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Ciência&Conhecimento Belo Horizonte v. 1 n. 3 p.

1-160 Maio/2004
MISSÃO

"Contribuir para o desenvolvimento do País e para a construção


da cidadania, formando profissionais capacitados e atualizados,
promovendo a ciência e a cultura e participando ativamente do
processo de melhoria de vida da população".

VALORES

Respeito
Comprometimento
Transparência
Responsabilidade social
CIÊNCIA & CONHECIMENTO
Publicação semestral da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte e do Centro de Educação
Tecnológica Estácio de Sá de Belo Horizonte.
Ano 1, n. 3, maio de 2004
Diretor Geral Conselho Editorial
Carlos Alberto Teixeira de Oliveira Carlos Alberto Teixeira de Oliveira
Carlos Henrique Vasconcelos Diniz
Diretor Acadêmico Cássia Andrade Botelho
Rúbio de Andrade Cláudio Gontijo
Luciana de Oliveira
Diretor Administrativo-Financeiro Maria Lúcia Ferreira
Estevão Rocha Fiúza Paulo Vítor de Lara Resende
Rúbio de Andrade
Diretor do CETES - Centro de
Educação Tecnológica
Consultores neste número
Luís Márcio Ribeiro Vianna
Cândida Emília Borges Lemos, Carlos Magno
Coordenadores de Curso Ribeiro, Célia Maria Alves e Alves, Cláudio
Adriano Mendonça Joaquim; Gontijo, Giani David Silva, Josana Matedi
Cândida Emília Borges Lemos; Cássia Prates Dias, Lauro Meller, Marcelo Campos
Andrade Botelho; Carlos Henrique Gallupo, Maria Lúcia Ferreira, Mauro Calixta
Vasconcellos Diniz; Flávio de Oliveira Pires; e Roniere Silva Menezes
Isabel Montandon Soares; José Alfredo
Baracho Júnior; Luciana de Oliveira; Normalização e Ficha Catalográfica
Margarida Maria Drummond Câmara; Cláudia Tenaglia Mariani Souza
Matilde Meire Miranda Cadete; Mauro Paula Souza da Silva
Calixta Tavares;
Paulo Antônio Peixoto Queiroga. Programação Visual
Marcelo Ezequiel Alves
Secretária Geral
Paula Nolêto
Criação da Capa
Agência Experimental de Publicidade e
Bibliotecária
Propaganda
Cláudia Tenaglia Mariani Souza

Gerente Acadêmica Obra da Capa


Simone Maris Serra Duarte Quadro da artista plástica Ângela Geo, 1º lugar
no Júri Técnico da 3ª UniversidArte - Arte por
Coordenação Geral Toda Parte, projeto de extensão cultural da
Centro de Pesquisa e Extensão Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte.
Paulo Vítor de Lara Resende (Foto: Davi Martins)

Tiragem
1.000 exemplares

CIÊNCIA&CONHECIMENTO / Faculdade Estácio de Sá


de Belo Horizonte / MG, v. 1, n.3, maio 2004 — Belo
Horizonte: Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte,
2004.

Semestral

1. Cultura. 2. Produção acadêmica 3. Iniciação


científica. 4. Ensino Superior — Periódico
SUMÁRIO

Apresentação
Carlos Alberto Teixeira de Oliveira ....................................................................................7

Editorial ...................................................................................................................................9

ARTIGOS

A “nova economia internacional”: uma visão crítica


Cláudio Gontijo ...............................................................................................................10

A ironia em John Lennon


Lauro Meller . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

Criatividade e Rede: expressão e intertextualidade em ambientes digitais


Rodrigo Fonseca e Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

Encontros e confrontos entre saberes no Projeto Doces Matas: um diálogo possível?


Luciana Braga Paraíso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70

Brasil, Portugal e os processos identificatórios


Ricardo Moreira Figueiredo Filho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94

Criminalização seletiva
Flávia Teixeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116

A Política Interna de Turismo no Brasil / 1992 - 2002


José Henrique da Silva Júnior . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128

“Política Internacional vista da Europa”


Dr. Itamar Franco - Embaixador do Brasil na Itália . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145

REGRAS PARA PUBLICAÇÃO NA REVISTA CIÊNCIA&CONHECIMENTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157


7

APRESENTAÇÃO
ste volume III da Revista Ciência&Conhecimento, seguindo as diretrizes editoriais adotadas

E desde o primeiro, como disseminadora do conhecimento na área das ciências sociais e


veículo de debate e de estudos, vem grandemente enriquecido por colaborações
diversificadas com um conteúdo programático e doutrinário, quais nos convidam ao debate e à
reflexão.
A ampla liberdade de expressão e a autonomia para escolha dos temas postos a análise
possibilitaram aos autores desenvolver não apenas uma abordagem científica do conhecimento
humano, como também a emanação de conceitos próprios, sem qualquer restrição.
Por isso, dentro deste ângulo de visão, aqui desfilam versões abertas sobre temas variados, como
o comércio internacional, a política internacional vista a partir da Europa, a criatividade na Internet,
as estratégias de integração do conhecimento, a criminalização seletiva, os arranjos locais para
promoção turística e até mesmo uma visão irônica de John Lennon.
O ex-presidente Itamar Franco, em conferência pronunciada para os membros do Conselho de
Integração Social da Faculdade Estácio de Sá de BH, transcrita na sua integralidade para esta
revista, nos dá uma mostra do que é hoje a política internacional, como surgiu o unilateralismo dos
Estados Unidos, as razões da invasão do Iraque, o papel da União Européia no concerto das
nações, entre outros temas da atualidade mundial.
Cláudio Gontijo nos remete à nova economia internacional, mostrando as inconsistências da teoria
neoclássica do valor e da distribuição, e a predominância dos fluxos de comércio entre os países
industrializados, em relação ao comércio entre os países subdesenvolvidos.
Lauro Meller analisa o lado irônico de John Lennon, presente em todos os seus trabalhos e no
convívio de sua intimidade. Esta face menos conhecida de John Lennon influenciou também no
comportamento de uma banda que acabou por se tornar grande fenômeno de vendas no mundo
inteiro.
Rodrigo Fonseca e Rodrigues faz reflexões sobre criatividade e rede, explicando como se dão as
relações através da Internet e da informática, e como se aclara o ambiente de virtualidade dentro
da geografia eletrônica. Para ele, as redes telemáticas podem ser imaginadas através da metáfora
advinda da biologia.
Luciana Braga Paraíso propõe uma discussão entre o saber técnico-científico e o tradicional para se
conhecer melhor a biodiversidade. Ela aponta quais seriam, na sua visão, as melhores estratégias
participativas para se integrar o conhecimento da realidade local ao conhecimento dos agentes
externos, com vistas a se compreender melhor a relação entre o nome e o meio ambiente.
Ricardo Moreira Figueiredo Filho, baseando-se em fontes literárias, faz algumas considerações
sobre como se deu o processo civilizacional. Para ele, este processo é constituído de plasticidade e
mutabilidade, que lhe permitem reconhecer formas imagéticas e identificatórias diversas. Tal
fenômeno se dá na busca de uma pontuação voltada para a acomodação de conceitos de cultura
e civilização, no Brasil e em Portugal.
Flávia Teixeira fala da criminalização seletiva, identificando contradições com a dogmática penal.
Mas, considera que o processo de criminalização acaba sendo apontado como fruto de um controle
social seletivo e discriminatório, e até mesmo estigmatizante.
José Henrique da Silva Jr. mostra que são importantes instrumentos de promoção turística os
Arranjos Produtivos Locais. E cobra a busca de condições técnicas para o desenvolvimento do
turismo. Tal iniciativa, porém, se torna distante, na medida em que o estado procura se colocar cada
vez mais distante, deixando até mesmo políticas por conta do mercado.
Da leitura destas colaborações, deduz-se que os conceitos aqui emitidos, de inteira
responsabilidade de seus autores, merecem profunda reflexão, dado o seu objetivo de colocar a
exame teses e assertivas que, certamente, podem influenciar no comportamento humano.

Carlos Alberto Teixeira de Oliveira


Diretor Geral
9

EDITORIAL
terceiro número da revista Ciência & Conhecimento confirma o seu

O amadurecimento e a sua consolidação. Neste exemplar, é possível perceber


a apuração técnica e científica da publicação, sempre feita com esmero e
rigor. Coincidentemente, é um número festivo, uma vez que Comissão Avaliadora do
MEC recomendou o reconhecimento dos Cursos de Graduação em Administração
Geral, Comércio Exterior e Administração Hoteleira da Faculdade Estácio de Sá de
Belo Horizonte.

Para comemorar o sucesso da Instituição e da publicação, foram selecionados os


textos que aqui se encontram. Incluiu-se também a conferência proferida pelo Exmo.
Sr. Itamar Franco, embaixador do Brasil na Itália, realizada durante reunião do
Conselho Superior de Integração Social da Faculdade Estácio de Sá de Belo
Horizonte, no dia 14 de maio último. A publicação do pronunciamento do ex-
presidente, intitulado "Política Internacional Vista da Europa", revela o compromisso
da revista Ciência & Conhecimento com a verdade, a reflexão, o debate e o futuro do
Brasil.

