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LEVINASIANA
Tendo como ponto de partida o conceito de alteridade que Emmanuel Lévinas pautou no
horizonte da ética, proponho refletir alguns aspectos concernentes à educação. Com efeito,
discutir o tema da alteridade no contexto educativo é de certa forma contrastar com uma
sociedade que teima em tolher a palavra do outro. Diante de um cenário de mundo, onde os
laços de humanidade parecem estar em processo de desintegração, torna-se explícito o desafio
de pensarmos outras formas de conceber a vida. Acredito que é no encontro autêntico com o
outro e a outra que os seres humanos vão se constituindo sujeitos da própria história. No
encontro pessoa a pessoa, a humanidade vai construindo o caminho da própria humanização.
Indagar-se pelo rosto de outrem é perguntar-se pela própria possibilidade de um mundo a ser
construído nas bases da justiça, da esperança, da vida que não se deixa esmorecer diante das
tragédias humanas. Qual é o lugar do outro nos processos educativos é a indagação que me
faço e, à luz do pensamento de Lévinas, intentarei responder no decorrer do artigo. Assim,
pretendo explicitar a possibilidade de uma antropologia educacional em que os sujeitos
implicados são impelidos a um movimento de êxodo, um sair de si para abrir-se à epifania de
outrem. Mais especificamente, tomando como ponto de partida o pensamento levinasiano,
intenciono abordar a relação entre alteridade e educação.
Para responder ao propósito deste artigo, a exposição terá três momentos. Na primeira parte,
desenvolverei, em linhas gerais, o itinerário do pensamento levinasiano, procurando
evidenciar que a ética da alteridade está intimamente ligada à vida do autor. Em segundo
lugar, intenciono destacar que a ética da alteridade não é apenas mais um conceito filosófico,
mas um paradigma antropológico que questiona a sociedade em suas bases mais profundas.
Por fim, explanarei questões pertinentes à educação, evidenciando a maestria do próximo
enquanto expressão de alteridade.
1 O itinerário levinasiano
A ética da alteridade é a marca indelével que acompanha a trajetória de Lévinas. Tal marca é
a expressão de um pensador que ousou estabelecer um contínuo diálogo entre duas grandes
tradições culturais que perfazem a história da civilização ocidental. Inspirando-se na
‘sabedoria do amor’, sabedoria que foi sendo gestada no seio do povo hebreu, o autor em tela
vai questionar a cultura helênico-ocidental, quando nesta é o ‘amor à sabedoria’ que é
proclamada como primordialidade. Simbolicamente, acompanhando Rabinovich, é Jerusalém
interpelando Atenas: “O pensamento de Emmanuel Lévinas questiona o status da ontologia
como filosofia primeira e, sem dar importância à tradição filosófica e à primazia ao conceito
do ‘ser’, postula a anterioridade da ética entendida como ‘responsabilidade pelo outro’.”
(2000, p. 09).
1
Graduado em Filosofia. Doutorando em Teologia, na área de concentração Religião e Educação, do Programa
de Pós-graduação das Faculdades EST (São Leopoldo). E-mail: ir.luiscarlos@lasalle.edu.br.
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Num primeiro momento, Lévinas não tematiza a questão da ética de forma explícita. No dizer
de Costa, “o tema da ética só apareceu em forma de ligeiras insinuações em relação aos
limites da ontologia.” (2000 p. 69). Entretanto, paulatinamente, o autor em questão assumirá
uma postura mais crítica e divergente em relação tanto a Husserl como a Heidegger. Os
primeiros passos de ruptura com a ontologia heideggeriana começam a aparecer, de modo
significativo, no escrito De L’Évasion (Sobre a Evasão), em que Lévinas questiona a idéia do
primado do ser. Neste texto, escrito em 1935, nas vésperas dos acontecimentos da Segunda
Guerra Mundial que marcarão de forma traumática a história da humanidade, há um
rompimento do filósofo lituano com a concepção de um ser auto-suficiente, aprisionado em si
mesmo.
