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88 INFORLV1ARE - Cadernos do Prografllú de lDÔ5-G!

~odu{Jção eln Ciência da Inforrr~fç;_~(_) _

GOVERlvAMENTALIDADE, A I!VVENÇ/-lU
POLÍTICA DAS ESTATÍSTICAS 1
Nelson de Castro Senra
Pesquisador, IBGE
Doutorando em Ciência da Informação (CNPq/IBICT - UFRJ/ECO)

Resumo

Procura-se mostrar, por meioda.idéiadegovernamentaHdade,desenvolvida


porFoucault, como se formou.um olhar político. sobre as estatísticas; Passa-se
deum Estado atento aoterrÍtório aumEstadoatento àpopulação,comnovos
objetivos, •novos problemas, novas técnicas. Sob o liberalismo, ••critica-se
intensamente a idéia de ...governo, emergindo a •idéia.de •sociedade. Neste
contexto, as estatísticas assumem um papeldedestaqlle, acabando por se
tornar o instrumentO maior da nova racionalidadegovernamental.

Palavras-Chave
Governamentalidade
Racionalidade Governamental
Governo dos Homens - Sociedade
População - Economia Política
Liberalismo - Aritmética Política - Estatísticas

"Bref, le passage d'un ar1 de gouvemer à ul/e science politique, le passage d'un régime dominé par les
structures de souveraineté à 1m régill1e dominé par les techlliques de gouvemement se font au XVllh silxle
autour de Ia populatioll et, par conséquent, autour de Ia naissance de I'économie politique. "
Michel Foucault

1 Introdução

invenção política das estatísticas é um acontecimento relativamente recente, teve início quando muito
em meados do século XVII, talvez mais apropriadamente no século XVIILIsto não significa, em absoluto,

Um resumo deste texto foi publicado nos Anais do I Encontro de Pesquisa da Pós-Graduação em Ciência da Infom1ação, realizado em 9 de agosto
de 1995, promovido pelo CNPq!1B[CT - UFRJ/ECO

INFORMARE - Cad, Prog. Pós-Grad, Ci, Inf. Rio de Janeiro. \ ,2. n, 1. p, 88-95, janJjun, 1996
Got'erncunenralidade, a política das estatísticas 89