Gratos pela participação de nossos colaboradores, despedimo-nos convictos de que


nossa revista tem conseguido dar sua contribuição para o cumprimento da missão
da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte: "contribuir para o desenvolvimento
do país e para a construção da cidadania, formando profissionais capacitados e
atualizados, promovendo a ciência e a cultura e participando ativamente do processo
de melhoria de vida da população".

Conselho Editorial

Carlos Alberto Teixeira de Oliveira


Carlos Henrique Vasconcelos Diniz
Cláudio Gontijo
Luciana de Oliveira
Luiz Carlos Sizenando Silva
Maria Lúcia Ferreira
Paulo Vitor de Lara Resende
10
A “nova economia internacional”:
uma visão crítica
Cláudio Gontijo 1

Resumo: Este artigo discute a “Nova Economia Internacional”


(NEI), desenvolvida a partir de contribuições de Paul Krugman e
Elhanan Helpman de fins da década de 1970. Adotando como
hipóteses rendimentos crescentes de escala e concorrência
monopolista, a NEI explica o comércio internacional entre os
países industrializados e os países subdesenvolvidos através do
modelo de Heckscher-Ohlin e entre os países desenvolvidos entre
si através das economias de escala. Apesar da adoção de hipóteses
mais realistas, a NEI pouco avança em termos da explicação do
comércio internacional no pós-guerra, pois: (i) deixa à História e aos
acidentes a determinação do padrão de comércio entre os países
industrializados; (ii) erra em relacionar economias de escala e
concorrência monopolista, que supõe pequenas empresas e
diferenciação de produtos; (iii) desconsidera as economias de escala
internas à empresa, que conduzem à formação de monopólios e
oligopólios; (iv) desconhece os problemas de compatibilidade entre
a hipótese de rendimentos crescentes e a teoria econômica
neoclássica; (v) confunde vantagens comparativas com o modelo de
Heckscher-Ohlin; (vi) ignora que o argumento de economias de
escala requer vantagens absolutas e é contrária ao livre comércio;
(vi) ignora as críticas neo-ricardianas à teoria neoclássica do valor,
que representa o fundamento da sua construção teórica.

Palavras-chave: Nova Economia Internacional, Comércio


Internacional, Vantagens Comparativas, Modelo Heckscher-Ohlin,
Economias de escala, Concorrência Monopolista.

Abstract: This article discusses the “New International Economics”


(NIE) of Krugman, Helpman, Obstfeld, and others by adopting the
hypotheses of economies of scale and monopolist competition,
NIE explains trade between industrialized countries and
underdeveloped countries using the Heckscher-Ohlin model and
trade among industrialized countries through economies of scale.
In spite of using more realistic hypotheses, NIE models contribute
little to explain international trade in the post-war period since: (i) it
leaves to History and to accidental factors the determination of the
patterns of trade among industrial countries; (ii) it is mistaken when
it relates economies of scale to monopolistic competition, which
supposes small firms and product differentiation; (iii) it does not take
into account the economies of scale that are internal to the firm,

1
PhD em Ciências
Econômicas.

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11
which leads to monopoly and oligopoly; (iv) it ignores that
economies of scale are not very suitable to the neoclassical
economic theory; (v) it mistakes comparative advantages with the
Heckscher-Ohlin model; (vi) it ignores that economies of scale
require a theory of absolute advantages and are incompatible with
free trade; (vii) it ignores the neo-Ricardian criticisms to neoclassical
economics, which represents the theoretical bases of NIE.

Key-words: New International Economics, International Trade,


Comparative Advantages, Heckscher-Ohlin Model, Economies of
Scale, Monopolist Competition.

INTRODUÇÃO

A teoria do comércio internacional tem sido dominada


desde a década de 1920 pelo chamado modelo de
Heckscher-Ohlin, apesar de suas enormes dificuldades
em explicar a realidade, não apenas em razão de suas
hipóteses extremamente restritivas, mas também
devido à falta de correspondência aparente entre as
previsões baseadas em seus resultados e o chamado
“mundo real”. Para começar, o modelo se fundamenta
nas hipóteses de concorrência perfeita e economias de
escala constantes, que pressupõem que as empresas
sejam pequenas, no sentido de não poderem, por sua
atuação individual, afetar os preços dos bens e serviços,
o que contrasta vivamente com a economia dominada
por grandes corporações, que tem caracterizado o
mundo moderno. A idéia de que a GM e a Ford, para
mencionar apenas algumas das gigantescas empresas
do setor automobilístico, sejam tomadoras de preços
soa muito mal, mesmo para os ouvidos interessados em
escutar apenas o que é “politicamente correto”. Em
segundo lugar, apesar da existência de um mercado de
tecnologia a nível mundial, a hipótese de que todos os
países tenham acesso às mesmas funções de produção
também parece difícil de aceitar, sendo inverossímil
supor que as economias de Bangladesh e Japão se
distingam apenas pelas diferentes dotações de fatores.

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Quanto às previsões do modelo, embora o chamado
“paradoxo de Leontief ” tenha sido absorvido - não sem
causar certo constrangimento, cumpre dizer - o
contraste entre a idéia de que o comércio se faria
essencialmente entre os países ricos em capital - os
países industrializados - e aqueles ricos em mão-de-obra
e/ou recursos naturais - os países subdesenvolvidos - e a
realidade da concentração das correntes de comércio
entre os próprios países industrializados nunca deixou de
chamar a atenção mesmo dos menos críticos. Afinal, um
modelo que tenta explicar o comércio internacional
como resultante das diferenças nas dotações de fatores é
claramente insuficiente para dar conta do comércio entre
os países que, em princípio, possuem a mesma dotação.

Embora esses - e outros - problemas da teoria das


vantagens comparativas apoiada no modelo de
Heckscher-Ohlin não tenham impedido que a mesma
continue dominando o pensamento convencional,
assistiu-se na década de 1980 ao desenvolvimento de
uma série de modelos que procuravam ser mais
realistas, tomando em conta as economias de escala,
com o conseqüente abandono da hipótese de
concorrência perfeita. A chamada “Nova Economia
Internacional” seria anunciada por dois artigos de
Paul Krugman, “Rendimentos Crescentes,
Concorrência Monopolista e Padrões de Comércio”,
publicado no Journal of International Economics, em
1979, e “Economias de Escala, Diferenciação de
Produtos e Padrões de Comércio”, publicado na
American Economic Review, no ano seguinte,
apesar da obra de Paul Krugman e Elhanan Helpman,
Estrutura de Mercado e Comércio Exterior :
Retornos Crescentes, Concorrência Imperfeita e
Economia Internacional, ser tradicionalmente tida
como o marco inicial dessa nova teoria.

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O objetivo deste artigo consiste em examinar
criticamente, ainda que de forma sintética, a “Nova
Economia Internacional” criada por Krugman e
Helpman, verificando a sua consistência interna e a
adequação de suas hipóteses. Como se trata de um
artigo endereçado preferencialmente aos alunos de
graduação dos cursos de Economia, Comércio Exterior
e Relações Internacionais, ele se fundamenta largamente
no manual de Krugman, P. e Obstfeld, M., Economia
Internacional : Teoria e Prática e em obras clássicas,
deixando as referências a textos mais especializados
para as referências bibliográficas fornecidas ao final.

Este artigo desdobra-se em cinco seções, além desta


introdução. Na seção 2 apresenta-se o conceito
marshalliano de economias de escala num contexto de
concorrência perfeita e de concorrência monopolista;
na seção 3 mostra-se como se determina o número de
empresas assumindo concorrência imperfeita,
enquanto na seção seguinte apresenta-se a teoria do
comércio internacional que se construiu a partir da
conjugação de rendimentos de escala e concorrência
monopolista. As críticas à nova abordagem são
apresentadas na seção 5 e as conclusões na seção 6.

RENDIMENTOS CRESCENTES DE ESCALA E


REGIME DE CONCORRÊNCIA

Como salientado, a “Nova Economia Internacional”


se fundamenta nas hipóteses de concorrência
monopolista (ou concorrência imperfeita) e de
rendimentos crescentes de escala, procurando
explicar preferencialmente as razões pelas quais o
fluxo de comércio internacional entre os países
desenvolvidos é muito maior do que entre aqueles e
os países subdesenvolvidos.

