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vivências educacionais
Vanda Machado
Mitos afro-brasileiros e vivências educacionais - Vanda Machado
Quando os últimos raios de sol deixavam a Praça da Matriz em São Filipe, cidade
fumajeira do Recôncavo Baiano, as crianças sumiam porta adentro à espera do café com
pão que era engolido às pressas, porque estava quase na hora de Eulina começar a contar
suas histórias. Eram histórias de reis, rainhas, casas mal-assombradas e bichos falantes.
Eulina era uma mulher negra retinta, braços fortes e uma voz forte e doce que prendia a
atenção da gente, o tempo que ela quisesse. Ela apareceu na cidade acompanhando um
bando de retirantes, fugindo da seca do sertão. Eulina tinha braços tão fortes que agüenta-
va torrar e pilar café todos os dias da semana. Às vezes, ela lavava roupas ou cozinhava
para as famílias mais abastadas da cidade. Nunca se soube de verdade de onde ela tinha
chegado. Um jeito agradável de falar, um sorriso aberto, mostrando uma alegria retirada do
fundo da sua alma negra, encantavam principalmente as crianças. Quando chegava a
noitinha, depois de suas múltiplas atividades, chegava a hora do sagrado compromisso de
contar histórias para as crianças da vizinhança. Naquela hora ninguém faltava, ninguém
chegava atrasado, ninguém dava um pio. Nunca esqueci Eulina e suas histórias, porque
eram interessantes e muitas vezes parecidas com a vida que a gente vivia.
Quando criei o Projeto Político-Pedagógico Irê Ayó, na Escola Eugênia Anna dos San-
tos, na comunidade do Ilê Axé Opo Afonjá, inspirado no pensamento iorubano, considerei a
minha experiência de criança que muito aprendeu sobre a vida ouvindo muitas histórias.
Por outro lado, a minha itinerância, enquanto educadora negra, vivendo a cultura do terrei-
ro, trouxe à tona a memória de matriz africana vivida no engenho de açúcar, na Fazenda
Copioba, em São Filipe, que se juntou às experiências do Afonjá, onde a matriz africana
mantém parte de sua essência pela tradição de contar e vivenciar histórias míticas.
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de ensinar. Assim nasceram os mitos. Contar mitos, em muitos lugares na África, faz parte
do jeito de educar a criança que, mesmo antes de ir para escola, aprende as histórias da
sua comunidade, os acontecimentos passados, valorizando-os como novidade. Os mitos
de matriz cultural evidenciam valores de convivência e solidariedade, considerando:
Como exemplo, vejamos um desses mitos que são vivenciados, inspirados em valores
e compartilhados como patrimônios da herança ancestral.
Conta-se que um velho, percebendo que a morte se aproximava, chamou os filhos um por um para apresentar-
lhes a herança. Todos reunidos, pediu ao filho mais velho que lhe trouxesse uma vassoura. Um tipo de
vassoura utilizada na Nigéria, por exemplo, não tem cabo e é feita com muitas fibras tiradas das folhas de
palmeiras e amarradas num feixe bem firme.O velho pai tomou algumas das fibras e distribuiu entre os filhos,
pedindo que as quebrassem. Todos fizeram a mesma experiência com facilidade. O velho tomou o feixe de
fibras e novamente pediu que os filhos experimentassem quebrar todas as fibras juntas. Todos tentaram e não
conseguiram, obviamente. Os filhos colheram os últimos suspiros do ancião que deixou como maior bem o
sentido da união que fortalecem as famílias.1
Este é um importante mito conhecido tanto pelo povo banto2 como pelos sudaneses3 .
Mito que caracteriza o povo africano pela compreensão e vivência do seu sentido agregador
e solidário. Na África tradicional, o Doma4 é considerado o guardião dos segredos da gêne-
se cósmica e das ciências da vida e mestre de si mesmo (BÂ, 1982, p.186) . O Doma é o
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Mito adaptado por Vanda Machado e Carlos Petrovich, para capacitação de educadores da Secretria Munipal
de Lençóis com a ONG Grão de Luz Griô.
