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De corpo inteiro: Clarice Lispector e o grito político da mulher como deserdada da

escritura.

Ilza Matias de Sousa1

Sublimidade e prazer, condições do ato de escrever, foram experiências retiradas


de nós como um filho, ao nascer de sua mãe. Seqüestro infame para uma mulher
enfraquecida pelas dores do parto. Assalto terrível da carne de sua carne.
Herança de família reservada ao homem, a escritura não entrará no testamento que
nos caberia. Tornamo-nos herdeiras, sim, de um lugar de falta. Herdeiras forçadas porque
recebemos por herança o vazio, o zero, o sifr, segundo a língua árabe. Mas fomos, ao
mesmo tempo, deserdadas da casa/escritura do patrimônio de obras consagradas pela
tradição ocidental, que é a nossa mais velha conhecida.
A astúcia cosmética que aprendemos a fabricar deu-nos, no entanto, margem para
a invenção de um testamento secreto, escrito em carta sigilada, testamento místico feito de
um tecido leve, transparente, com sopros de brisa, ou de aragem, como um vento zéfiro a
percorrer as terras do ocidente.
A mística colocou-se para nós como uma dimensão própria para a superação do
lugar vazio. Trouxe para a mulher a possibilidade de pensá-lo como caminho, sob a
vigência do sempre a caminho, sob a vigência do arrebatamento íntimo, da flama, do ardor,
da ardência ou do abrasamento do ser (vide FRECHEIRAS, 2001).
Sair do cárcere da cultura, da tradição masculina, fálica mostrou-se a tarefa
infatigável do discurso da mística. Sair das malhas cerradas do pensamento de exclusão,
legado à modernidade, e silenciar para falar e gritar de corpo inteiro, já que o grito e o
arrebatamento vêm da terra, espalham-se no corpo e sobem em direção ao alto, inabitável,
vazio. Estariam a salvo sublimidade e prazer, sem modelos interpostos, numa escritura que

1
Doutora em Literatura Comparada pela UFMG, Professora Adjunta do Deptº de Letras e do
PPgEL/UFRN. Tem publicações em revistas e em livros. Entre estes últimos: "A astúcia do dragão e a
sabedoria da raposa: o alegre cinismo da ficção borgiana". Borges em dez textos (organizado por Maria
Esther Maciel e Reinaldo Marques). Belo Horizonte: POS-LIT (Curso de Pós-Graduação em Estudos
Literários); Rio de Janeiro: Livraria Sette Letras Ltda, 1997. "Paulicéia desvairada: a poética da cidade "
MÜLTIPLO MÄRIO”: ensaios ( organizado por Maria Ignez Novais Ayala e Eduardo de Assis Duarte.
João Pessoa /Natal: UFPB/ Editora Universitária; UFRN/ Editora Universitária, 1997. "O imaginário da
diferença". Limiares críticos (organizado por Reinaldo Marques e Gilda Neves Bittencourt). Belo
Horizonte: Editora Autêntica, 1998. “Grande sertão: viagem pelas veredas neoplatônicas na geografia
rosiana”. II Encontro de Estudos Medievais O NEOPLATONISMO. Natal/RN: GEMT/UFRN/PUC-
RS/CNPQ. Argos Editora, 2001. “Filosofia e poesia: as duas faces de Eros no espaço literário”. Café
Filosófico. Natal: Editora da UFRN . “Das passagens: o filósofo e o poeta”. Café Filosófico. Natal:
Editora da UFRN .
pode ser descrita como uma experiência do outro silenciado, cuja atividade concentrou-se
na escrita, cujo fruto é a escrita.
Não é desconhecida a presença da mulher na literatura no mundo ocidental, na
Grécia e em Roma. A mulher, historicamente sempre buscou tomar o seu lugar na
sociedade e no campo da produção cultural. Num estudo sobre a mulher escritora na
literatura greco-latina, o latinista Johnny José Mafra, assim se refere (1989 p.08);

Na antiguidade grega, ao instituir escola de música, de danças


e de poesia, a mulher ao mesmo tempo ocupava espaço e protestava
contra uma sociedade que não lhe atribuía qualidades pra tanto. A
expressão lírica do amor não convinha à mulher que, na poesia, era
apenas objeto e nunca sujeito.