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A idéia de rendimentos de escala originou-se em
Marshall, que, nos Princípios de Economia — obra
paradigmática da escola neoclássica na Inglaterra até a
década de 30 — se defronta com as dificuldades
associadas à extensão da “lei” dos rendimentos
decrescentes a outros setores que não à exploração de
recursos naturais, particularmente à indústria. Embora
aceite a “lei” dos rendimentos decrescentes, Marshall
segue a tradição clássica, restringindo a sua aplicação à
produção de produtos primários, ao mesmo tempo em
que trata da indústria como se essa atividade se
encontrasse sujeita a rendimentos crescentes, cujo
fundamento são as chamadas economias de escala. Isso
permite, inclusive, que Marshall derive três tipos de
2
Nas palavras de Marshall,
curvas de oferta, segundo prevaleçam rendimentos
cada aumento da riqueza decrescentes, rendimentos crescentes ou rendimentos
“tende de diversos modos a
tornar um aumento maior constantes (resultantes da compensação dos
mais fácil do que antes” rendimentos crescentes por rendimentos decrescentes).
(1984, v. 1, p. 265). De mais
a mais, “cada aumento da
riqueza e cada crescimento
da população e da
MARSHALL (1984, v. 1, p. 229) divide as economias
inteligência do povo que se derivam de um aumento da escala de produção
aumentam as facilidades
para alcançar uma
em duas classes: primeira, as dependentes do
organização industrial desenvolvimento geral da indústria; e segunda, as
altamente desenvolvida, a
qual, por sua vez, muito
dependentes dos recursos das empresas que a ela se
acrescenta à eficiência dedicam individualmente das suas organizações e
coletiva do capital e do
trabalho” (MARSHALL,
eficiência de suas administrações. Podemos chamar as
1984, vl. 1, p. 265). primeiras de “economias externas”, e as últimas de
3
“A característica das
indústrias manufatureiras, “economias internas”. Entre as economias externas,
que faz com que estas destacam-se a própria população, quando tenha saúde e
ofereçam geralmente os
melhores exemplos das vigor físico e moral e receba educação industrial; a
vantagens da produção em riqueza social2; a aglomeração das indústrias em
larga escala, é a sua
possibilidade de escolher determinadas localidades. Quanto às economias
livremente a localidade
onde vão trabalhar”
internas, estas originam-se da ampliação da divisão do
(MARSHALL, 1984, v. 1, p. trabalho, da mecanização crescente do processo
239).
4
“As principais vantagens da
produtivo; da possibilidade de escolher livremente a
produção em massa são a localidade onde se estabelecer;3 da economia de mão-
economia de mão-de-obra,
a economia de máquina e a
de-obra, de máquinas e de insumos;4 das vantagens que
economia de materiais...”
(MARSHALL, 1984, v. 1, p.
239).

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se obtém na compra e na venda; e no uso de mão de
5
5
“As economias obtidas por
obra especializada;6 na concentração da alta direção da uma boa organização de
empresa nas questões mais relevantes ao sucesso do compras e de vendas
figuram entre as principais
empreendimento,7 que são tão mais acessíveis aos causas da tendência atual
estabelecimentos industriais quanto maior sejam as suas para a fusão de muitas
empresas da mesma
dimensões.8 indústria ou comércio em
uma única entidade
gigantesca; e também das
Um aspecto importante é que, em geral, economias federações comerciais de
várias ordens, inclusive os
internas e externas se encontram entrelaçadas, de forma cartéis alemães e as
que “um aumento no volume global da produção de cooperativas centrais. Elas
também têm encorajado a
qualquer coisa geralmente aumenta o tamanho e, concentração dos riscos
dos negócios nas mãos de
portanto, as economias internas de semelhante empresa grandes capitalistas que
representativa; e que aumentará sempre as economias sub-empreitam o trabalho a
ser feito por pessoas de
externas, às quais a firma tem acesso e, assim, a capacita menor porte”
a produzir a custo de trabalho e sacrifício menor que (MARSHALL, 1984, v. 1, p.
242).
antes” (MARSHALL, 1984, v. 1, p. 267-268). 6
“O grande industrial tem
muito mais probabilidades
que um pequeno de
A Figura 1 ilustra a hipótese marshalliana de conseguir homens com
excepcionais aptidões
retornos crescentes de escala, comparando as naturais para que executem
curvas de custo marginal e custo médio de duas a parte mais difícil de seu
trabalho, aquela de que
empresas de escalas diferentes. Supondo que o nível mais depende a reputação
do seu estabelecimento”
de produção de eficiência máxima da empresa A, ou (MARSHALL, 1984, v. 1, p.
seja, aquele que correspondente ao custo médio 242).
7
“O dirigente de uma
mínimo da mesma, seja x*A e que, no caso da grande empresa pode
empresa B, seja x*B, de forma que x*A < x*B, a reservar toda a sua energia
para os maiores e mais
hipótese de economias de escala significa que o fundamentais problemas de
sua indústria...”
custo médio mínimo da empresa A, CMe*A, é (MARSHALL, 1984, v. 1, p.
maior do que o custo médio mínimo da empresa B, 243).
8
Embora Marshall reco-
CMe*B. Em outras palavras, diz que um setor está nheça que a manufatura
sujeito a rendimentos crescentes de escala quando a seja o reino das economias
de escala, não se olvida de
tecnologia mais eficiente em dada escala de casos (exceções) em que a
pequena (ou média)
produção possui custo médio mínimo inferior ao empresa não é suplantada
custo médio mínimo de toda tecnologia mais pela grande. “Há, contudo,
algumas indústrias nas
eficiente em escalas de produção inferiores, de quais as vantagens advindas
forma que: se x*B > x*A, segue-se que CMeB < da economia de maquinaria
para uma grande fábrica
CMeA. desaparecem logo que ela
atinge um tamanho
moderado” (MARSHALL,
1984, v. 1, p. 241).

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Assumindo-se, então, a existência de infinitas técnicas


produtivas para cada nível de produção, poder-se-ia
conceber a curva de oferta marshalliana de longo prazo
como a curva que corresponde aos pontos de custo
médio mínimo das tecnologias mais eficientes em cada
nível de produção (curva SS da Figura 5, mais adiante).
Ocorre, porém, que a curva de oferta de longo prazo
definida nestes termos somente é compatível com
economias externas à empresa (mas internas à indústria)
uma vez que somente em regime de concorrência
perfeita é que a oferta de longo prazo corresponde ao
ponto de custo médio mínimo.

De fato, somente assumindo que os bens e serviços são


homogêneos e que a atuação de cada firma individual
não afete os preços de mercado é que a curva de
demanda da empresa (pp* na Figura 2) é horizontal, de
forma que a empresa é tomadora de preços. Essa
hipótese é necessária para que a curva de receita
marginal coincida com a curva de demanda e que esta,
por sua vez, coincida com a curva de receita média.
Somente neste caso é que a posição de equilíbrio da
firma no longo prazo corresponde à situação onde o
preço é igual ao custo médio (CMe) mínimo, pois neste
ponto satisfazem-se as condições de equilíbrio de curto

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prazo (ponto em que a curva de custo marginal da
firma, CMg, corta a curva de receita marginal, RMg, que
é igual ao preço de mercado, determinado pela interação
entre a oferta e a demanda) e de longo prazo (ponto em
que o preço corresponde ao custo médio, CMe).

O mesmo não ocorre se, em lugar da hipótese de


concorrência perfeita, adotar-se a hipótese de
concorrência imperfeita. A teoria da concorrência
imperfeita ou concorrência monopolista nasceu com as
obras de CHAMBERLIN (1933) e Joan ROBINSON
(1933), que procuravam encontrar novos modelos de
concorrência que substituíssem o de concorrência
perfeita, considerado insatisfatório por demasiado
irrealista. O ponto de partida da nova teoria consiste no
abandono da hipótese da homogeneidade dos
produtos, substituindo-se essa idéia pela hipótese de
que os produtos são diferenciados.

Segundo CHAMBERLIN (1933, p. 56), “uma classe


geral de produtos é diferenciada se existe qualquer base
significante para distinguir os bens (ou serviços) de um
vendedor dos de outro”. Essa diferenciação “pode
basear-se em certas características do produto, tais como
características patenteadas exclusivas; marcas registradas;
nomes registrados; peculiaridades da embalagem, se

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tiver, ou singularidade na qualidade, design, cor, ou estilo.
Pode também existir nas condições de venda"
(CHAMBERLIN, 1962, p. 56), tais como a conveniência
da localização do vendedor, o caráter geral do
estabelecimento, a reputação do vendedor, etc. “Quando
esses dois aspectos da diferenciação do produto são
considerados, é evidente que virtualmente todos os
produtos são diferenciados, ao menos levemente, e que
a diferenciação é de considerável importância num
amplo espectro da atividade econômica”.
(CHAMBERLIN, 1962, p. 56-57)

As conseqüências da diferenciação de produtos para a


formação de preços são profundas, podendo ser
visualizadas através da Figura 3. Conforme se verifica,
como a curva de demanda (DD) é negativamente
inclinada, a curva de receita marginal (RMg) também o é,
tendo o dobro da inclinação da curva da demanda.
Assumindo, então, o equilíbrio de curto prazo, que é
dado pela igualdade entre a receita marginal e o custo
marginal, verifica-se que o preço de equilíbrio está dado
por p*, enquanto a quantidade de equilíbrio é x*. Ora, se
prevalecesse a concorrência perfeita e o preço de
equilíbrio fosse p*, a quantidade de equilíbrio seria x*,
uma vez que, conforme visto anteriormente, a curva de
demanda da empresa em regime de concorrência perfeita
seria uma reta. Inversamente, se prevalecesse o regime de
concorrência perfeita e a quantidade produzida fosse x*,
o preço de equilíbrio seria p**, uma vez que nesse regime
o preço é igual à receita marginal. Através desse artifício,
conclui-se que em regime de concorrência imperfeita os
preços são mais elevados e a quantidade produzida
menor do que em condições de concorrência perfeita.

Conforme afirma CHAMBERLIN (1933, p. 88), “se


não houvesse elementos monopolistas, os preços

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corresponderiam ao custo de produção sob as condições
de máxima eficiência” (...). “Os elementos monopolistas
inevitavelmente elevam os preços, ainda que os lucros do
produtor individual não sejam maiores, sendo
exatamente iguais nos dois casos” (1962, p. 88), isto é,
em condições de concorrência perfeita e imperfeita. A
conclusão é, pois, que “o preço é inevitavelmente mais
elevado e a escala de produção menor sob concorrência
imperfeita do que sob concorrência pura”.