Em 1939, quando iniciou a Segunda Guerra Mundial, Lévinas, que se havia naturalizado
francês (1931), é convocado pelo serviço militar para o posto de intérprete das línguas russa e
alemã. Logo é feito prisioneiro na Alemanha. Pela condição de ser soldado francês, acabou
recebendo um tratamento diferenciado dos demais judeus e não foi enviado a um campo de
concentração, mas para uma prisão militar (Hannover, Alemanha), onde foi obrigado a
realizar trabalhos forçados. Boa parte de sua família, que se encontrava neste período na
Lituânia, foi massacrada. Sua esposa Raíssa e filha, escondidas num mosteiro, conseguiram
escapar da morte. Recebeu soltura somente ao final da guerra, em 1945. Nas palavras do
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próprio filósofo, desponta o significado existencial de uma tragédia humana como aquela da
Segunda Guerra Mundial:
Os mortos que ficaram sem sepultura nas guerras e os campos de extermínio
afiançaram a idéia de uma morte sem amanhã e tornam tragicômica a preocupação
para consigo mesmo e ilusórias tanto a pretensão do animal rationale a um lugar
privilegiado no cosmos, como a capacidade de dominar e de integrar a totalidade do
ser numa consciência de si. (LÉVINAS , 1993, p. 71).
O século XX ficou marcado por acontecimentos que fizeram desmoronar todo um ideário
humano construído principalmente a partir da razão iluminista. As duas guerras mundiais, o
holocausto que vitimou milhões de judeus, a crise da própria razão e das ciências são
exemplos de uma humanidade que se viu sem direção e sem sentido. Lévinas é um filósofo
que vive nesse contexto. A derrocada da humanidade concebida a partir do paradigma
ocidental, no entanto, não fez de Lévinas um autor meramente criticista. Com efeito, o
pensador francês-lituano não compactua com posicionamentos do tipo niilista. As
experiências da infância, as leituras da juventude, a vivência da tradição judaica, conjugadas
com os estudos filosóficos, mantêm seu pensamento instigado pela questão da vida e seu
significado existencial numa direção propositiva e esperançosa.
No face-a-face, isto é, no encontro com o rosto do outro, irrompe um sujeito que se descobre
responsável por este outro rosto. A ética não é apenas uma extensão do ser, mas uma ótica a
partir da qual a vida é percebida.
Enquanto Lévinas coloca a ética em primeiro lugar, Heidegger a coloca em segundo.
[...] Para um filósofo como Heidegger, a outra pessoa é apenas um de muitos, um
‘deles’: a multidão, a massa, o rebanho. [...] A questão de Lévinas é de que, se
nossas interações sociais não forem sustentadas pelas relações éticas com as outras
pessoas, então o pior pode acontecer, ou seja, o fracasso em se reconhecer a
humanidade do outro. Isso, para Lévinas, é o que aconteceu no Holocausto e em
outras incontáveis calamidades do século XX, em que a outra pessoa torna-se um
rosto sem face na multidão, alguém por quem o transeunte simplesmente passa,
alguém cuja vida ou morte é, para mim, um problema indiferente. (HADDOCK-
LOBO, 1996, p. 17-18).
A reflexão levinasiana foi tecida em constante diálogo com a tradição hebraica. Interessante
registrar que o autor escreveu diversos textos de interpretação acerca do Talmude, livro
complementar à Torá, contendo prescrições, leis, normas da doutrina religiosa judaica. São
textos que se circunscrevem num contexto mais teológico. No entanto, foi no horizonte
filosófico que a ética da alteridade foi articulada. Enquanto pensador Lévinas é
caracteristicamente filósofo.
O compromisso ético em acolher o outro lembra que o sofrimento que um ser humano
provoca sobre o outro não tem desculpas: “Condenar um inocente – ou mesmo condenar um
culpado sem provas – é uma falha da qual não se escapa nem pelo túmulo” (LEVINAS, 2001,
p. 56). O autor vai criticar as tradições religiosas quando reduzem a religião a um culto
privado e anacrônico. Deus, reduzido à imagem e semelhança das necessidades do ser
humano, foi usado para justificar as ações que são próprias da realidade humana. Por isso, o
culto ao Deus de Israel significa, num primeiro momento, uma atitude atéia, no sentido de
romper com a deificação de realidades arraigadas nas estruturas geradoras de escravidão e
alienação. Trata-se de assumir uma atitude profética, denunciando os falsos ídolos que
mantêm o povo submisso e excluído de uma vida humana mais digna.
