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Paul Klee
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O objetivo desta escrita é desmanchar o trabalho que tivemos como captador de som
direto e editor de som nos curtas-metragens “A estória da Figueira” (Ficção, 35mm, 15
min.) e “Tarabatara” (documentário, 35mm/S-8mm, 23min.), e ser ela própria uma escrita
desmontável, no sentido de que não se enrijeça num modelo inclinado a delimitar o alcance
de uma força livre e fluente como o som, cuja natureza volátil tem nos parecido bastante
hábil em atravessar formas, sujeitos e estratificações - alegria do uivo que, partindo da
garganta do lobo, pode encontrar-se com novas matilhas de sons e se transformar no
barulho do vento, balançando árvores na tela de cinema.
Para nós o som não se encaixa bem em sistemas fechados, é como água corrente
escorrendo por entre os dedos de quem o tenta agarrar. Trata-se de uma potência sensorial
atravessada por afectos1, capaz de estabelecer com as imagens infinitas relações de
velocidade e lentidão, mais do que preenchimento ou decalque.
Para deduzirmos a natureza transterritorial do som temos o exemplo da Estória da
Figueira, quando o mesmo ruído de taças de cristal tilintando e vibrando com água, gravado
em estúdio, foi usado primeiramente como notas musicais sugerindo badalos de sinos, na
cena em que o fantasma da mãe aparece pendurado numa árvore. Logo em seguida esse
mesmo material sonoro assumiu a função de sonorizar os gestos deste fantasma, durante
sua corrida pelo laranjal. É também de cristal o som agudo das pazadas do Jardineiro, na
cena em que ele briga com a terra. São sinos de música ali, gestos frágeis de fantasma
acolá, choque agudo de pá com pedra – são partículas sonoras cristalinas liberadas a partir
de uma taça de cristal, migrando de um evento fílmico a outro, saindo da música para virar
ruído de sala, sempre mudando de natureza ao se conjugar com novas variáveis, e
continuando livres para composições porvir.
Em “Tarabatara” o som de um serrote sacudido, também gravado em estúdio,
conjuga-se ao movimento dos facões das mulheres ciganas na abertura da cena final, para
depois, nesta mesma seqüência, ter pequenos fragmentos transformados em coaxar de sapos
quando a imagem nos oferece um lago. Sapos de metal, ondas de movimento metálico
vibrando no ar, energia sonora potencial. Fica claro que um mesmo som assume diferentes
formas e funções, é vaporoso, territorializa-se num gesto para logo em seguida coaxar num
lago.
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Achamos que aqui o termo é bem adequado porque “não é um sentimento pessoal,
tampouco uma característica, ele é a efetuação de uma potência de matilha, que subleva e
faz vacilar o eu.” (Deleuze e Guattari, em “Mil Platôs”).
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A vibração do cristal se aproxima muito de uma freqüência pura. O serrote sacudido
parece operar uma variação ondulante entre freqüências ou timbres metálicos. Quanto mais
perto chegamos destes sons, das freqüências puras e das intensidades sonoras em variação
contínua, mais do que descrições de um objeto específico, temos a oportunidade de tornar
audíveis forças não-sonoras, e a chance de ouvir notas primordiais da terra, como o choro
de uma planta, o transcorrer do tempo no interior de uma molécula, a respiração numa
cratera ou o marulho do Cosmos. Isto não é conseguido, no entanto, sem a delicada
simplicidade com que estas forças sonoras se recombinam pela natureza, com paciência,
sobriedade e alguma dose de acaso.
Acreditamos que os sons nos atingem a partir de um campo de composição onde as
micropropriedades sonoras, mais do que significado ou significante a priori, são
intensidades livres em contínua efervescência molecular. São vetores que podem assumir
diferentes relações de velocidade e lentidão e mudar de natureza ao se conjugarem entre si
e com imagens. Vetores traçando com as imagens mapas recombináveis e fronteiras
móveis, para compor um fluxo transportador de afectos.
A criança liberta a relação tradicional entre um objeto e seu som quando senta-se à
máquina de escrever e, ao invés de formar no papel uma frase legível, resolve tocar as
teclas para com elas produzir o som de um trem andando. A máquina, mais do que imitar o
trem, é agenciada pelos dedos da criança numa relação de desejo, velocidade e lentidão
com o andamento da locomotiva, até que no lugar de palavras ela passa a datilografar
paisagens, descrever percursos, marcar paradas e distâncias dentro de um ritmo ou
itinerário fluente. A criança, através de seu desejo, encontra nas teclas da máquina
movimentos e repousos que num plano de composição conjugam-se ao pulso do trem. Uma
partícula de ferro sobre uma linha de graxa.
Se gravarmos a performance da criança à máquina de escrever e extraírmos desse
som algumas partículas para serem recombinadas com ruídos e silêncios, ritmos e
intensidades de um trem de verdade, e se também colocássemos um apito que é na verdade
o som do vapor saindo de uma antiga máquina de fabricar chapéus, e quem sabe ainda o
som de umas hélices, teríamos talvez construído, não através de metáforas nem analogias,
mas pela efetiva recombinação entre materiais sonoros, uma nova máquina, um novo meio
de transporte que não leva mais passageiros, palavras nem chapéus, mas transporta apenas
afectos, distâncias e proximidades entre materiais sonoros. Então passamos pelo campo da
música. Ou pelas intensidades musicais exteriores aos instrumentos e à própria música, pois
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percorrem tudo que soa no universo, das estrelas às moléculas.
Agora não teremos mais uma máquina de escrever ou um trem, nem uma analogia
entre dois objetos, mas uma zona de vizinhança indeterminada entre máquina e locomotiva,
um intervalo entre o qual os sons guardam ainda traços de indiscernibilidade, trazem
múltiplos encaixes e não podem ser atribuídos a formas, objetos ou sujeitos delimitados.
São partículas sonoras liberalizadas, lançadas para fora de seu território original
possibilitando novos engates e composições. No papel datilografado pela criança não
teremos uma frase legível, mas possivelmente um emaranhado de linhas capaz de ser lido
apenas como partitura musical. Os pontos no papel farão sentido quando se conectarem em
linhas de um andamento, um ritmo com pausas e intervalos. Ao invés de um enunciado,
apenas partidas, paradas e itinerários desejosos.
Acreditamos que sentados à ilha de edição de som também devemos encontrar, em
nós e em tudo que nos envolve, movimentos e repousos que nos aproximem da criança à
máquina de escrever, promovendo, através do desejo, cruzamentos entre multiplicidades
sonoras que mudem de natureza ao sair de sua terra natal para encontrar o silêncio de uma
imagem. Em nosso papel desejamos datilografar mapas que possam também ser lidos como
música, pois terão um pulso e também pausas, coordenadas e fronteiras permeáveis, zonas
de indeterminação, velocidades e lentidões sobre uma linha de trem ou tapete voador.
Grande perigo que se abre diante do mundo das intensidades sonoras livres é deixar
o mapa virar borrão, ser cacofonia ruidosa levando ao aniquilamento não só do filme como
de todo encantamento sonoro, que requer simplicidade e prudência, pois se compõe, acima
de tudo, de silêncios e quietudes. As freqüências puras não são boas ou ruins, mas “gozam
de intrínseca cegueira quanto aos fins, como são, potências de meio, justamente o meio em
que sempre nos encontramos.”2 O fascismo, por exemplo, se propagou sobre uma linha de
intensidade livre que o corpo do Estado já não podia conter, assim como o câncer no corpo
humano ou os fluxos mundiais financeiros na economia internacional. A música da qual
falamos é de poucas notas, molecular, de um ritmo assimétrico como o mar, construída no
nível de cada tentativa, a cada nova passagem de intensidade, ventos ou cristais,
irmanando-se daquilo que emite voz e respira.
Tentaremos agora recombinar blocos de memória de nosso trabalho nestes dois
filmes, não para consolidar um modelo que se mostre eficaz em novos projetos, mas na
tentativa de manter vivo o dinamismo da busca diária pela alegria do som.
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Luiz B.L. Orlandi, no texto “Que estamos ajudando a fazer de nós mesmos?”.
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Alegria libertadora de partículas, através da qual o instante silencioso de uma
criança espirrando em Super-8 pôde ser sonorizado por um fragmento do ruído de vapor
escapando pela panela de pressão, agenciando um A-tchim que ao ocupar um gesto não se
encerra sobre ele nem delimita seu alcance, mas libera outros ares e pressões possíveis.
Assume a existência de uma zona de indeterminação criativa entre o nariz que espirra e o
bico da panela a girar.
Que bons ventos nos traz o espirro cigano da pequena Sielma…
Numa tarde quente nos enfiamos com o equipamento de gravação no meio do mato.
Chegamos até uma mangueira, grande árvore honrando o chão com seus frutos caídos. Ao
redor das mangas apodrecidas circulavam muitas espécies aladas, moscas de diversos
tamanhos, besouros multicoloridos, vespas, borboletas e mamangavas. Para o microfone tal
paisagem sonora assemelhava-se a uma sinfonia de leves hélices, num movimento vivo e
circular feito carrossel de fadas. Sem pressa gastamos meia hora de fita ou mais. Depois é
que iríamos descobrir a importância das asas dos insetos no filme montado. Moscas que em
breve teriam sonoridades tão variadas quanto aquela festa alada na clareira.
O que testemunhamos então foi um evento sonoro, que iria acontecer
independentemente de nossa presença naquela tarde de calor. Em alguns casos, mais
importante do que conceber um som, é estar presente no evento sonoro, entrar de mansinho
e sem fazer barulho nas festas da floresta. Somos caçadores de matéria invisível e nosso
único dever é ser capaz de ficar em silêncio, preservar e sentir o silêncio de cada lugar. No
caso, silêncio de múltiplas asas. Fazer sistema com a mangueira generosa, a clareira, os
frutos podres, os insetos alegres, a cápsula do microfone e a pequenina floresta de pêlos que
vive dentro dos nossos ouvidos. Sistema aberto. Dispositivo ouvinte ligando-se a uma
máquina sonora. Ou encontro entre Floras.
Em outra situação saímos de madrugada, com muita prudência para não acordar os
lobisomens. Andávamos por um campo aberto quando começamos a ouvir cachorros
latindo, muito, muito longe. Paramos e começamos a gravar. Era um silêncio de grilos
espaçado com ressurgências de uivos longínquos. Nossa audição reteve-se nos cães, sentiu
a distância que nos separava, supôs espaços vazios. O marulho estava calmo. Num átimo
um pássaro noturno e de mau agouro pôs-se a gritar, muito perto do microfone. Pudemos
ouvir o bater silencioso de suas asas. Nunca tínhamos escutado um canto assim, era como
um lamento que assustava. Tanto que não pudemos usar este som no filme porque ele foi
poluído por um pequeno grito incontido de nossa parte. No entanto foi tirada a certeza de
que a natureza, e consequentemente o mundo sonoro, realmente opera por
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imprevisibilidade e surpresas, pequenos sustos ela nos dá. São sustos saudáveis capazes de
recombinar nossa relação com os espaços, quando as intensidades que pulsavam no escuro
longínquo fazem um arco e são trazidas à flor dos nossos ouvidos, através do canto lunar de
uma ave em fuga.
Pudemos perceber como a paisagem sonora se dilatava e rarefazia-se nas horas de
calor em oposição ao furor dos bichos na aurora. Como os cães se chamavam por uivos à
distância, os galos marcavam seus territórios aos gritos, sapos que se faziam presentes
apenas por som. Percebemos que os espaços comportam-se como uma espécie de oceano,
têm marulho próprio, oscilações sujeitas a infinitas variações, ventos inesperados vindo
para refrescar a cuca. Não chegamos a ver nem dez por cento dos entes que ouvimos nestes
dias. A natureza opera por sonoridade, em alguns casos mais do que por visualidade. Os
territórios e as fronteiras, as horas do dia, são marcados pelos cantos dos pássaros, pelos
tambores dos sapos. O uirapuru, por exemplo, se propaga por som enquanto esconde sua
imagem pequenina. Já existiam gravações de seu canto mas muito ainda se demorou até
que conseguissem filmá-lo. Isso, no entanto, não impediu que Índios mesmo sem vê-lo,
atravessados pelas intensidades correntes em seu som, pudessem reagrupar estas forças em
fábulas e assim reencaminhá-las à paisagem renovada, às tragédias ou às estações chuvosas,
fazendo-as passar não só pelo homem ou pelo pássaro, nem pela audição ou pela visão, mas
pulsar por entre toda natureza, em contínua e variante afirmação da vida.