Quanto à mulher na literatura latina, o latinista afirma que as escritoras latinas


tinham pouca significação na formação e no desempenho cultural. Mafra aponta-nos o
trabalho de Henri Bridon; “La littérature latine inconnue que fala a respeito da presença
da mulher no Fórum romano, “destacando-se na eloqüência, está presente na filosofia, no
teatro e nos círculos poéticos (op.cit., p.28).
E o que dizer de toda a posteridade descendente desses povos no mundo? Se
rastrearmos, certamente, descobriremos que a mulher escritora continua sendo um terreno
desconhecido, apesar de todo esforço desprendido de tirar essa prisioneira, lançada no
ferro obscuro das masmorras domésticas.
Nos seus transportes de liberdade, chegamos à literatura brasileira, em sua
modernidade e, nesta, a uma mulher escritora que escolhemos, entre outros momentos de
mulheres, como uma das mais interessantes. Uma mulher grávida de idéias e gestos, em
permanente estado da gravidez: eis Clarice, aquela que faz circular o lugar vazio,
atravessando-o com acontecimentos, com ecos e sentidos inesperados, ou não-sentidos.
Ela os arranca de si para interrogá-los como ser unívoco, nem masculino, nem feminino,
nem ativo, nem passivo; um ser neutro, um ser comum tanto ao real, ao possível, quanto
ao impossível.
A sua escritura pesquisa com inquietação a idéia de se constituírem num só e
mesmo acontecimento aquilo que ocorre na existência, como evento, e aquilo que se diz,
indagando se são –ou não - uns e outros acontecimentos unívocos. Escritura que diz
respeito a um só e mesmo ser para o impossível e o possível, ou real.Ou escritura que se
abre em rebentos de múltiplos escritos. Escritinhos. Lendo a sua obra perguntamo-nos
sobre as questões catalisadoras da filosofia: o que significa pensar, o que se chama
pensar? Que é isso a que chamamos de pensamento e que foi cercado como prioridade de
gênero, como se pensar fosse uma posição de gênero ou de sexo.
De corpo inteiro ganha aqui, neste trabalho, um domínio metafísico para essa
escritura clariciana, que nos faz ouvir, nas palavras, um grito, cortando como uma flecha
lançada de um alvo para outro, dando à luz ao ser jacente que vem – diria Antonin
Artaud, em seu teatro da crueldade (cf. DERRIDA, l987), de uma genitalidade do
pensamento, de um órgão que não reside no feminino, mas na própria criação. Mulheres e
homens paridores de singularidade que, para Foucault (Apud Badiou, 2001), são
singularidades selvagens por permanecerem como algo que não entrou ainda na
experiência institucional, teórica, crítica ou científica. Singularidades, enfim, que
convocam uma “exterioridade selvagem”, não assimilável, intratável e que se encontram
rejeitadas para fora do saber e do poder, nas “margens”, de modo que a ciência não pode
reconhecê-las.
Em que “singularidade selvagem” mostra-se a escritura clariciana? A personagem
Joana do romance Perto do coração selvagem põe-nos diante disso. Vejamos, então, o
grito clariciano nas coisas visíveis.
A narradora introduz a fala de sua personagem (1980 p.163/164):

Joana sobressaltou-se. Ah. Eu estive trabalhando para


isso: consegui ser sublime... como nos antigos tempos...Não, não é
inteiramente assim, não forcei a situação, como poderia com o aço
franzino e esfriando meu corpo? [...] Encostam-me de novo a
lâmina de aço no coração. [...] Não, seguramente não inventei esta
situação e é isto que mais me surpreende. Porque minha vontade
de experiência não chegaria a provocar esse ferro frio encostando
na carne morta, finalmente morna da ternura de ontem.

Joana nos oferece a chave para pensar o impensável dessa “exterioridade


selvagem”:
Ela própria crescendo sobre a terra asfixiada, dividindo-
se em milhares de partículas vivas, plenas de seu pensamento, de
sua força, de sua inconsciência... Atravessando a limpidez sem
névoas; levemente, andando, voando...

