aumenta suas possibilidades de integração através de seu
eixo-base estratégico, a política social.
De acordo com determinada posição, a política social é supér-
flua e constitui uma despesa, embora a Organização Mundial da Saúde
já tenha jogado por terra essa suposição, demonstrando que destinar
recursos à saúde não é gastar, mas investir, e com altíssimos níveis de
retorno sobre o investimento (KLIKSBERG, 2002).
Considera-se, assim, que os bons níveis de saúde pública não são
consequências, mas sim pré-requisitos para o crescimento da econo-
mia. “Com uma população com problemas de saúde, o rendimento cai,
perdem-se muitos anos de vida possível e os níveis de produtividade se
reduzem” (KLIKSBERG, 2002, p. 170).
Um dos graves problemas apontados por Draibe (2002) e Kliks-
berg (2002) – a contribuição marginal da sociedade civil – transmite a
mensagem de que tal contribuição seria simbolicamente meritória, mas
na verdade equivaleria à caridade. Uma vez que não resolve nenhum
problema de peso, não é merecedora de apoio especial, ou seja, não
recebe incentivos fiscais sistemáticos para sua promoção. “São débeis as
medidas que almejam potencializar as possibilidades de participação da
sociedade civil na política social.” (KLIKSBERG, 2002, p. 173).
Cresce, no entanto, a visão segundo a qual fatores como confiança
interpessoal, capacidade de associação, consciência cívica, e valores éti-
cos, podem proporcionar resultados positivos nos desempenhos macroe-
conômicos, produtivos, políticos e sociais dos países latino-americanos.
Por meio da capacidade de associação, uma sociedade pode
gerar toda sorte de formas de cooperação. E, quando forte, constrói
um tecido social rico, que confere visibilidade a múltiplas formas de
contribuição para o projeto global de desenvolvimento. Já os níveis de
consciência cívica e os valores éticos influenciam as decisões individu-
ais de participação ativa na resolução dos problemas coletivos. Dentre
394 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
algumas expressões, cita Kliksberg (2002) o voluntariado e a responsabi-
lidade social das empresas privadas.
Forte aliada da contribuição marginal da sociedade civil, a des-
qualificação dos pobres, também apontada por Draibe (2002) e Kliks-
berg (2002), herança de nosso limitado welfare state, é discutida em
pesquisa desenvolvida pelo Banco Mundial (2000) no objetivo de levan-
tar, em 50 países, dados indicativos de quais seriam as percepções dos
pobres sobre a pobreza.
Alguns resultados são trazidos por Kliksberg (2002):
[...] a pobreza não é apenas a carência de recursos básicos, mas
destrói ou desgasta as famílias, além de causar danos psicológicos e
afetivos. Enfim, caracterizam que, acima de tudo, ela atenta contra
a sua dignidade como seres humanos. Uma de suas vivências cen-
trais é o olhar desvalorizado que converge para eles dos diferentes
setores da sociedade. Eles são vistos como pessoas inferiores, quase
subumanos, em função de sua pobreza material (p. 175).

Respostas às indagações sobre as organizações de confiança colo-


cam em primeiro lugar as organizações dos próprios pobres. Assim, os
pesquisadores recomendam que investir no fortalecimento da capaci-
dade organizativa dos pobres, mediante a capacitação de seus líderes;
na oferta de infraestrutura para atividades societárias; e na desregula-
mentação jurídica, constituiria a estratégia fundamental de superação
dos moldes tradicionais de política social, nos quais o pobre aparece
como alvo de projetos que procuram atenuar impactos, e não como
sujeito capaz de oferecer contribuições importantes e, por intermédio
destas, resgatar sua dignidade (KLIKSBERG, 2002).
Assim, na visão de Kliksberg (2002):
Uma política social eficaz é aquela que ataca efetivamente as
causas, e não apenas os sintomas da pobreza. [...] É preciso so-
mar o governo federal, as regiões, os municípios, a sociedade
civil e as organizações dos próprios pobres, e integrar as ações
nos campos do trabalho, da educação, da saúde, da família e
outras. Impõem-se alianças, estratégias entre as diferentes orga-
nizações (p. 179, 180).

Política esta que teria total respaldo no que determina a Cons-


tituição Federal de 1988, no Título III – Da Organização do Estado –
Capítulo II – Da União:

TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 395


Art 23 – é competência comum da União, dos Estados, do Distri-
to Federal e dos municípios:
X – combate às causas da pobreza e os fatores de marginalização,
promovendo a integração social dos setores desfavorecidos;
Art 24 – Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legis-
lar concorrentemente sobre:
XV – proteção à infância e à juventude.

Santos (1994) alega, no entanto, que aparentam ser tarefa de


Sísifo ou política paternalista as escolhas da política pública de com-
bate à pobreza.
[...] as demandas gerais da população que não afetam a um
grupo específico dificilmente são capazes de mobilizar setores
a ponto de que se organizem para reivindicá-las. Ocorre aqui,
em razão da hipótese de Olson quanto à natureza da ação co-
letiva, a existência do que Salisburg chama de padrão difuso de
demandas, isto é, não articulado, o que dá ao governo maior
latitude de operação, pois não precisa confrontar-se com gru-
pos sociais específicos. Um ou outro atendimento setorial fica
por conta, neste caos, das políticas distributivas, paternalistas,
no sentido de Lowi, por parte do Legislativo quando este é
efetivo (p. 77, 78).

Afinal, existe hoje, segundo Medeiros (2001), um consenso no país:


A pobreza abjeta, o emprego precário e a péssima distribui-
ção de renda constituem para amplíssimo espectro de opi-
niões os principais problemas e os desafios a serem enfren-
tados pelo país nos próximos anos. Por diversas razões, mas
principalmente pelo aumento do desemprego urbano que se
afirmou na segunda metade da década, o grau de tolerân-
cia com a desigualdade e a pobreza historicamente muito
elevada – parece ter reduzido, ao menos retoricamente, na
sociedade brasileira. Esse posicionamento naturalmente não
se limita ao Brasil. Ao contrário, há hoje unanimidade. Do
banco Mundial ao austero FMI renova-se a ênfase sobre a
necessidade de preservar os mais pobres dos custos sociais
dos ajustes macroeconômicos (p. 165).

Discutir o que o município tem feito em prol da população pobre


e das possibilidades de enfrentamento de suas vulnerabilidades, torna-
se tarefa de todos nós, professores e pesquisadores, ao longo da orga-
nização de um programa de Mestrado em Gestão do Território em solo
valadarense. Esperamos cumprir a parte que nos cabe.
396 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO
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