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RAYOM RA
rayomra@ibest.com.br
http://arcadeouro.blogspot.com
INTRODUÇÃO
Essa obra não é mediúnica. Assim não há e nem haverá qualquer assinatura de
espíritos ou entidades invocando o ditado.
Rosinha não escapou dessa hesitação. Ficou guardada muito tempo em minhas
gavetas e estantes, sob a forma compacta de um livreto. A esqueci de fato, mesmo
porque a dramaticidade dos personagens sempre me tocou profundamente e não
gosto de abordar o sofrimento dessa maneira e nem recomendar.
Mas não houve jeito, o mesmo impulso que me leva a escrever me levou a relembrar
Rosinha e prometi mudar alguns argumentos da história, abrandando o sofrimento
dela, trazendo-lhe um final feliz. E de novo esbarrei em conceituações mentais-
emocionais: que é um final feliz? Assim, pouco mudei no desenho da obra e nem um
pouco de seu final.
Como adendo, desejo chamar a atenção aos fatos aparentemente irreais que
envolvem e circundam Rosinha, aos seus passos e situações julgadas
inverossímeis, sabendo que a inteligência sensível do leitor entenderá que tratamos
de um personagem especial, de alma avançada num corpo infantil. Sua
excepcionalidade e memória são inatas à própria alma, não importando a pouca
experiência da tenra e delicada personalidade que assim se manifesta.
Haverá mesmo mensagem importante ou pelo menos aproveitável na obra? Não sei,
sinceramente. O que eu entendo é que quando nos propomos a escrever nos
apropriando da técnica da linguagem e comunicação, temos o dever de tentar trazer
a qualquer público uma mensagem construtiva. Pelo menos assim eu tentei.
Rayom Ra.
CAPÍTULO I
ENCONTRO INSÓLITO
Cansada de chamar e não obtendo resposta, ela parou e resolveu tomar outra
direção, deixando a rua principal, ingressando por via secundária em terra firme,
assinalada e margeada por pedras pintadas em branco. Altas em ambos os lados,
viçosas e em tamanhos aproximadamente iguais, dobravam-se verdes folhagens de
samambaias, que vinham terminar como a via alguns metros depois, à margem de
um lago. No centro do lago havia um chafariz, constituído de enorme cálice
circundado por três estátuas de divindades gregas, de cujos cântaros tombados
sobre os ombros jorravam água. O cálice fazia projetar contínuos e múltiplos filetes,
e os esguichos mais longos salpicavam e turvavam de leve a superfície da água. O
lago, inserido entre espécimes de árvores estéreis, ensombrado por nódoas
diversas, vinha evocar a imperfeita mas feliz lembrança de um oásis numa
propriedade belissimamente bem conservada.
Os persistentes latidos despertaram mais fortemente a curiosidade infantil,
sobrelevando-lhe a atenção acima da obrigação imediata. Em casos assim, a
proibição era explícita: somente Pedro, a quem os cães conheciam muito bem,
poderia investigar a origem de um alarme – ou na ausência dele a própria Luiza! E
Rosinha, esquecendo-se propositalmente da ordem, deu meia volta e contornou a
margem do lago, enfiando-se por entre pendentes e largas folhas de tinhorões.
O Sol como áureo manto vestia copas e ombros de árvores, arrastando-se pelas
costas dos parreirais e caramanchões, jogando-se ao generoso solo. O lugar, nesse
dia, se achava feericamente iluminado. Havia especial dinamismo! As cigarras
explodiam em cantigas, os pássaros afinavam-se em gorjeios, as abelhas zuniam
nervosamente, os insetos outros se lançavam desprendidos e borboletas coloriam o
ar! Um mundo de festas, um gigantesco salão para muitos comensais!
Ela então baixou o rosto e mirou os cães, dando-se conta que eles eram a real
ameaça.
- Sansão, Hércules, venham, venham! – eles cessaram os latidos e olharam-na
-- Venham, me acompanhem! – saiu a correr para o fundo do pomar, sendo
imediatamente seguida por eles. Chegando ao portão do fundo abriu-o, e os cães
nem parecendo as mesmas feras de a pouco, cruzaram o vão correndo
mansamente ao seu lado, até amplo canil de grossas barras de ferro no meio do
bosque, sob densa e agradável vegetação. Ela escancarou a porta semiaberta e os
mandou entrar. Os cães a obedeceram e ela travou a porta com o ferrolho, girando
nos calcanhares reiniciando uma correria de volta.
Mas ali estava uma menina diferente: tímida, estranha, que a olhava como se de
verdade nunca tivesse conversado com uma negrinha. Era rica, isso era fácil
entender, pelo trato que dera aos cães que só podiam pertencer-lhe, pela roupa que
vestia e onde morava! Estranha, estranha mesmo essa menina, mas simpática. De
novo fez tentativa para modificar aquele abismo entre ambas, ao mesmo tempo sutil
e tênue como um fio de aranha.
- Como é que você se chama, menina?
- Rosinha! – respondeu sem alterar a postura.
- Eu me chamo Isabel, mas eles só me conhece por Calunga. Aliás, por causa
disso, eu tive de dar um soco no olho dum guri enjoado, lá na frente da escola!
- Você surrou um menino? – Rosinha se assustara piscando os olhinhos azuis,
levantando a cabeça e perdendo o ar tímido.
- Surrar eu não surrei, eu só dei um soco no olho dele, bem que ele merecia
uma surra. Ele ficou me enchendo por causa de meu apelido achando que era
nome. Então eu disse pra ele que me chamava Isabel e ele quis saber de quê. Ora,
Isabel, só isso, respondi pra ele. Sabe o que ele fez? Começou a gritar: Isabel só
isso! Isabel só isso! Aí eu mandei ele calar a boca, mas ele não calou. Então eu fui
pra cima dele e bum...!
- Ele se machucou? – perguntou Rosinha bastante interessada, levando as
pontas dos dedos de uma das mãos aos lábios.
- Machucô nada, foi só manha. Ele gritou tanto que a escola inteira ouviu. Então
eu tive de me mandar porque a diretora veio também doidinha pra me segurar. E
ninguém me pega, nem a polícia!
- Polícia também? - Rosinha ia de espanto a espanto.
- Só de vez em quando – respondeu apoiando a mão no tronco da macieira,
fazendo de novo aquele trejeito – é o guarda Félix, que toma conta da criançada da
escola. Ele no fundo é meu amigo e vive me dando conselho.
- Eu também tenho um amigo que me dá conselhos – aventurou-se, Rosinha,
soltando-se um pouco mais.
- Ele também é guarda da escola? – perguntou atenta, descolando-se da árvore.
- Não, é o Sabe-Tudo, ele mora ali! – mostrou para o meio do pomar.
- Onde? – ela olhou acompanhando o gesto de Rosinha.
- Ali, bem no meio, depois daquela última laranjeira.
- Mas eu não to vendo nada, só árvore! – falou a negrinha se abaixando e
apertando os olhos, querendo enxergar mais longe.
- É isso mesmo, ele é um pessegueiro! – confirmou com inocência e
simplicidade.
Calunga virou a cabeça para Rosinha com espanto e interrogação, como se não
houvesse entendido.
- Pessegueiro? Você ta querendo dizer, aquele negócio que dá pêssego?
- É ele mesmo, é o Sabe-Tudo, mas chi...., ele não queria que ninguém
soubesse! – ela encolheu os ombros levando a mão à boca em reprovação.
Calunga replicou prontamente, demonstrando com suas palavras a rudeza de
quem está acostumada a arreliar e brigar:
- Que é isso, menina! Ta me achando com cara de trouxa, desde quando
pessegueiro abre a boca pra falar?
Calunga fez trejeitos com o nariz e olhos, e com expressão que a tornava jocosa
e esquisita pôs a língua para fora procurando ver-lhe a extremidade. Em seguida,
cuspiu e abaixou-se para olhar.
- Ele não disse que quem mente vira sapo, disse? – perguntou preocupada,
levantando-se e a olhando.