Pela Figura 3, pode-se verificar que, no exemplo em


questão, o empresário estaria obtendo lucros
extraordinários, uma vez que o seu custo médio está
dado por 0A (= x*C), que é menor do que o preço p*.
Multiplicando-se, então, o lucro unitário (Ap*) pela
quantidade produzida, x*, obtém-se o sobre-lucro, que
representa a área sombreada. Segundo Chamberlin,
essa situação atrairia novos empresários, que entrariam
no mesmo ramo da produção. Como conseqüência,
haveria uma maior oferta de produtos nesse setor,
diminuindo, pois, a demanda para cada empresa.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004


20
Em outras palavras, haveria um deslocamento da curva
de demanda para a esquerda e para baixo (D0D0 à
D1D1 na Figura 4), o que faria com que houvesse uma
redução do preço (p0* à p1*). Uma vez que a curva de
custo médio é decrescente até o ponto de custo médio
mínimo que, conforme visto acima, é menor do que o
custo médio em condições de concorrência imperfeita,
a diminuição da quantidade produzida (x0* à x1*)
resultante da queda da demanda causaria uma elevação
do custo médio (CMe0* à CMe1*). Esse processo
continuaria até que a curva da demanda se tornasse
tangente à curva de custo médio, pois nesse ponto
haveria a identidade entre preço e custo médio, de
forma que não haveria nem lucro extraordinário nem
prejuízo — o ponto de equilíbrio de longo prazo teria
sido atingido.

Não é difícil verificar que também o modelo de


concorrência monopolista descrito acima é compatível
com uma curva de oferta de longo prazo decrescente.
A diferença reside em que, enquanto a curva de oferta

BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


21
de longo prazo compatível com o regime de
concorrência perfeita corresponde aos pontos de custo
médio mínimo das tecnologias mais eficientes em cada
nível de produção, a curva de oferta de longo prazo em
regime de concorrência monopolista corresponde aos
pontos de tangência das curvas de demanda com as
curvas de custo médio (Figura 5). Uma vez que,
conforme salientado acima, esta tangência ocorre à
esquerda do ponto de custo médio mínimo, tem-se que
a curva de oferta de longo prazo em regime de
concorrência imperfeita situar-se-á acima da curva de
longo prazo correspondente em regime de
concorrência perfeita, de modo que, para o mesmo
nível de produção, os preços serão mais elevados
quando no caso de concorrência monopolista.

DETERMINAÇÃO DO NÚMERO DE
EMPRESAS NO MERCADO

Obviamente que o deslocamento da curva de demanda


para a esquerda e para baixo na hipótese de lucros
extraordinários auferidos por empresas que ofertam
produtos diferenciados dar-se-ia pela entrada de novas
empresas no mercado, da mesma forma que o

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004


22
deslocamento dessa curva para a direita e para cima na
hipótese contrária seria o resultado da saída de firmas
do setor. Supondo, então, que as empresas do setor
tenham determinada escala, ou seja, possuam a mesma
função de produção, pode-se determinar, a partir dos
resultados da análise desenvolvida na seção 2, o
número de empresas que operam no segmento.

De fato, uma vez que, como resultado da entrada de


novas empresas e, portanto, do aumento da
concorrência entre elas e da redução da demanda pelo
produto de cada uma, cai o preço, tem-se uma curva
decrescente que retrata a relação entre preço do
produto, p, e o número N de empresas no mercado
(PP, na Figura 6). De forma análoga, uma vez que o
custo médio se eleva com a redução da produção, que
resulta da queda da demanda pelo produto da empresa
individual como conseqüência da entrada de novas
firmas no mercado, pode-se construir uma curva
ascendente retratando a relação entre custo médio e
número de empresas (CC). Uma vez que a condição de
equilíbrio de longo prazo consiste na igualdade entre
preço e custo médio, a interseção dessas duas curvas
indica o número de equilíbrio de empresas no
mercado, N*.

BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


23
A “NOVA ECONOMIA INTERNACIONAL”

A “Nova Economia Internacional” de Paul Krugman


parte da idéia de que, na presença de rendimentos
crescentes de escala, o modelo de concorrência
imperfeita mostra, em primeiro lugar, que o comércio
internacional possibilita o aumento da variedade de bens
disponíveis aos consumidores de cada país.
Nas indústrias em que existem economias de escala, tanto a
variedade dos bens que um país pode produzir como a escala de
sua produção são restringidas pelo tamanho do mercado.
Comercializando entre si e, portanto, formando um mercado
mundial integrado que é maior que qualquer mercado nacional
individual, os países estão aptos a livrar-se dessas restrições. Cada
país pode especializar-se na produção de uma variedade menor de
produtos do que o faria na ausência de comércio; mesmo
comprando de outros países bens que ele não produz, cada país
pode aumentar simultaneamente a variedade dos bens disponíveis
a seus consumidores. Como resultado, o comércio oferece uma
oportunidade de ganhos mútuos mesmo quando os países não
diferem em recursos ou tecnologia. (KRUGMAN; OBSTFELD,
1997, p. 135)

Para começar, “o número de firmas em uma indústria


monopolisticamente competitiva e os preços que elas
cobram são afetados pelo tamanho do mercado”, de
forma que, “em mercados maiores, haverá
normalmente mais firmas e mais vendas por firma” e
aos consumidores “serão oferecidos preços mais baixos
e uma variedade maior de produtos” (KRUGMAN;
OBSTFELD, 1997, p. 135). Tendo em vista que, “se o
mercado aumenta enquanto o número de firmas é
mantido constante, as vendas por firma aumentarão e o
custo médio de cada uma, portanto, declinará”, a
abertura comercial causa um deslocamento da curva CC
para a direita, sem que, contudo, a curva PP se mova
(KRUGMAN; OBSTFELD, 1997, p. 136). Na nova
posição de equilíbrio (ponto B na Figura 7), “uma

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004


24
variedade maior de produtos está disponível a um preço
inferior” (KRUGMAN; OBSTFELD, 1997, p. 136).

De mais a mais, “as economias de escala interagem


com as vantagens comparativas para determinar o
padrão de comércio” (KRUGMAN; OBSTFELD,
1997, p. 140). No caso da concorrência perfeita, o
padrão de comércio segue a dotação de fatores,
conforme esclarece o modelo de Heckscher-Ohlin.
Ocorre, porém, que “a indústria de manufaturas não é uma
indústria perfeitamente competitiva produzindo um produto
homogêneo. Ao contrário, ela é uma indústria de concorrência
monopolística na qual diversas firmas produzem produtos
diferenciados. Por causa das economias de escala, nenhum país
consegue produzir toda a variedade de produtos manufaturados
por si mesmo; então, apesar de ambos os países poderem produzir
algumas manufaturas, eles estarão produzindo coisas diferentes”.
(KRUGMAN; OBSTFELD, 1997, p. 140)

Para aprofundar o entendimento deste tópico, suponha


que a economia mundial seja composta de dois países
(Local e Estrangeiro), sendo que, no primeiro, a relação
capital/trabalho seja maior do que no segundo. Supõe-
se que existam apenas dois fatores produtivos (capital e

BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


25
trabalho) e somente duas indústrias, manufaturas e
alimentos, sendo que o setor manufatureiro é mais
capital-intensivo do que o setor de alimentos. Se os
produtos fossem homogêneos, o modelo de Heckscher-
Ohlin prevaleceria e o país Local "teria uma oferta
relativa maior de manufaturas, exportando-as, e
importando alimentos" (KRUGMAN; OBSTFELD,
1997, p. 140).
Contudo, se assumirmos que as manufaturas são um setor de
concorrência monopolística (os produtos de cada firma são
diferenciados daqueles das demais), o país Local continuará sendo
um exportador líquido de manufaturas e importador de alimentos.
No entanto, as firmas estrangeiras do setor de manufaturas
produzirão produtos diferentes daqueles que as firmas do país Local
produzem. Pelo fato de os consumidores Locais preferirem as
variedades do Estrangeiro, o país Local, apesar de ter um excedente
de comércio nas manufaturas, importará dentro da indústria de
manufaturas (KRUGMAN; OBSTFELD, 1997, p. 140).

Segue-se que o comércio internacional em regime de


concorrência imperfeita possui duas dimensões: a do
“comércio intra-indústrias”, que se dá através da troca
do setor manufatureiro, e a do “comércio inter-
indústrias”, que se dá entre o segmento manufatureiro
e o de alimentos. Essa segmentação permite tecer as
seguintes observações:

1. “O comércio ‘inter-indústrias’ (manufaturas por


alimentos) reflete as vantagens comparativas. O
padrão de comércio inter-indústrias é que o país Local,
abundante em capital, é um exportador líquido de
manufaturas intensivas em capital e um importador
líquido de alimentos intensivos em trabalho. Assim, as
vantagens comparativas continuam sendo a parte
principal da história do comércio.

2. O comércio ‘intra-indústrias’ (manufaturas por

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004


26
manufaturas) não reflete as vantagens comparativas.
Mesmo se os países tivessem a mesma razão capital-
trabalho, suas firmas continuariam produzindo
produtos diferenciados e a demanda dos
consumidores por produtos produzidos em outros
países continuaria a gerar o comércio intra-indústrias.
São as economias de escala que evitam que os países
produzam toda a variedade de produtos por si
mesmos; assim, as economias de escala podem ser
uma fonte independente de comércio internacional.

