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<< Noo Bai - Para além do Adamastor >>

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João Moura
Mar. 23, 2007 at 10:18 AM

 
Há dias, ao fim da tarde, antes de irmos à festa do Igor, fui com a Ema ao "Noo Bai",
uma esplanada num recanto suspenso de Lisboa, com vista para o Tejo.
O "Noo Bai", fica para além do Adamastor e enquanto desciamos as escadas de ferro,
ela confidenciava-me que tinha preferido ficar lá em cima a ver os malabaristas e os
engolidores de fogo a praticarem.
Sentei-me na esplanada a beber uma cerveja que pedi ao balcão, na única mesa que
estava livre e numa posição em que podia ver a minha filha brincar com a Maria que
tinha aprendido a andar há pouco tempo. Desenhavam num quadro preto em ardósia,
como os das escolas.
Toda a gente parecia feliz, como se aquele pôr-do-sol fosse apenas partilhado por
quem ali estava naquele momento. Uma espécie de "nós", formado por
desconhecidos que partilhavam algo de importante. Aquilo era algo mais do que ser
dono do seu próprio Banco. Então, lembrei-me daquele empresário do Lusco-Fusco
que dizia:
-Aquilo dura apenas uns minutos. Mas olhe que vale a pena. Imaginei-o naquele
preciso momento a começar a "dar tudo", mas apenas por alguns instantes.

Numa mesa atrás de mim, um homem e uma mulher conversavam.


Já tinha passado muito tempo, talvez até tempo demais, desde a última vez que eles
tinham estado juntos. Tinham-se conhecido na Universidade há dez anos e não se
viam há cinco, ou mais.
Ela casou, ele dava-se mal com o marido dela e nunca mais se viram. Até que hoje se
haviam encontrado por acaso numa livraria do Chiado.
Ele, há muito perdera o contacto com os amigos comuns:
-O Márcio Jerónimo, por exemplo, quantas vezes é que ele me telefonou? E riu-se.
Imaginei-o a encolher os ombros e a olhar para as luzes lá longe, do outro lado do rio.

Estavam nos antipodas. Da mesa, do mundo e um do outro também.