dizer que a produção das estatísticas tenha começado Segundo: "entendo a tendência, a linha de
apenas nessa época. Longe disso, ela está presente no que, em todo o Ocidente, não cessou de conduzir,
início da própria história da cristandade, conforn1c o desde longa data, à proeminência desse tipo de
Evangelho segundo São Lucas: poder que se pode chalnar de ~governo'; sobre
todos os outros: soberania, disciplina; provocando,
"Naqueles dias, apareceu um edito de César de um lado, o desenvolvimento de toda uma série
Augusto, ordenando o recenseamento de todo o
mundo habitado. Esse recenseamento foi o de aparelhos específicos de governo e, de outro
lado, o desenvolvimento de toda uma série de
primeiro enquanto Quirino era governador da saberes".
Síria. E todos iam se alistar, cada um na própria
cidade. Também José subiu da cidade de Nazaré, Terceiro: "por governamentalidade, creio que é
na Galiléia, para a Judéia, na cidade de Davi, possível entender ° processo ou, antes, o
chamada Belém, por ser da casa e da farrulia de resultado do processo pelo qual o Estado de
Davi, para se inscrever com Maria, sua mulher, justiça da Idade Média, tornado nos séculos XV
que estava grávida. Enquanto lá estavam, e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco
completaram-se os dias para o parto, e ela deu à 'governamentalizado' ". (FOUCAUL T, M.1994b.
luz o seu filho primogénito, envolveu-o com p.655)
faixas e reclinou-o numa manjedoura, porque
Trata-se de um processo que, iniciado no século
não havia um lugar para eles na sala. "eLe 2, 1-7)
XVII, ganhou culrrÜnância no século XVIII e chegou
Entretanto, só ontem, por assim dizer, a estatís- ao século XIX. Passa-se de um Estado atento ao
tica passou a ser vista como instrumento de uma telTitório a um Estado atento à população, com novos
racionalidade governamental, como tecnologia de objetivos, novos problemas, novas técnicas. Consti-
governo, aquilo que Foucault, lançando mão de um tui-se um saber político que coloca a noção de popu-
neologismo, chamou de governamentalidade, cons- lação no centro de suas preocupações, fazendo surgir
tituindo-se num saber específico e muito especial. procedimentos e meios capazes de assegurar sua
Antes de prosseguir, pela posição central que regulação, configurando-se assim um governo dos
ocupa neste texto, convém que se discuta a idéia de homens. Neste contexto, as estatísticas assumem pa-
governamentalidade, conceito que passou por su- pel de destaque, acabando por se tomar o instrumento
cessivos ajustes nos textos finais de Foucault, em maior da nova racionalidade governamental.
seus últimos dez anos de vida. Em algum momento, (FOUCAULT, M.1994a. p. 719)
ele anunciou que escreveria uma história da Isto posto, com base nas idéias e nos conceitos
governamentalidade, o que teria sido excelente desenvolvidos por Foucault, primeiramente serão abor-
mas, infelizmente, acabou por não fazê-Io. Assim, dados acontecimentos ocorridos nos séculos XVII e
navega-se por mares desconhecidos, não raro tur- XVIII, a partir da superação do século XVI, tratando-
bulentos,sempre a sugerir novas reflexões, o que se do "governo do Estado", da idéia de mais e mais
exige tempo, sendo então este texto mais uma governo. Em seguida, serão abordados os séculos XIX
aproximação, do que uma abordagem final do pro- e XX, sobretudo o primeiro, visualizando o estado do
blema. Enfim, Foucault lançou um tríplice olhar que governo sob intensa crítica, com o liberalismo afir-
mais tarde passaria por ajustes finos, naturalmente mando que sempre há governo demais c fazendo
sem perda da essência, afirmando, sobre a idéia de emergir a idéia de sociedade. Finalmente, a partir
govemamentalidade: dessa contextualização histórica, novamente seguirl,-
Primeiro: "entendo o conjunto constituído pelas do Foucault, será destacada a questão das estatísticas-.
instituições, procedimentos, análises e reflexões, O objetivo deste texto é revelar o gesto que instaurou
cálculos e táticas que permitem exercer essa essa sensibilidade às estatísticas, vale dizer, tratar do
forma tão específica, quanto complexa de poder, instante em que os desejos foram constituídos, os
que tem por alvo principal a população. por conceitos formados, os sujeitos posicionados. Em
forma dominante de saber a economia política e suma, pretende-se observar como um olhar político
por instrumentos técnicos essenciais os sobre as estatísticas terá se tomado possível, enfim,
dispositivos de segurança". como as idéias no entorno das estatísticas terão se
realizado.

2 Este texlO, can10 1'01dito. está centrado na obra de Foucault razão porque apenas as suas obras estão citadas na bibliografia. Entretamo, obras
de outros autores poderiam ler sido relacionadas.

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90 Govemamentalidade; a das estatísticas