3. O padrão de comércio intra-indústrias em si é


imprevisível. Nós nada dissemos sobre qual país
produz quais bens no setor de manufaturas porque
nada dentro do modelo nos informa isso. Sabemos
apenas que os países produzirão produtos diferentes.
Uma vez que a história e os acidentes determinam os
detalhes do padrão de comércio, um componente
imprevisível do padrão de comércio é uma
característica inevitável de um mundo em que as
economias de escala são importantes. Porém, note que
nem tudo é imprevisível. Embora o padrão preciso de
comércio intra-indústrias dentro do setor de
manufaturas seja arbitrário, o padrão de comércio
inter-indústrias entre as manufaturas e os alimentos é
determinado por diferenças substanciais entre os
países.

4. A importância relativa do comércio intra-indústrias


e inter-indústrias depende de quão similares os países
são. Se o país Local e Estrangeiro forem similares nas
razões capital-trabalho, então haverá pouco comércio
inter-indústrias e o comércio intra-indústrias, baseados
nas economias de escala, será dominante. Por outro
lado, se as razões capital-trabalho são muito diferentes,
de modo que, por exemplo, o Estrangeiro se

BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


27
especialize totalmente na produção de alimentos, não
haverá comércio intra-indústrias baseado em
economias de escala. Todo o comércio será baseado
em vantagens comparativas” (KRUGMAN;
OBSTFELD, 1997, p. 141-142)

AS CONTRADIÇÕES DA “NOVA ECONOMIA


INTERNACIONAL”

Aparentemente, a “Nova Economia Internacional” de


Paul Krugman, representa um avanço significativo em
relação ao modelo de Heckscher-Ohlin, na medida em
que se abandonam as hipóteses irrealistas de
concorrência perfeita e rendimentos constantes de
escala. De mais a mais, o modelo permitiria, segundo
os seus formuladores, explicar um importante “fato
estilizado” do mundo contemporâneo: a
predominância dos fluxos de comércio entre os países
industrializados - de “dotação de fatores” semelhante
- em relação ao comércio entre os países
subdesenvolvidos, com economias de baixa relação
capital/trabalho, e os desenvolvidos, com economias
de alta relação capital/trabalho.

Na verdade, de um ponto de vista neoclássico, tem


sido reconhecido há muito que a existência de
economias de escala aumenta os ganhos do comércio
exterior, conforme salienta a “Nova Economia
Internacional”. Todavia, como apontam GRAHAM
(1923) e OHLIN (1933, cap. 3), os modelos de
comércio internacional com rendimentos crescentes
freqüentemente tornam indefinidos os padrões de
comércio. Para se observar esse fato, considere a
Figura 8, que retrata a situação de dois países (Local e
Estrangeiro) que, utilizando a mesma tecnologia,
produzem duas mercadorias, Veículos e Televisores.9 A
curva de possibilidades de produção é côncava como

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004


28
resultado de rendimentos crescentes. Assumindo que
as preferências dos consumidores dos dois países
sejam as mesmas, os pontos de equilíbrio em situação
de autarcia dos dois países coincidirão (E1). Com o
estabelecimento do livre comércio, cada um dos países
poderá produzir o máximo de uma das mercadorias,
ou seja, ou Vmax veículos ou Tmax em televisores,
trocando o excesso da produção sobre o consumo da
mercadoria nacional pelo excesso da produção sobre o
consumo da outra mercadoria que estará sendo
produzida no outro país. Como conseqüência, ambos
os países ganharão com o comércio, atingindo uma
curva de indiferenças mais elevada. Não é possível,
contudo, determinar qual país se especializará na
produção de televisores ou na produção de veículos.

Apesar desse problema da teoria neoclássica do


comércio internacional ser reconhecido por Krugman
e Obstfeld, quando afirmam que “o padrão de
comércio intra-indústrias em si é imprevisível”, nem
por isso ele pode ser subestimado, cumprindo ressaltar
que a “Nova Economia Internacional”, ao deixar à
“História” e aos “acidentes” a resolução do mesmo,

9
Este exemplo baseia-se
em POMFRET (1999).

BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


29
não avança em nada nesse assunto em relação às
abordagens anteriores. Muito menos quando esses
autores afirmam que “o padrão de comércio inter-
indústrias entre as manufaturas e os alimentos é
determinado por diferenças substanciais entre os
países”, pois essa é uma obviedade, sendo defensável
tanto pela teoria das vantagens absolutas de Adam
Smith - se, por “diferenças substanciais” se entende
diferenças na dotação de recursos naturais - quanto
pelo modelo de Heckscher-Ohlin - se as diferenças se
dão ao nível da dotação de fatores produtivos, capital,
trabalho e terra.

A segunda dificuldade do enfoque de Krugman


consiste em considerar que economias de escala
conduzem à concorrência monopolista. Conforme
salientado na seção 2, a diferença básica entre ambos
os modelos - da qual derivam todas as outras - reside
na diferenciação de produtos e não na natureza da
tecnologia ou no comportamento dos custos médios
em relação à escala de produção. É incorreto afirmar,
pois, que os preços que as empresas de uma indústria
monopolisticamente competitiva cobram “são
afetados pelo tamanho do mercado”, de forma que,
em mercados maiores, haverá normalmente “mais
vendas por firma” e aos consumidores “serão
oferecidos preços mais baixos e uma variedade maior
de produtos”. Assumindo rendimentos constantes de
escala, um mercado maior poderia significar, num
primeiro momento, um deslocamento para a direita e
para cima da curva de demanda pelos produtos de
cada firma, o que, supondo que as empresas, como no
caso do ponto B da Figura 4, estivessem em equilíbrio
de longo prazo (CMe1 = P1), significaria o
desdobramento de uma situação de desequilíbrio,
caracterizado por sobre-lucros, conforme no caso do

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004


30
ponto A da mesma figura (onde CMe0 < P0). Haveria,
portanto, a entrada de novas empresas no mercado,
com a curva de demanda se deslocando novamente
para a esquerda até que se atingisse novamente o
equilíbrio de longo prazo. Caso a elasticidade da nova
curva de demanda fosse maior do que a anterior,
tangenciaria a curva de custo médio num ponto abaixo
do anterior, de forma que o novo preço de equilíbrio
de longo prazo seria efetivamente inferior ao preço de
equilíbrio anterior, mas também seria possível o
oposto, de maneira que seria mais adequado supor que
tudo permanecesse como antes.

Na verdade, a queda do custo médio somente poderia


ser assegurada na hipótese de rendimentos crescentes
de escala - o que implicaria que as firmas existentes
seriam substituídas por empresas maiores, com curvas
de custo médio mais baixas. Somente nesse caso faria
sentido não somente a afirmativa anterior de Krugman
e Obstfeld de que haveria um aumento das vendas por
empresa e uma queda de preços, mas também a sua
assertiva de que “se o mercado aumenta enquanto o
número de firmas é mantido constante, as vendas por
firma aumentarão e o custo médio de cada uma,
portanto, declinará”. Nesse e naquele caso, a redução
dos custos depende da hipótese de rendimentos
crescentes de escala no sentido marshalliano e não do
regime de concorrência, que, na verdade, nada tem a
ver com a curva de custo médio.
O terceiro problema da “Nova Economia
Internacional” consiste em desconsiderar as economias
de escala internas à empresa, o que significa que,
embora a hipótese de produtos diferenciados introduza
mais realismo na teoria do comércio internacional, este
continua insuficiente para dar conta da economia do
mundo moderno, caracterizada por mercados

BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


31
dominados por grandes empresas numa série de
segmentos de importância decisiva, tais como:
mineração; metalurgia; montagem de veículos, inclusive
de aviões e navios; transporte ferroviário e marítimo;
telecomunicações; hidroeletricidade; etc. Em todos
estes segmentos, parece inequívoco não somente a
presença desse tipo de economia de escala, mas também
a existência de empresas monopolistas e oligopólios.
Aliás, não é difícil perceber que, se existem economias
de escala internas, a tendência seria a completa
monopolização do mercado por uma só empresa, pois
esta possuiria os menores custos, sendo, pois, capaz de
excluir todas as outras concorrentes reais ou potenciais.
Antes dessa situação-limite ser atingida, contudo, poder-
se-ia pensar que haveria uma estabilização numa
situação de oligopólio - umas poucas empresas de
grandes dimensões evitariam guerras de preços com
vistas a eliminarem as rivais, tendo em vista os custos de
uma política dessa natureza e a incerteza de vitória.
Conforme salientam KRUGMAN e OBSTFELD
(1997, p. 123), “quando existem rendimentos crescentes
(...) as grandes firmas têm normalmente vantagem
sobre as pequenas, de modo que os mercados tendem a
ser dominados por uma firma (monopólio) ou, mais
freqüentemente, por algumas firmas (oligopólio)”.