No encontro com o outro, os seres humanos vão se constituindo sujeitos da própria história. É
no encontro pessoa-pessoa, que a humanidade vai acontecendo. A alteridade não é outra coisa
senão esse encontro que faz cada pessoa ser mais humana. Entretanto, ao falarmos no tema da
alteridade, salta aos olhos que no atual contexto de mundo vivemos uma cultura de negação
do autêntico encontro inter-humano. A sociedade contemporânea traz como uma de suas
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Já o sociólogo polonês Zygmunt Bauman lembra que cada sociedade, em épocas diferentes,
produziu seus estranhos, isto é, pessoas que não se enquadravam nos esquemas ditos
‘normais’. Para o mundo pós-moderno, os estranhos são aqueles que não se enquadram na era
do consumo. Deparamo-nos com um modelo social em que ser pobre é ser criminoso. Estar
fora do mundo do consumo é ser a ‘sujeira’ deste mundo. Numa expressão de Bauman, são
consumidores falhos:
Uma vez que o critério da pureza é a aptidão de participar do jogo consumista, os
deixados fora como um ‘problema’, como a ‘sujeira’ que precisa ser removida, são
consumidores falhos – pessoas incapazes de ser ‘indivíduos livres’ conforme o senso
de ‘liberdade’ definido em função do poder de escolha do consumidor. São eles os
novos ‘impuros’, que não se ajustam ao novo esquema de pureza. (BAUMAN, 1998,
p. 24).
O panorama de mundo que se apresenta não é nada tranqüilizador. De fato, como bem
caracterizou Fritjof Capra, no livro O ponto de mutação, a humanidade vive uma crise de
proporções nunca vistas em toda a história, pois “pela primeira vez, temos que nos defrontar
com a real ameaça da extinção da raça humana e de toda a vida do planeta”. (CAPRA, 2002,
p. 19). Nesse mesmo sentido, Leonardo Boff dirá que vivemos uma crise civilizacional, que
se expressa na falta de cuidado pela vida. Na era da comunicação, as pessoas nunca se
sentiram tão sozinhas: “a sociedade contemporânea, chamada sociedade do conhecimento e
da comunicação, está criando, contraditoriamente, cada vez mais incomunicação e solidão
entre as pessoas.” (BOFF, 2000, p. 11).
Discutir o tema da alteridade no contexto educativo é de certa forma contrastar com uma
sociedade que teima tolher a palavra do outro. Diante de um cenário de mundo, onde os laços
de humanidade parecem estar em processo de desintegração, torna-se explícito o desafio de
pensarmos outras formas de conceber a vida. A afirmação de uma cultura de paz ou de
violência passa pelas opções que as pessoas fazem para suas vidas. A história da civilização é
construída pelo ser humano. Em outras palavras, as feições que a humanidade vai tomando
não acontecem por acaso, mas são expressões da vida que foi sendo construída pela própria
humanidade.
Diferente de uma visão antropológica centrada na idéia de que o ser humano é condenado a
viver sob a lógica da competição, da conquista, necessitando de força bruta para se afirmar,
Lévinas propõe a concepção de que o humano se constrói à medida que se abre à humanidade
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do outro homem. A ética não é apenas uma dimensão do ser como propunha a tradição
ontológica, particularmente expressa por Heidegger. A ética, como expressão da alteridade, é
a filosofia primeira que antecede a ontologia. Lévinas entende que a filosofia ocidental, dos
pré-socráricos a Heidegger, centrou-se fundamentalmente na ‘questão do ser’, esquecendo-se
da ‘questão do outro’.
Na perspectiva levinasiana, a humanização passa pela relação de alteridade em que cada ser
humano é acolhido sem mediações ou representações. Em outras palavras, a singularidade de
cada ser humano deve ser acolhida como valor único, irredutível a qualquer tipo de
universalização. Assim, a relação inter-humana que Lévinas propõe vai de encontro à
compreensão de homem que foi se cristalizando na cultura ocidental e que a educação, em
suas diversas expressões, acabou incorporando e reforçando. Pode-se pensar aqui, por
exemplo, na forma como se dá o processo de aquisição do conhecimento na educação
tradicional ou bancária, como diria Paulo Freire, em que o educando, enquanto mero
‘receptor’ de conteúdos, tem sua alteridade despojada.
