Professional Documents
Culture Documents
Dossiê Foucault
N. 3 – dezembro 2006/março 2007
Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins
∗
Versão resumida deste texto foi apresentada no III Colóquio franco-brasileiro de filosofia da educação.
Foucault 80 anos, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 11 de outubro de 2006.
1
Osvaldo Fontes Filho
A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault
as a use of fiction in the practice of critique with desubjectifying effects. This essay
proposes a short account of Foucault's concept of writing in order to evaluated his
work through relation between norms of history and self representation. For that,
transgressive experiences on litterature are taken as sources of Foucault's concept of
the experience-book. The goal here is to provide a perspective on Foucault's critique
where intransitiveness figures add to mitigate the epistemological skepticism of the
claim that his historiography would be fictional.
2
ISSN 1981-1225
Dossiê Foucault
N. 3 – dezembro 2006/março 2007
Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins
nos deparamos com uma hiância que por muito tempo permaneceu
invisível para nós: o ser da linguagem só aparece para si mesmo com
o desaparecimento do sujeito (Foucault, 2001a: 222).
3
Osvaldo Fontes Filho
A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault
4
ISSN 1981-1225
Dossiê Foucault
N. 3 – dezembro 2006/março 2007
Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins
5
Osvaldo Fontes Filho
A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault
6
ISSN 1981-1225
Dossiê Foucault
N. 3 – dezembro 2006/março 2007
Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins
1
A fenomenologia e sua derivação existencialista constituem para Foucault uma filosofia estéril; o que não
impede que elas próprias convidem a sua reformulação. Em Les mots et les choses, tal se explicita através
de significativa interrogação: “Que devo ser eu, eu que penso e que sou o meu pensamento, para ser o que
eu não penso, para que meu pensamento seja o que eu não sou?” (Foucault, 1966: 335-336). Para o papel
da fenomenologia na formação intelectual de Foucault, veja-se G. Lebrun (1989: 33-61).
2
Em 1970, ao falar de Genet, Foucault se diz “profundamente convencido da importância estratégica e tática
de um texto” (Foucault, 1994a: 117). O trabalho de escrita, quando não é somente um simulacro, possibilita
tanto a determinação ética de uma relação para consigo quanto a subversão política da sociedade. Resta,
porém, ressalva Foucault, indagar se essa fundação de si e do outro não se deixa restituir pela economia dos
sentidos e do trabalho. Em Bataille, Foucault encontra (à semelhança de Genet) o sujeito como uma síntese
impossível e uma capacidade de transgressão da literatura em uníssono com uma experiência do limite nos
atos individuais.
7
Osvaldo Fontes Filho
A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault
8
ISSN 1981-1225
Dossiê Foucault
N. 3 – dezembro 2006/março 2007
Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins
9
Osvaldo Fontes Filho
A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault
para o ganho, mas despender por despender; ela não mais pode se
manter no plano da identidade (apud Pierre, 1987: 47)3.
3
Em sua leitura da negatividade da experiência batailliana, Blanchot comenta: permanece no homem que
constrói o mundo “une part de mourir qui ne peut investir dans l´activité [...]; alors il lui faut répondre à
une autre exigence, celle non plus de produire, mais de dépenser, non plus de réussir, mais d´échouer, non
plus de faire oeuvre et de parler utilement, mais de parler vainement et de se désoeuvrer, exigence dont la
limite est donnée dans ‘l´expérience intérieur’” (Blanchot, 1969: 305-306).