A análise de situações onde há limitação de oferta teve


início com Cournot, quem primeiro formulou a teoria
da firma individual monopolista, analisando, depois, o
caso do duopólio, em que um segundo monopolista
calcula o volume da produção e o nível do preço de seu
produto à base da produção de seu rival. Coube a
EDGEWORTH (1897) mostrar que a entrada de um
novo produtor altera as condições em que o primeiro
monopolista faz seus cálculos, de forma que a situação
resultante será instável, conclusão que pode ser

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004


32
generalizada para o caso do oligopólio. Em outras
palavras, a dificuldade reside em que, conforme
reconhecem KRUGMAN e OBSTFELD (1997, p.
135), “não existe um modelo geralmente aceito do
comportamento do oligopólio, o que torna
problemática a modelagem do comércio nas indústrias
monopolizadas”. Ocorre, porém, que a adoção do
modelo de concorrência imperfeita, que talvez fosse
adequado para tratar da oferta de pão pela padaria da
esquina, deixa de lado o grosso do comércio mundial,
que, aliás, é, em grande medida, levado a cabo por
empresas oligopolistas. Os ganhos em termos de
capacidade explicativa da “Nova Economia
Internacional”, portanto, seriam reduzidos mesmo se
essa abordagem não contivesse outras dificuldades e
contradições.

Rendimentos crescentes de escala no contexto da


teoria neoclássica do valor e da distribuição também
são problemáticos em razão da ausência de
estabilidade do equilíbrio, que pode ser visualizada na
Figura 9, que ilustra a posição de equilíbrio de longo
prazo assumindo duas possibilidades: a curva de
demanda (D1) é menos elástica do que a curva de
oferta com rendimentos decrescentes (S) e a situação
oposta, com a curva de demanda (D2) mais elástica do
que a de oferta. Assumindo, então, que, em
determinado momento 0, a quantidade ofertada (x0)
seja menor do que a de equilíbrio (x*), no caso da
curva de demanda menos elástica, tem-se que o preço
de demanda (pD1) é menor do que o preço de oferta
(ps), de forma que, segundo o ajuste “marshalliano”, a
tendência seria o aumento da quantidade ofertada, ou
seja, haveria a aproximação à posição de equilíbrio.
Contudo, no caso da curva de demanda mais elástica,
tem-se que o preço de demanda (pD2) é maior do que
o preço de oferta (ps), de forma que a tendência é a

BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


33
redução da quantidade ofertada, o que agravaria o
problema, com o afastamento ainda maior da posição
de equilíbrio.10 Não foi sem motivo, pois, que Marshall,
examinando o problema, concluiu que a estabilidade
da economia devia ser o resultado das limitações na
concorrência, que deveria ser analisada pela
comparação da curva de procura da firma individual
com a sua curva de custos (HEIMANN, 1971, p. 219).

O quinto problema da teoria do comércio


internacional de Paul Krugman diz respeito à falta de
rigor no uso do princípio das vantagens comparativas,
que não se confunde com o modelo de Heckscher-
Ohlin, pois enquanto o primeiro assegura que as trocas
internacionais se baseiam nos preços relativos internos
dos parceiros comerciais — e não nos preços
absolutos, como quer a teoria das vantagens absolutas
—, o segundo tenta demonstrar que, sob determinadas
hipóteses, o padrão de comércio refletiria a dotação
relativa dos fatores produtivos. Em outras palavras,
embora fosse possível dizer que “o comércio inter-
indústrias reflete a dotação dos fatores”, ou que ele 10
Note-se que o problema
“segue o modelo de Heckscher-Ohlin”, não tem também existiria no caso
do ajuste do tipo
cabimento dizer que o mesmo “reflete as vantagens “walrasiano” de curto
prazo, via preços. Nesse
caso, a instabilidade estaria
presente quando a curva de
demanda fosse menos
elástica do que a de oferta.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004


34
comparativas”, em oposição ao comércio inter-
indústrias. A oposição que existe é entre vantagens
absolutas e vantagens comparativas, nunca em termos
de vantagens comparativas versus economias de
escala.

Na verdade, a existência de rendimentos crescentes de


escala no sentido marshalliano, ou seja, de que a
produção em maior escala possui custos menores,
significa um argumento em favor do livre comércio
somente quando se admite o princípio das vantagens
comparativas. Em se adotando a teoria das vantagens
absolutas, pode-se demonstrar que aqueles países que
reservam o mercado interno para a produção nacional,
conquistam novos mercados e os protegem da
concorrência estrangeira, têm maiores chances de
atingir níveis superiores de competitividade
internacional. Mais do que isso, aqueles países que,
tendo acesso a mercados maiores, conquistaram
vantagens competitivas, tendem a consolidar a sua
posição numa economia mundial baseada no livre
comércio, em oposição àqueles países que, por
diversas razões, “chegaram tarde”, no sentido de terem
adotado o livre comércio sem que a sua indústria
manufatureira tivesse conquistado, através de escala,
condições de concorrer com os países industrializados.
A existência de rendimentos crescentes de escala
somente não produz esses resultados completamente
desfavoráveis ao livre comércio se o intercâmbio entre
os países obedecer ao princípio das vantagens
comparativas, que garante que, mesmo se, em razão da
inexistência de recursos naturais e de escala de
produção, um país não produzir com custos absolutos
menores nenhum produto, mesmo assim ele terá um
lugar ao sol no cenário do comércio entre as nações,
pois o que conta são custos relativos.

BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


35

Por outro lado, a idéia de que, através do comércio


internacional, “cada país pode especializar-se na
produção de uma variedade menor de produtos do que
o faria na ausência de comércio; mesmo comprando
de outros países bens que ele não produz, cada país
pode aumentar simultaneamente a variedade dos bens
disponíveis a seus consumidores”, de forma, que,
nesse sentido, “o comércio oferece uma oportunidade
de ganhos mútuos mesmo quando os países não
diferem em recursos ou tecnologia”, representa uma
obviedade que é aceita inclusive pelos críticos do livre
comércio. A questão efetiva reside em saber se o
aumento da “variedade dos bens disponíveis a seus
consumidores” não se dá às custas do aumento do
desemprego, da queda do nível de renda, da redução
da taxa de crescimento do produto e de desequilíbrios
crescentes na balança comercial. Essas questões,
contudo, não são analisadas pela “Nova Teoria do
Comércio Internacional”.

Estes problemas, contudo, são menores em


comparação com a aceitação, por parte dos partidários
da “Nova Economia Internacional”, da abordagem
neoclássica tradicional, que está sujeita às observações
críticas de Joan ROBINSON (1954), que deu origem à
chamada controvérsia do capital ou controvérsia de
Cambridge, que permitiu identificar as inconsistências
formais da lei dos rendimentos decrescentes - pilar
fundamental da teoria neoclássica do valor e da
distribuição (veja-se GAREGNANI, 1970, e
SAMUELSON, 1966). A partir das conclusões dessa
controvérsia, STEEDMAN e METCALFE (1972 e
1973) questionaram o modelo de Heckscher-Ohlin do
comércio internacional, salientando as inconsistências
formais do mesmo, que se baseia na teoria da

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004


36
produtividade marginal decrescente dos fatores. Em
razão da natureza neoclássica do pensamento de
Krugman, a crítica neo-ricardiana ao modelo de
Heckscher-Ohlin é extensiva à Nova Economia
Internacional.

CONCLUSÕES

Conforme se pode concluir das seções anteriores,


embora possa parecer que a “Nova Economia
Internacional” de Paul Krugman represente um
avanço significativo em relação ao modelo de
Heckscher-Ohlin, na medida em que abandona as
hipóteses irrealistas de concorrência perfeita e
rendimentos constantes de escala, pouco contribui
para explicar os “fatos estilizados” do comércio
internacional do mundo contemporâneo, inclusive a
predominância dos fluxos de comércio entre os países
industrializados — de “dotação de fatores”
semelhante — em relação ao comércio entre os países
subdesenvolvidos, assim como a predominância das
grandes corporações na determinação desses fluxos.

Para começar, a adoção da hipótese de economias de


escala, que foi discutida por Ohlin, em 1933, torna
indefinidos os padrões de comércio e deixa à
“História” e aos “acidentes” a resolução do problema.
Conforme sugerido por Krugmam e Obstfeld,
representa um verdadeiro retrocesso, na medida em
que significa a aceitação de que a teoria econômica é
incapaz de lançar qualquer luz sobre o assunto. De
mais a mais, a idéia de que economias de escala
conduzem à concorrência monopolista não confere
com o desenvolvimento da teoria da concorrência
imperfeita por Chamberlin e Robinson, visto que a
diferença básica entre ambos os modelos — da qual

BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


37
derivam todas as outras — reside na diferenciação de
produtos e não na natureza da tecnologia ou no
comportamento dos custos médios em relação à escala
de produção. A terceira dificuldade consiste em
desconsiderar as economias de escala internas à
empresa, o que significa que a “Nova Economia
Internacional” mantém muito da falta de realismo da
teoria neoclássica tradicional do comércio
internacional, particularmente sua incapacidade de dar
conta da economia do mundo moderno, caracterizada
por mercados dominados por grandes empresas.
Rendimentos crescentes de escala no contexto da
teoria neoclássica do valor e da distribuição também
são problemáticos em razão da ausência de
estabilidade do equilíbrio, identificada por Marshall em
1884.