Ela casada, ele solteiro. Ela ancorada. Ele farto de viajar, de correr o mundo, de viver
em locais remotos da terra, nas montanhas em casas de pedra sem electricidade no
meio da natureza. E desafiava:
-Há sempre um preço a pagar pelas opções que tomas. Tás a ver? Podes virar à direita
ou à esquerda. Escolheste virar à esquerda? Azar. Morreste ali..
Só queria ter visto a cara dela naquele momento, mas se me virasse, seria o fim. Ia ter
de continuar a tentar imaginá-los.
A empregada passou por ali e sorriu. Eu devia estar com um ar um bocado fora dali.
Reparei então que ainda não tinha tocado na cerveja. Dei um golo para disfarçar.
Senti as orelhas a arder por ser um "voyeur". Um expectador da vida alheia. Mas logo
me recompus: Afinal, se os pintores se podiam inspirar na natureza, como poderei eu
evitar escutar a voz humana? Lembrei-me de ir sentado no "Metro" a ouvir as
conversas e a tentar imaginar a vida daquelas pessoas.
Ele continuava a falar:
-Eu paguei o preço em solidão. E ria-se, enquanto eu tentava imaginar o ar dela a
tentar disfarçar o desconforto que as palavras dele lhe provocavam ao revelarem sem
pudor aquilo em que a vida dela se havia transformado. Quando teria sido ao certo o
momento da sua morte? Tentou em vão lembrar-se do momento em que havia
escolhido virar à esquerda.
Ele não. Estava só, mas não lhe parecia pesar a solidão. Ele é que tinha abandonado
todos. Estava por sua conta e risco e parecia dar-se bem com tal situação: Free..
Lance.. dizia ele entre risadas:
-Não ando a pagar uma casa ao banco, não tenho agregado familiar, nem ordenado
certo ao fim de cada mês, nem seguro de saúde, nem de vida.. Tu, tens o seguro, mas
não a vida...
Fez uma pausa antes de prosseguir:
-Vê se entendes: Eu, para o Ministério das Finanças, simplesmente não existo. Dizia
ele com orgulho evidente.
-Tás a ver? E ria-se muito feliz consigo mesmo ou da cara dela. E repetia-lhe para
que ela não se esquecesse, ou como quem repete o refrão de uma canção:
-Há sempre um preço a pagar... E ria-se como só se riem aqueles que fizeram uma
grande descoberta, uma descoberta maior do que a vida.
Depois do véu de silêncio e constrangimento que pousou sobre as palavras dele se ter
dissipado, ela arrisca:
-Porque te foste embora sem um destino? Um dia, desapareceste e nunca mais
ninguém te viu... Por onde andaste tanto tempo? Parece que foi noutra vida. Tinhas
uma vida fantástica e de repente, foste-te simplesmente embora...
Havia um tom de ácido ressentimento nas palavras dela que aquele tempo todo não
tinha conseguido apagar.
Ele riu-se.
-Eu trabalhava 12 dias por mês e ganhava uma fortuna, atendendo a que o meu
trabalho consistia básicamente em não fazer nada, durante a maior parte do
tempo. Vivia em Sintra num velho palácio com piscina no jardim. Tomava conta da
casa.. (risos) o trabalho era só ao fim-de-semana quando chegavam os turistas. Um
dia senti que tinha chegado a hora de partir. Porque eu sabia que tinha que haver algo
mais do que aquilo. Tás a ver? E exemplificava:
- Desses "amigos" todos de que falas, quantos me telefonaram nestes 10 anos? Ou eu
a eles? O que perdi?
Ela nem pia..
Ele parece agora um toureiro a preparar a estocada final:
-A verdade é que nós já não temos nada para dizer uns aos outros.
E deixou que as palavras libertassem o aroma antes de continuar:
-Tu abraças-me, sorris e dizes-me: Quando estiveres em Lisboa, telefona, aparece
para bebermos um café ou ires jantar lá a casa.. Mas tu sabes que eu não te vou
telefonar. Sabes que eu não bebo café. E tu também sabes que eu não vou aparecer
"lá em casa" para jantar...
Tu sabes que isso tudo faz parte de tanga global a que tu pertençes e eu não. Tu sabes
e eu também sei que esta foi a última vez que estivemos juntos. Este pode muito bem
ser também o nosso pôr-do-sol. O futuro não existe. Como no futebol, só existe o
momento. Este momento.
E foi então que ele recoslveu explicar-lhe tudo o que sabia:
- A tua vida só começa verdadeiramente a fazer sentido, no dia em que tu perderes o
medo de ficar só.
E desta vez, ele não se riu. E perguntou-lhe:
- Tás a ver?
Nunca saberei se ela estava a ver ou ou não. A frase dele explodiu na minha cabeça
em camera-lenta.
Não sei quanto tempo passou, sem que nenhum deles proferisse uma palavra. Aquele
silêncio pareceu-me durar o tempo exacto de um Lusco-Fusco.

Levantei-me e chamei a Ema.


-Diz adeus à tua amiga Maria porque vamos embora.
-Ohh, pukê?
Eu ri-me, enquanto acenava à pequena Maria e aos seus orgulhosos pais, e respondi-
lhe:
-Vamos à festa do Igor... tás a ver? E ri-me, olhando instintivamente para o rio que
reflectia luzes vindas de ambas as margens enquanto subia a escada a pensar que não
tinha chegado a ver a cara deles.

À entrada da festa, uma mulher jovem com um sorriso bonito, em vez de uma
bandeja com flutes de champanhe, estendeu-nos uma terrina com marcadores de
acetato coloridos. A Ema tirou uma caneta vermelha e outra verde.
Por cima do ombro dela via gente empoleirada e de cócoras, com canetas na mão a
pintar paredes. Coloriam desenhos a preto nas paredes brancas da loja.
Felicitei o nosso anfitrião pela fantástica ideia, cumprimentei alguns amigos e dirigi-
me ao Bar onde a Joana empoleirada no cubículo do barman, pintava as letras do
reclamo luminoso com caneta côr-de-rosa. Pedi um vodka.
A Ema propunha ao Merlin uma troca de canetas:
-Troco a verde e a vermelha pela côr-de-laranja e a azul.
P.S.
As fotos em anexo permitem entender as alusões cromáticas relativas  à troca de
canetas entre a Ema e o Merlin: O autor (eu) pretende sugerir que o encantamento do
mágico Merlin, levou a  Ema a abdicar do Verde e do Vermelho (Pátria e Benfica) em
troca do azul (FCPorto) e do laranja (cor da casa D'Orange, a mãe é holandesa)...
Porque o amor, se não é cego é  pelo menos, daltónico.

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