Parados no meio da mata, em silêncio com microfone em punho, nos tornamos
imperceptíveis. Fazemos sistema aberto com o entorno, conectamo-nos a uma máquina
sonora pulsante tecendo malhas moleculares em sutil variação. Deixamos de ser homo
sapiens predador por nos tornarmos apenas ouvido, mil pêlos auriculares vibrando em
sistema com a multiplicidade sonora que nos envolve.
Gravamos a cachoeira ao longe, vamos chegando perto, adaptando o corpo equipado
ao relevo incerto, descobrimos a água correndo por dentro de uma loca de pedra, eco
agradável. Outra experiência foi levar ao campo apitos de chamar passarinhos e
instrumentos que produziam sonoridades parecidas com vento e chuva, e fazê-los soar num
espaço aberto, longe do microfone, para que seu som se misturasse aos sons da paisagem,
fizesse sistema, ouvisse respostas, mais um ente marcando seu território, ou um novo matiz
alterando sutilmente a paisagem.
A partir destas experiências pudemos entender a construção dos ambientes na edição
de som como a tecelagem de um mar. Os ambientes são como o marulho de um filme. São
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os batimentos distantes que nos chegam de uma zona brumosa - última camada audível, no
limiar entre uma imagem e o silêncio. Este marulho dos ambientes pode ser também vivo
como um oceano, inconstante, estar em variação e supor profundezas. O marulho de um
filme pode ser, como o mar, capaz de uma violência incompreensível, mas também de uma
piedade inaudita. Calmaria e borrasca. O ambiente pode, através de um pássaro zombeteiro,
rir da tristeza de um personagem, ou ir se calando ao longo de um ritual de feitiçaria. Pode
avançar até ser a única coisa audível ou recuar em direção ao silêncio. O ambiente pode
indicar direções, mudar os ventos do filme, aproximar o deserto ou afastar as florestas,
trazer as turbinas ou silenciar as sirenes. É o ambiente quem traz o fora e permite as fugas,
prolonga as margens da imagem na medida em que supõe amplidões imensuráveis na
paisagem.
O ambiente é a multidão que se faz presente no filme apenas por som. Claro que
esta multidão pode e deve ser molecular, criativamente selecionada, composta acima de
tudo por quietudes. Como a multidão de partículas viajantes do ar, roçando sem pressa as
sinetas de um mensageiro dos ventos.
Talvez encontremos no marulho dos ambientes possíveis respostas à inquietação de
Tarkovski: “…tenho a sensação de que devem existir outras maneiras de trabalhar com o
som, que nos permitiriam ser mais exatos, mais verdadeiros para com o mundo interior que
tentamos reproduzir na tela, não só o mundo interior do autor, mas aquilo que é intrínseco
ao próprio mundo, que faz parte de sua essência e não depende de nós.”
A aventura do som direto continuou quando a equipe de arte começou a trazer
objetos das fazendas vizinhas para compor o cenário. Objetos autênticos de tempos
incertos, com o único critério de que não remetessem à era do plástico, do papel-moeda e
da indústria. Penso que grande parte da simplicidade visual do filme vem do fato de uma
história fantástica estar inserida numa direção de arte que não vai buscar fantasia em
objetos alienígenas, papéis brilhantes ou em artefatos fora de escala, mas sim na
proximidade das vizinhanças.
Em pouco tempo começaram a chegar cadeados do tempo da escravidão, tachos de
cobre, panelas leves e pesadas, ferramentas de jardim, carriolas feitas à mão, etc... Como
não tínhamos pressa, donde se vê mais uma vez a importância de encontrar meios para
driblar o ritmo acelerado dos sets de filmagem, fomos eu e o microfonista Ricardo Saito
pacientemente extraindo sons destes objetos. Meu companheiro de trabalho os tocava como
que musicalmente. Tocava-os sem exageros para deixar claro ou grifar que tal objeto era
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realmente tal objeto, mas também sem demasiado esforço em parecer musical. Tinha, na
verdade, a leveza e o cuidado de extrair destes objetos um grão de metal antigo, uma
partícula dos rangidos da madeira chorosa, cristais dos assobios da roda enferrujada,
movimentos e repousos das carícias da chave na fechadura, enfim, velocidades e lentidões
que lançassem para fora da forma de um objeto partículas sonoras liberalizadas, que se
conjugariam com outras tantas para agenciar a multiplicidade sonora de um filme.
Caso fizéssemos diferente, isto é, se gravássemos com esforços voltados em grifar o
objeto emissor, um ruído de cadeado só poderia ser usado para sonorizar um cadeado na
imagem, ao invés de poder, entre outras coisas, também ser usado para sonorizar um
cadeado na imagem. Ruído de sala como extração ou garimpo de partículas preciosas de
livre encaixe.
Lembramo-nos ainda da aula de som, em que cada aluno deveria encontrar em casa
um objeto, não por sua forma mas por sua sonoridade. No escuro da sala fechávamos os
olhos para que cada um fizesse soar seu objeto. No final, mais do que adivinhar qual era o
objeto a emitir tal som, no que seria apenas um jogo de analogias formais, tínhamos que
traçar e dividir com os colegas os mapas emotivos, timbráticos, as passagens secretas
trazidas pelas linhas sonoras que escapavam do objeto e das fronteiras de sua forma…
Sem perceber, a direção de arte da Estória da Figueira era também direção de
sonoridade. Nos próximos trabalhos isso será percebido e conversado. Transmigrações
entre as linhas de composição no set de filmagem. Autenticidade e simplicidade dos objetos
vizinhos, sons vizinhos contra didatismo das bibliotecas de sons homogeinezados. Fazer
trans-usos das bibliotecas de som, usar seus sons para outros fins que não os propostos no
índice, tencioná-los - uma carruagem sonorizando o caminho da mão de um cego pela
parede. Ruído de sala e aventuras garimpeiras.
Peçamos simplicidade para que, ao invés de nos vislumbrarmos com espetáculos
ruidosos, nosso esforço se dê no sentido de imantar forças capazes de fazer nosso trabalho
caminhar em direção ao rumor imperceptível, como imaginamos ser o murmúrio do
universo. Tornar audíveis forças como o amor cristalino de um fantasma por sua menina de
cabelos dourados. Amor que, partida a taça, continua vibrando longemente no ar, com
branca voz de cristal.
Surge então uma nova grandeza no som direto com a chegada dos atores no set.
Principalmente de dois deles, o Jardineiro e o Fantasma da mãe. Membros de um grupo de
teatro que desenvolve treinamentos corporais rigorosos, como ensaios intensivos na
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madrugada, desenvolveram um trabalho que chamam de “ação vocal”. Fazer uso do
aparelho vocal em sua plurivocidade, emitir sons para muito além da formação de palavras
e enunciados. Assobios, respirações, um grito sugado pela garganta, melodias vindas de
longe cabendo às vezes num murmúrio quase inaudível. Treinam a emissão de sons que
cheguem o mais perto possível do mundo animal sem que passem pela imitação, do mundo
dos mortos sem que passem pela morbidez.
Fomos então com estes atores até uma igreja abandonada, na intenção de aproveitar
a reverberação natural do espaço. Cada um deles emitiu os sons, desempenhou as ações
vocais que acreditavam fazer parte do universo do filme e de seus personagens. Tocaram
também pequenos instrumentos, como um berimbau de boca. Repetimos este procedimento
com os outros atores que pouco a pouco foram desenvolvendo suas próprias ações vocais.
De forma que no final das filmagens tínhamos um rico arquivo sonoro, matéria bruta
intensiva a ser lapidada de acordo com as modulações da montagem final. Surpresa a nossa
quando o assobio do ator-Jardineiro encaixou-se perfeitamente na cena de apresentação do
Pai da menina, quando ele é visto sozinho andando de costas pela estrada, carregando um
saquinho de moedas e assobiando uns mistérios. O cantarolar fantasmagórico da mãe,
originado nos treinamentos de Butô desenvolvidos pela atriz, também foi muito usado,
assim como as criancices da menina dos cabelos dourados. Tudo envolto pela reverberação
natural e suficiente da igreja abandonada.
Por ora nos contentamos em encerrar aqui a aventura deste som direto, na qual, para
além da captação dos diálogos e das cenas propriamente ditas, que foram feitas com todo
esmero que nos é ensinado nesta escola como em nenhuma outra, tivemos também a chance
de dissolver um pouco as fronteiras da especialização, através da pluralidade possível em
nosso ofício. Fomos escaladores de cachoeiras, caçadores de borboletas, colecionadores de
pássaros, sentimos medo e coragem, transformamo-nos em tocadores de carriolas e
cadeados, e melhor de tudo, não sabíamos bem onde iríamos chegar. Recolhíamos matéria
intensiva vivendo o presente daquelas descobertas. Não éramos editores nem intelectuais,
ignorávamos o fim, ouvíamos o meio enquanto colhíamos natureza invisível.
Ao morrer o pai de Peter Parker, sem saber que seu filho está sofrendo sérias
mutações que permitirão a ele tornar-se, entre outras coisas, no Homem-Aranha, lhe diz :
“com grandes poderes vêm também grandes responsabilidades”, e expira.
Como acreditamos que um poder é a segmentação institucional de uma potência ou
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DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix em “Mil Platôs : Capitalismo e Esquizofrenia.”.
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uma força formalmente domesticada, preferimos pensar que ao lidar com potências
devemos ter prudência e simplicidade para evitar que, em primeiro lugar uma potência
estratifique-se num poder (potência guerreira formata em poder de exército, potência grave
do som reduzida a poder de assustar o espectador, devir-aracnídeo territorializado no
uniforme do Super-Herói) e, em segundo lugar, para que as potências não nos arrastem ao
caos e ao aniquilamento de uma cacofonia disforme.
O som é uma potência. Ao editá-lo estamos compondo um agenciamento que o
regula, abre e fecha válvulas que modulam sua passagem pelas caixas de som, como as
comportas de uma hidroelétrica. Qual nosso desejo? Iluminar uma cidade inteira e esmagar
as zonas de sombra e mistério? Permanecer no escuro? Afogar Faunas e Floras que já
estavam lá antes nós? Acender uma vela...
É relativamente fácil, através dos sons, induzir sensações. Medo, susto, leveza...
Mas ao nos dirigirmos a um único fim atamo-nos ao sintoma e esquecemos dos meios e dos
micro-ecossistemas em mútuo funcionamento. Reduzimos o som a um efeito pontual na
medida em que regulamos sua potência dentro de um poder. Poder de assustar, poder
pirotécnico do som. Artifício versus Artesanato.
Pensamos que o trabalho de edição de som está muito próximo da homeopatia, arte
das doses que cultiva moléculas envoltas em meio alcoólico. Álcool como meio fluído de
propagação de intensidades e não com finalidade de porre. Isso não nos impede de dizer
que um pequeno gesto de bebedeira em certas ocasiões de lucidez excessiva pode também
fazer bem.
Foram muitas as pessoas que nos ajudaram a ter este cuidado com o som, como
Julia Zakia e o professor João Godoy ao visitarem o estúdio durante a edição de som da
Estória da Figueira e de Tarabatara. Principalmente no segundo filme, mesmo porque
próximo ao estúdio de João havia uma vida-recém chegada, que jamais poderia se assustar
com a presença do som durante sua primeira infância.
Tínhamos um certo apreço por algumas construções sonoras do filme, como quando
o Jardineiro, após saltar dentro do poço, tocava na grande mangueira e ouvia sons de um
incêndio na mata e rangidos estonteantes de árvores caindo. Ou ainda algumas construções
que nos pareciam musicais e fantásticas na medida certa. Godoy foi o primeiro a assistir e
constatar que algo ainda estava desequilibrado. Dizia sentir falta de uma “cama realista”
para os sons fantásticos. Sendo que os “sons fantásticos” eram também naturais,
ligeiramente distorcidos ou recombinados. Sons naturais entrando em vizinhanças com uma
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natureza fantástica.