4
Em seu Raymond Roussel, Foucault alude a “uma experiência que aflora em nossos dias, nos ensinando
que não é o ‘sentido’ que falta, mas os signos que somente significam através dessa falta” (apud Blanchot,
1969: 493). Roussel, Bataille, Artaud, Flaubert: haveria um vazio do Sentido que a palavra literária moderna
encarregar-se-ia de freqüentar como possibilidade de se exercer em seu perpétuo efeito de carência. Não
por acaso Histoire de la folie freqüenta continuamente os literatos. A loucura, afirma Foucault (1972: 261),
“preenche de imagens o vazio do erro, e liga os fantasmas pela afirmação do falso”. Contudo, retorque logo
em seguida, “essa plenitude é, em verdade, o cúmulo do vazio”. A inscrição desse cúmulo num discurso de
exaustiva documentação historiográfica como aquele de Histoire de la folie sugere que a evocação de
subjetividades de desrazão — aquelas dos “escritores loucos” (Artaud, Hölderlin e Nietzsche, entre outros)
presta-se a balouçar o discurso para o lado da questão dos limites (entre fantasma e lucidez, necessidade e
ilusão). Artaud — loucura que é “ausência de obra”, seu vazio central (Foucault, 1972: 555) — é exemplar
10
ISSN 1981-1225
Dossiê Foucault
N. 3 – dezembro 2006/março 2007
Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins
de autoria nas fronteiras de uma normatividade imanente, o que para Foucault define “a condição mesma
da crítica” (Potte-Boneville, 2004: 86). Assim, o literato concorre à seguinte perspectiva, que o filósofo-
historiador denota: “la folie est apparue, non pas comme la ruse d’une signification cachée, mais comme une
prodigieuse réserve de sens. Encore faut-il entendre comme il convient ce mot de ‘réserve’: beaucoup plus
que d’une provision, il s’agit d’une figure qui retient et suspend le sens, aménage un vide où n’est proposée
que la possibilite encore inaccomplie que tel sens vienne s’y loger, ou tel autre, ou encore une troisième et
ceci à l’infini peut-être. La folie ouvre une rpeserve lacunaire qui designe et fait voir ce creux où langue et
parole s’impliquent, se forment l’une à partir de l’autre et ne disent rien d’autre que leur rapport encore
muet”(Foucault, 1972: 579)
5
Assim, lê-se, relativamente a Bataille: “[...] é no centro dessa desaparição do sujeito filosofante que a
linguagem [...] avança como num labirinto, não para reencontrá-lo, mas para experimentar (através da
própria linguagem) a perda dele até o limite, ou seja, até aquela abertura onde seu ser surgiu, mas já
perdido, inteiramente espalhado fora de si mesmo, esvaziado de si até o vazio absoluto — abertura que é a
comunicação” (Foucault, 2001: 39).
11
Osvaldo Fontes Filho
A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault
6
O saber como ficção interpretativa remete inequivocamente a Nietzsche. O sentido precede e predetermina
o fato, o valor precede e predetermina o saber. Donde se ler: “Não existe fato em si. O que acontece é um
grupo de fenômenos escolhidos e agrupados por um ser que os interpreta... Não existe estado de fato em si;
é preciso, ao contrário, introduzir o sentido antes mesmo que possa haver um fato” (apud Barthes, 1988:
253). Sobre ficção nos fala Foucault em algumas oportunidades, sempre consciente da necessidade de
retirá-la às flexões da linguagem subjetiva de modo a mantê-la produtiva junto à filosofia, junto às
experiências-limites da razão, do sonho, da vigília, experiências que ele entende pertencentes ao espaço do
pensamento (Foucault, 2001b: 125). Daí se perguntar, em outro momento: “e se essas experiências [...]
pudessem ser mantidas onde estão, em sua superfície sem profundidade, nesse volume impreciso de onde
elas nos vêm, vibrando em torno do seu núcleo indeterminável, sobre seu solo que é uma ausência de solo?
E se o sonho, a loucura, a noite não marcassem o posicionamento de nenhum limiar solene, mas traçassem
e apagassem incessantemente os limites que a vigília e o discurso transpõem, quando eles vêm até nós e
12
ISSN 1981-1225
Dossiê Foucault
N. 3 – dezembro 2006/março 2007
Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins
nos chegam já desdobrados ? Se o fictício fosse, justamente, não o mais além, nem o segredo íntimo do
cotidiano, mas esse trajeto de flecha que nos salta aos olhos e nos oferece tudo o que aparece? Então, o
fictício seria também o que nomeia as coisas, fá-las falar e oferece na linguagem seu ser já dividido pelo
soberano poder das palavras” (2001c: 68).