O diferente assusta, desassossega. Assim, na perspectiva ontológica, parece que não há espaço
para que a alteridade se manifeste. Pelo contrário, há uma incessante busca pela eliminação do
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diferente. O ideal de conhecimento, que foi sendo construído desde os primeiros filósofos
gregos, tem justamente a pretensão de garantir a tranqüilidade do mesmo mediante o controle
sobre outro.
Toda uma gama de conceitos, sistemas, concepções de vida que o pensamento tradicional
erigiu desde a Grécia antiga, Lévinas busca contrapô-los com a sua óptica da ética da
alteridade, inspirada na tradição bíblica. As expressões totalidade e infinito indicam
justamente esta contraposição. Enquanto a categoria “totalidade é a totalidade-totalizada de
Hegel, o absoluto e o mundo de Heidegger como totalidade que tudo engloba” (DUSSEL,
1986, p. 187), o conceito de infinito, na manifestação do outro, indica a verdadeira essência
do ser humano: acolher o outro em seu infinito mistério, como outro livre e que exige justiça.
O outro, conforme Vieira de Melo, “é terra santa, sacralidade absoluta. Para aproximar-se dele
é necessário tirar as sandálias, despojar-se de si mesmo, escutá-lo, e fazer-se responsável pela
sua existência.” (MELO, 2003, p. 17). À medida que o ser humano se abre para outro e busca,
diante desse outro, assumir uma atitude de acolhida e bondade, a vida vai como que se
revelando em mais vida. O pensador lituano-francês dirá que a dimensão da ética, entendida
como abertura ao outro, é a condição para que o processo de humanização aconteça. E nessa
caminhada, cada pessoa vai se dando conta que tal processo é motivado por um desejo infinito
que o invade.
Para indicar a ruptura da totalidade, Lévinas propõe o conceito de infinito. O rosto do outro se
manifesta como infinito, isto é, como mistério impossível de ser abarcado em conceitos
fechados. Ao contrário de um “eu ulissiano”, que deseja se apossar do outro, é um “eu
abraâmico” que responde à convocação através dum “eis-me aqui!”. O rosto do outro é apelo,
chamado, vocação.
O outro não é uma abstração, mas será positivamente e concretamente outro. E por este outro,
sou responsável. Diante do rosto de outrem, não há como fugir da responsabilidade de
manifestar-lhe uma resposta. Mesmo que seja na tentativa de tapar os ouvidos ao clamor que
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brota desse outro, essa negação já é uma resposta. No encontro com o próximo não é possível
ser neutro. Evocando Dostoievski, que diz que “cada um de nós é culpado diante de todos por
tudo e eu mais que os outros” (DOSTOIÉVSKI, 1971, p. 212), Lévinas afirma a idéia de que
diante do próximo sou ilimitadamente responsável. É uma responsabilidade pela qual não
tenho desculpas e é “anterior à minha liberdade”. (LÉVINAS, 2002, p. 219). Assim, a
alteridade tem seu sentido e significado na epifania do rosto, que se manifesta com toda a sua
nudez no pobre, no órfão, na viúva, no estrangeiro.
José Saramago, em seu romance Ensaio sobre a cegueira, põe na fala da ‘mulher do médico’,
única personagem que, numa misteriosa epidemia em que todas as pessoas duma determinada
cidade cegaram, ainda não havia perdido a capacidade de ver, o seu significado de
responsabilidade: “Hoje é hoje, amanhã será amanhã, é hoje que tenho responsabilidade, não
amanhã, se estiver cega, Responsabilidade de quê, A responsabilidade de ter olhos quando os
outros os perderam [sic].” (SARAMAGO, 2007, p. 241). Em sentido levinasiano, a ética da
alteridade, mais que um convite, é uma convocação aos homens e mulheres que ainda têm
olhos lúcidos para que assumam a infinita responsabilidade em acolher a interpelação de
esperança que brota do grito daqueles que têm sua outridade obliterada.
possibilidade de pensar uma práxis educativa que assume a tarefa de despertar as pessoas para
a alteridade.