O que fizemos em primeiro lugar foi abaixar radicalmente todos os sons que se
comportavam como “anti-natureza” agressiva. Depois efetuamos uma limpeza nas
composições excessivamente ruidosas, calando alguns sons e semeando silêncios. Em
seguida procuramos nos sons ambientes manifestações sonoras que pudessem estimular a
eclosão de ruídos fantásticos, como o arrulho distante de uma pomba que fosse capaz de
liberar um canto fantasmagórico. Tudo passou a soar melhor. Percebemos que a tal “cama
naturalista” já estava lá, nos ambientes, mas encontrava-se esmagada pela vontade
excessiva de criar sensações. O marulho do filme, a paciência do mar encontrava-se
soterrada por uma inquietação criativa que pertencia só a nós, mas não ao filme.
Só ao terem suas intensidades reduzidas e seus encaixes recombinados é que as
participações anti-natureza do som conjugaram-se aos ambientes e, sem se anular, deram
origem a uma nova natureza, ao mesmo tempo fantástica e bem-vinda, musicalmente
natural. Devemos consolidar um território para em seguida vislumbrar frestas e linhas de
desterritorialização. Traçar mapas para termos a chance de permear algumas de suas
fronteiras.
Os sons de floresta queimando e da árvore caindo continuaram ali, no entanto,
pulsavam agora dentro da árvore como o rumorejar de sua seiva, enquanto lá fora o bem-
te-vi continuava cantando suas boas vistas. Os ruídos fantásticos desenvolveram relações
mútuas com o som ambiente que passaram a permitir sua eclosão. Desprenderam-se a partir
de partículas disparadas pelo próprio som ambiente. Entrelaçaram-se com o entorno ao
invés de soterrá-lo, fizeram entorno. Ao passo que o próprio som ambiente mudava de
natureza através deste encontro sadio...
Agora não eram mais nossos ouvidos que queimavam, nem a grande árvore imóvel
da imagem. Agora uma molécula de incêndio trazida pelo vento nos sugeria perigos,
tornavam-se audíveis, através do Jardineiro, as intensidades que podem percorrer uma
árvore, a eminência da queda ou da queimada, uma partícula de memória ou destino da
matilha vegetal, insinuando-se pelo presente da clareira, sem que os insetos ao redor
parassem de tocar reco-reco.
“Essa síntese de disparates não ocorre sem equívoco. É talvez o mesmo equívoco
que se encontra na valorização moderna dos desenhos de criança, dos textos loucos, dos
concertos de ruídos. Acontece de se levar isso longe demais, de se exagerar, opera-se com
um emaranhado de linhas ou de sons; mas então, em vez de produzir uma máquina
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cósmica, capaz de ´tornar sonoro´, se recai numa máquina de reprodução, que acaba por
reproduzir uma garatuja que apaga todas as linhas, uma confusão que apaga todos os sons.
Pretende-se abrir a música a todos os acontecimentos, a todas irrupções, mas o que se
reproduz finalmente é a confusão que impede todo acontecimento (…) é a sobriedade dos
agenciamentos que torna possível a riqueza dos efeitos da Máquina.”. (Deleuze e Guattari
em Mil Platôs.).
É também importante dizer que não devemos nos sentar à ilha de edição de som
com muitos freios. A ilha é uma máquina de viagens imóveis, lentas ou velozes, não temos
portanto o risco de bater num poste, pelo menos não literalmente. Cada dia de trabalho é
como uma camada de tinta que lançamos na tela. Devemos esperar o dia seguinte para que
a tinta seque e recomeçar a pintar. A grande diferença é que o som nunca seca, é sempre
úmido, fluído e não deixa marcas. Se tirarmos um som de uma seqüência nada poderá
indicar que um dia ele esteve lá. Devemos experimentar, ao ritmo do desejo, a manipulação
continuada desta matéria maleável e desapegada como poucas outras. Depois é necessário
convidar outros ouvidos para escutar nosso trabalho, pois é sempre ao atingir os pavilhões
do ouvido do outro que a edição de som se realiza, quando entradas e saídas de outros
labirintos conjugam-se às nossas. Caso contrário seria acreditar que nossos ouvidos são
absolutos e nosso tímpano, um buraco negro.
Na verdade, editar o som de um filme pode ser a aventura de abrir na imagem
múltiplos ouvidinhos, ouvidos-voz. O ouvido-voz de um personagem que esqueceu seu
nome, o ouvido-voz do bando, ouvido-voz do urubu que sobrevoa a cena, que canta ou se
cala à espreita, ouvido-voz das plantas, ouvido-vozes de infância... Até que a própria tela
esteja trançada num agenciamento auditivo pluri-vocálico, um labirinto ouvinte e falante
com múltiplas entradas e saídas, modulado pela prudência, simplicidade e ternura que
devemos dedicar a este nosso ofício.
“How many ears must one man have, before he can hear people cry ?
The answer my friend, is blowing in the wind…”
(Bob Dylan)
Já que tocamos no assunto do susto e das sensações de terror que o som pode nos
trazer, vamos falar sobre a sequência em que a Madrasta castiga a Menina dos Cabelos
Dourados com um pote de abelhas.
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A imagem e a montagem não revelam explicitamente o castigo. Vemos apenas a
menina sendo recebida na porta de casa pela madrasta, com os cabelos desfeitos, uns figos
comidos na mão direita e um pote de abelhas na mão esquerda. A menina entra em casa a
passos lentos, a madrasta vem atrás, com os figos e as abelhas, passa pela porta e a fecha
com os pés. Corta e vemos o rosto do pai da menina, em plano próximo, cheio de
escuridão. Depois vemos o Jardineiro acordando assustado no meio do feno. Ele pega uma
pá e sai correndo apressado. Há um corte que nos mostra a cama da menina vazia. Mais um
corte e vemos a madrasta andando ao relento a passos firmes, carregando entre os braços
uma trouxa de panos brancos.
Sonorizamos a sequência da seguinte maneira : no primeiro momento, quando
menina e madrasta se olham nos olhos, colocamos um som ambiente de brejo agitado.
Ouvimos também as abelhas dentro do pote, soando de maneira naturalista. A madrasta
pergunta : “Onde esteve ?”. Os sapos se agitam, então outros sapos mais agudos surgem
para responder aos primeiros. Quando vemos o pote de abelhas em plano próximo os sons
dos sapos agudos misturam-se ao som das abelhas fervilhando num espaço reverberado.
Uma abelha anda pelo vidro e seu percurso é sonorizado por um zumbido que vai sendo
deformado em tempo real, indo do tom mais grave ao mais agudo, numa idéia de
aceleração. Ouvimos as asas das abelhas se embolando. Esta composição foi formada por
sons reais de abelhas, moscas e asas de besouros, modificados no computador, como num
caldeirão de bruxa.
É de fato uma sonoridade que aflige, ou incomoda, no entanto, não recorremos,
como a montagem não recorreu, a um ponto culminante de susto, a um evento único, um
barulho pontual ou uma picada que liberasse o terror num só golpe. O que tentamos foi
deflagrar a propagação de uma ameaça de perigo que se espalha pelas coisas, um rumor de
medo conectando-se por linhas oscilatórias ao entorno, sem precisar de um evento pontual
para escapar e mostrar todas suas garras de uma vez.
A menina entra em casa, a madrasta a segue. O som das abelhas vai se distanciando.
Ouvimos uma voz grave e distorcida, quase como um vento pesado e passageiro. A
madrasta fecha a porta com os pés e ouvimos o cadeado batendo na corrente, sem se
trancar. Ouvimos por fim, em segundo plano, o som féerico de uma pá raspando na pedra.
Corta para o rosto do pai, sobre o qual ouvimos vozes humanas distorcidas, bem graves,
misturando-se a rangidos de madeira distorcidos que também parecem vozes. Procuramos
compor para este plano uma espécie de murmúrio grave e secular de um ente de madeira e
19
carne que não sabe formar palavras. Em segundo plano ouvimos sons de correntes sendo
manipuladas, seguidos do som de um cadeado se fechando. Este último som invade o plano
em que o Jardineiro acorda, como se deflagrasse seu despertar. O Jardineiro pega a pá e sai
correndo. Colocamos o som da pá batendo em alguma pedra pelo meio do caminho. A
vibração do ferro da pá prolonga-se até o próximo plano, quando vemos a cama da menina
vazia. Deixamos essa imagem só com o som ambiente (sapos e insetos) que vinha
aumentando de intensidade desde o castigo, para atingir seu ápice neste plano. Então pouco
antes do corte ouvimos o som de uma longa raspada de pá na pedra. Esse som da pá sobre a
imagem da cama vazia nos dava a idéia de rapto, uma raspagem agressiva sobre os lençóis.
E trazia também partículas sonoras da pá do jardineiro para esta abdução, colocando-os em
relações suspeitas.
Quando vemos a imagem da madrasta carregando o corpo da menina, ou apenas
uma trouxa de lençol branco, chegamos no ponto mais importante : ao invés de crescer
ainda mais o som ambiente, o que teria sido uma primeira idéia, diminuímos radicalmente
sua intensidade, trazendo-o de volta à escala natural. A única coisa que ouvimos neste plano
além do ambiente naturalista são os passos decididos da madrasta sobre a terra. As leis
naturais voltam a operar neste plano, e com exclusividade, trazendo a indiferença ao som
ambiente e a lei da gravidade aos passos da mulher. Neste instante cala-se a fantasia.
Duas hipóteses : ou os bichos voltaram ao seu estado natural depois da morte da
menina, numa espécie de recusa em continuar dividindo suas partículas sonoras com o
campo de feitiçaria da madrasta, ou os passos desta mulher eram tão intensos que
encobriram o ambiente fantástico, pois carregavam agora o peso de dois corpos. O fato é
que no plano que poderia ser o mais explícito da sequência, optamos pela quietude. Não
ouvimos gritos da menina, nem bichos exaltados. Apenas os grilos cuidando de seus
afazeres e os passos marcados na terra.
Pensamos que a montagem desta sequência não revela o castigo com um momento
preciso, mas cria uma máquina de castigar dissolvida entre os planos, na qual todos os
personagens estão envolvidos. A madrasta diretamente, o pai inerte resmungando no escuro,
o Jardineiro despertando inquieto. Da mesma maneira, partículas sonoras emitidas do
universo desses personagens também entram em relações com a máquina da montagem
para compor um novo fluxo de castigo. Mas trata-se sempre de um castigo indeterminado e
não pontual, que percorre as imagens mas não se fecha sobre nenhuma delas. Fragmentos
de sons de correntes, vozes do pai e da madeira, o cadeado que se fecha, energia sonora
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escapando do choque da pá do jardineiro e vibrando sobre a cama da menina… O que se
estabelece são pactos, alianças e traições entre personagens e entre partículas sonoras. Os
insetos, por exemplo, que tomam parte no castigo da menina, voltam ao normal depois que
vemos a trouxa que poderia ser seu corpo, e abandonam a madrasta com seus próprios
passos. O Jardineiro é despertado pelo som do cadeado, talvez para salvar a menina talvez
para enterrá-la, os sons de sua pá pairam sobre um pequeno leito vazio.
Jamais seremos capazes de ter certeza de como uma máquina audiovisual se
conjugará aos espectadores e às multidões intensivas que os atravessam, em constante
renovação. Ter essa certeza seria subestimar o próprio processo de desejo, nosso e do
espectador, a potência dos livres encontros, e as novas linhas de fuga que encontram novas
passagens por qualquer obra já formatada. Além do mais estas idéias que aqui escrevemos
não são um modelo intelectual ou interpretativo que se colocou entre nós e a imagem
quando nela trabalhávamos, portanto, não são e jamais poderiam ser um pré-requisito para
que as pessoas sejam atingidas pelo filme. Isso iria contra toda orientação de nosso
trabalho, contra nossa própria crença nas frestas do viver e nos processos desejosos, e
também contra a certeza de que um só espectador já é multidão.