- Não, mas se a mentira escapar por nossos lábios esteja o coração adoçado
para não azedarmos a alma alheia. A mentira e a maldade juntas produzem maiores
males do que uma doença que atira sobre o leito!
- E o sapo?
- Que tem o sapo?
- Como é que ele entrou nessa história, ele já foi gente?
- Não sei, isso ele não explicou. Mas acho que sapo é sapo, gente é gente!
- Eu também acho, confirmou aliviada, eu ouvi falar lá na porta da escola que
tem gente que vira sapo quando mente, mas são história boba, não é?
- Sabe-Tudo disse que a imaginação pode ser construtiva e destrutiva; que o
medo das coisas imaginadas para causar medo, luta contra a coragem das coisas
imaginadas para criar coragem – Rosinha agora falava sem ressentimentos.
Calunga passou as costas da mão sobre os lábios tendo nos olhos luzidio brilho.
Essa menina era muito mais estranha do que antes supusera. Falava coisas
diferentes, sabia-as na ponta da língua, mas de repente ficava toda caída e
desarmada feito uma criancinha de dois ou três anos. A história do pessegueiro
falante não a engolira, nunca vira árvore gemer quanto mais falar. Ah! Isso deve ser
a tal imaginação que se referira. Com certeza alguém lhe ensinara essas besteiras e
ela, bobinha, achava que o pessegueiro era quem falava. Será que era birutinha?
Nunca conversara com outra negrinha, um pessegueiro que fala e ensina, ora bolas!
Vai ver é mesmo, birutinha da silva! Mas apesar dessas esquisitices, era-lhe
agradável, longe de ser pedante como aquelas bestas ambulantes, filhos de papais
e mamães ricos, que cavalgavam para a escola. Ela não, e não tinha a menor
vontade de pregar-lhe uma peça!
- Escute, Rosinha, esse Sabe-Tudo aí, ele anda também, vai passear, fala com
outras pessoa? – perguntou tanto quanto possível com teatral garridice, procurando
esconder uma dose de malícia. Rosinha, sem perceber-lhe a intenção, respondeu
prontamente, com humor recuperado, achando que a negrinha realmente se
interessava pelo pessegueiro sem mais dúvidas:
- Não, ele é uma árvore já disse, e árvores não andam! De vez em quando ele
brilha, treme um pouco, mas é só isso. Você é a primeira pessoa a saber disso e eu
vou contar-lhe uma outra também, é sobre a Áurea!
- Áurea, quem é?
- É minha amiga. Sabe-Tudo disse-me que ele é filósofo e Áurea disse-me que
ela é prosadora. Ela fala tanta coisa bonita!
- Essa Áurea também é..., é... – gaguejou Calunga, apontando com o dedo para
os lados do pessegueiro com nova cara de espanto, sem saber direito como
perguntar.
- É uma roseira – respondeu com naturalidade – ela mora lá no bosque, num
canteiro do jardim!
Calunga olhava-a abismada! Dessa vez ela ultrapassara sua previsão. Julgara-a
birutinha, mas via agora que ela era muito mais que isso, era doidinha. Primeiro a
história da menina, depois o pessegueiro, agora essa da roseira. No entanto, mesmo
cismada com as faculdades mentais da outra sentia-se curiosa por saber detalhes,
por escutar o que sua doidera tinha para dizer – algo a instigava a isso!
- E o que ela conta?
- Bem, muitas coisas, depende do assunto.
- Você quer dizer que tem de levar um assunto pra ela falar?
- Mais ou menos. Às vezes eu estou passando e ela me chama, então começa a
falar sobre as coisas. Noutras, eu vou lá e puxo conversa.
A negrinha comia-a com os olhos. Como é que podia uma menina tão
engraçadinha e meiga estar falando esses disparates, essas besteiras? Será que
ficando a escutar essas coisas sem pé nem cabeça ia repetir também e ficar
igualzinha? A esse pensamento seus olhos se arregalaram e mostrou transtorno na
fisionomia que foi prontamente notado por Rosinha.
- Está sentindo alguma coisa? – perguntou-lhe preocupada.
- Eu? Não... ora essa! Por que ia sentir? Eu só to ouvindo, não falei nadinha!
- Uma vez ela disse-me o seguinte – prosseguiu Rosinha ignorando os sintomas
da outra – o perfume das flores são jorros de essência que os anjos trazem do alto e
derramam nos cálices. O perfume não serve somente para aspirarmos e sentirmos
prazer, nem para encher nossos ambientes e torná-los atrativos. Ele tem coisas
maiores e misteriosas e quando as descobrimos, os segredos passam a nos
pertencer e nós a eles. Porém, somente corações puros e sem nódoas conseguem
desvendar esses segredos e deleitar-se nos seus eflúvios!
- Rosinha! Rosinha! – gritaram-lhe ao longe. Ela reconheceu de imediato a voz
da governanta.
- É Luiza, depressa, se esconda! – falou nervosamente.
- Pra que tanto medo, Rosinha?
- Ela vai contar para o meu pai que eu estive conversando com outra menina.
Depressa, corra e se esconda!
Rosinha emudeceu. Se contasse era mais do que certo que Luiza a delataria ao
pai. Recebia poucas visitas, não tinha amiguinhas e não ia à escola. Seu pai queria
zelar por sua formação, educá-la sem a influência de pessoas de outras classes. Os
únicos amigos secretos eram Sabe-Tudo e Áurea. Eles a amavam e a ensinavam,
faziam gravar em sua privilegiada memória cada palavra, cada exemplo, e ela nunca
mais esquecia. Apesar deles, de seus carinhos e sabedoria, ainda assim não podia
evitar se sentir confinada e vigiada. E o que aconteceria se o pai viesse a saber
daquela estranha invasora do pomar e sua conversa com ela?
Uma luta jamais experimentada deflagrou-se em seu íntimo, fazendo agitar seu
infantil coração. Não dizia mentiras e repetira ainda a pouco importante adágio de
Sabe-Tudo, porém a realidade era mais dura que as palavras! Sabe-Tudo ensinara-
lhe que era hábil e válido ocultar e dissimular, mas quanto a mentir, fora bem claro,
que fazer?
- Ande Rosinha, conte logo, o que os fazia latir tanto? – A voz de Luiza parecia
declarar-lhe que a tudo já conhecia, querendo unicamente a confissão.
- Era um gato! – respondeu a criança, corando e desviando o rosto do
percuciente olhar.
- Um gato?
- É, um gato grande, mas ele fugiu – confirmou dolorosamente sentindo os olhos
umedecerem, lutando para que as lágrimas não viessem à tona.
Duas ou três vezes ao ano Pedro e os dois homens cuidavam do horto que
rodeava a mansão, produzindo movimentação extra-rotineira, tratando de acertar e
modelar o enorme anel vegetal. Os craques das tesouras e vai-e-vem de serrotes,
as penetrantes incursões da moto serra nos galhos do arvoredo, as farfalhantes
quedas, os arremates por cordas, o varrer deles pelo chão quando puxados a mãos
ou atrelados ao trazeiro do jipe, os posteriores aparos em tamanhos adequados, o
rebuliço corriqueiro, os chamados de atenção, os gritos de alerta e toda uma gama
adicional de ruidosas ações daqueles homens atentos e por vezes nervosos, eram
ouvidos com nitidez pelos cômodos da periferia da mansão, eventualmente pelos
corredores. Luiza deveras apreciava a tudo aquilo e vigilante permanecia como a
supervisionar as ordens do patrão, sentindo-se fazer parte do sucesso das
execuções. Rosinha ficava longo tempo apoiada no peitoril desta ou daquela janela,
atraída pelo burburinho do trabalho que ali se desenrolava.
ÁUREA E SABE-TUDO
Rosinha permaneceu em seu quarto pouco mais de meia hora. Sentada no chão,
apoiando as costas na travessa da cama, sentindo o contato da colcha e a maciez
do colchão, ficara a cismar. Ora encolhia as pernas e encostava a testa nos joelhos,
ora apoiava o queixo sobre eles, enlaçando as pernas num abraço quebrado e
apertado.