13
Osvaldo Fontes Filho
A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault
14
ISSN 1981-1225
Dossiê Foucault
N. 3 – dezembro 2006/março 2007
Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins
dívida para com a experiência batailliana. Tanto mais que se sabe como
esta se caracteriza por uma impossibilidade/improdutividade — ela que
é “sem valor, sem suficiência” (Blanchot, 1969: 308) —, bem como por
uma incontornável incomunicabilidade. Aquele que afirma escrever
livros “que funcionam como uma experiência” teria de fato considerado
o que permanece inacessível aos saberes no motivo da experiência-
limite? O que nele permite discernir, nas palavras de Blanchot (1969:
308), “aquele excedente, aquele acréscimo, excedente de vazio,
acréscimo de ‘negatividade’ que é em nós o coração infinito da paixão
do pensamento”?7. O programa foucaultiano por excelência, qual seja, a
“problematização da vida, da linguagem e do trabalho em práticas
discursivas que obedeçam a certas regras ‘epistêmicas’”, resistiria à
“palavra sem voz” imposta pela experiência-limite?
A fim de melhor avaliar a filiação batailliana de Foucault, importaria,
sobretudo considerar como Bataille subverte toda leitura de uma
experiência positiva, pessoal, individual, interiorizada. Como observa
Derrida, em seu clássico ensaio:
7
A experiência-limite pode ser dita “uma última reviravolta dialética”. A respeito, ainda em Blanchot, lê-se:
“l´expérience-limite répresente pour la pensée comme une nouvelle origine. Ce qu´elle lui donne, c´est le
don essentiel, la prodigalité de l´affirmation, une affirmation qui, pour la première fois, n´est pas un produit
et, ainsi, échappe à tous les mouvements, oppositions et renversements de la raison dialectique, laquelle ,
s´étant achevée avant elle, ne peut plus lui réserver un rôle dans son règne. Evénement difficile à
circonscrire” (Blanchot, 1969: 310).
15
Osvaldo Fontes Filho
A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault
16
ISSN 1981-1225
Dossiê Foucault
N. 3 – dezembro 2006/março 2007
Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins
17
Osvaldo Fontes Filho
A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault
10
Em outras palavras, apoiadas em Lebrun: o que “a ficção” desvela, ela o faz na ruptura das exegeses, das
investigações constitutivas e das dialéticas da “finitude boazinha e sem surpresas”, na explosão do Sujeito
“em mil estilhaços” (Lebrun, 1985: 23).
18
ISSN 1981-1225
Dossiê Foucault
N. 3 – dezembro 2006/março 2007
Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins
19
Osvaldo Fontes Filho
A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault
Em suma, o “eu falo” pode ser visado como tal ao ser desatado de
sua relação necessária com a verificação do sentido. “Pensar uma
ficção” se substitui com vantagens a um “pensar a verdade”. Enquanto o
“pensamento do pensamento” aprofunda uma interioridade, “a fala da
fala” conduz ao Exterior, onde não só “desaparece o sujeito que fala”,
como afirma Foucault (2001: 221), mas também toda tradução da
experiência em rede de relações discursivas. Ora, contra a redução da
experiência a um discurso alertam tanto Bataille e Blanchot quanto
Foucault.
Foucault não pode impedir que seus “livros-experiência” tornem-se
base conceitual nas mãos de outrem, de modo a se prestar ao esforço
de integralização das várias experiências da história em uma totalidade
retrospectiva. Contudo, sua insistência nas experiências-limite é, ao
menos, impeditiva de toda versão simples e fundadora da subjetividade,
sobre a qual fundamentar uma epistemologia ou a partir da qual lançar
uma política. Na entrevista a Duccio Trombadori, Foucault é peremptório
ao admitir, a partir de sua vivência tunisiana das turbulências sociais de
1968, o quanto “a precisão da teoria e seu caráter científico [são]
questões totalmente secundárias a funcionar mais como um engodo que
como princípio de conduta correta e justa” (Foucault, 1994: 80). Assim,
“efetuar uma experiência a fundo” permanece questão aberta aos
leitores de Histoire de la folie ou de Naissance de la clinique; convite a
20
ISSN 1981-1225
Dossiê Foucault
N. 3 – dezembro 2006/março 2007
Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins
Bibliografia
21
Osvaldo Fontes Filho
A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault
Recebido em dezembro/2006.
Aprovado em fevereiro/2007.
22