2 O governo do estado: 011 gouverne UI11aarte de governar. T, ]'vI, 1994b p.


638-639)
trop peu
l".o longo dos séculos XVII e XVIII, surge uma

Como se governar, como ser governado, como vasta "literatura anti-Maquiavel", que questiona a
governar os outros, porque aceitar ser governado, idéia de governo. Percebe-se que a atuação do Príncipe
como fazer para ser o melhor governante possível, são sobre o Estado é apenas uma das formas de governo.
indagações que começam a ser feitas ao longo do Na verdade, muita gente governa: o superior de um
convento, o chefe de uma farrulia, e tantos outros. Mas
século XVI. (FOUCAULT, M.1994b. p. 636) Na
todos estão dentro de um Estado. Assim, ant('""'e
verdade, inquirir sobre a forma de governar e de se
governar, de conduzir e de se conduzir acompanha, ao singular e transcendente, como seria o PrínL"~
fim do feudalismo, o nascimento de novas formas de Maquiavel, vi ve-se a pluralidade nas formas de gover-
relações econômicas e sociais, além de novas estrutu- no e a imanência em suas práticas, com relação ao
ras políticas. (FOUCAULT, M. 1994a. p. 720) Estado. Entretanto, dentre tantas modalidades, aquilo
que se pode chamar governo do Estado, em sua forma
o mundo, que até então se pautava pelo Oriente, política, reveste-se de uma certa especificidade.
torna-se ocidental, mais exatamente europeu. O co- (FOUCAULT, M. 1994b. p.640)
mércio mediterrâneo torna-se difícil, com a queda de
Constantinopla. As grandes navegações portuguesas, Nesse q~adro, procurou-se constituir uma arte
de governarJ,com o cuidado de estabelecer uma
ampliando a arte náutica, abrem novos caminhos para
continuidade ascendente e descendente entre as dife-
o Oriente. As novas rotas comerciais afetam profunda
e positivamente a vida européia, com os preços das rentes formas de governo, como, por exemplo, aquelas
especiarias baixando fortemente. Sobremodo, desco- apresentadas numa tipologia de época: o governo de si
bre-se o continente americano, significati vamente cha- mesmo, o governo da fan1l1ia, o governo do Estado.
mado de Novo Mundo, cuja riqueza muda a face do Trata-se de saber como introduzir a economia (até
planeta. Nunca antes o continente europeu fora tão então ligada à gestão correta dos indi víduos, dos bens,
poderoso. das riquezas no interior de uma fan1l1ia, por seu chefe)
ao nível da gestão de um Estado. Assim, governar um
Os Estados nacionais se consolidam, os últimos Estado significará estabelecer a economia ao nível
resquícios do feudalismo são superados, à exceção da geral do Estado, isto é, ter em relação aos habitantes,
Alemanha e da Itália, cuja unificação nacional só se às riquezas, aos comportamentos individuais e coleti-
dará mais tarde. As monarquias emergentes buscam vos, uma forma de vigilância, de controle, tão atenta
formas e formas de se tomarem poderosas perante quanto a do pai de farrulia. (FOUCAUL T, M. 1994b.
seus vizinhos. Vive-se um movimento de concentra-
p. 641 - 642)
ção estatal. O Estado se constitui e se quer forte, o
governo é exercido sobre o território, sua soberania é Por essa época, diz-se, governar é dispor corre-
considerada acima de qualquer outra coisa. Os Esta- tamente as coisas, assumindo-se o encargo de condu-
zi-Ias a um fim conveniente. Duas novidades são
dos vivem sob intenso relacionamento comercial,
configurando-se o tempo do mercantHismo. introduzidas: a idéiadecoisa (não mais essencialmen-
te o território, mas um conjunto de homens e coisas) e
Maquiavel, em O Príncipe, publicado em 1513, a idéia de haver uma finalidade para a ação de gover-
expressa bem a idéia de governo então dominante, no. Não se trataria de impor uma lei aos homens, mas
sempre na forma de "conselhos ao Príncipe", vale de dispor as coisas, ou seja, táticas seriam utilizadas,
dizer, de como manter, reforçar e proteger sua relação ao invés de leis, ou ainda, as leis seriam usadas como
com o principado, que é vista aqui em termos de táticas, sempre de modo a dispor con venientemente as
singularidade, exterioridadee transcendência. Daí que coisas. (FOUCAUL T, M. 1994b. p. 645 - 646)
forças contrárias, vindas de fora ou de dentro, podem
ameaçar sua autoridade, colocando a existência do A metáfora do navio, apresentada por Foucault,
Príncipe em permanente sobressalto. Portanto, é pre- é bastante esc!arecedora. O que é governar um navio')
ciso que ele desenvolva forte habilidade para manter É certamente se ocupar dos marinheiros, mas também
seu principado, o que não quer dizer que ele possua do navio, e ao mesmo tempo, da carga: governar um

Considerada como arte, no sentido de ser uma técnica que se conforn1a a certas regras (FOUCAUL T, :vI. 1994e. p. 150 e FOUCAUL T, M. 1994j.
p. 816). A arte de governar estará associada principalmente a uma razão de Estado. da qual se falará adiantê.

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Governanzentafidade, a politica
--------------------------~~----_._-------------------~------~------- das estatísticas /o ,
J