* * *
Rosinha comeu pouco. Almeida por trás das lentes observou-a com seus olhos
azuis. Ao término, trouxe-a para a poltrona da biblioteca e tendo-a colada à perna,
fumava belo e envernizado cachimbo irlandês.
- Por que você jantou pouco, andou comendo coisas depois das quatro?
- Não comi nada, pai, é que estava mesmo sem fome
- Verdade?
- Verdade! – respondeu-lhe olhando-o num súbito relance.
Almeida silenciou começando a dar seguidas baforadas, lançando o olhar para
a estante, desligando-se de Rosinha.
- Pai, mentir é feio? – ela tirou-o da abstração.
- Hem? O que?
- Mentir é feio?
- O que você comeu antes do jantar?
- Nada, pai, já disse. O que eu queria saber é se um dia eu contasse uma
mentira o senhor ia me castigar.
- Qual foi a mentira que você me contou? – o rosto redondo do pai mostrou
maior curiosidade ao encarar o rostinho belo e pálido.
- Não menti nunca. Eu só queria saber se um dia eu mentisse o senhor ia me
castigar.
- Depende – respondeu sem qualquer interesse ou convicção, relançando o
olhar em direção da estante, se desligando novamente. Rosinha voltou à carga:
- O senhor já mentiu alguma vez?
- Hem?
- Mentir, pai! O senhor já mentiu? Almeida tirou o cachimbo da boca
emborcado-o sobre o cinzeiro de vidro, batendo-o de leve e o fazendo soltar cinza.
Depois sacou o pequeno cinzeiro dourado do bolso e supostamente o reacendeu,
dando novas baforadas. Então, como se estivesse muito ocupado ordenou:
- Agora deixe-me sozinho, eu preciso pensar sobre um assunto.
Rosinha imediatamente girou nos calcanhares e andou em direção da porta. Ao
cruzar o pórtico lançou-lhe derradeiro olhar. Almeida novamente se distanciara sob
tênue e azulada nuvem de fumo.
* * *
Com a testa coberta de suor, trêmula e assustada, Rosinha verificou que tudo
não passara de um sonho ruim e se enrolou na fina colcha para tentar dormir
novamente. Partes desconexas desse mesmo pesadelo repetiram-se por duas
vezes, torturando-a.
O almoço foi-lhe servido mais cedo e sozinha diante daquela comprida mesa ela
comeu menos do que esperava. Achou interessante a situação, mais ainda por não
ter a companhia desagradável de Marga. Ao término, saiu em direção do bosque
sob os protestos de Luiza que a queria ainda descansando. Mas como a criança
parecesse recuperada, deixou-a livre, indo também almoçar.
Era meio-dia e os homens se recolhiam para o refeitório onde todos os
empregados faziam as refeições. Rosinha, pela rua principal do bosque, os ia
encontrando e eles a saudavam. Sem rumo certo ela entrava e saia pelos caminhos.
O Sol estava quente, mas a temperatura era amainada pelas rajadas de suave brisa
a balouçar galhos e copas. Folhas caiam, Rosinha as pisava a passos descuidosos
enquanto seu pensamento novamente se aferroava a preocupações. Chegou ao
lago contornando-o, e súbito lembrou-se dos latidos dos cães que dali a arrastaram
ao pomar. Reviu Calunga e desejou voltar lá para talvez reencontrá-la. Sabe-Tudo
interpôs-se a ambas e ela tremeu. Lembrou-se do pesadelo. Não o via mais como
uma figura imponente e bela, com voz grave e senhoral, a dizer-lhe das coisas e a
ensinar-lhe do mundo. Via-o agora como na madrugada, horripilante, querendo
agarrá-la e a gritar: “você mentiu, você mentiu, vai ser castigada!”
Uma ardência no estômago a fez parar e levar a mão ao local, sentindo ligeira
vertigem e o corpo a esfriar. Não devia estar pensando nessas coisas, faz mal
depois da comida! Sentou-se ali mesmo sobre a grama verde e viçosa que orlava
todo o lago e decidiu que não mais iria ao pomar. Algo a tomou obrigando-a a fazer
enorme esforço a fim de apagar a imagem espectral criada pelo pesadelo, levando-a
a observar as sinuosidades das serpentinas líquidas lançadas pelo belo repuxo no
centro do lago e à marolante água. Como resultado, seus lábios rosados, de pouco
em pouco, iam afrouxando da tensão, permitindo a boca pequena de cantos
suavemente voltados para baixo, se mostrar quase ao natural. O brilho dos olhos
transmutava-se do vívido e excitado para o diáfano e contemplativo. Os braços já se
soltavam e o pensamento deixava adormecer num torpor quase completo, o rumor
da tempestade que a estremecera e nela ficara.
Angustiada, passada uma hora, decidiu sair. Suspeitando que Luiza estivesse
tricotando na sala de estar, rumou pelo corredor em direção oposta, para a porta
principal, ganhando a varanda, descendo o degrau único e arrodeando a casa.
Metendo-se por um dos caminhos, surpreendeu-se a se ver acionando a tranca do
portão de acesso ao pomar. Correndo rija e tensa para debaixo da macieira, olhava
somente para adiante, temendo ver o que não queria. Sansão e Hércules correram
para ela, embaraçando-se a sua frente, atrapalhando-lhe os passos. Ela afugentava-
os, mas eles faziam-lhe festa. Já debaixo da fruteira olhou para cima, ansiosamente,
volvendo a cabeça sobre o fino e branco pescoço, buscando em todas as direções,
indo a seguir para debaixo da ameixeira. Um rápido relance pela circunvizinhança a
fez, sem querer, esbarrar em Sabe-Tudo e pretendeu ignorá-lo, porém nele se
prendeu sentindo o coração acelerar. No entanto, uma névoa de clara luz desceu-
lhe ao pensamento, o penetrou e o transpassou. Ela sentiu-se dominada e invadida
por incitações reflexivas. Sabe-Tudo era exatamente o mesmo, pensou! Não tinha
mil garras sinistras, era somente um pessegueiro, um grande pessegueiro! E do
temor recalcado saltava-lhe agora o antigo sentimento de amizade ao grande amigo.
Ele era o mais sábio de todos, do mundo inteiro, não iria querer-lhe mal algum, por
que não enxergara isso antes?
DE NOVO CALUNGA
Luiza deixara de lado aquele assunto do pomar, não mais evocava a mentira da
criança e seu insurgimento às costumeiras ordens. Domingo, ao levá-la a passear
pelo parque e observá-la com maior interesse enquanto ela se divertia com
gangorras e balanços, a cena do pomar retornou-lhe à lembrança. Com desagrado
procurou afastá-la da mente.
Veio a segunda-feira. Rosinha suportou como pode as lições com Marga e sua
companhia ao almoço. À tarde, após os deveres de casa, saiu a correr pelo bosque,
a conversar com Áurea e a visitar o pomar. Sansão e Hércules escarafunchavam o
capinzal do fundo do terreno, enquanto ela caminhava próximo ao muro. Entretanto,
uma surpresa a aguardava. Sobre o muro, protegido por um volumoso galho de uma
pereira a alguns metros dali, um vulto negro, sentado, chamou-a:
- Ei, Rosinha, estou aqui!
Era a mesma voz, a mesma presença. Rosinha deu um salto de alegria e
exclamou:
- Calunga!
- Eu mesma. E quede os dois vira-lata?
- Estão lá no meio do capim! – respondeu emocionada apontando para aquela
direção.
- Então não posso pular pra aí, senão eles me vê e faz de novo aquele barulho
todo!
- É, não pule não, fique aí mesmo! Espere! Por que você não dá a volta por fora
e pula lá no fundo, no bosque? Lá podemos conversar mais a vontade! – sugeriu
agitada.