O outro é o lugar sagrado diante do qual devo tirar as sandálias, despojando-me de toda
armadura que pode escamotear um verdadeiro encontro com o outro. Estar diante do outro,
num sentido ético, é simplesmente encontrar-me frente a esse rosto sem a pretensão de
síntese, mas respeito à transcendência do outro. A ética levinasiana demanda uma relação face
a face, sem intermediações ou rodeios. O rosto do outro se manifesta na palavra. Ou seja, a
linguagem está intimamente implicada na alteridade. Desse modo, acolher o outro de frente,
no discurso, é fazer-lhe justiça. A ética da alteridade se revela numa relação de aprendizagem
em que o outro é acolhido enquanto sujeito. Não é uma relação que se faz na intenção de
sobrepujar, dominar, controlar o outro. Por isso, diz Lévinas, “a relação com o rosto não é
conhecimento de objeto”. (LEVINAS, 2000b, p. 62).
Por outro lado, “nem todo o discurso é relação com a exterioridade.” (LEVINAS, 2000b, p.
53). Há discursos que falseiam a relação. Trata-se de retóricas que se utilizam de artimanhas a
fim de ludibriar o outro. A propaganda, a lisonja, a diplomacia são citados pelo autor como
exemplos de artifícios utilizados por uma retórica do convencimento. E a pedagogia, à medida
que “aborda o Outro não de frente, mas de viés”, inclui-se numa dinâmica ardilosa. Nesse
sentido, é uma pedagogia injusta e violenta. Por isso, “renunciar a psicagogia [sic], a
demagogia, a pedagogia que a retórica comporta, é abordar outrem de frente, num verdadeiro
discurso.” (LEVINAS, 2000b, p. 57).
Acolher o outro que me dirige a palavra numa relação face a face, sem mediações, é recebê-lo
como meu mestre. É uma relação não alérgica, que não transforma o outro em objeto
manipulável. Lévinas entende que o conhecimento acontece numa relação de mestre e
discípulo entre o outro e eu. Assim, não é no discurso impessoal, numa mera contemplação
do verdadeiro, que se estabelece o processo de conhecimento. É na experiência vivida com o
outro, frente a frente, que a verdade se estabelece como discurso e justiça.
No encontro com o outro que se estabelece como desejo e linguagem, o conhecimento se faz
como pronúncia do mundo. Nesse sentido, Lévinas expressa que “a realização com outrem
não se dá fora do mundo, mas põe em questão o mundo possuído. A relação com outrem, a
transcendência, consiste em dizer o mundo a Outrem. [...] A generalidade da palavra instaura
um mundo comum.” (LEVINAS, 2000b, p. 155). A linguagem permite por em comum, numa
oferta generosa, um mundo até então meu. E mais do que pôr em comum algo já pronto, o
encontro com o outro na linguagem é criação de um mundo que se torna comunhão.
face a face. A palavra, que não se reduz a signo, expressa-se como ensinamento. Em outras
palavras, a linguagem que emana do rosto do outro é ensino. Ensinar não é dominação, nem
conquista. Não é um processo que se dá ao estilo de uma pedagogia socrática. O ensino do
outro não é uma espécie de ajuda maiêutica que seduz o eu a fechar-se em sua interioridade.
“O ensino não é uma espécie de um gênero chamado dominação, uma hegemonia que se joga
no seio de uma totalidade, mas a presença do infinito que faz saltar o círculo fechado da
totalidade.” (LEVINAS, 2000b, p. 153). Acolher o outro é estar aberto a um ensinamento.
Abordar Outrem no discurso é acolher a sua expressão onde ele ultrapassa em cada
instante a idéia que dele tiraria um pensamento. É, pois, receber de Outrem para
além da capacidade do Eu: o que significa exatamente: ter a idéia do Infinito. Mas
isso também significa ser ensinado. A relação com Outrem ou o Discurso é uma
relação não-alérgica, uma relação ética, mas um discurso acolhido é um
ensinamento. (LEVINAS, 2000b, p. 38).
A ética da alteridade se revela uma pedagogia da escuta da palavra do outro. Palavra que se
faz também no silêncio. O silêncio do outro não significa necessariamente ausência de
palavras. Num sentido metafórico, “[...] a palavra está no fundo do silêncio como um riso
perfidamente contido.” (LEVINAS, 2000b, p. 78). Por conseguinte, o silêncio é uma palavra
que assusta, mas que também me interpela e me ensina.