Acreditamos, do fundo de nosso coração, que não estamos fazendo metáforas,
analogias formais ou modelos transcendentes de interpretação. O que buscamos é instaurar
relações possíveis de velocidade e lentidão entre sons e imagens, a partir da combinação
variada entre intensidades sonoras de livre encaixe, tecidas por entre as conexões desejosas
que fazemos com o filme, que fazemos a todo instante em nosso viver. Conexões que nunca
podem ser curto-circuitadas num sujeito único, pois só tornam audível ao prolongar linhas
que atravessam os sujeitos, atravessam o filme e atravessam a terra. É um trabalho de
encontro de matilhas. Como o choro ritual de um índio alcançando o mergulho do cigano
nas águas incertas.
É claro que ao editar o som de um filme usamos nosso pensamento e nossa razão,
mas temos certeza de que o desejo é mais rápido para alcançar o som procurado, porque ele
é capaz de se conectar com qualquer coisa e prolongar qualquer linha de intensidade, mudar
de natureza a cada encontro, fazer vizinhança com qualquer terreno, encontrar saídas até
quando estamos dormindo. “O desejo é o corpo-sem-órgãos do corpo orgânico.”. O que
procuramos fazer, na verdade, é permitir que processo de desejo e processo de pensamento
se atravessem, afetem-se mutuamente para produzir material audível.
Se na estória da figueira utilizamo-nos apenas de sons “naturais”, em Tarabatara
21
recorremos ao sintetizador. Pensamos ser esta uma curiosa diferença entre os dois filmes.
Enquanto o primeiro é uma ficção fantástica construída por sons naturais, modificados e
recombinados aqui e ali, o segundo é um documentário que de tão cigano abriu espaço
tanto para interferências de ondas de rádio quanto para sonoridades sintetizadas
eletronicamente.
No primeiro filme tínhamos como desafio envolver uma história fantástica num
meio-ambiente, encontrar nas construções sonoras ressonâncias com a simplicidade viva do
olhar da pequena menina de cabelos dourados. Naturar movimentos fantásticos sem apagá-
los. Em Tarabatara tínhamos diante de nós os grandes espaços vazios, um mar de
sonoridades possíveis por entre as rotas desse povo, que caminha pela terra desde antes da
bíblia. Nosso dever era encontrar frestas e dobras no território de um documentário, sem
arruinar seu tempo e espaço próprios.
Se pensávamos que o desafio da simplicidade estava resolvido pela experiência do
primeiro filme, tínhamos ainda muito a aprender com o segundo. O que só prova que tal
desafio é diário, se faz a cada passo e encontro, toda vez que novos mundos se abrem e
agenciamentos têm de ser operados. Devemos estar alertas e alegres a cada gesto.
Em Tarabatara, para a cena em que a cigana de vestido vermelho mata uma galinha
preta, reunimo-nos com um amigo, Bruno Palazzo, e criamos uma música eletrônica num
sintetizador analógico dos anos 80. A música ficou realmente boa, no entanto, tapava os
poros da imagem, como plástico derretido.
Quando Godoy assistiu a esta cena percebi sua cara de preocupação. Depois foi
Julia quem assistiu e finalmente disse : “Aí não dá. É um filme da terra, sobre pessoas que
caminham pela terra, pertencem a ela. Essas pessoas nunca ouviram músicas assim e a
galinha está sendo preparada para comer. Comer na comunhão do bando”.
Foi triste e importante saber que nosso trabalho de som era capaz de cortar conexões
vitais. Banhar de óleo uma ave migratória.
Escutemos Tarkovski quando diz que os sons eletrônicos “devem ser depurados de
sua origem ´química´, para que, ao ouvi-los, possamos descobrir neles as notas primordiais
do mundo.”.
Vendo o filme hoje nos parece óbvio que a imagem já é carregada de sangue, uma
galinha preta, uma cigana de vermelho. Quem quiser pensar em bruxaria vai pensar, mesmo
que a seqüência fosse muda. Mas é uma cena de comida não de terror. Tiramos então as
batidas e as freqüências eletrônicas contínuas. Mantivemos alguns sons sintetizados como
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as bolhas graves de água, algumas notas que se assemelhavam a piados de galinha, e o
vento. Diminuímos a intensidade destes sons até que eles passassem a pertencer ao
ambiente, a tecer malhas com ele. No ambiente por sua vez, colocamos um delicado efeito
de reverberação que sugerisse uma ressonância do mundo real, um pequeno atraso ou
mudança de velocidade em relação à “realidade”, da mesma maneira que o Super-8 pode
propor brumas em torno da imagem.
Na abertura desta seqüência a cigana afia a faca na pedra. Inicialmente havíamos
colocado sons de faca sendo afiada, sem nos preocupar com o sincronismo com a imagem.
Quando Godoy assistiu disse : “isso precisa de sincro”.
Pensamos e concluímos a importância do sincronismo para a seqüência, nunca
como camisa de força nem mecanismo de captura dos sons, mas como agente deflagrador
de velocidades. Ora, se o som da faca está em sincro é o mesmo que dizer que aqueles sons
pertencem àquela imagem. Encaixam-se nela com a exatidão das peças de um quebra-
cabeça. Então, a partir deste encaixe preciso podemos traçar linhas de fuga, remodelar o
quebra-cabeça com outras conexões que não estavam previstas pelo fabricante, fazer com
que as peças se prendam umas às outras por campo de força, sem mais precisar de encaixes
pré-determinados. Só assim chegaremos a novas figuras. É como se o sincro fosse um
primeiro chamado de clareza, convidando-nos a mergulhar na imagem. Não é bom se
banhar nas águas sem este primeiro mergulho preciso e prudente. Mas também não é bom
observar um rio correr ficando sempre na segurança do chão. Devemos estar atentos aos
redemunhos e às espirais, mesmo que estes banhem e arrebatem apenas a planta de nossos
pés, como cócegas de infância.
Além do sincronismo da faca gastamos ainda muitas horas encaixando os ruídos de
sala da galinha sendo depenada e cortada. Os sons da panela de pressão foram captados no
próprio acampamento e ralentados em computador em busca de defasagens,
desacelerações que pudessem encontrar na pressa da panela partículas de paciência.
Mas algo ainda faltava à seqüência. Algum fator naturalizante, doses de calma.
Fomos buscar então em nosso arquivo sons das ciganas conversando enquanto preparavam
sua comida. Estes sons mostraram-se essenciais e foram rapidamente elevados ao primeiro
plano. Era isso que mais interessava à cena : as vozes dessas mulheres que preparavam o
alimento do bando. As protagonistas. Só pelas frestas destes burburinhos é que os sons
sintéticos puderam então se manifestar com bem aventurança.
Estava temperada a galinha, com muito apetite e uma pitada de mistério.
23
Nota de sincronicidades
A descoberta do Sintetizador
Foram os filmes do cineasta russo Andrei Tarkovski que nos encantaram os ouvidos
diante das possibilidades dos sons eletrônicos no cinema. É como se através deste
instrumento musical, deste agenciamento maquínico chamado sintetizador, pudéssemos
ouvir a efervescência em variação contínua que percorre a matéria em seus níveis
moleculares. “Essa efervescência passa para o primeiro plano, se faz ouvir por si mesma, e
faz ouvir, por seu material molecular assim trabalhado, as forças não sonoras do cosmos
que sempre agitavam a música – um pouco de Tempo em estado puro, um grão de
Intensidade absoluta…”, um certo marulho do universo.
Poderíamos, por exemplo, fazer com que o som do vapor escapando pela panela de
pressão se metamorfoseasse, a partir de suas propriedades intrínsecas, em vento puro. Foi o
que tentamos fazer na sequência da morte da galinha preta, inicialmente utilizando-nos de
um longo cross-fade entre o som natural do vapor e o som natural do vento. Mas não era
em absoluto um cross-fade que queríamos. Não soou bem, pois tratava-se ainda de uma
relação de analogia entre vento e vapor, relação biunívoca de substituição de uma forma
pela outra.
O que queríamos era pinçar por dentro do som do vapor velocidades e lentidões,
micropropriedades sonoras, e instaurar por entre elas novas relações de movimento e
repouso que as levassem o mais próximo de um vento, que por sua vez nunca seria um
vento naturalista, mas sempre um duplo. Uma zona de vizinhança indeterminada entre
vapor e vento, um campo de composição que retém da forma precisamente aquilo que é
necessário à sua dissolução. Plano de intensidades sonoras em variação contínua agitando
musicalidades imanentes Travessia de partículas, mutações criativas entre as formas. Isso
só foi conseguido com o sintetizador.
“Uma máquina de sons (não para reproduzir os sons), que moleculariza e atomiza,
ioniza a matéria sonora e capta uma energia do Cosmo. Se essa máquina deve ter um
agenciamento, será o sintetizador. Reunindo os módulos, os elementos de fonte e
tratamento, os osciladores, geradores e transformadores, acomodando os microintervalos,
ele torna audível o próprio processo sonoro, a produção desse processo, e nos coloca em
relação com outros elementos ainda, que ultrapassam a matéria sonora.” (Deleuze e
31
Guattari).
No entanto, nem bem terminávamos de gravar os sons eletrônicos ao lado do
músico Bruno Palazzo, e já sentíamos na boca um estranho gosto de plástico. Era como se o
documentário acabasse de perder toda sua conexão com a terra, sendo recoberto por um
tecido sintético que lhe tapava os poros. Não há melhores termos para explicar o que
sentimos : gosto de plástico, cheiro de plástico e tato de plástico. Vedação dos poros.
E durante algum tempo não ouvíamos mais o ônibus passando na rua, e sim as
micro-ondulações de suas freqüências graves misturando-se, oscilando por dentro dos
harmônicos do helicóptero sobre nossa cabeça. Escutávamos linhas vocais e balbúcios na
água que escorria pelo ralo durante o banho e sentíamos por dentro dos ossos as freqüências
elétricas vibrando no chuveiro. Escancaravam-se os portões do mundo das freqüências
puras, o campo das intensidades sonoras liberalizadas, a dissolução dos significados e
significantes. E com eles o perigo do aniquilamento e da cacofonia.
Foi quando entendemos o que Tarkovski queria dizer com depurar as origens
químicas dos sons eletrônicos para então descobrirmos as notas primordiais do mundo, os
sussurros da terra. Levamos apenas dois dias gravando os ruídos no sintetizador. E duas
semanas inteiras para limpar o filme de sua química, filtrar os venenos…
Muitos sons que havíamos gravado acabaram sendo banidos da versão final. Outros
tantos tiveram suas intensidades reduzidas até o limite da audição. Percebemos que sons de
natureza eletrônica funcionam quando misturam-se aos sons ambientes, emanam deles,
irmanam-se deles em sutis tessituras. Descobrimos a origem do encantamento suscitado
pelos filmes de Tarkovski em suas próprias palavras : “…a música eletrônica tem a
capacidade exata de se dissolver na atmosfera sonora geral. Pode ocultar-se por trás de
outros sons e permanecer indistinta, como a voz da natureza, cheia de misteriosas alusões…
Ela pode ser como a respiração de uma pessoa.”
Os sons eletrônicos que sobraram em Tarabatara são justamente aqueles que
descrevem algum movimento em direção à natureza, sem precisar imitá-la, ao passo que os
próprios sons naturais, ao receber estas participações eletrônicas, mudavam sutilmente de
natureza, faziam nova natureza num encontro duplamente articulado.
Como na cena do mergulho, quando o som natural das águas caminha para um eco
(através de um pequeno atraso entre canal esquerdo e direito) para receber o canário
eletrônico, em irmandade timbrática. Um som se tenciona em direção ao outro : o canto da
ave se molha enquanto as águas assobiam.
32
Ou então no início do filme, quando o desejo de vôo do ciganinho correndo de
braços abertos encontra velocidades de passarinho nas freqüências puras trazidas pelo
vento. Primeiro ouvimos o vento sobre a imagem do menino a correr, depois pequenos
piados sintetizados a partir de freqüências puras em intensidade crescente, que se
prolongam sobre a imagem seguinte do urubu planando no céu. Um ciganinho jamais
poderá realmente voar. Urubus não piam, pois são aves silenciosas O sintetizador nunca
cantará como um pássaro. Tanto melhor, pois é no campo de composição que as
intensidades que atravessam esses três entes se encontram e, sobre um corpo sem órgãos,
conjugam preciosas linhas de vôos livres.
