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CONSTRUTIVO COMUM-PERTENCENTE
ABRINDO A CENA
Para tanto, uma epistemologia do educar tem como tarefa não a simples elucidação da
correta educação humana, mas, sobretudo a construção de meios propícios ao
enfrentamento e resolução dos desafios inadiáveis do nosso tempo e de nossa vida
globalizada na perspectiva de uma realização doadora de seu próprio benefício.
De início, concebo a epistemologia do educar como campo investigativo aberto
e indeterminado, o que não nega sua imersão na “história do mundo” e na história da
ciência, e a compreendo como atividade filosófica radical, o que também significa o
manuseio e a criação de conceitos relativos às experiências do educar, no sentido de
uma práxis estética e ética implicada.
O que é tratado como epistemologia do educar, apresenta uma exigência radical
de investigação do conhecimento do conhecimento. Neste sentido, a expressão
epistemologia vinculada ao verbo educar se justifica pela urgência de uma ciência
humana que dê conta da educação continuada da espécie humana, visando com isto
desenvolver a transformação humana necessária à construção de sociedades implicadas
com o dinamismo da vida em transformação contínua, cuidando de sua integridade
renovada e em fluxo permanente. Epistemologia caracterizada pela radicalidade
aprendente e pela auto e alter formação contínua, nas diversas dimensões do constructo
ser-mundo-outro, nas circunstâncias próprias de seus autores. Entendo, assim, por
epistemologia do educar uma forma de conduzir os problemas do conhecimento
partindo do desenvolvimento de processos que reúnem teoria e prática em função do
aprendizado de quem se encontra aprendendo. A epistemologia do educar se constitui
como investigação permanente dos acontecimentos do educar que modulam e formulam
o comportamento humano histórico em sua vigência tendo em vista propor
transformações que favoreçam o desenvolvimento humano diversificado. Focando a
atenção na perspectiva da sustentabilidade da vida criadora comum e compartilhada –
vida comum-pertencente. Uma epistemologia fundamentalmente ética.
Entretanto, o sentido lato dos termos se transforma em um uso estrito. Esta noção geral
apesar de vaga é preciosa em relação ao uso técnico da palavra-conceito epistemologia.
De qualquer modo, ela é empregada nos meios acadêmicos autorizados para designar a
ciência compreendida em sentido sistemático e rigoroso, uma ciência objetiva e
“pública”, justificada em sua liberalidade e radicalidade. Afinal, vivemos na era da
ciência, ou melhor, da tecnociência, o que significa dizer entre outras coisas que o
impriting da sociedade do tecnoconhecimento governa o modo de ser da humanidade
planetária contemporânea.
Como escapar da força inercial da sociedade do tecnoconhecimento sem
produzir “ciência”, sem desenvolver “epistemologias”, sem produzir máquinas mais
perfeitas? E como poderá sobreviver ao império da sociedade do tecno-info-
conhecimento o sujeito, vazio e barrado da pós-modernidade, sem a nutrição de uma
parte do seu ser que se ramifica em rizomas de rizomas de rizomas, produzindo “linhas
de fuga” criadoras e condizentes com o estado de natureza que o condiciona ente-
humano, ser complexo na profundidade e na superfície vulnerável, bruto e sensível, ao
mesmo tempo aberto e inacabado, derivante e oscilante?
Pode-se, diante desse estado de coisas, intencionar algo a mais do que arranjos
epistemológicos e soluções técnicas avançadas para a questão aberta do ser humano
lançado na deriva cósmica do tempo expansivo? Pode-se, além do jogo retórico e da
novidade tecnológica, se pretender uma ciência do educar que conduza o ser humano
para si mesmo, lhe possibilitando a libertação do estado de indigência ancestral pelo uso
de sua inteligência, sociabilidade e sensibilidade? Pode-se ainda pensar em um estado
de natureza que necessita de cuidado amoroso para vir a florescer na plenitude do
próprio limite existencial do ser humano presente?
Se possível tal façanha, como alcançar com segurança e consistência o patamar
existencial da abundância e sustentabilidade sem o concurso de uma revolução na
relação do ser humano individual com seu mundo lá e cá, fora e dentro, exterior e
interior? É possível uma ciência do educar que não perca de vista a dinamicidade
permanente do aprender-desaprender, sem deixar por isso mesmo de ser ciência para ser
outra coisa, arte ou mística, filosofia ou Sophia? É possível uma ciência do educar
polilógica? Uma ciência além da ciência regular e acadêmica? Uma ciência do
conhecimento do conhecimento e do conhecimento do desconhecimento? Uma ciência
que também é arte, política, filosofia e poética mística?
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Será possível, além de propor, modelar uma ciência do educar que não se limite
a tomar a ciência como tecnociência, como metodologia para a solução de problemas
controláveis e monitoráveis? Será possível constitui-se uma ciência do educar capaz de
agir na dobra e na desdobra (redobra) homem-mundo, sujeito-objeto, ser-ente? Uma
ciência que não atuaria apenas com a lógica binária, mas se constituiria pela lógica do
antagonismo complementar e pela inclusão do terceiro termo, podendo manusear
linguagens e sistemas de representação sem a dominância do princípio da exclusão
monolingüista e polarizado?