- Lá o muro é alto e cheio de caco de vidro, além do mais não tem fruta!
Rosinha olhou-a com uma ponta de decepção a empanar o brilho de seus olhos.
- Você então veio aqui... ,por causa das frutas?
Calunga, elevando os olhos de sobre Rosinha, correu o antebraço sob o nariz e
mirou um dos parreirais mais adiante carregado de uvas brancas, respondendo com
medido desinteresse.
- É pelas fruta...
Rosinha sentiu o coração apertar. A negrinha prosseguiu após a pequena
pausa:
- ...pra lhe ver também. Afinal quase não deu pra gente falar daquela vez!
Rosinha sorriu largamente, os olhos emitiram brilho de rara beleza!
- Por mim também?
- Ué, por que não? Pelo que sei fruta é fruta, a gente come e ela acaba, mas
gente é gente! Ainda mais como você!
- Como eu? – perguntou surpresa e curiosa.
- É, cheia de novidade, de esquisit..., digo, de história e dona de um lugar
grande como esse.
- Mas isso aqui não é meu, é do meu pai. Ele é dono também de uma fábrica de
tecidos!
- É a mesma coisa, ora – soltou aquele riso debochado – se o seu pai é dono de
alguma coisa você também é. É a mesminha coisa!
- Ele nunca me disse que eu era dona de nada – exclamou inocentemente com
ar atarantado.
- É preciso dizer, Rosinha? O que é do pai é da filha, sempre foi assim. Bem, eu
acho que sempre foi.
Rosinha pensou um pouco levando o dedo ao queixo e apontou-o para Calunga.
- Estou me lembrando que Sabe-Tudo me disse que nós de verdade não somos
donos de nada, nem do nosso corpo, porque ele vem, cresce e se acaba e nós não
conseguimos detê-lo e nem entender direito como ele funciona, quanto mais sermos
os donos dele!
- Chiii....! – fez Calunga com cara de tédio.
-Chi, o quê? – perguntou Rosinha, piscando vivamente.
- Nada..., nada! É que..., bem esse Sabe-Tudo, é um bocado complicado né?
- Ele é filósofo, já disse isso. Ele fala assim mesmo, só para deixar a gente
pensando.
Calunga refletiu. Em seguida voltou a encarar o rosto pálido de Rosinha.
- Sabe de uma coisa, Rosinha, eu tive pensando noutro dia do que você me
contou desse tal Sabe-Tudo e daquela roseira, a...,a...
- Áurea! – acudiu-a Rosinha
- É, dessa aí! É que...,eu também conheço duas pessoa que diz coisa parecida.
Um é o Príncipe, que mora com a gente. Ele vive sonhando. De vez em quando diz
umas coisa estranha; o outro é o Gregório, meu pai de criação, que fala coisa difícil,
mas só sobre a miséria. Só que eles não é árvore, é gente de carne e osso como
nós!
Rosinha, comovida, não percebeu a proposital mensagem de Calunga.
- Quer dizer que eles também falam coisas para você pensar? - excitou-se pela
provável coincidência.
- Pra dizer a verdade eu nem ligo quando eles começa a abrir a boca falando e
falando. Quem aguenta eles é a Janú!
- Janú?
- Minha mãe de criação, ela se chama mesmo é Januária, mas todo mundo
chama ela de Janú!
- Eu também não tenho mãe – falou Rosinha com naturalidade – quem me criou
foi a Luiza..., aquela que me chamou da outra vez, lembra-se?
- Eu não cheguei a ver ela. Eu pulei fora da ameixeira, corri lá pra aquele
telhado de maracujá, subi nele e me mandei por cima do muro!
- Como é que você consegue pular para fora de um muro tão alto, ninguém até
hoje conseguiu?
Ela riu e olhou para trás, apontando para baixo:
- É que um tronco de árvore despencou e encostou no muro. Eu aproveito e
subo nele até aqui, então agarro aqui em cima e pulo. Ainda bem que desse lado
não tem caco de vidro senão eu não ia conseguir!
- Ah...! – fez Rosinha entendendo.
Com habitual agilidade ela pôs-se de pé, andando dois passos sobre a estreita
borda do muro, agachando-se e se lançando para baixo. Seu corpo foi descendo, a
cabeça desapareceu, e finalmente as mãos. Respirando aliviada Rosinha gritou
mais energicamente com os cães que ainda insistiam em latir. Então tomou uma
pêra caída, e a lançou para longe, provocando-lhes correrias naquela direção.
* * *
Dia seguinte, Rosinha foi ao fundo do bosque onde existia o galpão. Abriu a
porta e adentrou. Estava escuro e nada conseguia divisar resolvendo acender a luz,
encostando a porta a fim de não ser vista. Um forte cheiro recendia – era mistura de
mofo com suores das roupas dos homens, exalação de inseticidas, de vitaminas
para a terra, de ração dos cães e de outros produtos usados na conservação da
propriedade. O comprido e amplo galpão guardava, além daquelas coisas, muitos
caixotes, sacos, galões, baldes, ferramentas e diversos outros acessórios. Rosinha
lançou olhar em derredor e caminhou entre prateleiras, desviando-se de recipientes
no chão. Adiante enxergou o que procurava: duas coleiras e respectivas correias.
Arrastou até ali um banco de madeira e subiu nele, esticando o braço para alcançar
os objetos dependurados em pregos. A seguir, ficou a remexer pelos cantos,
terminando essa segunda busca próximo da janela, de onde levantou sacos de
estopa que encobriam pequena pilha de cestos de fibra, escolhendo um deles, e
correu para o pomar. Uma vez lá, foi em direção ao capinzal, escondendo o cesto
nos seus entremeios, indo para os lados do muro.
Tendo realizado essas coisas, sentia-se mais leve. Seria incômodo ser
surpreendida com o cesto e precisar outra vez mentir. Felizmente nada disso
acontecera e agora caminhava junto ao muro, ao envolvimento azul de seu vestido,
ao afago da aragem amiga, sob a aclamação dos trinares de pássaros e zunidos
festejantes de besouros e outros insetos aéreos.
Caminhando mais uma vez pela trilha marginal ao muro chamou pela ausente
visita, mas desiludida veio para o interior do pomar aproximando-se de Sabe-Tudo.
Ao parar em frente a ele, tomou-a a vertigem que já conhecia, que logo em seguida
a deixava imersa e embalada num indescritível bem estar.
- Sabe-Tudo, por que as pessoas são diferentes?
“As razões estão nas necessidades. O que lhe causa estranheza minha
menina?”
- A riqueza e a pobreza. Marga me disse que a pobreza é castigo de Deus. Por
que Deus castiga?
“Cada um pensa o que quer. Eu penso que Deus jamais castiga, são os homens
que se castigam e levam com sua ignorância a miséria a outros!”
- E por que os homens não fazem o certo para não acontecer essas coisas?
“As trevas do pensamento endurecem corações e cegam a visão clara. Se
assim muitos querem assim serão. Quem sofre pelos erros alheios mais adiante
será recompensado.”
- Como, Sabe-Tudo?
“Vidas após vidas são necessárias para ajustes e acertos. Faz parte da
evolução humana aprender sofrendo. Ao final de tudo, o sofrimento aproxima das
realizações verdadeiras”
- O que são realizações verdadeiras?
“Primeiro de tudo é o saber. É existir com a visão clara, bem ao contrário de
conviver com as trevas. É fazer pelo bem dos demais sem esperar recompensas. É
amar para apagar os erros. É perdoar para avançar. É construir com inteligência. É
ser livre de todos os preconceitos. É jogar as âncoras dos pensamentos imperfeitos
e obscuros para o fundo do mar da ignorância e lá deixá-las”
- Não entendi nada Sabe-Tudo!
“Vai entender, Rosinha, cada dia aprenderá mais um pouco onde quer que
esteja, porque não são meras palavras!”