navio é igualmente levar em conta os ventos, os suas forças; procurando a felicidade de seus habitan-
aneciJes, as tempestades, as intempéries. b o relacio- tes, através da manutenção da ordem, da
namento entre tudo isto (os marinheiros, que se deve dos regulamentos. No a vida é o objeto da
salvar, o navio. que se deve salvaguardar, e a carga, polícia: seja o indispensável, seja o útil, seja o supér-
que é preciso Levar em perfeito estado ao porto; além fluo. (FOUCAULT, M. 19940.. p. 722; 1994e. p. 153;
dos acontecimentos da natureza, como ventos, arreci- 1994j. p. 820)
fes, tempestades) que caracteriza o governo de um
Entretanto, ao longo dos séculos XVII e XVIII,
navio. Igualmente interessante é a metáfora da casa:
a arte de governar marcou passo, limitada pelas idéias
governar uma farmlia, não é essencialmente salvar
mercantilistas, ainda que o mercantilismo tenha sido a
suas propriedades, mas sim ter como aI vo os indivídu-
primeira racionalização do exercício do poder como
os que a compõem, sua riqueza, sua prosperidade;
prática de governo. Na verdade, esse mercantilismo
ademais, é levar em conta os acontecimentos que
procurava introduzir as possibilidades oferecidas por
podem afetá-Ia: mortes, nascimentos, alianças.
uma arte refletida de governar, mas o fazia no interior
(FOUCAULT, M. 1994b. p. 644) de uma estrutura institucional e mental da soberania
o Estado, constituído como organização políti- que, ao mesmo tempo, a bloqueava. Seu desbloqueio
ca, lança mão de certos mecanismos racionais com só se dará a partir da emergência de fatos novos.
vistas ao pleno exercício de seu poder. Mecanismos (FOUCAULT, M. 1994b. p. 648-649)
racionais, não de uma racionalidade geral, mas espe-
cífica. Consciente de sua singularidade, a racional idade
odesbloqueio da arte de governar Vira no
rastro da expansão demo ~gráfica ocorrida6
no século
do exercício do poder pelo Estado, foi formulada sob
XVIII, ligada à abundância monetária e por sua vez,
duas doutrinas: a doutrina da razão de Estado e a
ao aumento da produção agrícola. Em suma, o
doutrina da polícia, com significações de caráter
desbloqueio da arte de governar esteve ligado à emer-
positivo, ao contrário do que ocorre atualmente, quan-
gência do problema da população, Em relação à
do se lhes associa um caráter eminentemente negativo.
população, a família, como modelo de governo, passa
(FOUCAULT, M. 1994b. p. 150)
a segundo plano, como elemento no interior da popu-
A razão de Estado não se reporta à sabedoria de lação. Na verdade, a falllilia, de modelo quimérico
Deus nem à razão do Príncipe, mas ao Estado mesmo, para o bom governante, vai se tornar instrumento
à sua natureza e racionalidade próprias. Pela primeira privilegiado para o governo da população. (FOUCAUL T,
vez, surge um elo entre a política como prática e a M. 1994b. p. 652)
política como um saber. No seio do Estado, o homem
A constituição de um saber de governo é absolu-
que vai dirigir os outros será um político, que deverá
tamente indissociável da constituição de um saber
se apoiar em um saber político específico, distinto do
sobre todos os processos referentes à população em
saber jurídico. Assim, o governo só é possível na
sentido lato, daquilo que chamamos, mais precisa-
medida em que se conhece a força do Estado, um saber
mente, deeconomia política. A passagem de uma arte
que lhe revele a potência de 4 maneira concreta e preci-
de governo para uma ciência política, de um regime
sa, que lhe dê uma medida. O governante não mais
dominado pela estrutura da soberania para um regime
deverá se limitar a princípios gerais de paciência,
dorrÚnado pelas técnicas de governo, ocorre no século
sabedoria, prudência, diligência. (FOUCAULT, M.
XVIII, em torno da população e, conseqüentemente,
1994j. p. 818)
do nascimento da economia política, (FOUCAULT,
A polícia - não uma instituição ou um mecanis- M. 1994b. p. 653)
mo funcionando no interior do Estado, mas um con-
Entretanto, asoberania e adiscipHnanão foram
junto bem específico de técnicas de governo, próprias
eliminadas como problemas de análise. ao contrário,
do Estado - expressa a natureza dos objetivos d? tornaram-se ainda mais agudos. Deve-se compreen-
Estado e a forma geral dos instrumentos que emprega-.
der as coisas não em termos de substituição de uma
Enfim, trata de tudo aquilo que tende a afirmar e
sociedade de soberania por uma sociedade disciplinar,
aumentar o poder do Estado, fazendo bom emprego de

4 Aqui entram as estatísticas, assunto que será abordado adiante. na seção 4.


5 Conforme Foucault. a idéia de "polícia". que vem do alemão. teria tudo a ver com a noção de "administração", que tanto in!1uenciou os Estados
europeus. do final do séc. XVIII ao séc. XIX, como por exemplo. a França napoleônica (FOUCAl:L T. :<'1.1994a. p. 722),
6 Essa abundância monetária pode ser associada ao ouro de Minas Gerais. na segunda metade do séc. XVIII.