O campo de composição não é um plano metafórico ou transcendente. Longe disso.
São multidões intensivas nos atravessando aqui e agora, às quais nos ligamos a cada gesto :
“Ao fazer de mim mesmo um fumante prazeroso ou não, meus eus sugadores, inaladores ou
sucçantes, estão fazendo dos meus eus pulmonares atletas cada vez mais combalidos, estão
fazendo do meu eu financeiro, da minha inserção na distribuição universal da renda, uma
aliança com multinacionais propensas ao genocídio, estão fazendo dos meus eus videntes e
ouvintes janelas por demais escancaradas a propagandas que imbecilizam a metamorfose
épica, lírica ou trágica das paisagens e atmosferas. E assim por diante. Por minúsculo que
seja cada um desses eus, e por mais irrisória que seja sua atividade principal, ao fazer isto
ou aquilo seu fazer está sempre sobrefazendo ou subfazendo outras coisas, seja num plano
de composição molar, onde uma tarefa em cada lugar implica ou remete a outra, estando
todas como que enredadas numa composição plural, seja num plano molecular de
imanência, onde o fazer está imerso em trans-lugares, em complexas zonas intensivas de
indeterminação”. (Luiz B. L. Orlandi, no texto “Que estamos ajudando a fazer de nós
mesmos?”).
É curioso o fato de não termos nem pensado em utilizar sons eletrônicos na Estória
da Figueira. Provavelmente porque tal recurso poderia ter arruinado o filme. Pensamos que
nesta história fantástica o som acaba funcionando como uma espécie de fio-terra. Ajuda a
trazer o filme para a natureza, ao passo que essa natureza também se deixa afetar pelo
filme. Recorrer ao sintetizador seria cortar este fio e abalar o delicado equilíbrio conseguido
entre faunas e floras. Equilíbrio entre intensidades de conto de fada e sons gravados in
loco. Loco especialíssimus.
Então, por que justamente um documentário, suposto registro fiel da realidade, foi
permitir o uso de sons tão estrangeiros?
33
Cigano. Embaralhando as fronteiras e as cartas. Tudo pode ser estrangeiro e tudo
pode nos pertencer quando a pátria é tão-somente este chão sob nossos pés, sobre o qual
caminhamos. Território à deriva e um olhar sincero, eis o mistério…
34
Tal desterritorialização dos estratos não se aplica só a filmes fantásticos, muito pelo
contrário, uma vez que novos espaços-tempos, mesmo que microscópicos, podem ser
deflagrados a partir do menor gesto. Guimarães Rosa faz isso com as palavras, arranca-as
de seu território de origem, ou encontra para elas uma nova terra natal, propõe novos
encaixes, faz gaguejar a linguagem, não em benefício de uma loucura artística mas
justamente para trazer sentimentos tão reais que a linguagem em seu estado original não
seria capaz de expressar. Ele não leva em conta as palavras apenas em termos de
significado e significante, mas a partir das intensidades que por elas passam. As palavras se
deixam arrastar por circunstâncias.
Daremos um exemplo de transmigração entre os estratos.
Os ciganos pulam uma cerca e cruzam uma propriedade privada. A cada cigano que
pula a cerca ouvimos os ruídos dos arames farpados balançando (ruído de sala). Cada
arame é uma corda áspera, emitindo uma nota tosca, num ritmo assimétrico. Por entre o
som do arame começamos a ouvir o ranger distante das rodas de um carro de boi (efeito).
Um carro de boi cruza o horizonte ao longe (o efeito vira ruído de sala) quando começamos
a ouvir, vindas de dentro dos seus gemidos, as notas de uma rabeca sendo afinada (efeito ou
música?). A rabeca ganha corpo (música) e o tic-tac dos arames batendo vai sendo
ralentado até desaparecer (ruído de sala virando metrônomo evanescente), para que uma
música cigana tome conta da banda sonora do filme, enquanto vemos ao fundo os ciganos,
que já cruzaram a propriedade privada e estão indo embora montados em seus burros, para
voltar sabe Deus quando. Essa cena não existe, mas foi imaginada como exemplo de uma
possível transmigração entre as camadas da construção sonora. Possível porque as
intensidades que atravessam a cena arrastam também os sons, para conexões variadas no
campo de composição: o arame, a propriedade privada, notas ásperas e rudimentares, pular
a cerca musicalmente, o nomadismo, o carro de boi que geme enquanto anda, roda sempre
girando, rabeca que parece carro de boi, tic-tac se desfazendo em respeito a uma música
que não tem parada.
Devemos também tomar cuidado para não acreditar que um balde tocado feito
tambor será sempre a solução para encontrar a expressividade desejada. Isso seria estreitar a
potencialidade dos elementos ruidosos e dizer que eles só servem quando tocados como
instrumentos musicais, anulando todas as camadas de som na trilha musical, ao invés de
encontrar forças de musicalidade exteriores à própria música, que não caibam nela.
Interessa-nos uma música na qual os instrumentos musicais tenham tanta importância
35
quanto a respiração dos músicos, o som de seus sapatos batendo no chão, o murmúrio da
platéia, o avião que sobrevoa o teatro ou os ratos farreando sob o palco. Ou apenas o
repicar do metrônomo, cada vez mais distante e espaçado.
O que buscamos é antes uma liberação do tempo marcado ou da métrica, através do
ritmo. Ritmos simples e primordiais intercalados, intervalando-se ou superpondo-se.
Eventos simultâneos e participações rítmicas assimétricas, em profundidade de campo.
Como na cena em que o cigano Francisco toca violão e Maria limpa panelas. Cada um no
tempo de seu ofício, na naturalidade de seu gesto, deixando porém escapar partículas que
encontram-se em vizinhanças, serpenteiam e formam espirais temporárias.
“…é preciso que a obra de arte marque os segundos, os décimos, os centésimos de
segundo. Ou se trata antes de uma liberação do tempo, Aion, tempo não pulsado para uma
música flutuante, como diz Boulez, música eletrônica onde as formas cedem lugar a puras
modificações de velocidade. (…) um tempo flutuante contra o tempo pulsado ou o Tempo,
uma experimentação contra toda interpretação, e onde o silêncio como repouso sonoro
marca igualmente o estado absoluto do movimento.” 5
A mudança na natureza dos estratos pode acontecer por diversas operações:
intensificações ou rarefações, acelerações ou silenciamentos, naturalizações ou distorções.
Bergman atinge este nível molecular do som quando escolhe apenas um ou dois ruídos
realistas e os isola de seu contexto, silenciando o entorno. “Quando, por exemplo, Bergman
usa o som de forma aparentemente naturalista – passos surdos num corredor vazio, o
repicar de um relógio e o farfalhar de um vestido, o que ele consegue, na verdade, é ampliar
os sons, isolá-los de seu contexto, acentuá-los… Ele escolhe um som e exclui todas as
circunstâncias incidentais do mundo sonoro que existiriam na vida real.” (Tarkovski, em
“Esculpir o Tempo”).
No caso de Bergman os ambientes, diálogos, música e efeitos desaparecem por
dentro destes sons pontuais, ficam em latência, liberando apenas silêncio. Ao tempo que um
estrato, que antes poderia ser definido como ruído de sala, muda de natureza e passa a ser
marulho molecular absoluto, marcador do tempo e das intensidades da cena. “Em Luz de
Inverno, Bergman coloca o som da água do córrego, em cujas margens foi encontrado o
corpo do suicida. Ao longo da sequência inteira, toda filmada em planos médios e gerais,
nada se ouve, a não ser o som ininterrupto da água – nenhum passo, nenhum farfalhar de
5
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix em “Mil Platôs : Capitalismo e Esquizofrenia.”.
36
roupas, nenhuma das palavras trocadas pelas pessoas na margem. É assim que ele dá
expressividade ao som…”
No início de Tarabatara, quando o velho Francisco joga cartas em Super-8,
pensamos ter acionado também um mecanismo de transmigração entre os estratos sonoros.
Quando o baralho cigano é apresentado temos basicamente duas camadas de som : um
carro de boi gemendo e um ambiente construído no sintetizador, formado por um vento
eletrônico rarefeito e notas espaçadas sugerindo gritos de gaivotas ao longe. O velho lança
a carta e, em sincronicidade com seu gesto, ouvimos a madeira do carro de boi estalando e
desacelerando. Quando a carta atinge o chão o carro de boi se cala e ficamos apenas com o
ambiente eletrônico ao fundo. Desta maneira, um som que vinha sendo usado como efeito
(gemido agudo do carro de boi) associa-se, através do sincronismo, com os gestos do
cigano e muda de natureza. É importante dizer que esta associação não é direta, supõe
intervalos e descompassos entre gesto e som. Não existe sincro exato, mas linhas de sincro
possíveis. Não é que o som do carro de boi tornou-se precisamente o ruído de sala para os
movimentos do cigano, mas passou a fazer, em algum nível, ressonância com estes
movimentos. Mudou molecularmente de natureza.
No instante exato em que a carta atinge o chão o carro de boi se cala, como se o
contato da carta com o solo fosse o responsável pelo novo silêncio obtido. Assim a carta,
como o velho, também entra em relação de ressonância ou afetação mútua com o ruído do
carro de boi, na medida em que marca seu emudecimento. Portanto, os gestos do velho, o
ruído do carro de boi e as cartas que ele joga fazem sistema, entram numa espiral aberta e
cruzam seus destinos.
Sumido o carro de boi, é o ambiente eletrônico que marca o tempo e a pulsação da
cena. As gaivotas sugerem distâncias marítimas, o vento aridez e movimento. O ambiente
passa a ser a única respiração do lugar. O velho mexe em suas cartas, embaralha-as e as
joga no chão. Não ouvimos nenhum destes gestos, não há ruído de sala, apenas som
ambiente. Até que Francisco empurra uma carta sobre o tapete. Aproveitando-nos do sincro
deste instante, voltamos com o som do carro de boi andando. Parece um ruído de sala
perfeito, sonoriza o gesto do velho em sua duração precisa, no entanto, as rodas continuam
girando e invadem a cena seguinte, na qual vemos a ciganinha Sielma comendo banana.
Durante o ponto de sincro as rodas eram ruído de sala, mas, como as rodas não param de
girar, gira-mundo, gira-cigano, gira-velho gira-criança, passam naturalmente a ser efeito,
mudam de estrato sem sofrer qualquer alteração em suas propriedades sonoras. As rodas
37
não foram ralentadas, distorcidas nem cortadas, apenas continuaram seu movimento natural
sobre uma nova imagem e assim, num simples fluir, mudaram de natureza. O desejo da
roda não parou de correr.
A ciganinha da cena seguinte parece atenta a algo que vem de fora. Olha para um
lado, encara a câmera, olha para o outro lado. Sua preocupação faz supor que algo atravessa
a imagem, seus gestos dão continuidade a linhas que cruzam o quadro. Como não vemos
nada além da menina, tais linhas só poderiam ser tornadas audíveis. Sem exageros, sempre
com sobriedade, para que o som não soterrasse a franqueza daquele olhar. A menina não
está sendo assolada por visões nem fantasmas, está apenas sensível ao entorno. Demoramos
muito até chegar no resultado final desta cena, pois foi bastante difícil fazer com que o som
ficasse por entre a imagem, nunca por cima, nunca soterrando, mas apenas soprando.
Ela ouve um apito de chamar passarinhos, ouve cristal, ouve um galo misturado
com gritos de criança e ouve cabrinhas. Mas o mais importante é que quando ela olha para
trás, em busca da origem desses sons, todos eles desaparecem, ficando apenas o ambiente
eletrônico ao fundo. Os sons coloridos escondem-se por dentro do ambiente, como
caranguejos no mangue diante do caçador, e não se deixam capturar. Mudam de estrato e de
natureza – afundam no ambiente. A partir daí estamos livres para fazer com que estes sons
emanem novamente de dentro do ambiente, escapem dele sem causar estranheza no
espectador, pois temos feito esforços em contar que tudo está em movimento, o mesmo
bailado que não opera só por estratos, mas também por sonoridades de livre encaixe que se
reagrupam aqui e ali. Quando o caçador de caranguejos se mostra apenas um observador
em devir com a natureza esta vai pouco a pouco revelando seus matizes. Então não serão
mais os caranguejos coloridos a sair da toca, mas um grão de amarelo, um borrão vermelho,
o reflexo azulado.