Todas essas questões confluem para a mesma direção do acontecimento da
emergência humana polilógica, complexa, para além de todo saber dado. A
epistemologia do educar aparece como construção de mundo. Ela não partilha da
redução da ciência ao campo do mensurável e calculável porque ela abarca o estado
humano de dobra. Ela também abarca o incomensurável além de si no limite de si. Não
se deixa encantar pela “verdade” da objetividade científica, porque o seu ponto de vista
articulador pensa de igual modo a não-verdade da objetividade científica. O seu ponto
de vista é um metaponto de vista que é também apenas um ponto de vista, um
perspectivismo radical. Como metaponto de vista intencionado no educar, a
epistemologia do educar foi já batizada de “não-verdadeira” (GALEFFI, 2003), por
compreender em seu exercício a concretude humana além de verdade e falsidade, de
bem e de mal, de certo e errado.
Definir a epistemologia do educar como uma ciência não-verdadeira significa
primacialmente o reconhecimento do não-fundamento da experiência humana no saber
de si com o outro e com o mundo. Não existe uma verdade objetiva opondo-se
poderosamente à inverdade subjetiva. Existe sim uma relação de comum-pertencimento
entre o ser humano e suas circunstâncias, entre o sujeito (o corpo vivo derivante e
falante) e o mundo (o corpo vivo derivante e falado). Um e outro são o mesmo: são
campos derivados do mesmo sem-fundamento. Esta sutil diferença na mesma derivação
é o ponto de inflexão e consistenciação da epistemologia do educar exposta.
Sujeito e mundo são faces da mesma dobra. Neste sentido, o mundo não é aquilo
que existe independente dos sujeitos que o percebem. Mundo é somente aquilo que
pode ser visualizado e percebido como horizonte de um ser-mundo. Mundo é mundo
para o ser que percebe mundo. Ora, o ser que percebe é um ente vivo constituído de
sistemas de sistemas permanentemente dinâmicos e regulares. O ser que percebe-mundo
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humano como “dobra”. Um ser que não é sem o mundo e não se dá sem o outro que não
é sem o outro do outro. Um ser que em seu desenvolvimento como espécie alcança
níveis de realidade extraordinários, cada um dos quais diferenciados em suas etnias
concretas em ambientes de vida organizados por associação
Ser humano significa cada si-mesmo, os que compreendem. Cada um é humano
em determinada situação. Cada um tem seus valores, dispositivos morais, horizontes
existenciais, processos afetivos, constructos artísticos, crenças sobrenaturais, modos de
produção, formas de compreensão, meios de explicação. Cada um está no mundo e tem
seu modo próprio e impróprio de habitar, de existir. A epistemologia do educar
questionadora de tudo o que é e de nada que não é tem como fim implicar o ser humano
em seu crescimento espiritual, a partir de suas condições de origem, de suas
circunstâncias
Pode-se visualizar a grande diferença entre uma epistemologia associada ao
constructo “verdade objetiva” e uma epistemologia que usa a “dobra” para apontar o seu
movimento de compreensão do conhecimento do conhecimento e do desconhecimento.
Não nego a lógica como o problema da “verdade/falsidade” no campo dos discursos
apofânticos1, pois isto é um bem comum indiscutível. Nego apenas a monolateralidade
do discurso lógico formal, dedutivo e indutivo em momentos complementares. Nego ser
esta a única lógica experimentada pelo ser humano na compreensão de seus limites e
condições de existência em seu conjunto e em suas experiências de totalização.
No horizonte configurado, a imagem da “dobra” é apropriada para a significação
conceitual e criadora de uma epistemologia do educar, que não deixa de lado sua
maneira poética de indagar acerca do ser que se experimenta ser na compreensão
incorporada. Uma ciência que tem como objeto a ciência que se pode alcançar em si
1
O que se entende por “discurso apofântico” corresponde ao campo das proposições passíveis de demonstração
analítica, submetidas à prova de validade partindo de três postulados ou princípios: 1. Identidade; 2. Não-contradição;
3. Terceiro Excluído. Trata-se da formulação encontrada no Organon de Aristóteles, que passou a se chamar de
Lógica, compreendida na acepção analítica. Além destes três princípios, há também “categorias” que são tomadas
como “acusadores” das qualidades ou atributos de um objeto ou ente. Este sentido de “categoria” foi cunhado por
Aristóteles para indicar cada um dos conceitos que formam o conjunto dos gêneros ou divisões primeiras do ser
(substância, qualidade, quantidade, relação etc.). Um discurso apofântico, assim, é aquele que se constitui como
“demonstrável” em sua verdade ou falsidade, em “correspondência” com a coisa, ou objeto, ou ente referido no
discurso. Por exemplo, a expressão “A maçã azul voou das mãos do pássaro” não é passível de apofania
(demonstração através do discurso analítico, decompositivo, silogístico) porque já se encontra pressuposto que não há
maça azul, nem ela pode voar das mãos do pássaro. Portanto na concepção de Lógica formal, só os discursos ou
proposições passíveis de demonstração, por se adequarem à correspondência intelecção/coisa e/ou sujeito/predicado,
podem se tornar objetos de uma demonstração cujo foco é a verificação de sua adequação ou inadequação aos entes
ou objetos correspondentes. Os juízos verdadeiros ou falsos dependem da correspondência identitária entre o sujeito
da proposição e os seus predicamentos ou disposições formais e configurações materiais.