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e desta por uma sociedade de governo. Trata-se, antes, idéia de indivíduo. Na verdade, a preocupação da vida
de uma triangulação: soberania - disciplina - gestão individual torna-se~ desde o final do século
governamental, que tem na população seu alvo prin- mais e mais um dever de Estado. As disciplinas
cipal e nos dispositivos de segurança seus mecanis- mantêm sua atualidade e importância, ainda que pos-
mos essenciais. (FOUCAULT, M.l994b. p. 654) sam sofrer ajustes; governar é agir no detalhe, na
minúcia: 20vernar os indivíduos é conduzir suas COD-
Assim, passa-se de uma arte de governar, base- .~ 9
ada nas virtudes tradicionais e nas habilidades huma- dutas, em diferentes domínios. Portanto, sob outro
ângulo, Foucault acentua, em outras três oportunida-
nas, a uma outra, absolutamente racional, cujos prin-
des, a idéia de governamentalidade, que podf' ser
cípios e domínios são próprios do Estado. Constitui-
vista como o encontro entre as técnicas de {
se uma racionalidade governamental, aquilo que
ção exercidas sobre os outros e as técnicas w.
Foucault chamou7 de governamentalidade, criando
dominação de si próprio ou ainda, como governo de
um neologismo . Trata-se de uma nova matriz de
si mesmo pela própria pessoa na articulação das
radonalidade, segundo a qual o governante governa
relações com o outro. (FOUCAUL T, M.1994[ p.
os homens. Em suma, o Estado deve conjugar esforços
213; 1994h. p. 582 - 583; 1994i. p. 785)
no sentido de velar por sua população, promovendo a
felicidade dos homens, permitindo-lhes viver, traba- No interior do Estado moderno, vale dizer, en-
lhar, produzir, consumir, e até mesmo morrer. Portan- contra-se uma complexa e variada combinação de
to, o governo se distancia do simples aplicar coerciti vo
8
técnicas indi vidualizadoras e de procedimentos
de um corpo de leis e toma-se positivo, permanente. totalizadores, resultante da assimilação, ainda que sob
nova forma política, de uma velha técnica de poder.
Trata-se do poder pastoral, cuja trajetória vem do
3 O estado do governo: on gouverne Oriente, especialmente da sociedade hebraica, entran-
do no Ocidente através do cristianismo. Esse poder
toujours trop
emerge como se fosse um novo poder pastoral, com
renovados objetivos, administração e atores, enfim,
Em suas análises da governamental idade, com um novo saber sobre o homem. Este novo saber
Foucault se propunha a fazer uma crítica, a seu ver é, ao mesmo tempo, globalizante e quantitativo no
necessária, às concepções correntes de poder (confu- referent~o à população e analítico quanto ao
samente pensado como um sistema unitário, organiza- indivíduo .(FOUCAULT, M.l994g: p. 230 - 231)
do em torno de um centro). O autor passava a pensá- Intensificam-se as relações de poder, joga-se com
10 como um domínio de relações estratégicas entre ajustamentos mais e mais controlados, cada vez mais
indivíduos ou grupos (relações que têm por campo a racionais e econômicos, entre as ati vidades produti vas
conduta do outro ou dos outros). Isso implica colocar e as redes de comunicação.
no centro da análise não o princípio geral da lei, nem
Porém, o homem do século XIX não cessa de se
o mito do poder, mas as práticas complexas e múlti-
perguntar se a razão não estaria se tomando demasiado
plas de uma governamentalidade. Esta supõe, de um
poderosa. Desde então, o pensamento ocidental não
lado, formas racionais, procedimentos e instrumentos
cessa de trabalhar e criticar o papel da razão (ou a falta
técnicos, através dos quais ela se exerce; de outro,
de razão) nas estruturas políticas. Na expressão de
jogos estratégicos que tomam instáveis e reversíveis
Foucault, desde Kant, o papel da filosofia seria não
as relações de poder que elas devem assegurar.
apenas o de impedir a razão de exceder, de ultrapassar
Assim, ressalte-se que a emergência da idéia de os limites do que é dado pela experiência, mas também
população não significa em absoluto o abandono da - com o desenvolvimento dos Estados modernos e a