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Povo de origem africana que inclui angolas, congos, cabindas, benquelas, mocambiques entre outros.
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Denominação arbitrária dada aos povos africanos localizados entre o Saara e Camarões inclui iorubanos, minas e outros.
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O Doma é considerado conhcedor, mestre e criador de conhecimentos.
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conhecedor de todas as histórias. Antes de iniciar as histórias, ele evoca os ancestrais com
todo respeito, dizendo-lhes o que pretende falar com seus ouvintes. Quando se trata de
transmitir conhecimentos para jovens e crianças, ele o faz considerando os conhecimentos
mais antigos. O conhecimento considerado é o conhecimento dos ancestrais e está expres-
so nos mitos criados para uma educação que pode durar toda a vida.
mitologia conta as histórias da vida, incluindo sempre o ser humano. Vejamos o mito da
criação do ser humano com a participação de um homem e uma mulher. Nanã e Oxalá,
juntos, criaram o ser humano5.
A mitologia iorubana nos conta que Olorum criou o mundo, criando todas as águas, todas as terras e
todos os filhos das águas e do seio das terras. Criou uma multiplicidade de plantas e bichos de todas as
cores e tamanhos. Um dia, Olorum chamou Oxalá e ordenou que ele criasse o ser humano. Oxalá, sem
perda de tempo, deu início ao trabalho que lhe foi ordenado. Fez um homem de ferro, constatou que era
rígido demais. Fez outro de madeira, que também ficou muito sem jeito. Tentou de pedra, o homem ficou
muito frio. Depois, tentou de água, mas o ser não tomava uma forma definida. Tentou fogo, mas, depois
de pronto, a criatura se consumiu no seu próprio fogo. Fez um ser de ar, depois de pronto o homem
voltou a ser o que era no princípio, apenas ar. Ele ainda tentou criar também, com azeite e vinho de
palma. Mas nada aconteceu. Preocupado, sentou-se à margem do rio, observando a água passar. Das
profundezas do rio surge Nanã, que indaga sobre a sua preocupação. Oxalá fala da sua responsabilida-
de naquele momento e das suas tentativas infecundas. Nanã mergulha nas águas profundas e traz
lama. Volta e traz mais lama e entrega para Oxalá, para que ele cumprisse a sua missão. Oxalá constrói
este outro ser e percebe com alegria que ele é flexível, que ele move os olhos, os braços, a cabeça [...]
então, sopra-lhe a vida. A criatura respira e sai cantando pelo mundo: ara aiyê modupé / Orumilá
funfun ojo/ nilê ô. (Esta é uma cantiga de agradecimento composta por Mestre Didi).
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Mito adapdado para o video Reparação, produzido pela SMEC (1999).
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O termo não tem o mesmo sentido ocidentalizante.
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ria da vida. Assim, o africano conta uma história e depois outra. Da mesma forma, há uma
história cosmológica, no interior da qual há uma outra história de vida, onde, finalmente,
pode ser encontrada a nossa própria história de vida vivente.
Se considerarmos o dicionário, o mito pode ser definido como tradição que, sob forma
de alegoria, deixa entrever um fato natural ou histórico. O dicionário ainda nos diz que o
mito é a história de um deus ou de um herói, ou de um acontecimento de origem ancestral.
Os mitos são metáforas da potencialidade espiritual do ser humano. Isto significa que o
herói mitológico sempre foi uma necessidade do homem. A escola sempre privilegiou a
mitologia grega, romana, mas é silente no que diz respeito à mitologia reinventada no Bra-
sil.