Pouco depois ela voltava junto ao muro. Como nada visse sentou-se por ali,
sobre um diminuto colchão de folhas por ela mesmo arranjado, encostando-se e
esticando as pernas. Ao longe, entre dois limoeiros, Sansão e Hércules brincavam
pulando um sobre o outro, mordendo-se e rosnando. Seu olhar um tanto distendido
oscilava dos cães para os brilhosos sapatos. Movia os olhos maquinalmente, às
vezes acompanhando os sulcos de suas brancas meias. Não pensava em nada
somente deslizava o olhar. Pouco durou aquilo porque súbito estremecimento
sacudiu-a:
- Rosinha!
Ela pôs-se de pé sorridente, embelezando mais ainda o rostinho angelical.
- Eu demorei um pouco, não foi? É que passei na escola pra ver como ia as
coisa e me distraí – Calunga falava e caminhava sobre o muro com relativo cuidado,
vindo sentar-se diante da outra, jogando as pernas para o lado de dentro, ajeitando
o vestido vermelho berrante, procurando inutilmente compor-se.
- Não faz mal, Calunga, o importante é que você veio. Olhe, aguarde aí só um
pouco que eu vou prender o Hércules e o Sansão lá no fundo do pomar para eles
não lhe ver.
* * *
A TENTAÇÃO DE ROSINHA
Os dias que se seguiram foram de certa forma rotineiros para Rosinha. A coisa
mais importante em sua vida passou a ser a amizade com Calunga que começava a
criar raízes. A cada encontro uma descobria na outra uma nova face. Rosinha
chocava-se com algumas narrativas da outra; suas resoluções e peripécias. Achava-
a, em ocasiões, excessivamente violenta e vingativa, e, como já antes acontecido,
temia-a. Mas como ela lhe dedicasse atenção e a apreciasse, interessando-se por
seus problemas, mesmo encontrando neles uma natureza irreal e fantástica,
Rosinha tranquilizava-se, vendo confirmarem-se os verdadeiros sentimentos de
estima e atração que Calunga lhe endereçava. Não podia analisar, por
inexperiência, as profundezas dos conflitos dela, mas conseguia senti-los e isso
representava-lhe uma soma de contrastes e indefinições, coisas ao mesmo tempo
sinceras e sagazes, espontâneas e tempestuosas. Essa massa informe ao seu
entendimento, a inteligência inata dela, a esperteza, a vibração de vida e o
permanente desejo de desafiar o mundo, criavam torvelinhos e trepidações em sua
imaginação, atiçando mais ainda sua igual fome de experiências além muros!
Não era sem razão que às noites sonhava com Calunga, vendo-se a correr
pelas ruas da cidade, a conhecer lugares e a visitar escolas. Era extraordinária
aquela sensação de liberdade, de traquinar e decidir. Como se fora na vida real, via-
se nas cenas com ela a observar-lhe as reações, a condená-la intimamente quando
brigava, mas de novo satisfeita e feliz tomavam novos caminhos.
Calunga, por seu turno, ao voltar regularmente, vinha atraída também pela
amizade sincera e leal que, em troca, Rosinha igualmente demonstrava-lhe. Os
incríveis amigos dela, as histórias que lhe eram contavas, a docilidade, o jeito de
ser, a generosa distribuição das frutas, e sua surpreendente ingenuidade, todas
essas coisas tocavam-na de maneira a provocar-lhe crescente curiosidade pelas
coisas de seu mundo misterioso e profundo. A prisão domiciliar, cruel e desumana,
revoltava a ela própria, inadaptável por natureza. Como é que podia – vivia a inquirir-
se – uma menina assim sem nenhuma distração fora desse lugar, sem conhecer
praticamente nada lá de fora, saber falar tantas coisas complicadas? Se ela fosse
igual àquelas que usam óculos grossos, desajeitadas no andar, que não falam com
ninguém a não ser com seus livros, vá lá! Mas não, Rosinha era diferente, era
delicada, atenciosa, bonita, cheia de vontades como tantas de sua idade e até mais,
para dizer a verdade. Será que aprendia mesmo daquele pessegueiro e da tal
roseira?
* * *
Três meses se passaram. Nesses últimos dias chovera muito. Depois veio uma
garoa intermitente e com ela um vento frio que costumava assobiar pelos cantos da
mansão. Montes de folhas acumulavam pelo bosque e pomar esvaziando as
árvores. Os homens se lançavam sobre elas a fim de retirá-las da propriedade. Mas
as manobras eram ingratas porque demandavam-lhes maior rapidez e desembaraço
em amontoá-las do que, em contrapartida, o acúmulo organizado se fazia, e por
diversas vezes eles perdiam nesse jogo. A garoa também atrapalhava e mais o
vento frio, e tinham de parar em certos momentos porque a garoa se transformava
em breve chuva.
Uma tosse seca e nervosa viera acossá-la; ela gemia e lacrimejava, sentindo
faltar-lhe o ar, emitindo chiados no peito necessitando ingestões nebulizadoras que
Luiza aplicava-lhe ou à bombinha broncodilatadora. O termômetro subia e descia.
Almeida já a levara à clínica indicada pelo médico a fim de tirar radiografias e fazer
novos exames, mas felizmente nada de grave fora constatado. No entanto, seu
estado não se estabilizava e o médico estabelecera o limite de mais vinte e quatro
horas para que o quadro começasse a mudar. Não havendo indícios de melhoras,
aconselharia a internação.
Nesse comenos o céu limpou. O Sol veio bater à vidraça do seu quarto,
chamando-a para a saúde! O calor brando veio aquecendo o frio prematuro e a
temperatura mudou. Concomitante ao aparecimento do Sol, à fuga do vento e o
aquecimento atmosférico, a febre de Rosinha desceu em definitivo voltando à
normalidade. A tosse diminuíra consideravelmente e ela não mais teve falta de ar!
Todos respiraram aliviados, e passadas as vinte e quatro horas ela mergulhara em
calmaria. Dia seguinte, sentava-se apoiada na cabeceira da cama e comia, ainda
que relutantemente, sendo à tarde visitada e consultada pelo médico. Com
satisfação, ele declarou que as crises tinham sido vencidas, ela reagira e se
recuperaria, mas todos os cuidados dali para diante seriam necessários. Passou-lhe
alimentação especial e na primeira oportunidade requisitaria exames gerais e
completos.
Rosinha já caminhava pela mansão e como o tempo outra vez bruscasse ela
teve o pedido de sair negado. Amuada, ensimesmou-se, porém teve de obedecer. À
noite, perto das oito horas, tendo permanecido por pouco tempo a assistir televisão
com Luiza, enjoada daquilo, veio para o quarto e deitou-se encostando a cabeça no
travesseiro, abraçada a uma boneca. Luiza, pouco depois, surgiu à porta e ao vê-la
deitada com aspecto desalentador, aproximou-se e levou a mão à sua testa. Nada
sentindo de febre tranquilizou-se, beijando-a e a deixando.
Dia seguinte foi a repetição do dia anterior e Rosinha não pode fazer nada, a
não ser descansar. Ainda sentia-se fraca, apesar de desejar demonstrar o contrário
e teve sua intenção de sair novamente negada. A temperatura não mudara nem o
panorama do céu. Não chovera, mas um vento começou a soprar com maior
constância. Rosinha, ociosa, tinha todo o tempo para pensar e lembrava a todo
instante do inusitado encontro logo mais a noite, admirando-se mais uma vez da
audácia de Calunga.
* * *
O céu estava mais carregado. Era quase certo que logo choveria. Era também
quase certo que a temperatura viria cair e Rosinha ia ser obrigada a permanecer
dentro da mansão. Se Calunga não se apressasse, a chuva chegaria antes dela e
não ia estar aqui para recebê-la. Um sopro mais frio do inconstante vento provocou-
lhe arrepio e lembrou-se de que prometera a amiga o agasalho. Sem delongas,
correu para o interior do pomar, avançando em direção do portão, ultrapassando-o e
entrando pela casa. No corredor caminhou, cuidando de não fazer ruídos. Era-lhe
desagradável andar quando precisava correr, e ao passar diante do pórtico da sala
onde Luiza se encontrava, ouviu-a recomendar:
- Rosinha, não sai mais porque vai chover!