Há um transe a ser posto, a pôr um horizonte (como o sol se põe) inexplorado,


uma passagem incontornável pelo abjeto, pelo nojo, pelo desprezo e mesmo pela infâmia.
Nesse aspecto, se encontrará na experiência clariciana o sublime e o abjeto, o poder do
horror, o imaginário do terror que faz tremer o corpo, terror que, rejeitado ou provocado,
habita na própria trama do cotidiano. A fonte corre misturada com o esterco e a água
cristalina se une ao mar fétido.
A abjeção, em Clarice, está, pois, ligada às singularidades selvagens,
acrescentando-se ao sublime e ao prazer, enquanto condição do intratável. O abismo da
abjeção, com o qual temos de nos haver, provoca a dramática convulsão da epifania ou do
discurso religioso na obra clariciana e leva-nos ao enfrentamento dessa realidade abjeta
como pertinente à existência e dimensão objetivada do ser. A escritura de Clarice
Lispector re-significa o problema da abjeção, da crueldade ou do horror como dimensão
criadora que possui um traço ético e um traço estético que convoca a bela e a fera, a
legião estrangeira, a felicidade clandestina, a paixão desencadeadora do desejo de
transgressão, as experiências limítrofes, a obsessão da morte, a violência, a violação, a
vertigem.
Nesse aspecto, enquanto experiência criadora, a abjeção, na narrativa clariciana
envia-nos para uma afirmação de Schopenhauer (...):
O homem no fundo é um animal selvagem e terrível. Nós o
conhecemos unicamente no estado subjugado e domesticado,
denominado civilização: por isso nos aterrorizam as eventuais
erupções de sua natureza.
Epifania e eventuais erupções dessa natureza selvagem são um único e mesmo
evento da escritura clariciana. Kristeva (1982, p.01/02) tratando dessa dimensão criadora
que o poder do horror toma na literatura, fala que a abjeção põe em colapso e perturba as
dimensões simbólicas, míticas, arquetípicas da cultura cristã ocidental. O “corpus” vira
“corpse” (inglês, subst. masc.), “cadáver”.
O sistema simbólico falece e coloca-nos em abismo. Aí entra o trabalho da
imaginação e constitui o seu território. Tal processo em Clarice é um trabalho de parto,
reveste-se de um amor maternal sem a promessa da palavra do pai.
O romance “A paixão segundo G.H.” consiste, por excelência, nessa imaginação
matricial a confrontar-se com o imaginário do terror, repudia-o e simultaneamente admite a
existência da abjeção. Ali se realiza a sublimação do discurso. A morte da barata na cena
periférica do quarto da empregada é esmagamento, morte, mas também, parturição do ser
abjeto no ser da escritura da mulher. É experiência limítrofe, estética, mística, fora de toda
a ciência ou saber racionalista. Aversão, repugnância, num parto que revela uma forte
rebentação de imagens que fascinam e causam desconforto, trazendo à luz algo primal.
Rebentação como o quebrar das ondas sobre rochedos ou de estranhas plantas, rebentos
produzido nas bordas do sublime.
No território da letra, a narradora clariciana pode incorporar-se em Diana, a
caçadora, ou Minerva, a sábia e também política, no sentido grego de representar a
sabedoria própria da pólis. Feições imaginárias que configuramos como a cena fora das
premissas do narcisismo. Nela, não há tempo para a contemplação da vida. É a hora da ação
dos efeitos da abjeção. A narradora clariciana comporta-se como uma caixa de ressonâncias
arcaicas, um arquego, que o filósofo, Jean Pierre Faye (1996, p.192) considera uma
“palavra estranha a meio caminho entre o arconte e o estrategista, entre Sólon e Péricles”,
plasmadora de arkhegos philosofias, cujo princípio ou arché é a água, o líquido, o
gosmento, a placenta. O arconte aparece como discurso cosmético, artimanha de fingimento
de uma narradora que legisfera a escritura que gesta.
A escritura clariciana, portanto, inscreveria seu grito político na potência cosmética
do discurso literário. Potência que seria, aos olhos de Platão, instaladora do reino das puras
aparências (FERRAZ, 1999, p.74). A mulher legiferante seria, então, a mulher clariciana, a
fazer-se Minerva, deusa da sabedoria, da guerra, das ciências e das artes, provida da Métis
ou Prudência.
A meio caminho entre o arconte e o estrategista coloca-se o discurso clariciano,
instaurando-se numa dupla deficiência em face à realidade inteligível e em face ao mundo
sensível. Sagaz, meticulosa, a narradora clariciana forja estratégias de caçadora,
vinculando-se a atividades que seriam perniciosas para a mulher escritora, preparando sua
escritura, sob a pecha de ornamentada, cheia de adorno, com a própria essência do
ornamento, criando um tipo perverso de realidade que estaria apto a escapar dos golpes e
contragolpes, diria Ferraz na sua reflexão sobre a “Toalete platônica” (ib., p.76), da lógica
de dominação qual seja ela. Essa atividade de caçar assumiria uma forma perniciosa porque
feita com iscas, armadilhas, logros e se identificaria com a animalidade, pois deverá usar
camuflagens capazes de confundir caça e caçador. Poderia se oferecer como uma escrita,
medusa, tentacular, com pelagem de filhote de fera, manchada, reluzente, que nos
introduziria no heterogêneo, na alteridade infinita. Logo, essa escritura seria um tecido
manchado por sua vizinhança com o ato de matar, com o crime, o assassinato, ofendendo a
clareza da razão ocidental.
Outra mulher escritora em que vemos associada à Métis, essa inteligência astuciosa,
ardilosa, associada às forças instintivas é Marguerite Duras. Sua obra romanesca e seus
scripts de cinema revelam uma relação de assassinato com a literatura e com o cinema, o
qual suscita da escritura um debruçar-se sobre si mesma para “legislar” sobre o seu “crime”
com prudência, sutileza e presteza de espírito. Nela, como em Clarice, do lançamento de
corpo inteiro na obra nasce a instância primal dos primeiros filosofantes, arquejos da
filosofia (DURAS, 1988). Ela e Clarice são mulheres escritoras que trazem arcas literárias
nos seus ventres e têm um olhar certeiro que fixa um alvo com a habilidade de um arqueiro
(FERRAZ, op.cit., p.82).
Poderíamos estender esta auto-reflexão, a seguir, feita por Duras até a forma da
relação de Clarice com sua escritura, fingindo que as duas estão entrelaçadas na mesma voz
que fala de um você, um eu, um outro (ib.,p.46) :
A diferença entre você (Clarice) e eu (Marguerite) é que
para mim essa impossibilidade (a distância intransponível que nos
separa - a morte) é um inconveniente sem importância. Então,
veja, somos iguais, permanecemos (...) em nossos respectivos
compartimentos, em nossos territórios queimados,
incalculavelmente narcisistas, mas (...) gritamos para os desertos,
de preferência na direção dos desertos.