Durante o processo de edição de som devemos tomar bastante cuidado para não atar
estas transmigrações entre os estratos sonoros exclusivamente a determinado humor de um
personagem ou a certa exigência dramatúrgica. Se assim fosse, estaríamos fazendo
psicanálise e não criando geografia. É claro que precisamos entender perfeitamente os
personagens e as curvas dramáticas do filme, mas, ao construir o mapa de som, a
cartofonia, não podemos fazê-la orbitar em torno de centros únicos. Devemos ter sempre
em mente o fora, os ventos que vêm sem aviso e as imprevisibilidades da paisagem. A
mudança pode ser deflagrada por um gesto, um olhar em fuga ou uma janela aberta que nos
permita ouvir exercícios de piano do outro lado da rua. Caso contrário, teríamos de buscar
38
uma justificativa dramatúrgica a priori para cada som que quiséssemos colocar no filme, e
trabalharíamos com rédeas. Na ilha de edição, frente ao computador, temos que nos
transformar um pouco em músicos, tocando em tempo real enquanto as imagens desfilam
na tela. Lembrando que nossos instrumentos serão as estações do ano, as chuvas ou os
ventos que atravessam qualquer dramaturgia. Se não der certo, começaremos de novo, a
cada tentativa.
A vida necessita de um cotidiano, um tempo regrado e uma rotina. Mas é justamente
nos momentos de descuido, quando nos escapa, que ela confirma sua imensa alegria. A
criança quer chegar ao inferno e cava um buraco em seu quintal, quando um cano estoura e
um demônio brincalhão revela sua face sorridente por entre o frescor de uma nova
cachoeira. Entidades das águas, não de morbidez.
O que queremos dizer também é que muitas vezes as melhores construções sonoras
vêm quando nos colocamos em livres relações de desejo com a imagem e com o fora, às
vezes por acaso, às vezes por um descuido consentido, às vezes como um cano que estoura.
Prudência e simplicidade, mas também doses de coragem para arriscar alguns vôos
antes que a construção sonora se torne “…um depósito de inautênticos elementos para a
formação de impuros cristais -, no lugar do puro cristal que capta as forças cósmicas. O
som fica num estado de fórmula que evoca um personagem ou uma paisagem, em vez de
ele próprio fazer um personagem rítmico, uma paisagem melódica.” 6
Na estória da figueira temos uma construção bem esclarecedora quanto a
transmigração entre estratos sonoros. A menina de cabelos dourados está emburrada,
pendurada no varal. Sua expressão se contrai e começamos a ouvir o vento soprando.
Colocamos também, bem baixinhos, ruídos do rolamento de madeira de uma antiga
máquina de fabricar chapéus. Os rolamentos sugerem a idéia de movimento, de algo que o
vento arrasta. Há um corte e vemos nuvens movimentando-se no céu. Seriam os rolamentos
um barulho fantástico para o deslocamento das nuvens? Um crepitar de vapores? Talvez,
mas antes de cairmos em metáforas, voltemos à terra. Com este fim, de voltar à terra,
colocamos também delicados sons de mensageiros do vento, sinetinhas de metal que o pai
da diretora havia espalhado por toda chácara. Estes sons nos trazem para a terra pois, apesar
da imagem nos mostrar o céu e o movimento produzido pelo vento nas nuvens, o que
ouvimos são os caminhos traçados por este mesmo vento na terra, no farfalhar das folhas e
nas sinetas penduradas.
6
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix em “Mil Platôs : Capitalismo e Esquizofrenia.”.
39
Há um corte que nos mostra os galhos de uma árvore, vista de baixo para cima,
balançando ao vento. Ouvimos o vento nas folhas, ainda os sininhos e a árvore rangendo. Já
nos disseram que estes rangidos se pareciam mais com um Pica-Pau. Achamos ótimo.
Mais um corte e a menina está deitada no túmulo da mãe, olhando para o alto.
Alguns espectadores estranham essa passagem, não entendem como a menina saiu do varal
e foi parar no túmulo. Talvez nem deus saiba como isso aconteceu, mas o som compra a
briga, pois entende que o vento (elemento de costura presente entre todos estes planos) é
um grande mensageiro que leva e traz : partículas, moscas, sons e também meninas
penduradas em varais.
O Jardineiro está ao lado do túmulo, fazendo cócegas na menina. Por dentro do
sopro do vento vamos entrando com sussurros de um cantar fantasmagórico, até que os dois
sons não fossem mais separáveis um do outro, ligando-se numa vizinhança de
indiscernibilidade, onde o vento cantasse enquanto o canto soprasse. O canto era uma ação-
vocal da atriz que faz o personagem do fantasma da mãe, gravado na igreja abandonada. O
Jardineiro começa a perceber algo estranho no ar, crescemos o som do canto como se ele
tentasse se desprender do som do vento, deixar de ser som ambiente para se tornar efeito.
Eis que surge uma mosca! Sim, as moscas, estes maravilhosos seres que entram no filme
sem ser convidados e acabam por fazer uma atuação brilhante, no papel de mensageiros do
fora. Devemos estar muito atentos a tudo que acontece num filme e é independente de
nossa vontade, todas estas frestas que deixam passar movimentos primordiais do mundo lá
fora e muitas vezes salvam um filme ruim.
A mosca caminha pela careca do Jardineiro e resolvemos sonorizar o trajeto do
inseto, mesmo sabendo que moscas só fazem barulho quando estão voando. O fato é que o
zum-zum-zum do bicho tinha um timbre semelhante ao vento e ao canto fantasmagórico, de
maneira que conseguimos esconder o som do fantasma por dentro do ruído da mosca. Isto
é, o canto do fantasma, que primeiro surge do vento, mistura-se com ele como som
ambiente, para depois crescer aqui e ali e tornar-se efeito, em sincronicidade com o
aguçamento na expressão do Jardineiro, é finalmente absorvido por dentro de um ruído de
sala forjado, o caminhar da mosca que captura as estranhezas eminentes. Foi justamente a
desestratificação contínua do canto do fantasma que marcou os três momentos da cena :
leveza musical do vento / cócegas - fantasmagoria eminente/ estado de alerta do Jardineiro -
chegada da mosca / absorção das estranhezas.
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Curioso é que este terceiro momento dramático da cena, pequeno instante de
calmaria quando o canto do fantasma parece ser um alarme falso, não estava previsto pelo
roteiro nem pela direção de atores. Só foi possível pela participação da mosca, cuja
aparição também não estava prevista pelo roteiro nem pela direção de atores. O som se
aproveitou das conjunções da imagem para trazer a idéia do alarme falso, provocando uma
suspensão, uma diluição da fantasmagoria eminente no ruído aflitivo de um inseto. Em
nossa opinião é justamente esta breve captura do canto fantasmagórico que dá força à cena
seguinte, na qual vemos de fato o fantasma da mãe erguendo-se do túmulo. O alarme falso
mostra-se verdadeiro quando já não esperávamos que fosse. Dilui-se para depois se
concentrar. Vemos que o som pode, ao invés de decalcar momentos dramáticos já existentes
na imagem, engendrar novos.
Não se trata também de diluir os sons para depois dar um susto e obter o efeito
pontual desejado. É mais um esforço para fazer matilha, um sistema no qual a mosca e o
vento também tomam parte no mundo dos mortos e têm sua medida nas participações anti-
natureza. Contaminações recíprocas entre as livres linhas.
Ao invés da fantasia despótica temos aqui uma fantasia molecular que se confunde
com o vento. Temos partículas fantásticas livres transmigrando de um estrato a outro
(ambiente- efeito- ruído de sala) - territorialização, desterritorialização e reterritorialização.
Porque na verdade tais intensidades livres pulsam por dentro de todas as coisas, atravessam
todas as coisas e podem partir de todas as coisas, mas não é Deus porque está sempre
mudando. É mais panteísmo...
Durante as aulas de som Edu Mendes começou a estimular essas possibilidades.
Lembramo-nos dos helicópteros fazendo sistema com os ventiladores em Apocalypse Now,
não por analogia direta entre duas hélices, mas por conexão entre multiplicidades, por
partículas sonoras liberadas do helicóptero, conectando-se ao ouvido de guerra desejando
silêncio, explosões distorcidas quase inaudíveis, freqüências graves e Jim Morrison,
passando pelos movimentos do ventilador no quarto escuro atravessado por multidões
inquietas. Grilos da mata densa cantando na cidade grande, homem guerreiro fragmentado
entre territórios, exércitos e batalhas inúteis. Transmigração dos sons. Ouvido como espaço-
tempo de combates imanentes. Precisão sóbria de Walter Murch, prudência e silêncios.
Respeito ao processo natural do ouvir, conhecimento das propriedades auditivas do homem
– audição seletiva na cena do tigre, pavor emanado da quietude e nunca de um emaranhado
ruidoso.
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“Sobriedade, sobriedade : é a condição comum para a desterritorialização das
matérias, a molecularização do material, a cosmicização das forças. Talvez a criança
consiga. Mas essa sobriedade é a de um devir-criança, que não é necessariamente o devir
da criança, pelo contrário; de um devir-louco, que não é necessariamente o devir do louco,
pelo contrário. É óbvio que é preciso um som muito puro e simples, uma emissão ou uma
onda sem harmônicos, para que o som viaje, e que viajemos em torno do som. Você
encontrará tanto mais disparates quanto mais você estiver numa atmosfera rarefeita. Sua
síntese de disparates será tanto mais forte quanto mais você operar com um gesto sóbrio, de
captura ou de extração que trabalhará sobre um material não sumário, mas prodigiosamente
7
simplificado, criativamente limitado, selecionado. Pois só há imaginação na técnica.”.
Ao longo da experiência como editores de som e espectadores temos percebido que
existe um momento muito particular dos filmes, que se abre especialmente à
experimentação, fermentação e folia entre as partículas sonoras. São os minutos iniciais,
quando universo da história ainda não está consolidado - o comecinho de tudo.
No princípio era o caos. Não é bem assim. No princípio era quase o caos, pois a tela
de cinema é retangular, o cimento da sala é bem firme e o filme acabou de começar. As
pessoas estão sentadinhas no escuro, à espera de um convite.
É no decorrer de seus minutos iniciais que um filme transmite suas regras, ou antes,
traça os apontamentos das linhas desejosas que irá prolongar. É quando olhamos no olho do
espectador pela primeira vez, e isto pode ser feito com transparência. É também o vagar do
material imagético e sonoro intensivo, antes da formação desta ou aquela história, este ou
aquele personagem. O filme que vai se desenrolar diante de nossos olhos e ouvidos ainda
pode ser qualquer coisa. O ouro é intensidade não formada, podendo fazer sol ou anel. É no
começo do filme que estas forças livres começam a se conjugar num dado agenciamento,
algumas são acalmadas, outras banidas, outras ainda mais enfurecidas, nos convidando a
presenciar, sempre pelo meio, a consolidação em tempo real de um universo. O começo de
um filme é sua síntese disjuntiva, e talvez um dos momentos de maior liberdade para as
construções entre imagem e som.
7
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix em “Mil Platôs : Capitalismo e Esquizofrenia.”.
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Preferimos começar a editar o som de um filme sempre pela sequência inicial.
Assim poderemos ter o primeiro contato com a expressividade de nossos materiais sonoros
ao trabalhar sobre um trecho do filme que será também aquele em que o espectador o estará
descobrindo pela primeira vez. Estabelece-se uma produtiva relação de sincronicidade de
descobertas entre editor de som e espectador.
Tarabatara começa com um assobio no escuro. Esse assobio dilui-se numa
interferência de ondas de rádio, gravadas no próprio acampamento cigano. Quando a
imagem nos oferece uma lua branca num céu azul começamos a ouvir, por dentro dessas
ondas de rádio, um canto cigano feminino, vindo do leste europeu. Também uma poesia em
romanês, recitada por um cigano Húngaro. Também algumas notas de uma música indiana.