O mito relaciona o indivíduo com a sua própria natureza e com o mundo do qual o
indivíduo faz parte. Neste sentido, trabalhamos no Projeto Ire Ayó mitos de transformação
que relacionam os seres humanos consigo mesmos, com os outros e com a natureza. Os
mitos da “Transformação do Conquen”, “Ogum queria ficar rico”, ou ainda A Senhora das
Águas Doces e da Beleza” acenam basicamente para a possibilidade exemplar da relação
indivíduo comunidade. É deste modo que consideramos os mitos “Ossain, o Protetor das
Folhas”, “Ogum defende um pobre homem”, Iansã Criando a Democracia”, entre outros,
adaptados para o Projeto Ire Ayó. (MACHADO; PETROVICH, 2002).
São mitos sagrados, mitos de criação de uma matriz para a vida. Mitos de ritos para a
iluminação do corpo e do espírito, mitos de lutas, narrativas genealógicas e de outros temas
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iniciáticos. Aliás, todos os mitos são iniciáticos. O mito constitui, também, o paradigma da
experiência humana.
Tomamos, por exemplo, os mitos de orixás, da água, do ar, da terra, da vegetação que
constituem um eficiente exemplo de transformação e de valorização de um acontecimento
cósmico “natural”. Daí é que consideramos os mitos com a sua lógica própria, que lhes
permite serem verdadeiros, por mais afastados que estejam do plano que originariamente
se manifestou.
Contudo vale ressaltar, que não se trata de uma história na acepção do termo. E uma
história exemplar pode repetir-se periodicamente ou não, e tem o sentido e o valor na
própria repetição. Por outro lado, os mitos são ricos pelo seu conteúdo que, além de exem-
plar, oferece um sentido lógico, criando situações para a aprendizagem significativa.
Finalmente, o mito ensina o que está por trás da literatura e das artes. O mito ensina
a vida. Ter metas, projetos de vida passa pela consciência de estar vivo e atento às possi-
bilidades de transformação, de modo que as experiências de vida possam sair do plano
puramente físico e ter ressonância no interior do nosso ser e de nossa realidade mais
interna. Vejamos a história:
A Transformação da Conquén
“Era uma vez, no início do mundo, quando todos os bichos falavam. Os bichos, as árvores... as pessoas... todos
procuravam se comunicar e se entender do melhor jeito possível. Sendo assim, muita coisa podia ser resolvida com uma
boa conversa.
No princípio do mundo, era uma vez uma conquén que vivia ciscando e olhando apenas para o que fazia, sem
se envolver com ninguém. Passava o dia todinho a reclamar: Tô fraco! Tô fraco! Tô fraco. A sua cor era cinzenta e não
tinha graça nenhuma.
Pobre conquén , nada de novo acontecia na sua vida. E cada dia ela estava mais insatisfeita... Ela ficava cada
dia mais zangada.
Certo dia, ela mesmo compreendeu que estava demais. Era necessário transformar aquela situação.
A conquen, então, lembrou que ali perto morava um oluow. O oluwo era uma pessoa que vivia dando conselhos
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a todos que o procuravam. Ela resolveu ir procurá-lo também, para receber orientação sobre o que estava acontecendo
em sua vida.
Ela vivia muito nervosa. De longe, ouviam-se seus gritos: Tô fraco! To fraco! Tô fraco... O Oluow a recebeu.
Depois de ouvir atentamente as suas queixas, falou pausadamente:
Todo seu problema é este seu jeito horrível de tratar as pessoas. O meu conselho é que você mude os seus hábitos
e suas atitudes imediatamente. Tratar bem as pessoas traz alegria e bem-estar. Preste atenção às pessoas, principal-
mente àquelas que você encontra pela primeira vez. Vou lhe ensinar umas palavras mágicas. Você vai ver como tudo
vai se transformar.
A conquén estava muito mal mesmo, pensava e gritava: eu quero me transformar. Eu vou mudar. Eu vou
mudar. Agradecida, deu um punhado de kauri (búzios) ao oluow e partiu.
Já na manhã seguinte, quando despertou, foi olhando para a cajazeira e cumprimentando-a: kaaró. A cajazeira
espantada respondeu: kaaró ô !