Outro problema da teoria do comércio internacional


de Krugman diz respeito à falta de rigor no uso do
princípio das vantagens comparativas, que não se
confunde com o modelo de Heckscher-Ohlin, pois
enquanto o primeiro assegura que as trocas
internacionais se baseiam nos preços relativos internos
dos parceiros comerciais, o segundo tenta demonstrar
que, sob determinadas hipóteses, o padrão de
comércio refletiria a dotação relativa dos fatores
produtivos. Na verdade, a hipótese de existência de
rendimentos crescentes de escala é um argumento que
só faz sentido num contexto de vantagens absolutas e,
mesmo assim, é contrária ao livre comércio, na medida
em que se pode demonstrar que aqueles países que
reservam o mercado interno para a produção nacional,
conquistam novos mercados e os protegem da
concorrência estrangeira, têm maiores chances de
atingir níveis superiores de competitividade
internacional. Por outro lado, a idéia de que o

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004


38
comércio internacional pode aumentar a variedade dos
bens disponíveis a seus consumidores nunca foi
contestada por ninguém, mesmo por aqueles que são
contrários ao livre comércio, sendo um argumento
dispensável em qualquer discussão séria do comércio
internacional.

Esses problemas, contudo, são menores diante das


inconsistências formais da teoria neoclássica do valor
e da distribuição, que representa a base da "Nova
Economia Internacional". Ao se basear na hipótese
neoclássica de rendimentos decrescentes de escala, a
abordagem de Krugman e dos demais autores dessa
escola construíram uma teoria sem consistência
formal, conforme demonstrado pelos críticos neo-
ricardianos. Passaram de largo, e mais a mais, à crítica
de Steedman e Metcalfe ao modelo de Heckscher-
Ohlin, que, como não é difícil de se verificar, também
é extensiva à Nova Economia Internacional.

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BH, v. 1, n.3, p. 10-40, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


41
A ironia em John Lennon 1

Lauro Meller2

“Question: What will you do when


the Beatles subsides?
3
Lennon: Count the money.”

Resumo: Neste artigo, procuramos evidenciar o lado irônico de


John Lennon, ilustrando-o por meio de uma produção pouco
conhecida: um artigo que ele escreveu para o jornal de música
popular Mersey Beat, no início dos anos sessenta. Tentamos
demonstrar que muitas vezes o efeito irônico depende de dados
extratextuais; neste caso, da biografia dos Beatles.

Palavras-chave: John Lennon, Ironia, Contracultura, the Beatles,


Mersey Beat.

Abstract: In this article, we have tried to highlight John Lennon’s


ironical side, illustrating it by means of a lesser known production:
an article he wrote for the popular music newspaper Mersey Beat
in the beginning of the sixties. We have attempted at demonstrating
that many times the ironical effect depends on context; in this case,
on the Beatles’ biography.

Key-words: John Lennon, Irony, Counterculture, the Beatles,


Mersey Beat.

John Lennon era o espírito mais irreverente dos Fab


Four. Seu tempero cáustico era elemento
complementar à docilidade de Paul McCartney e, 1
Este artigo foi
justamente por esse equilíbrio, os Beatles conseguiram originalmente escrito como
trabalho final do curso
agradar a gregos, troianos, gringos e baianos durante “Nas Tramas da Ironia: do
tanto tempo. Se na letra de “It’s getting better” Paul texto ao contexto”,
ministrado pela Profa. Dra.
cantava, confiante, que “as coisas só estão Tereza Virgínia de Almeida
melhorando”, Lennon fazia a segunda voz, na Pós-Graduação em
Literatura Brasileira e
resmungando: “Não poderia ficar muito pior”. Teoria Literária da
Universidade Federal de
Santa Catarina.
Mas esse tom irônico de Lennon não se restringia às 2
Mestre em Teoria Literária
suas contribuições como letrista; a ironia permeava pela UFSC; professor de
língua inglesa da Faculdade
todas as suas manifestações artísticas, estando presente Estácio de Sá de Belo
Horizonte.
também no seu convívio íntimo. Paul é da opinião de 3
Pergunta: “O que você vai
fazer quando os Beatles
acabarem?” Lennon:
“Contar o dinheiro”.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 41-56, mai. 2004


42
que a ironia e o sarcasmo se desenvolveram em John
como uma carapaça, que lhe permitia, através do
deboche, ocultar a imensa dor de ter sido rejeitado por
pai e mãe tão cedo; John foi criado por uma tia,
Elizabeth “Mimi” Smith.

Como homem público, ele sempre tinha um gracejo na


manga, fosse em entrevistas ou em apresentações.
Relembremos, somente a título de confirmação, do
célebre Royal Variety Show, em que, na presença da
Família Real Britânica, John interpelou a platéia: “For
this last number, I’d like to ask for your help. For the
people in the cheaper seats, clap your hands. And the
rest of you will you just rattle your jewellery.” 4

Os dois livros de charges e textos que publicou, In his


own write e A spaniard in the works (editados no
Brasil em volume único, e brilhantemente traduzidos
pelo poeta Paulo Leminski5) servem também como
testemunhos da ironia como marca de sua poética,
além de revelarem um lado pouco conhecido desse
artista multifacetado.

O texto que elegemos como objeto deste breve artigo


foi escrito por Lennon para o jornal Mersey Beat, um
4
“Para este número,
fanzine que circulou em Liverpool no início dos anos
gostaria de pedir a ajuda de 60 e cujo editor, Bill Harry, tornou-se um dos mais
vocês. As pessoas nos
assentos baratos, batam respeitados especialistas em Beatles em todo o
palmas. O restante pode mundo.6 Na época, Harry, um grande incentivador dos
chacoalhar as jóias.”
5
LENNON, John. Um grupos de rock então iniciantes, pediu a John que
atrapalho no trabalho.
Transcriação e posfácio:
escrevesse uma resumida biografia de sua banda, com
Paulo Leminski. São Paulo: fins de divulgação. Em vez de redigir um release, John
Brasiliense, 1985.
6
Um dos mais completos produziu um texto caótico, repleto de referências
documentos sobre os obscuras, carregado de uma linguagem fragmentada e
Beatles é de autoria de
Harry: The ultimate excessivamente simplificada, diríamos quase
Beatles Encyclopedia telegráfica, e que esclarecia muito pouco sobre o
(London: Virgin, 1992). O
texto original de Lennon se
encontra no final deste
artigo.

BH, v. 1, n.3, p. 41-56, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


43
objeto em tela. Intitulado “Being a Short Diversion on
the Dubious Origins of Beatles”,7 a “biografia”
indicava uma incongruência de linguagem tanto com o
assunto proposto quanto com o público a que se
destinava. Além de ostentar um título pomposo, o
artigo causava estranhamento pela omissão do artigo
the antes do nome do conjunto, sendo curiosamente
colocado – desnecessária e equivocadamente – na
linha seguinte: “Translated from the John Lennon”.

A partir desses erros gramaticais deliberados (quando


a intenção do texto era publicitária), já poderia o leitor
dar-se conta de que não se tratava de um material
estritamente sério – logo, que não se poderia lê-lo
somente no seu valor facial. O texto trazia períodos
pessimamente concatenados por absoluta falta de
criatividade (“All of a sudden [...]”, “Suddenly in
Scotland, touring with Johnny Gentle[...]” 8, “Suddenly
back in Liverpool village[...]”)9, apresentando
truncamentos por toda parte e misturando diferentes
estratos de linguagem. A bizarra narração sobre como
os membros da banda haviam se conhecido ou como
haviam escolhido o nome da banda completava o tom 7
“Uma breve digressão
sobre as dúbias origens dos
nonsense do relato. Beatles”.
8
Os Beatles fizeram uma
curta turnê pela Escócia em
A autoria do texto é obscurecida, uma vez que ele é maio de 1960,
“translated from” [e não “by”] the John Lennon”, e a acompanhando o cantor
Johnny Gentle, de
voz narrativa oscila de terceira pessoa (“Once upon a Liverpool.
9
“De repente [...]”,
time there were three little boys called John, George “Repentinamente na
and Paul [...]”)10 para uma primeira pessoa do plural, Escócia [...]”,
“Repentinamente de volta à
que poderia até ser um plural majestático (“So we will vila de Liverpool [...]”.
tell you”)11, voltando em seguida à terceira pessoa (“[...] 10
“Era uma vez três
garotinhos chamados John,
and said unto them [...] ” )12, para finalmente assinar o George e Paul [...]”. Grifos
nossos.
texto em parceria (“Thank you club members, from 11
“Então nós lhe diremos”.
John and George [...]”)13. A inconstância do foco Grifos nossos.
12
“[...] e lhes disse [...]”.
narrativo indica que as informações podem ser ditas (e Grifos nossos.
13
“Obrigado aos membros
do clube, de John e George
[...]” Grifos nossos.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 41-56, mai. 2004


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lidas) de várias formas. A hesitação quanto à assinatura
do discurso denuncia, de resto, que o relato talvez não
mereça crédito.