Numa expressão de Chalier, pode-se dizer que a pedagogia levinasiana é uma “pedagogia do
exílio”. (CHALIER, 1993, p. 105). À medida que a relação inter-humana é concebida numa
perspectiva heterônoma, onde a alteridade não é reduzida aos parâmetros de um eu solipsista,
o eu é interpelado a sair de sua casa para ir ao encontro do outro. O outro, enquanto meu
mestre, inquieta-me, tira-me do sossego. Sou, enfim, instigado a sair da minha terra e das
minhas raízes para pôr-me a caminho e à disposição da alteridade que se manifesta. A
pedagogia do exílio ensina que o humanismo do outro homem se revela no respeito pelas
diferenças, na hospitalidade e acolhida ao outro, no reconhecimento da dignidade dos
injustiçados, na solidariedade com os que mais sofrem.
em cada pessoa o desejo pelo bem do outro e do cuidado para com o outro. Um desejo que
extrapola a mera preocupação pela satisfação das necessidades pessoais.
Diferente de Sartre, que via no outro o inferno do eu, Lévinas afirma a abertura para a
alteridade como princípio de humanização. O rosto do outro que se apresenta
existencialmente ao eu como epifania é expressão do significado da própria vida humana. Ao
invés dos axiomas ‘eu sou’ ou ‘penso, logo existo’, a ética da alteridade afirma o ‘eis-me
aqui’ como palavra de uma vida que se revela em mais vida. A vida se revela no seu
significado mais pleno à medida que a alteridade é internalizada na dinâmica humana. A
educação, independente do espaço em que ela ocorre (escola, família, grupos sociais etc.),
revela-se um instrumento imprescindível para fomentar no coração de cada pessoa a
sensibilidade desejosa pelo bem do outro.
A ética da alteridade ensina que o sujeito não se liberta sozinho, mas na contínua abertura e
acolhida ao outro. A atitude que humaniza e faz o ser humano mais feliz é a assunção da
responsabilidade pela felicidade do outro. Assim sendo, entende-se que o pensamento
levinasiano se constitui num horizonte a partir do qual a práxis educativa é interpelada a
assumir processos de libertação.
Palavras finais
À guisa de conclusão, é possível dizer que diante de expressões anti-humanistas em que o
outro é desprezado, Emmanuel Lévinas é um pensador que ousa questionar o individualismo
da sociedade ocidental. Seu questionamento, longe de ser um niilismo, tão presente em muitas
correntes críticas, desperta a esperança e a busca pela construção de um mundo pautado pela
ética da alteridade. Testemunhando os horrores dos campos de concentração nazistas, o autor
em questão assume a tarefa de compreender a humanidade na perspectiva do outro, na qual
cada pessoa se sente desafiada a responder ao apelo que brota deste outro.
A educação, seja ela formal ou informal, é um processo que se dá dentro de um contexto mais
amplo. A educação não é neutra. Assim, à medida que o pensamento ético indaga à cultura
ocidental pela questão do outro, a educação também é questionada. Acolher o outro, não
significa fazer com que esse outro entre na minha casa no intuito de acomodá-lo conforme os
meus critérios. O próximo que vem a mim e pede acolhida traz uma boa nova, uma surpresa,
que me desinstala. Oferecer hospedagem, portanto, é ter uma atitude desvelada e não alérgica
diante da palavra que o outro me dirige. E no processo de abrir-se à alteridade, num
movimento de êxodo, o ser humano vai se fazendo mais humano.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998,
272 p.
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 6. ed. Petrópolis:
Vozes, 2000, 200 p.
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. 25. ed.
São Paulo: CULTRIX, 2002, 447 p.
CHALIER, Catherine. Levinas: a utopia do humano. Lisboa: Instituto Piaget, 1993, 185 p.
COSTA, Márcio Luis. Levinas: uma introdução. Petrópolis: Vozes, 2000, 239 p.
DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Levinas. São Paulo: Perspectiva, 1997, 142 p.
DUSSEL, Enrique. Método para uma Filosofia da Libertação: superação analética da
dialética hegeliana. São Paulo: Loyola, 1986, 292 p.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Os irmãos Karamázovi. São Paulo: Abril Cultural, 1971, 535 p.
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