Mais adiante, ela encontrou dois patinhos que estavam no seu caminho. Ela falou antes de passar entre eles:
agô! Eles deram passagem à nova amiga, respondendo como de costume: agô ya.
Um grupo de conquéns passou apressado para o trabalho e ela desejou simpaticamente: Ku ixé! O grupo todo
agradeceu em coro: Adupé ô
Na verdade, aquele dia parecia completamente diferente de todos os dias de sua vida. Ela parou um pouco, já
no caminho de casa. Era noite, todos a olhavam como se a vissem pela primeira vez. Ela foi logo cumprimentando a
turma, com a maior cortesia: Kaalé! Todos responderam: Kaalé. Ô!
Depois de um pouquinho de prosa, na hora da despedida, a conquén falou com alegria: Adolá! E todos
responderam em coro: Adolá ô.
Foi tanta transformação que, no dia seguinte, ela encontrou um velhinho que caminhava bem devagar na sua
frente. O velhinho era Oxalá. Acostumada a não dar atenção às pessoas, nem o reconheceu. Mas ela tratou Oxalá com
ternura e educação. De tudo que ela trazia consigo entregou para o velho Oxalá. Imagine como Oxalá ficou contente
em receber tanta atenção da conquen.
Foi aí que, para demonstrar seu agrado, ele tirou de sua bolsa um pó mágico e pintou a conquén todinha com
umas bolinhas brancas. E pegou um montinho de barro e colocou no cocoruto da conquen. Assim, ela ficou marcada
para sempre como um bicho da predileção de Oxalá.
A partir daquele dia, todos buscavam a sua companhia e conversavam muito com ela. E sempre se despediam
com muita alegria.
E percebeu-se que todas as conquéns do mundo apareceram com um pitombinho na cabeça e as pintinhas
brancas dadas por Oxalá.
Quando se opta por um trabalho deste teor, vale considerar também a necessidade de
acreditar no potencial das crianças. Acreditar no poder transformador da auto-estima e na
confiança de caminhar com projetos de vida. Que se reconheça que a aprendizagem avan-
ça por meio de sucessivas organizações do conhecimento. E que esta construção aconteçe
a partir de uma motivação genuína. Uma motivação que propicie a criança derramar-se de
corpo e alma no que está construindo, seja em forma de texto, reconto, colagem, pintura,
dramatização, num processo de lapidação dos sentimentos mais nobres e essenciais.
Partindo desse princípio, a galinha conquén não é só uma figura do mito. A conquén
é, neste momento, o que organiza valores, normas e atitudes. O que não é possível conse-
guir com discurso pode-se conseguir com o auxílio deste instrumento milenar – o mito.
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É imprescindível atentar para o fato de que toda essa história da fala e da escuta da
criança passam por um momento que é decisivo na sua vida. O momento da aceitação da
auto-imagem, do gosto por si mesmo, por sua família e por sua comunidade.
A criança, quando tem sua presença qualificada, quando se sente livre para expressar
o que pensa sem restrição ao seu grupo cultural, amplia sua leitura de mundo. Modelos
exemplares, mitológicos, históricos ou da sua convivência podem ajudar a criança nas suas
decisões de ser no mundo. E neste contexto que acontece a possibilidade de a criança
ganhar qualificação e respeito à sua diferença. Ganhar visibilidade e ser considerada num
outro modo de perceber sentir e compreender. Acreditamos que trabalhar com os mitos,
como prática educativa, pode se constituir em uma das possibilidades de se fazer configu-
rar, finalmente, a identidade e a consciência pluricultural na escola, que atingirá seu objeti-
vo de construir cidadãos autônomos e coletivos.
étnico, reconhecendo os valores da sua comunidade, o que pode lhe servir como exemplo
positivo e estímulo para participação na comunidade.
REFERÊNCIAS
BÂ, Hampate. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (Org). História da África. São Paulo:
Ática; Paris: Unesco, 1982.
CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus: mitologia primitiva. São Paulo: Brasiliense,
1986.
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