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mesmo, sem que seja preciso negar as diversas e múltiplas formas do que já se encontra
presente e vigente.
E, para caminhar na direção de um novo arranjo e morada para as “ciências do
espírito”, usando uma expressão ambígua, porém muito apropriada para as “ciências
humanas”, na medida em que o ser humano tem uma compleição cerebral capaz de não
apenas computar, mas também de cogitar. O “espírito” aparece na sua conjugação com
a “natureza” e demarca o aparecimento, na espécie humana, da sofisticada condição de
inteligibilidade e totalização contemplativa na dobra ser-mundo-outro. Pela experiência
espiritual o ser humano se depara com sua condição de solidão ontológica e procura, em
sua própria corporeidade enquanto espécie, cuidar de sua singularidade. Uma
singularidade que não é nenhum privilégio e é tão importante como os rastros de
estrelas mortas espalhados pelo universo já visível ao olho-máquina humano.
Encontro em Gadamer (2007, p. 153) uma inspiração salutar, quando considera
que “A tarefa de nossos dias é trazer à tona no jogo de forças das diversas e importantes
tendências da pesquisa uma nova combinação, um novo equilíbrio, e, por fim, novas
compreensões do homem em si mesmo que honrem o nome „ciências humanas‟”.
Pensando a epistemologia do educar como dobra ser-mundo-outro, abre-se um
campo de uma investigação que não pode mais se limitar às categorias da representação
sujeito e objeto do conhecimento, mas que também não pode abandonar tais categorias
porque elas apresentam os modos como o mundo nos é dado como formas lingüísticas
complexas, conceitualmente definidoras do campo ontológico em que tem se dado a
“vida espiritual e cultural” da espécie humana no planeta Terra.
A espécie humana também é uma forma limitada por seus próprios perceptos e
ideações, sempre ajustáveis às condições sociais em que se vive factualmente. O ser
humano vive de hábitos como qualquer ouro animal e tem limites como qualquer outro
ente, mesmo aqueles imagináveis e não-reais. O ser humano ao alcançar a potenciação
da consciência da consciência e da inconsciência é um ser que só ele mesmo pode vir a
saber-ser, por mais que isto possa parecer absurdo e teleologicamente infundado.
De direito, não é preciso nenhuma teologia para sustentar o projeto humano na
história, porque o que está em questão não é a simples diferença do homem em relação
a Deus e a conseqüente submissão humana em relação à Divindade. O que está em
questão é o modo como o homem pode tornar-se como Deus em sua própria dobra
vivente. Mas não para ocupar o lugar de Deus, e sim para compartilhar do ardoroso
Amor que incendeia em derivas incansáveis toda a vida que se alça inteligente na
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ressonância sensível de suas cordas molares e seus recursos moleculares. Algo que
como um relampejar também se recolhe na claridade da noite ou na escuridão do dia:
uma combinação de opostos formando um Terceiro.
A dobra humana precisa esquecer para poder sempre voltar a experienciar o
instante sem ocaso. Trata-se de uma ciência da ciência que também sabe dizer não-
verdades, como na poesia, sem que com isso deixe de ser amorosa e criadora.
Deixemos, portanto, a “verdade” de lado quando quisermos afrontar com firmeza,
coragem e dignidade a condição humana em seu inacabamento radical. Uma ciência da
ciência do educar é mais um exercício humano na realização de sua própria natureza
imponderável, contudo limitada e finita, inconclusiva e ainda mortal. Afinal, a
“verdade” só liberta quando experiencia-se na carne a passagem fugidia da vida-sendo.
E ela liberta não porque seja uma verdade propositiva e sim por ser a abertura de
compreensão que se torna em abundância comum-pertencente na totalidade conjuntural
de tudo o que é e de nada que não é. Torna-se uma passagem obrigatória para além do
constructo humano habitual determinado e fadado à vida de uma máquina orgânica
inteligente. Pois tornar-se humano parece não significar outra coisa além de tornar-se
como Deus é: um ser que não demonstra nada para alcançar a plenitude vivente, mas
deixa-ser a plenitude vivente cuidando para que ela cresça em seu crescimento e
aprenda a decrescer e recrescer em sua transformação contínua. Uma Epistemologia do
Educar que começa e se dispõe ao si-mesmo em sua dadivosa sabedoria e sensibilidade
aprendente: uma medida humana que ainda é o extraordinário.
REFERÊNCIAS