Irritada, não respondeu, pretendendo não tê-la ouvido. A voz de Luiza, contudo,
ressoou novamente, desta feita mais imperativa:
- Ouviu, Rosinha, não saia agora! Eu ia mesmo procurá-la!
Ela apressou os passos e entrou no quarto, fechando a porta, dando uma volta
na chave. Abrindo o guarda-roupa começou a remexer nas prateleiras e nas
gavetas, encontrando um pulôver azul-marinho, que o jogou sobre a cama, e buscou
um vestido dentre tantos dependurados nos cabides, a maioria azul por sua
exigência, a sua cor favorita. Lembrando-se de que Calunga usava vestido
vermelho, procurou em vão um de mesma tonalidade, e resolveu tomar dali um cor
de rosa que quase nunca o usara e o enrolou junto com o pulôver. Destravando a
porta meteu-se pelo corredor andando apressadamente para a porta da frente,
passando pela varanda. Contornando a mansão chegou debaixo da janela, esticou-
se e pegou as roupas de sobre o peitoril, girando e saindo a toda velocidade em
direção ao muro.
Luiza, tendo sido avisada por uma das empregadas, entrava no quarto alguns
minutos depois, molhada e aflita. A chuva nesse instante desmoronava fartamente e
o vento uivava. A governanta correu para a janela ainda aberta e a fechou,
acendendo a luz, interrogando a criança:
- Ah, Luiza, estive por aí, pelo bosque e pomar. Onde mais eu ia estar? Veja,
estou seca, não me molhei nem um pouco!
- Você não me ouviu chamar, Rosinha?
- Ouvi e me escondi! – respondeu cruzando os braços sobre o peito, fazendo
cara de importante, causando tremendo espanto à aplicada governanta.
* * *
Naquela tarde ela não pode sair nem no dia seguinte. Ainda chovia e o frio
permanecia. Ela andava toda agasalhada para não adoecer. No terceiro dia, já pela
manhã o céu se abriu e o Sol se apresentou, começando a secar a terra, trazendo
alegria. Aquela manhã foi terrível para Rosinha a olhar a cara gorda de Marga, ser
obrigada a conviver com ela enquanto lá fora a beleza voltava. Depois do almoço
nova angústia. Marga deixara-lhe muitas tarefas, como vinha deixando nesses dois
últimos dias, provavelmente por vingança das provocações; assim era bem melhor
primeiro se despachar com as lições para ficar livre em definitivo.
Uma onda, qual nuvem, pareceu descer e cobri-la e no mesmo instante seus
conflitos começaram a perder força. Uma crescente sensação de coragem e um
desejo ardente de conhecer vieram tomá-la. Desobedecer! Desobedecer! Já não lhe
soava como a um pecado, uma desobediência incomum, mas como um desafio, um
direito a conquistar! Movida por aquele estranho e novo alento, ela correu e entrou
no quarto tomando a chave.
- Agora eu vou lá no portão lhe esperar. Não se esqueça de soltar os vira-lata
senão os outros pode desconfiar!
Rosinha fez que sim automaticamente. Fora providencial a lembrança de
Calunga. Na verdade, nem lhe ocorrera esse detalhe, carregava somente uma
agitação extraordinária e tudo mais parecia-lhe de menor importância.
Saindo daquela outra área surgiu repentinamente uma mulher alta e esbelta,
maltrapilha também, de trinta e cinco anos mais ou menos, que ao vê-las arregalou
os olhos não conseguindo disfarçar a surpresa. Rosinha identificava-os a todos
pelas descrições feitas por Calunga e permaneceu imóvel, qual Calunga. Foi
Gregório, com o mesmo sorriso simpático e voz pausada e sonora, quem veio trazer
outra vida aquele quadro e as boas vindas à inesperada visitante:
- Seja bem-vinda minha filha a casa é pobre, porém acolhedora. Venha,
aproxime-se!
Uma ponta de tristeza veio nublar o espontâneo brilho dos olhos da criança e
ela buscou o que dizer para consolá-lo:
- Áurea falou que todos nós temos valor ante os olhos de quem enxerga a
beleza. Corações fechados, olhos vendados. Quem somente vê a beleza das formas
e de trapos coloridos, nada vê de fato. Quem atravessa as formas com o olhar e
pressente a alma das coisas, enxerga a beleza verdadeira.
Príncipe agora prestava atenção no que dizia Rosinha, o mesmo fazendo Janú
e Calunga. Gregório levava o cigarro aos lábios deixando passar entre eles irônico
sorriso, murmurando imperceptivelmente:
- Onde estarão essas pessoas que sabem ver a alma das coisas?
Rosinha entrou com todo o cuidado e trancou o portão. Não havia ninguém à
vista e andou até as proximidades de uma árvore de casca áspera, metendo a mão
no bolso, trazendo a chave e a enfiando no pequeno buraco no tronco, rente ao
chão. Muitas vezes ali guardara pequenos objetos em suas brincadeiras de faz-de-
conta na solidão de seu mundo. Nem tinha alcançado a via principal do bosque
Luiza surgiu de um dos lados apressadamente.
- Rosinha!
Ela sobressaltou-se sentindo súbito tremor.
- Que é Luiza!
- Você não me ouviu chamar? Está na hora do lanche!
- Ah! – suspirou aliviada – Não ouvi nada, mas já estou indo!
* * *
Rosinha teve sono ininterrupto, embora acordasse pelas seis da manhã com a
mesma febre. Luiza, pela madrugada, controlara seu estado febril, vindo três vezes
a tomar-lhe a temperatura que se mantivera igual. Deu-lhe novo comprimido e
anunciou o cancelamento das aulas. Rosinha exultou, mas logo se entristeceu
porque o pai lhe faria novas e severas recomendações de permanência dentro de
casa, que ela foi obrigada a assentir com a cabeça demonstrando ter entendido.
Pelas onze horas Rosinha se levantou, a sensação de mal estar não a deixara.
Não demorou, Luiza veio encontrá-la próximo à janela verificando-lhe as condições.
Rosinha tentava desviar as atenções procurando animar-se, dizendo-se boa e nada
mais estar sentindo. A dissimulação em parte surtiu efeito e a governanta deixou-a
para atender outras tarefas.
Tão logo almoçou, procurando forçar o apetite, ainda em seu trabalho
dissimulatório, anunciou que iria para o seu quarto. Luiza continuou sentada e
acompanhou-a com o olhar, nada dizendo. Rosinha foi de fato para o quarto,
sentando-se no chão apoiando as costas na cama. Estava impaciente e quase não
aguentava ali permanecer, imaginando que a essa altura eles lá estivessem
aguardando-a. A fim de melhor disfarçar, lançou mão de uma revista em quadrinhos,
de sob a cama, e se pôs a folheá-la fingindo lê-la. Como demorava essa Luiza!
Finalmente, pressentindo-lhe os passos não descolou os olhos da revista. Luiza
parou diante da porta, mas Rosinha pretendeu estar concentrada na leitura,
permanecendo imóvel. Ela se foi e Rosinha suspirou aliviada, jogando a revista de
volta para debaixo da cama, levantando-se. Agora sim, realizaria a fuga, desse no
que desse!
Saindo pelo corredor logo alcançou a maciça porta de jacarandá, abrindo-a com
enorme esforço, deixando-a somente encostada. Atravessou rapidamente a varanda
contornando a casa, atingindo a via principal se infiltrando pelo bosque. A cada
passo seus músculos respondiam com dores. Teve de diminuir o ritmo porque súbita
tonteira embaçou-lhe à visão e procurou inspirar com maior vigor. De novo os
pulmões emitiam chiados, anunciando um possível ataque de asma. Ela agora
andava lentamente, parava e procurava descansar, mas a ânsia de logo chegar não
lhe permitia retardar-se e prosseguia poucos segundos depois.