7 Considere-se. por curiosidade, que a palana "goll\'unemem" como açao de governar entra na língua francesa em l190. ao passo que a palavra
"gollvememenw/" f "allx" , como governamental, aquilo que trata do governo - de onde claramente Foucault derivou o neologismo
"gOln-'enwmenlalité" - só entra na língua francesa em 1801.
8 A propósito, conviria retomar a obra de Jeremy Benthan. para quem governar scoria promover a felicidade da maioria. Por conseguinte, as kis
deveriam ser expressão dos interesses da maioria, cujo perfil (inclusive ou sobretudo numérico) os legisladores deveriam se interessar por
conhecer atcontamente.
9 O estudo das disciplinas podco ser concontrado notadamente em "Vigiar e punir" e em "A vontade de saber" (primeiro volume da História da
Sexualidade). Por opção, tal estudo não será abordado neste texto.
10 Parece-me que aí está uma nova forma de conceituar governamentalidade, reforçando ainda mais a idéia dcoum duplo olhar sobre a população
e sobre o indivíduo. O conceito de poder pastoral é expresso, em boa síntese. por Foucault (FOUCAULT, ;"'1 1994g. p. 229 - 230).

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Govemamentalidade, a !I1ve'w:a,opolítica das estatísticas

organização política das sociedades - o de vigiar os Um novo tempo tem início, aparentemente posi-
poderes excessivos (ou os abusos de poder) da mas também preocupante. A intervenção perma-
racionalidade política, (FOUCAUL T, M.1994e. p, nente do Estado na vida social é característica da
135; 1994g, p. 224) política moderna, constituindo-se nossa problemática
política. Esta discussão se processa em tomo do libe-
A dobradinha riqueza-população foi, à época
ralismo desde o século XVIII. A propósito, convém
do mercantilismo e do cameralismo, o objeto privile-
não perder de vista que as idéias econômicas e liberais
giado da nova razão governamental. Do enriqueci-
estão intimamente associadas, desde suas origens.
mento pelo comércio surge a possibilidade de aumen-
Assim, a noção de governamentalidade, posicionada
tar a população, a mão-de-obra, a produção e a expor-
por Foucault ao final do século XVIII e início do
tação, e de prover exércitos fortes e numerosos. Uma
século XIX como um exercício de gestão da popula-
das condições de elaboração da economia política é,
ção, sob a égide da economia política, traz em si
precisamente, o tratamento do problema população- mesma um fortalecimento do Estado. Paradoxalmen-
riqueza, sob diferentes expressões (como fiscalização,
te, essa -governamental idade se concretiza sob um 11
escassez, despovoamento, ociosidade, mendicância,
olhar questionador quanto à existência do Estado
vagabundagem).
(FOUCAULT, M.1994j. p. 825 - 826)
A economia política se desenvolve assim que se
A biopolítica, entendida desde o século XVIII
percebe que a gestão da relação riqueza-população
como a forma de racionalizar os problemas postos à
não poderia mais passar exaustivamente por um siste-
ação governamental pelos fenômenos próprios da
ma regulamentar e coerciti '10, que tenderia a aumentar
população, desenvolve-se no quadro do liberalismo.
a população pelo incremento das riquezas. Aos
Tais problemas, como saúde, higiene, natalidade,
fisiocratas, que se auto-denominaram economistas, a
!ongevidade, raça, além de muitos outros, atravessam
população não se apresentava como a simples soma
o século XIX, chegando até nossos dias. Assim, torna-
das pessoas que habitavam um território, soma que
seria o resultado de cada um ter filhos ou de uma se uma questão-chave a consideração do fenômeno da
população, com seus efeitos e problemas específicos,
legislação que favorecesse ou desfavorecesse os nas-
num sistema preocupado com os sujeitos de direito e
cimentos. Ao contrário, seria uma variável dependen- com a liberdade de iniciati 'Ia dos indivíduos. Em nome
te de di versos fatores que poderiam ser artificialmente
de que e segundo que regras poder-se-ia considerar tal
modificados, como o sistema de impostos, a circula-
fenômeno, eis a grande questão. (FOUCAULT,
ção, a repartição dos ganhos. Assim, começa a apare-
M.1994d. p. 818)
cer claramente uma dimensão política frente ao
problema da população. Entenda-se o liberalismo não como uma teoria
ou ideologia (menos ainda como uma maneira da
A população não é vista como um conjunto de
sociedade se representar), mas antes como uma práti-
pessoas de direito, nem como um simples conjunto de
ca, vale dizer, princípio e método de racionalização do
braços destinados ao trabalho. Ela é analisada como
exercício de governo, procurando maximizar seu be-
um conjunto de elementos que, de um lado, se prende
nefício, ao menor custo possível. Sobremodo, a raci-
ao regime geral dos seres vivos fazendo parte da
onalização libera! parte do princípio de que o governo
"espécie humana" (noção nova naquela época e que
(não a instituição propriamente dita, mas a atividade
deve ser distinguida do "gênero humano"). De outro
que consiste em reger a conduta dos homens num
lado, a população pode abranger intervenções concer-
quadro e com instrumentos estatais) não teria em si
tadas por intermédio das leis, de mudanças de atitude,
mesmo sua razão de ser, não teria em si seu fim. O
influenciadas estas por "campanhas", como a de saú-
liberalismo, assim, rompe com a razão de Estado,
de pública. Emerge, então, o que Foucault chama de
em seu esforço de justificar uma govemamentalidade
uma biopolítica, que trata a população como um
crescente, sempre pela via do fortalecimento do
conjunto de seres vivos e conviventes, que apresenta Estado.
traços biológicos e patológicos particulares, resultan-
do na formação de saberes e de tecnologias específi- Sob o liberalismo, por trás da permanente sus-
cas. (FOUCAULT, M.1994a. p. 721 - 723) peita de que há governo em demasia, submetendo-se