No livro “Corpo inteiro”, reunião de entrevistas realizadas por Clarice, naquela que
realizou com Oscar Niemeyer, a autora cita a si própria referindo-se a um texto que
escrevera sobre Lucio Costa e Oscar Niemeyer, assim definindo a criação: A criação não é
uma compreensão, é um novo mistério.
Nos tempos da irrupção massiva na literatura, a criação - entendida na mesma
ordem de fenômenos de intuição ou de forças instintivas - corresponde a um impacto que
pode exercer uma ação política performática, desarticuladora do pedagógico na relação
entre autor, texto e leitor. Uma política sem demagogia para conquistar um público que
desertaria das salas de leitura.
A reflexão teórica, estética que essa proposição clariciana desencadeia é
acompanhada de um exercício de trazer para a linguagem literária uma prática arquejante
de escritura. Ainda, de provocar em nós uma percepção das imagens urbanas do romance
num enlace com aquelas instauradoras de paisagens, tessituras simbólicas e redes
imaginárias, indissociando a cidade da dimensão da objetivação do ser, em que a questão da
violência, da crueldade ou do terror apresentam-se como determinação implacável da
existência mesma.
A arte de Clarice Lispector não é, entretanto, uma arte desesperada. A sua escritura
(re) engendra o caótico para, sem se tomar como uma literatura de promessa, reconduzir as
discussões acerca do redimensionamento humanizante ao cosmo, ou ao caósmico.
Vemos nessa postura política de Lispector o sentido maior de liberdade, em que a
experiência de transcendência se funda nos próprios abismos da contemporaneidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BADIOU, Alain. O clamor do ser.Deleuze: o clamor do ser. Tradução de Lucy Magalhães.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1977.
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença.Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza
da Silva.São Paulo, Perspectiva1971 (debates/filosofia, 49).
DURAS Marguerite. Os olhos verdes. Tradução de Heloísa Jahn. Rio de Janeiro, Editora
Globo, 1988.FAYE, Jean-Pierre. A razão narrativa. Tradução de Paula Martins. Rio de
Janeiro, Editora 34, 1996.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida
Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
FERRAZ, Maria Cristina Franco. Platão: as artimanhas do fingimento. Rio de Janeiro:
Relume Dará, 1999.
FRECHEIRAS, Marta Luzie de Oliveira. “Para além da metafísica está a mística”. In:
ENTORNO DA METAFÍSICA (organização de Marta Luzie de Oliveira Frecheiras e
Márcio Petrocelli Paixão). Rio de Janeiro, 7 Letras, 2001.
KRISTEVA, Julia. Powers of horror and essay on abjection. Transled by Leon S.
Roudiez. New York, Columbia University Press, 1982.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 16a edição -Rio de Janeiro, Francisco Alves
Editora, 1991.
LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem, 9a. edição – Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1980.
LISPECTRO, Clarice. De corpo inteiro. Rio de Janeiro: ROCCO, 1999.
MAFRA, Johnny José. A mulher escritora na literatura greco-latina e outros estudos. Belo
Horizonte: Editora Dimensão Ltda., 1989.
SCHOPENHAUER, Artur. APUD BARBOZA, Jair. Schopenhauer. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Edição 2003.

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