ROSINHA EM PERIGO!
Três dias se passaram, não chovera e o Sol agora voltava pleno. O frio ainda
permanecia, mas na medida das horas um calor gostoso obrigava todos a irem se
livrando dos agasalhos. Rosinha se recuperava quase completamente e não mais
sentia aquele mal estar. Nesse dia voltara a estudar com Marga e após o almoço
saíra a passear pelo bosque e pomar, embora com agasalho fino.
Dia seguinte, sem qualquer sombra de mau tempo, resolvida a sair novamente,
Rosinha tomou a chave e foi ao portão batendo três vezes. Não obtendo resposta,
decidida, enfiou a chave na fechadura e se evadiu. Lá fora tomou a direção que
sempre tomava ao lado de Calunga e em certo instante desejando passear pelas
redondezas enveredou por outro lado. Ao cabo de algum tempo, havia entrado e
saído por três ruas, parado e conversado com crianças e chegado a entrar numa
casa para tomar um copo d’água. Estava solta e feliz, pensando um dia alçar voo
para muito além, outros lugares, outras situações!
Mais tarde, Gregório e Calunga a levaram para casa, não vendo sinal dos dois
homens. Rosinha, no entanto, carregava a incômoda sensação de que a vigiavam
de longe.
* * *
Dois dias depois Rosinha voltava a visitar a família de Calunga, levando coisas
e a alegrando. Em meio às conversas, Príncipe comentou acerca da história contada
no portão da escola que Calunga havia comentado, desejando escutá-la. Rosinha
fixou-se em seus verdes e sonhadores olhos, propondo:
- Áurea contou-me outra história interessante, não prefere ouvi-la? Ele meneou
afirmativamente com a cabeça e mediante seu acolhimento e atenção de todos, ela
iniciou: - Havia um castelo e um príncipe muito belo e formoso. Era inteligente e
sonhador e um dia seria coroado o rei daquele país. Embora inteligente e de alma
sensível, nada queria com responsabilidades, apreciando muito mais as festas e os
namoros com as moças bonitas. Tinha dezenas de namoradas dentre a nobreza e
fora dela e de longe as moças vinham ao castelo sob pretexto qualquer, somente
para vê-lo e dele se enamorarem.
O rei, homem prático e ambicioso, gostava de negociar e acumular ouro, pouco
se importando com as necessidades do povo, impondo-lhes sempre taxas e tributos,
aumentando sua riqueza, mas também a pobreza do povo. A rainha pouco se
incomodava com isso, e vivia rodeada de damas da corte em encontros, distrações
e comemorações. Quando o rei se ausentava do castelo em suas inúmeras viagens
pelo país, deixava o príncipe com a responsabilidade de dividir com a rainha o
governo, mas a rainha continuava com nada se importar e o príncipe entregava-se
às dispendiosas caçadas e às noitadas. Dava festas e mais festas, gastava ouro
presenteando regiamente aos convidados que bebiam e dançavam até o Sol nascer!
A rainha participava das festas até certa hora; depois se retirava, fingindo nada
perceber dos exageros do filho.
O rei ao retornar com os baús cheios de novos valores e contratos com as
províncias, condados e ducados para fornecer-lhe víveres e pagar-lhe altos
percentuais sobre o que o país exportava, era informado pelos mexeriqueiros sobre
as festas e caçadas do príncipe. Ficava furioso e corria aos cofres para ver quanto
de sua riqueza houvera escapulido, porém nada fazia para castigá-lo porque o
amava muito e à rainha.
O tempo passou e os exageros da família real chegaram a tal ponto que o povo
não suportando mais aquela situação se revoltou. A revolta foi controlada e dirigida
por outros nobres não satisfeitos com as cobranças que o rei lhes impusera. Como
resultado, o rei e toda a realeza do governo foram executados e suas almas levadas
ao Tribunal Celeste para serem julgadas de fato e de direito. Lá em cima o Tribunal
mostrou-lhes todas as suas faltas e abusos, provando-lhes que muito tiveram às
mãos e nada de útil tinham feito em favor do povo com quem haviam se
comprometido há dezenas de anos atrás. Como corretivo, o Tribunal Celeste
obrigou-os a renascer no mundo, nas piores condições, a fim de que sentissem na
própria carne o mal que haviam cometido a muitas famílias e expurgassem os
venenos da usura e egoísmo. Por duas vezes, o rei, a rainha e o príncipe se
reencontraram sem saber por que passavam por aquelas aflições materiais, porém
na terceira e última vez dos reencontros, seus sonhos e intuições mostraram-lhes o
que provocara aquela situação. Uma esperança tênue, mas constante, vinha dizer-
lhes que aquilo estaria prestes a acabar e tão logo uma mensageira chegasse-lhes,
essa presença serviria para confirmar-lhes que o fim das dores estaria próximo,
bastando que completassem seus dias na Terra. E a mensageira veio e eles a
reconheceram!
Rosinha pouco falava, mal estudava, não fazia direito os deveres e não se
incomodava nem um pouco sobre as ameaças de Marga em dobrar-lhe os deveres
de casa ou fazer relatórios desabonadores ao doutor Almeida. A palidez em seu
rosto aumentara, mas felizmente não tivera nenhuma crise de bronquite asmática ou
outra coisa qualquer que lhe abalasse a frágil saúde. Passara-se uma semana e
somente agora ela voltava a Sabe-Tudo:
- Como é que você sabia que eu estava lá e como conseguiu falar nos meus
ouvidos?
“Foi necessário, Rosinha, tivemos de fazê-lo, eu e Áurea!
- Mas de que jeito, vocês não são plantas?
- Somos?
Rosinha atrapalhou-se, mirando-o sem saber o que pensar. Porém, um
misterioso brilho perpassava seus místicos olhos e o rosto assumia ar sério ao
mesmo tempo reflexivo. Foi um momento único e fugidio. Tocada por invisível
despertar ela quase de imediato emergiu daquela revelação, embora uma dúvida
ainda permanecesse:
- Então por que você não me avisou que Luiza estava por perto?
- Há coisas que precisam ser empurradas, outras se deixam ao seu natural
curso.
- Não entendi nada, Sabe-Tudo! Somente sei que agora eles descobriram tudo,
me vigiam o tempo todo e não vou mais poder sair.
- Tenha calma, criança, tudo vem ao seu tempo. Seja paciente e aguarde!
Veio um novo final de semana e ela permaneceu novamente sem poder sair:
medida punitiva, sem dúvida alguma, e isso doeu-lhe profundamente. No meio da
terceira semana de isolamento e vigilância, acusou um estímulo, estranha
inquietação, que a levava a ardentemente desejar sair e lançar-se à rua de qualquer
maneira. Mas como fazê-lo se a chave do portão lhe fora tomada e a outra
desaparecera do galpão? Por curiosidade ou indefinível impulso, ela projetou-se ao
recinto da ala secundária do interior da mansão onde guardavam o chaveiro. A porta
estava trancada e lamentou não poder adentrar. Não resignada, ainda sob a aura de
uma sensação estranha e movente, tomou o corredor principal e saiu à varanda.
Sem nada pensar foi parar em frente ao portão de ferro da entrada social da
mansão. As travas de segurança, em cima e embaixo, estavam livres e ela sequer
notou. Ainda em seu estado de semi-transe, levou à mão à fechadura pressionando
o trinco para baixo e o portão abriu-se!
Conduzida ainda por alguma coisa mais forte do que sua vontade, ela puxou o
portão e evadiu-se. Correu para a rua, daí para outra, contornou o quarteirão e
passou pelo fundo da propriedade onde costumava tomar os caminhos já
conhecidos. Um automóvel velho com vidros escurecidos parou junto a ela, a porta
de trás foi aberta e um homem avançou tapando-lhe a boca, enquanto outro braço a
enlaçava pela cintura e a jogava para dentro do veículo.