11 De um Estado que dizia de si próprio estar sempre governando muito pouco. passou-se a ver um Estado do qual se dizia estar governando em
demasia.

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sua atividade a intensa crítica, há um questionamcnto o saber uso


ainda mais forte e radical: deveria ou não haver gover-
no? Disso resulta a idéia de sociedade, nova ao início
estatísticas
do século XIX e apresentada como condição e fim
último do governo. Daí pode-se desenvolver uma Desde o século XVI, e sobretudo a partir do
tecnologia particular de governo, tendo como princí- século XVII, a teoria da arte de governar esteve ligada
pio uma forte suspeita de ser "muito" e estar "em a todoum cor~untode al1álisese saberes.Essencialmente,o
excesso". No liberalismo, o mercado como realidade conhecimento do Estado,em seus diferentes domínios
e a economia política como teoria, desempenham e dimensões, nos diversos fatores de sua forca ou
importante papel. O mercado poderia ser visto como o potência, configura aquilo que se chamou de "
lugar privilegiado de experiência, onde podem ser tica", entendida como ciência do Estado. Como vl"c~
observados os efeitos dos eventuais excessos de anteriormente, seja pela via da "doutrina da razão de
11
governamentalidade . (FOUCAULT, M.1994d. p. Estado", seja pela via da "doutrina de polícia", a arte
821 ) de governar encontra os princípios de sua racionalidade
naquilo que constitui a realidade específica do Estado.
Haveria uma incompatibilidade de prinClplOs
As estatísticas cumprem precisamente o papel de
entre o desenrolar otimizante do processo econômico
instrumentalizar essa racionalidade. (FOUCAULT,
e uma maximização dos procedimentos governamen-
M.1994b. p. 647 - 648)
tais. Assim, o liberalismo pode ser visto como um
esquema regulador da prática governamental, no qual A estatística que, ao tempo do mercantilismo,
a regulação, na forma da lei, aparece como um instru- havia tido um emprego limitado, restrito aos interes-
mento eficaz, mais do que a sabedoria ou a moderação ses administrativos das monarquias, que funcionavam
dos governantes. Por sua importância, na elaboração nos moldes da soberania, acaba por se tornar um dos
da lei teria que haver mecanismos de participação de principais fatores técnicos do desbloqueio da arte
toda a sociedade, razão porque, ao longo de todo o de governar, ao ser capaz de dar forma à população.
século XIX, tanto se discutiu a formação do sistema Assim, a estatística revela , pouco a pouco, que a
parlamentar, constituindo-se numa forma de reflexão população tem características próprias, por exem-
crítica sobre a prática governamental via política. plo, o número de mortos, de doentes, regularidade
de acidentes, dentre outros. Indica, ainda, que a
Foucault distingue duas vias históricas de desen-
população, por seus deslocamentos, por suas ma-
volvimento do liberalismo: uma representada pela
neiras de agir, por suas atividades, tem efeitos
Escola de Freibourg e outra pela Escola de Chicago,
econômicos específicos. E finalmente, revela que a
o que merece oportuno aprofundarnento. A primeira
população, em seu todo, tem características pró-
significa uma economia social de mercado: organiza-
prias e que seus fenômenos são irredutíveis aos da
da, embora não planificada ou dirigida; garantida e
família, por exemplo, as grandes epidemias, a mor-
limitada por leis, sob um certo quadro institucional,
talidade endémica, a espiral do trabalho e da rique-
tendo sido praticada no pós-guerra pelos alemães.
za, dentre outros. (FOUCAUL T, M.1994b. p. 651)
Seria uma alternativa às soluções soviética, socialista
c keynesiana. Ao contrário, o liberalismo de Chicago Portanto, a constituição de um saber de governo
- antepondo-se ao keynesianismo do New Deal, por é absolutamente indissociável da constituição de um
exemplo, mas igualmente em suas outras manifesta- saber sobre todos os processos referentes à população,
ções ao longo do tempo - manifestaria uma crença inclusive em suas relações contínuas e múltiplas com
irrestrita nos mecanismos de mercado. Daí sairia o o território e a riqueza. daquilo que se chamou preci-
neoliberalismo. samente de "economia política". Esta é formalizada
como ciência a partir do final do século XVIII. A seu
turno, a constituição da economia política, como bem
atestam as obras de seus pais fundadores, muito se
valeu da estatística como seu principal instrumento
técnico, quantificando o momento em que a população