O importante aqui é que todos estes sons estão misturados e irmanam-se por dentro do
ruído das interferências de rádio, emanam delas. Até aqui podemos estar em qualquer lugar
do mundo, Egito ou Sertão, ouvindo as surpresas que as ondas de amplitude modulada nos
podem trazer. Até aqui somos ciganos e ainda não sabemos.
Começamos então a ouvir, surgindo também de dentro das ondas de rádio, um filme
dublado em português, passando na TV. Estamos chegando em casa… Há um corte que nos
mostra um menino olhando direto para a lente, exibindo a face lunar de sua moedinha
brilhante. Sonorizamos esse corte com um tilintar de cristal bem agudo, seguido por uma
freqüência pura e contínua de cristal. É como se o contato visual entre espectador,
ciganinho e moeda produzisse este ruído, não de metal, mas de cristal. Não se trata de
sonorizar esta ou aquela moeda específica, este ou aquele metal, mas o dinheiro puro, a
moeda da lua, dinheiro de ouro do tempo de cigano andar, dinheiro de criança, vintém de
cristal. A partir daí os sons vão se naturalizando até chegarmos na cena em que o menino
corre de asas abertas.
O assobio no começo do filme foi o último som a ser adicionado nesta construção.
Nossa idéia inicial era começar com as interferências de rádio, como se estivéssemos
soprando aos ouvidos do espectador : “este é um filme aberto a interferências, um pequeno
pára-raio cigano, sons dos mais longínquos podem surgir como que do vento …”. Quando
Julia viu a cena gostou da idéia, mas achou agressivo começar o filme com uma
interferência. Concordei com ela, pois tais interferências estão muito próximas do caos.
Tudo podendo vir de qualquer direção é um convite por demais aniquilador. Então
pensamos no assobio e as coisas mudaram. O escuro começava com a leveza de um
assobio, as interferências partiam de uma nota calma e humana, limpa. Começar o filme
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com um único elemento sonoro, simples e terno, para só então chegarmos às interferências
possíveis. No princípio era um assobio…
Claro que todas estas passagens são muito rápidas, o espectador que ainda está
conversando não vai nem ouvir o assobio, mas mesmo assim nosso trabalho deve ser
microscópico.
A partir deste início o espectador está convidado a receber falas em idioma estranho
sem tentar conectá-las a uma enunciação, sem interpretá-las, mas apenas ouvi-las em sua
musicalidade. O espectador foi sensorialmente avisado que a moeda pode ser de cristal, as
estradas vazias são atravessadas por certas multidões em movimento e que os destinos nas
cartas às vezes se cruzam.
A estória da figueira começa com uma cena bem escura, na qual vemos apenas a
menina dos cabelos dourados e um velho livro fechado sobre uma mesa. A menina o abre,
mas o peso de sua capa faz com que ela a solte. O livro se fecha.
A escuridão da cena deveria ser ocupada pelos sons. Como a criança que, ao apagar
a luz do quarto, enxerga instigantes criaturas pelas zonas de penumbra.
Começamos a escolher os ambientes da cena, que surgiriam logo nos primeiros
letreiros. Imaginamos que o livro estava dentro de uma casinha, e a casinha estava perto de
um riacho. Colocamos então um ambiente leve de água corrente no canal esquerdo.
Imaginamos que perto desta casinha havia uma criação de galinhas da angola, de maneira
que colocamos um ambiente com piados desses bichos no canal direito. No canal do centro
um ambiente do meio do mato, com arrulhos de pomba e espaçados passarinhos.
Imaginamos que a casa onde estava o livro era de madeira antiga, por isso rangia à
toa. Também imaginamos que uma das janelas da casa estava aberta, e vez em quando batia
com o vento. E também um inseto que entrou pela janela e não conseguia sair, batendo suas
asas vez ou outra na parede. Imaginamos os sons dos passos da menina indo até o livro. A
partir do escuro da imagem fechamos também nossos olhos e mergulhamos num exercício
de mapeamento fabulador. Pusemo-nos a conectar entornos possíveis ao redor daquela casa,
da qual se via apenas um livro e uma criança. “Era uma casa muito engraçada, não tinha
teto, não tinha nada…”
Sabemos que casas mal assombradas em filmes clássicos de terror também rangem,
também têm janelas abertas batendo ao vento, e talvez até um inseto aprisionado.
Pensamos, no entanto, que se a ambiência sonora da abertura da estória da figueira não
constrói um clichê de casa mal assombrada é devido à simplicidade dos materiais sonoros
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envolvidos (janela de madeira caipira, vento calmo, galinha da angola indiferente ao terror,
rangidos suaves e moleculares, inseto de asas leves), ao ritmo com que esses materiais se
apresentam e se alternam, sem pressa e num compasso mais próximo ao do dia-a-dia das
coisas, aos volumes reduzidos destes materiais para que eles não se sobreponham à
imagem, mas componham pequenas efervescências nas profundezas da paisagem, e
finalmente à imagem, que nunca recorre ao plano de uma janela batendo, ou ao plano de
um inseto em desespero, como se tudo o que soasse tivesse também de ter uma imagem-
decalque correspondente.
Feita a ambiência faltava agora o principal. Desde o roteiro havia a idéia de que
quando a menina abrisse o livro, escapassem dele alguns sons - animais, vozes, guizos,
sons da história que será contada e também sons da história que já foi contada, em outros
tempos, por tantas vozes que já vibraram nesta fábula oral e vêm caminhando com ela.
O primeiro som que colocamos quando o livro é aberto foi o canto do fantasma da
mãe, como um primeiro chamado, ligação direta entre mãe e filha. Depois uma carruagem,
cavalos em fuga, sabiá, maritaca, guizos, morcegos, bater de asas… até que havíamos
saturado completamente a imagem. Não havia espaço para mais nada e chegávamos ao
emaranhado cacofônico. Explosão desnecessária no ouvido dos espectadores, como se toda
selva viesse em busca da menina. Talvez a construção funcionasse bem num filme como
“Jumanji”, mas neste aqui as coisas deveriam ser mais quietas, organizarem-se por entre
quietudes, mesmo nos momentos mais explosivos.
Começamos de novo. Primeiro deveríamos resolver o peso da capa do livro. Para
isso buscamos sons de porteira rangendo, sugerindo madeira robusta. O livro agora rangia
ao ser aberto, era livro-porteira. O primeiro som que escapa é o canto da mãe, sozinho, e
pouco a pouco vai chamando os outros sons. Primeiro a pomba, que já parece canto de
fantasma, depois o Sabiá, que canta à noite, maritaca não, carroça sim, trotar de cavalos ao
longe sim, morcegos bem baixinhos. E quando o livro se fecha ouvimos um som seco de
madeira batendo combinado com o tilintar de guizos. O som de um bater de asas escapa
para a cena seguinte - fugiu do livro um pássaro que vai pousar nos ombros da cozinheira
que não vemos, mas cujos ingredientes dispõem-se belamente sobre a mesa.
Todos os sons presentes neste início serão usados e desenvolvidos ao longo do
filme, assumindo funções muito importantes e variadas. Como a carroça, que também
sonoriza as mãos do pai cego tateando a parede, ou o canto da mãe, os arrulhos de pomba,
os morcegos durante o pesadelo, os rangidos de madeira no balanço da menina…
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Pensamos que esta cena de abertura ilustra bem a síntese disjuntiva que pode ser o
começo de um filme. Síntese porque reúne partículas anteriores ao filme (que já vinham do
livro), e que estarão sempre se desdobrando ao longo dele; e disjuntiva porque, ao invés de
sedimentá-las, lança essas partículas rumo a um campo de novos encaixes possíveis, onde
mudanças de natureza ocorrem a cada encontro.
Muitas vezes nos deparamos com uma sequência que não sabemos como sonorizar.
Diante de tal empecilho devemos recorrer aquilo que pode nos libertar de nossos órgãos,
vícios, manias e idiossincrasias : o desejo. Encontrar zonas de vizinhança possíveis entre
nosso desejo de ouvir e as linhas desejosas que atravessam a tela, seja pelo caminho
sinuoso de uma mosca ou através de um mergulho nas águas. Devemos vasculhar a tela
várias vezes, microscopicamente, em busca de movimentos e poros, eventos inesperados,
velocidades, lentidões e latências. Forças cinéticas, cromáticas, amorosas, etc., que possam
ser tornadas audíveis. É essa a pescaria do nosso trabalho. Pescaria que começa com a
conjugação entre as redes.
Por exemplo, na sequência em que o Jardineiro pula no poço e cai perto da figueira.
O corpo de um ator é atravessado pelo desejo. É através dos caminhos do desejo que
o ator-Jardineiro se liga, por exemplo, numa zona de vizinhança com os animais. Ele pula
no poço, rasteja pelo chão e come um figo. Neste primeiro momento da cena utilizamos
sons de porco, uma cabra mastigando e principalmente ações vocais do próprio ator. Mas
quando seus pés tocam a grande árvore o Jardineiro parece mudar, e pára de emitir sons
animalescos. Ele parece sentir algo subindo-lhe pela espinha quando ouvimos uma cigarra
cantando - som agudo raspado no ar. Então ele se coloca de pé, é agora um bípede. Seu
desejo aponta em outra direção, conecta-se com outras linhas. Linhas percorrendo o interior
inaudito da grande árvore, na qual o Jardineiro encosta a mão e cujo fluxo interno ele
parece ouvir. O Jardineiro entra em vizinhança com a árvore, sente forças que a percorrem,
escuta o fluir de sua seiva. Vemos essas linhas passando pelo rosto do ator, nos movimentos
que atravessam seu corpo e seus músculos. O corpo do ator faz corpo-sem-orgãos com a
árvore, o balanço e a clareira. Na imagem muda as intensidades sonoras já estão
atravessando o personagem, percorrem seus gestos e fibras, falta agora torná-las audíveis.
Ouvimos um incêndio na mata, uma árvore caindo, o canto do fantasma da mãe, a
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cigarra ríspida e, mais importante de todos, sons de crianças brincando, gravados à beira de
uma cachoeira em Minas Gerais. Ciranda de partículas sonoras, partindo da árvore e
ocupando a clareira. Incomodado, o Jardineiro parece querer fugir destes sons que o
assolam, até que passa por entre o vão exato entre as cordas do balanço pendurado na
árvore. Ao fazê-lo, sua postura muda novamente, torna-se sóbria e completamente humana.
Novas conexões são feitas com o Homo Sapiens Erectus. O corpo do ator nos sugere que
por entre o vão daquele balanço existe uma espécie de fenda, cuja travessia separa dois
mundos, barra o murmúrio interno da árvore e dissolve a ciranda na clareira. Quando ele
passa pelo balanço sumimos com os sons de incêndio, rangido de madeira, e por último o
canto do fantasma. Deixamos apenas o ambiente naturalista, que já vinha por baixo, e
também um Anú Branco. Pássaro zombeteiro rindo, em cadências cada vez mais espaçadas,
da nova estabilidade adquirida pelo mundo. Tudo num plano fixo e único, atravessado por
forças de tantas naturezas.
Se o Jardineiro passa por devires - devir-criança, devir-animal, devir-fantasma - o
som também deveria, a partir das partículas, movimentos e repousos que lhe são próprios,
tomar parte nesses devires, torná-los audíveis.
A sonorização desta cena só foi possível pela ligação do nosso desejo de ouvir com
as linhas de desejo percorrendo o corpo do ator, que com aguçada percepção ou instinto,
fez corpo-sem-órgãos ao se conectar com certas multiplicidades que atravessavam a
clareira no presente daquele instante. Multiplicidades tornadas corpóreas, e depois tornadas
audíveis, fazendo nova natureza a cada encontro. Encontro instantâneo entre ator e clareira.
Entre editor de som, ator e materiais sonoros. Entre espectador e filme.
O Jardineiro foi um vetor sonoro intensivo ao longo de todo filme, porque ele está
sempre em devir. Ele se conecta ao mundo dos mortos e ouve o canto do fantasma, mas ele
também faz vizinhança com o mundo animal que se comunica com ele, nunca por analogias
formais entre a linguagem humana e a dos bichos, mas por partículas que fazem a travessia
entre os reinos.