- Tudo certo. A caça está na mão, valeu a pena esperar todos esses dias – falou
o seqüestrador rindo e a amordaçando.
CAPÍTULO VII
SOFRIMENTO E FINAL
Correndo e se escondendo, ela subiu por uma rua estreita, margeada de casas
velhas e pobres. A comunidade era a mais abandonada do bairro, a pobreza de
seus moradores não poderia caber noutro lugar. Com o vestido vermelho molhado e
manchado das águas barrentas Calunga ardia de raiva e indignação.
- Miserável! Eles vai ver só uma coisa se fizer mal pra Rosinha!
A tarde ia desfalecendo, o céu encoberto de nuvens cinzentas prometia mau
tempo, um vento frio começava a soprar. Ela precisava apressar-se se pretendia
descobrir onde tinham levado Rosinha!
Encostado a um canto, um carro estacionado achava-se coberto com panos.
Era sem dúvida o carro de ambos. Calunga soubera ainda há pouco de um velho
mendigo, amigo de Gregório, que eles tinham saído pelas onze da manhã e voltado
pelas duas da tarde nesse mesmo carro. Foram informações muito perigosas que
ninguém ousaria dar, porém Calunga houvera prometido comida e cigarros para o
velho. Pensava descobrir tudo e contar para a polícia. Ela parou diante do barraco
que o velho indicara se preparando para espreitar. Nesse instante, duas fortes
sirenes rasgaram o ar, a porta do barraco se abriu e os irmãos saíram, vendo-a ali
parada.
- Ela trouxe eles! – falou um dos sequestradores.
O outro fez movimento de puxar o revólver e Calunga pulou para o lado,
procurando se esconder atrás de outro barraco. Ele atirou e a bala foi cravar na
madeira. Ele deu mais dois passos e apontou de novo para Calunga.
- Parem, não atirem! – gritou o policial da janela do carro que já se aproximava.
Os dois não obedeceram, atiraram na polícia e correram rua acima. A polícia
respondeu ao fogo e os bandidos correram mais.
- Atrás deles, peguem a negrinha!
- Eles pensa que eu to com eles. Não vou deixar me pegar! – resmungou,
enfiando-se entre barracos e cercas, invadindo quintais!
Inútil tentar descrever o estado de espírito de Almeida e Luiza, mas pelos rostos
consumidos se tinha uma pequena idéia do turbilhão depressivo que deles se
apossara e do remorso que neles entrara. Num martírio sem fim, Luiza ficava a
vigiá-la dia e noite, mortificando-se ao lado da criança.
Nessa noite o tempo piorara, uma chuva intensa derramava-se pela cidade. O
frio se intensificara e os agasalhos coloriam toda a gente. Pela madrugada, Luiza
vencida pelo cansaço, dormia sentada com a cabeça apoiada no sofá, de corpo
meio estirado e calcanhares apoiados no chão. Rosinha se remexeu e murmurou:
- Calunga!
Os olhos da criança se abriram e agitada sentou-se. Com movimentos bruscos
foi arrancando os tubos dos braços. Os lábios descerraram riso estranho e um brilho
de loucura ocupava o encanto de seu olhar. Jogando a coberta ao chão, pulou da
cama, e cambaleando qual ébrio lançou-se em direção da dupla porta que antecedia
pequena sacada, arremessada sobre o pátio interno do hospital.
- Calunga!
Torcendo o trinco, abriu a ambos os lados, parando sobre a soleira de mármore.
O vento gelado atingiu-a em cheio e um jorro da chuva ensopou seu rosto e peito.
Luiza, sentindo aquele impacto, pulou assustada do sofá.
Rosinha, meu Deus, que está fazendo?
Correndo para a criança alcançou-a no justo instante em que ela desabava,
amparando-a antes que atingisse o chão, trazendo-a de volta para a cama.
No terceiro dia, após aquele episódio, Rosinha abriu os olhos perto da meia-
noite. Luiza arcou-se sobre o leito e sussurrou para Almeida que cochilava no sofá.
Ambos fitaram-na a espera de algo. Ela permaneceu olhando para adiante, como se
visse alguma coisa invisível, atraindo súbita luminosidade e esboçando um sorriso
brando e fácil, como antes fora o seu. Esperançado, Almeida pôs-lha a mão na testa
e estranhamente não lhe sentiu quentura alguma. Rosinha forçou um movimento
tentando levantar a cabeça, ainda estampando o sorriso.
Tão logo se viu segura pela amiga uma corrente de energia percorreu-a
fortalecendo-a e ela se foi coberta por vestes azuis em vestido de gazes
reverberante!
- Você demorou, Calunga, pensei que nunca mais a veria!
- Agora ta tudo bem, eu vou levar você pra um lugar onde eles vem lhe buscar.
Seguiram por lugares e cores, flutuando mais do que andando, de mãos dadas
e felizes. Em certo lugar Calunga parou:
- Aqui, Rosinha! Prá lá eu não posso seguir, só você. Eles deve ta vindo!
- Quem? – atentou pela primeira vez ao fato.
- Eles! Olha lá, ta vindo!
Duas formas iridescentes desprendendo luz e beleza em tons distintos
chegaram e as envolveram.
- De novo livre do corpo – falou a primeira delas, a mais azulada.
- Sabe-Tudo, você?
- Purificada e liberta! – disse a segunda, a mais dourada.
- Áurea, você também?
- Sim, Rosinha, como sempre juntos de você – disse Sabe-Tudo
- Mas por que a vida lá embaixo, o sofrimento, aquelas coisas todas?
- Foi necessário, criança, para você e para o mundo. Agora que triunfou a
levaremos de volta ao verdadeiro lar, seu planeta, seu mundo azul! – explicou
Áurea.
- E Calunga? – questionou preocupada.
- Eu fico, Rosinha. Eles me disse que tenho de ajudar os meu e outros mais.
Vou ter muitas coisa pra fazer, eu sou daqui, esse mundo é o meu!
- Eu vou poder voltar para visitá-la?
- Claro, minha menina, sempre que as condições astrológicas assim permitirem
– informou Sabe-Tudo. Ela alegrou-se e se abraçou à amiga.
- Vamos então? A nave está esperando! – perguntou Sabe-Tudo.
- Vamos! Respondeu a criança.
Eles a envolveram em dois feixes de luz e ela refulgiu. E como uma pluma
ergueram-na e se desprenderam para o alto. Era um voo mais do que fácil e ela
olhou para baixo vendo Calunga cada vez mais distante, acenando com alegria e
felicidade.
* * *
Com a morte da filha, Almeida isolou-se por algum tempo. Deixou a mansão e
largou a direção da fábrica a cargo de seu vice-presidente. Ninguém sabia por onde
ele se enfiara, nem mesmo Luiza. Depois ele voltou magro e abatido. Chamou a
governanta e comunicou-lhe ter pensado e sofrido muito, não desejando morar mais
nesse lugar onde vira a esposa e a filha morrer e onde somente recordações tristes
encheriam sua vida. Lembrando Rosinha, e o que ela certamente aprovaria, iria
transformar a propriedade num grande orfanato, com isso talvez conseguisse
amenizar em si o tremendo remorso que carregava na alma.
Assim foi feito. Logo a propriedade foi mudada em alguns aspectos com
moderno projeto adaptado à nova situação. Muitas crianças encheram de outra vida
as dependências da mansão. Bosque e pomar ecoavam suas vozes em horas de
lazer e aprendizado ao ar livre. Luiza dirigia e ocupava-se. O orfanato tinha
voluntários de ensino, assistência médica e tudo mais que necessitasse para a
formação de futuros cidadãos e cidadãs. E Luiza viu desfilarem ante seus olhos
muitos corpinhos desprezados por pais egoístas ou visitados pela fatalidade,
amando-os profundamente com carinho e tolerância. Almeida cumpria fielmente a
promessa e nada deixava faltar-lhes, porém jamais voltara ao lugar, embora se
casasse novamente e tivesse a felicidade de ser pai três vezes.
Rayom Ra.