12 A propÓsito, retomando-se o pensamemo de Bemard de :Ylandeville e de Adam Smith e recuperando O pensamemo de Thomas Malthus e Alfred
Marshall sobre a formação do capital humdno. valeria discutir a questão da ~tica e da moral no çvolver da id~ia de mercado.

INFORMARE - Cad. Prog Pós-Grado Cio InI., Rio de Janeiro. \.2. n. 1, p. 88-95. jan./jun. 1996
GOl'e rn[unentalidade, a 95

ganha sua objetivação. Assim, a estatística cria um exatamente, estabelecendo sua govemarnentalidade,
plano abstrato de integraçâo, constituindo-se num entendida, como já visto, como uma ação sobre a
olhar com foros de ciência, próprio ao Estado. população. zelando por sua felicidade, promovendo
sua regulação. A população, devidamente revelada,
A população é constittlída singularmente pelo
olhar do Estado, a partir do saber da economia política se torna () f1m e o instrumento do governq'J confor-
e do fazer da estatística. O olhar do Estado se faz na mando a governamentaHzação do Estado . Assim,
as estatísticas. em seu uso político, sob a noção de
palavra e no registro, amplia os usos dos documentos.
govemamentalidade,
14
trazem naturalmente a marca do
Por outro lado, ao mesmo tempo em que constitui a
Estado. (FOUCAULT, M.1994e. p. 160)
população com seu olhar, acaba por se constituir mais

Abstract
Through the idea of govemmentality developed by Foucault, the author intends to demonstrate how a political
view about statistics was bom. From a State aware of its territory, we arrive to a State attentive to its population,
which has new goals, new problems, new techniques.Under the liberalism, the idea of govemment is intensely
questioned, and the idea of society emerges. On this context, the statistics become more and more outstanding,
and tums to be the major instrument of the new govemmental rationality.

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13 ;\ia expressão de Michel Serres. "a reróTica do poder perdeu suas !erras para ganhar números." (SERRES, M. liames: uma filosofia das ciências.
Rio de Janeiro: Edições GraaJ. 1990. p. 135).
14 Um contraponto. a ser aprofundado, pode ser encontrado em Bruno Latour em La ,cience en aClÍon. sobretudo no capítulo 6 "Les centres de
calcul", p. 515 -623. onde a pertença ao Estado parece perder sua ciareza. í Li\ TOUK Bruno.La 5cience el1 actiol1. Paris: Gallimard. 1995.)

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