Este personagem nos é apresentado da seguinte maneira : vemos um plano próximo
de um galo de briga, forte e invocado, que nos encara. Num gesto rápido o galo gira seu
pescoço e começamos a ouvir seu canto agudo. Corta-se no movimento do galo para um
plano aberto, no qual vemos o Jardineiro, que parece continuar com seu pescoço o gesto do
galo. O canto do galo invade esse plano, é levemente distorcido, até que se transforma no
canto de outra ave, que se mistura ao som de asas batendo. Tudo isso enquanto o Jardineiro
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parece acompanhar com o pescoço o trajeto de uma ave no céu. O galo girou o pescoço, o
Jardineiro continuou seu gesto. O galo cantou, se transformou em outro pássaro
sobrevoando a cena seguinte, foi avistado pelo Jardineiro e ouvido por todos nós. São
partículas de gesto e de som que se desprendem do reino animal e afetam o Jardineiro, na
medida em que também são afetadas por ele. Se existem intensidades de galo no Jardineiro,
o contrário também é verdade.
O Jardineiro também faz vizinhança com o além, ouvindo o canto do fantasma, que
nunca lhe chega diretamente, mas sempre por entre os ventos. Então o campo dos mortos
também se conjuga aos sons ambientes, à própria natureza, pois passa por dentro dela. Não
é nunca a audição exclusiva e subjetiva de um personagem, o Jardineiro, mas um novo
mapa conectado se fazendo audível, cruzando naturezas e subjetividades. Arriscamos até a
dizer que o Jardineiro conserva da subjetividade precisamente aquilo que é necessário à sua
dissolução, se fazendo um corpo-sem-órgãos em conjugação com o desejo da menina, a
árvore que toca ou a terra que cava.
Devemos, portanto, entender as linhas de intensidades, visíveis ou não, que
percorrem a imagem por entre seus poros, fluxos e cortes. Vasculhar cada centímetro e cada
gesto, para tentarmos ligar nosso trabalho a estas linhas, e então torná-las audíveis. Alegria
é saber que não se trata de tornar audível a subjetividade deste ou daquele personagem, nem
a métrica dramatúrgica, mas uma conexão entre latitudes, uma hora do dia, uma estação,
um rio, um vento, uma colina, uma chuva, mesmo que dela só se ouça uma gota por vez.
Alegria é saber que não estamos fazendo psicanálise de um personagem, mas povoando o
som com pequenas multidões que se atravessam e se arrastam. É sobre um meio aquoso que
trabalhamos, conjugando fluxos que arrastam outras águas em sua passagem, recebem
novos leitos e às vezes redemunham.
Trilha Musical
Falaremos aqui sobre uma das poucas experiências que tivemos de compor uma trilha
musical. Foi na Estória da Figueira, na cena em que a menina encontra o fantasma da mãe
pendurado na árvore.
A musicalidade da sequência vem chegando de antes, a partir da cena em que vemos
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a mão do pai da menina tateando as paredes de seu casebre. Para sonorizar este gesto
optamos pelo som de rodas girando sobre a terra e também um rangido de carro de boi, que
na verdade foi feito com fragmentos de violinos recombinados, pois ainda não tínhamos
gravado um som original de carro de boi. Optamos por estes sons porque não sabemos das
multiplicidades que percorrem as pontas dos dedos de um cego quando ele toca algo, mas
imaginamos que deva ser como a agulha tateando o relevo de um vinil, captando tempo,
movimento ou música, a partir de uma topografia microscópica.
Quando o pai chega até a porta e a luz estoura optamos por colocar, junto com o ruído
do carro de boi, uma espécie de buzina de trem dissolvida, como uma despedida. A câmera
chega até um desenho na parede, no qual vemos a balança da menina em baixo relevo.
Começamos então a ouvir os rangidos de suas cordas indo e vindo.
Há um corte e vemos, de cima para baixo, a menina balançando. Criamos os rangidos
das cordas a partir de pequenos fragmentos de sons de madeira estalando, como uma
espécie de Tic-Tac descompassado, sem a disciplina de um metrônomo. Então pensamos
que podíamos, junto com esses rangidos, colocar pedacinhos de uma rabeca, no ritmo do ir
e vir da balança. É ainda uma musicalidade torta, sem compasso formado, justamente como
se as partículas de som estivessem ainda se arranjando em direção à música propriamente
dita.
Vemos um passarinho levantando vôo, o farfalhar de suas asas faz a costura entre os
planos, até que ele pousa nas mãos da menina e sai voando novamente. A menina olha para
cima e a câmera vai subindo em direção ao fantasma na árvore. Nesse trecho sentíamos a
necessidade de que a música começasse a se formar.
Certa vez viajávamos no trem metropolitano de São Paulo, quando encontramos um
velho que vendia pequenas liras, dessas bem caseiras, cujas cordas eram finos pedaços de
arame esticado. Compramos uma. Chegando em casa começamos a dedilhar e encontramos
uma música simples, de cinco notas. Gravamos a música no corredor da antiga reitoria da
Universidade de São Paulo, valendo-nos da grande reverberação daquele corredor vazio e
do bafo grave da madrugada.
No computador combinamos o canto do fantasma com o som da lira, crescendo na
medida em que a câmera subia em direção à árvore. As notas pareciam se encaixar, pois
sugeriam uma ascensão no tempo da câmera, e pouco antes de vermos o fantasma a
melodia, ao invés de ascender mais, sofria uma espécie de tropico, descia, quase
desafinava. Nos perguntamos o porque daquilo ter dado certo, uma vez que não somos
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músicos. Talvez por aquela lira ser um instrumento frágil e delicado, portadora de uma
sonoridade evanescente, um sumiço de som. Um instrumento dos anjos, porém de tímida
voz. Era uma melodia do além que cabia nas pontas dos dedos, caseira, numa pequena
caixa acústica vendida por um velho no trem. Era fato: a cena não precisava de grandes
orquestras, tímpanos ou epifanias musicais. Mas ainda faltava alguma coisa.
O que poderia ser ainda mais frágil, feminino e fantasmagórico? Um brinde : cristal!
Lembramo-nos de que era possível tocar taças de cristal com um pouco de água.
Surrupiamos três delas na casa materna e as levamos ao estúdio. Extraímos duas
sonoridades básicas: notas contínuas resultantes dos dedos se esfregando no cristal molhado
e tilintares das taças se chocando umas nas outras. Potencializamos esses choques no
computador até que se assemelhassem a sinos dobrando. Colocamos estes "sinos" no tempo
da música da lira, e as notas contínuas do cristal foram combinadas ao canto da mãe, como
se também saíssem de sua boca.
Tínhamos então uma música aguda, vítrea, frágil e feminina. Sentimos apenas falta
do grave. De onde viria? Da natureza, como não poderia deixar de ser. Processamos no
computador o rangido natural de uma grande árvore se partindo, como imaginávamos ser a
dor rústica de um ente da floresta se abrindo ao meio. A árvore agora também participava
da construção sonora, fazia sistema.
Terminada esta trilha original, que funciona como uma espécie de prólogo, entra a
música do grupo Anima (estes sim entendem de composição!) e começa a corrida pelo
laranjal. De forma que quando surge uma trilha mais presente e complexa, o espectador já
embarcou na cena, cuja musicalidade veio surgindo aos poucos, de longe, formando-se a
partir de relações instauradas entre partículas sonoras não musicais a priori, e agora pode
correr solta pelo laranjal.
Durante a corrida de mãe e filha mantivemos os tilintares e as notas do cristal, desta
vez sincronizando-os com os movimentos e gestos do fantasma, como se ele próprio fosse
feito de vidro. A cena termina com o ruído quase inaudível de uma taça se partindo,
marcando a despedida de mãe e filha. Dessa maneira, elementos que foram antes usados na
trilha musical viram ruído de sala, transmigrando de uma camada sonora à outra, pois,
afinal de contas, pertencem ao campo de composição primordial do filme, onde uma
mesma explosão de átomos pode formar ouro, mercúrio ou água corrente.
Assim poderíamos concluir que, ao se pensar a trilha musical de um filme, devemos
partir do solo onde a obra se alicerça, o chão que os personagens pisam, os pássaros e
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ventos que os rodeiam, as intensidades, sonoras ou não, que os percorrem. A trilha musical
não deve ser um comentário alienígena para facilitar a compreensão emotiva da história ou
reiterar as impressões já criadas pela imagem, devendo, ao invés disso, imbricar-se com as
outras dimensões sonoras do filme, ser extraída das infinitas potencialidades do som direto
e virar, ela mesma, natureza, dando à imagem novas impressões possíveis ou novos
matizes.
Devemos encontrar a música molecular dos ruídos, as melodias latentes. Com isso
não pretendemos defender a idéia de abolir as orquestras e gravações grandiosas, pelo
contrário, propomos apenas que estas se conectem aos mapas. Sugerimos que, antes de se
trabalhar o som de um filme em qualquer nível, encontremos o “caldeirão primordial” da
história, onde fervilha sua sonoridade imanente, anterior às formas e aos estratos.
Ouçamos o desafio lançado por Tarkovski : "Acho que, acima de tudo, os sons deste
mundo são tão belos em si mesmos que, se aprendêssemos a ouvi-los adequadamente, o
cinema não teria a menor necessidade de música."
É bem possível que ainda não tenhamos conseguido alcançar nos filmes que
passaram por nossas mãos e ouvidos o marulho molecular que propomos aqui. O que, na
verdade, é um alívio, uma vez que a busca pelo campo de imanência, pelo corpo-sem-
órgãos, pelas desterritorializações prudentes e pelos caminhos do desejo é tarefa diária, ao
mesmo tempo que um trabalho para toda vida, a cada gesto e encontro. E não se faz a
golpes de martelo, mas com uma lima muito fina.
Sabemos também que a maioria dos filmes feitos atualmente têm uma urgência de
“realidade”, precisam que a história seja realista, que o som reitere que tudo aquilo é
verdade, pois acreditam talvez que esta seja a única maneira de conquistar o espectador. Às
vezes se esquecem que um só espectador já é multidão que não se pode prever…
Sabemos também como é raro o olhar franco e alado da diretora destes dois filmes
que viemos analisando, e que nos possibilitaram a descoberta das propriedades moleculares
do som. Sabemos finalmente que, se quisermos viver deste nosso ofício, deveremos
sonorizar passos que são mesmo passos, tiros que são mesmo tiros, e dar sustos quando a
direção precisar que o filme assuste, pois pensa ser esse o melhor meio de causar algum
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impacto.
Tranqüilo. Também é bom saber que “nunca estaremos seguros de ser
suficientemente fortes, pois não temos sistema, temos apenas linhas e movimentos” como o
próprio som, a música ou os fluxos sobre a terra.
Na verdade, não temos medo de nos obstruir diante das exigências do realismo, pois
o realismo, em si, não é mal. Pode ser lindo, pode também engendrar novos espaços-
tempos. Acreditamos, com toda fé em nosso coração, na presença das frestas. Contínua
variação de frestas fechando-se num canto para abrir-se noutro. Mesmo no filme mais
“realista” que nos aparecer pela frente, teremos fé de encontrar num vidro embaçado de
corredor frio a possibilidade sonora de uma garoa, um olhar em fuga transparente de uma
atriz na janela capaz de ouvir o chamado atemporal do amolador de facas, uma janela que
faça vizinhança com alguém estudando piano, um silêncio, um vento, um cão que late, um
coração que bate, um mensageiro dos ventos... E teremos sempre o som direto, convidando-
nos a novos festejos nas clareiras.
Nos imantaremos com as moléculas, fazendo som ou qualquer outra atividade. A
cada encontro, olhar e gesto. Quando estivermos tristes e desconectados, teremos alguém
para nos dizer : “Não se trata nunca de fugir do mundo, mas de fazê-lo fugir, como um cano
que estoura.”.
Florestas de borda
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Bibliografia Consultada
TARKOVSKI, Andrei – “Esculpir o Tempo”. São Paulo: Ed. Martins Fontes. 1998.
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