Um outro índice marcado no texto para que o leitor


não se entregue a ele sem que desconfie de suas
afirmações é o fato de o autor apresentá-lo como uma
tradução (e recordemo-nos da máxima traduttore,
tradittore – tradutor, traidor), e de ele se iniciar com o
típico clichê de abertura dos contos de fadas: “Once
upon a time...” (“Era uma vez...”). Essa aura
maravilhosa é retomada quando da justificativa do
nome Beatles: “It came in a vision – a man appeared on
a flaming pie and said unto them ‘From this day on
you are Beatles with an A’ ”.14 Essa ambientação
maravilhosa, que se repetiria seis anos mais tarde na
letra de “Lucy in the sky with diamonds” é herança,
como afirmaria o próprio Lennon, de Lewis Carroll.15

O elemento ora fantástico, ora maravilhoso, está ainda


presente na maneira inverossímil com que os entraves
enfrentados por uma banda em formação são sanados:
“All of a sudden they all grew guitars[...]”16 ou ainda
“[...] before we could go we had to grow a drummer,
so we grew one [...]”17. Pode-se inferir, portanto, que
essa aura fantástico-maravilhosa, presente em um
14
“Veio numa visão. Um
homem apareceu numa texto pretensamente empírico, constitui uma das
torta flamejante e lhes
disse: ‘De agora em diante
marcas irônicas que permeiam o discurso de Lennon.
vocês são Beatles com A.’ ”
15
Escritor britânico, autor
de Alice no País das É também curioso o fato de a ironia poder se
Maravilhas e Através do manifestar retrospectivamente. Afinal, quando esse
espelho. Carroll seria
retratado na capa do elepê texto foi escrito, em 1961, os Beatles ainda não tinham
Sgt. Pepper’s Lonely consolidado sua fama – nem mesmo tinham idéia de
Hearts Club Band, de
1967. que isso aconteceria em tão larga escala. Só após a
16
“De repente brotaram
guitarras neles.” Grifos eclosão da Beatlemania (1963-4) é que certas
nossos. declarações ganharam carga irônica. Uma delas foi
17
“Antes de irmos tínhamos
de cultivar um baterista,
então cultivamos um.”
Grifos nossos.

BH, v. 1, n.3, p. 41-56, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


45
proferida pela tia de John, “Mimi” Smith: “A guitar is
alright as a hobby, but you’ll never make a living out of
it.”18 Ou aquele que seria o mais célebre “palpite
infeliz” da história do mercado fonográfico, disparado
contra o empresário dos Beatles. Brian Epstein tinha
ido a Londres para tentar um contrato de gravação
para seus protegés, no início da década de 60. O
responsável pelo departamento de Artistas e Repetório
(A&R) da Decca Records, Dick Rowe, recusou os
Beatles, afirmando: “Guitar bands are on their way
out, Mr. Epstein”.19 Ironia do destino, diríamos. Mas o
Sr. Rowe teve, todavia, a chance de se redimir:
contratou, alguns meses mais tarde, os Rolling Stones.

No nível estritamente lingüístico, observamos algumas


modalidades de ironia de que John lança mão. A
primeira seriam as respostas absolutamente
redundantes, que subestimam a competência (no
sentido chomskiano) do leitor.20 Encontramos
exemplos disto em “Thank you, Mister Man, they said,
thanking him” ou em “‘We don’t like them, Jim’ we
said speaking to Jim”.21

A ironia aparece ainda no fato de o narrador não se


mostrar muito disposto a prestar maiores 18
“Uma guitarra – tudo
esclarecimentos sobre a banda, chegando a tangenciar bem como um hobby, mas
você nunca irá tirar seu
a rispidez em justificativas como “They decided to get sustento dela.”
19
“Bandas com guitarras
together because they were the getting together estão saindo de moda, Sr.
type”.22 Ao proceder assim, o narrador encobre as Epstein.”
20
Umberto Eco tece
razões para a formação do grupo, tornando suas comentários acerca desse
origens, realmente, “dubious”. Assim, o que se propõe tipo de ocorrência em seu
Seis passeios pelos
no título não é aclarar o que está no presente obscuro. bosques da ficção. São
Paulo: Companhia das
Pelo contrário, o narrador afunda o leitor cada vez Letras, 1994, p. 9-10.
mais na bruma. Sendo o mistério um elemento 21
“Obrigado, Seu Moço,
eles disseram, agradecendo-
sedutor, esse artifício resultou num eficiente recurso lhe”; “Nós não gostamos
mercadológico. Confirmamos essa tendência nos deles, Jim, nós dissemos,
falando com Jim.”
22
“Eles decidiram se juntar
porque eram do tipo que
gostava de se juntar.”

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 41-56, mai. 2004


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informes publicitários hoje em dia, em que o
lançamento de um produto se faz muitas vezes sem
que se explique do que se trata, atiçando a curiosidade
do mercado consumidor.

Uma segunda modalidade lingüística de ironia refere-


se ao nível do registro de linguagem, que muitas vezes
não condiz com o assunto retratado, muito menos
com o público-alvo. Neste sentido, citemos as
passagens “[...] three little boys called John, George
and Paul, by name christened”23 e “Thou hast no
drums!”24, em que se observa a referência ao ritual
cristão do batismo, bem como a utilização de
linguagem arcaica, encontrada na Bíblia. Vale salientar
que são bíblicos, também, os nomes de John e Paul.
Pode-se perceber a ironia no fato de a frase com tom
bíblico ter sido dita não por algum profeta, mas por
um empresário mais velho que eles; John, então com
20 anos, sarcasticamente debocha da idade dessa
pessoa (na verdade, Allan Williams, primeiro
empresário dos Beatles, antes de Brian Epstein), ao lhe
atribuir a linguagem arcaica.

Os recursos onomatopaicos (“Zoom”) conferem ao


texto uma atmosfera evocativa das histórias em
quadrinhos. É curioso o requinte do autor na
utilização desse elemento, uma vez que ele coloca o
número de “zooms” em conformidade com o número
de personagens que se deslocam: “Zoom zoom John
(of Woolton) George (of Speke) Peter and Paul zoom
zoom”. Note-se ainda a menção das origens de
algumas personagens, costume que remonta à Idade
Média (Woolton e Speke são bairros de Liverpool). A
referência ao lugar de origem era marca de
23
“[...] três garotinhos identificação das pessoas, funcionando como (e às
chamados John, George
and Paul, por nome
vezes tornando-se) sobrenomes. À guisa de ilustração,
batizados.”
24
“Vós não tendes uma
bateria!”

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47
recorramos aos personagens de Umberto Eco em O
nome da rosa: Guilherme de Baskerville, Adso de
Melk, Adelmo de Otranto, Ubertino de Casale,
Remigio de Varagine, etc. Também na música popular
encontramos numerosos exemplos dessa prática,
como Eric Clapton, Paulinho Pedra Azul, Martinho da
Vila, Fafá de Belém, Rosinha de Valença, etc.

A utilização desse recurso fora de um contexto que lhe


fosse próprio adensou a miscelânea de linguagem, que
já mescla, a esta altura, erros gramaticais, símbolos
gráficos, como “quote” (“aspas”) escritos por extenso
(destituindo-os de sua função simbólica, vale dizer,
ironizando-os), linguagem bíblica e onomatopéias das
histórias em quadrinhos, dentre outros.

Os pontos levantados até aqui lidam com elementos


intrinsecamente irônicos, pois se manifestam no nível
da linguagem e podem ser reconhecidos sem que se
tenha acesso a um contexto mais amplo. Mesmo a
utilização da linguagem bíblica ou a incidência de erros
gramaticais, não intrinsecamente irônicos, são
facilmente reconhecidos como tal dado o contexto.
Tanto as frases de cunho irônico intrínseco como
aquelas que dependem de uma (re)contextualização
para assumirem carga irônica estão, em maior ou
menor grau, inseridas na mesma moldura textual e a
ela submetidas. A ironia acontece dentro do raio de
ação do texto como malha de múltiplas significações
que se auto-engendram e que se auto-alimentam, não
carecendo de referenciais extrínsecos (pelo menos a
princípio) para que o mecanismo irônico seja posto em
funcionamento.

Vejamos, a partir de agora, alguns artifícios irônicos


utilizados por John Lennon que dependem de

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 41-56, mai. 2004


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conhecimentos extratextuais para serem
decodificados. O primeiro que arrolamos – e já aqui
comentado – é o fim a que se propunha o artigo.
Tendo em mente que o rock é, antes de mais nada,
uma indústria, um mercado, entendemos o porquê de
passagens como “We said we would play mighty
anything for money”.25 Além de deixar claro que todo
o engajamento sociopolítico do rock contra as
estruturas vigentes é hipócrita – pois esses mesmos
porta-vozes acabam se rendendo a eles, ao se
tornarem milionários – o autor ainda denuncia os
artistas que não admitem o rock como terreno onde
as leis mercadológicas anulam os princípios
ideológicos. Uma frase como essa, que a princípio
soaria como uma confissão da própria corrupção,
torna-se, através de uma leitura às avessas
(procedimento da ironia, par excellence), um auto-
elogio. Em outras palavras, algo como “Somos
mercenários, sim, mas pelo menos o admitimos”,
precisamente o que o genial guitarrista e compositor
norte-americano Frank Zappa fez, com seu deboche
habitual, na capa de seu elepê de 1968: We’re only in
it for the money.26

Vejamos, então, alguns exemplos de ironia que


dependem de um conhecimento da biografia do
conjunto, começando pela menção ao clube ‘Casbah’
(“(...) in a club called some Casbah(...)”), de
propriedade da mãe de Pete Best (primeiro baterista
dos Beatles), Mona. Quem conhece um pouco da
história do grupo, percebe a intromissão do termo
“some” precedendo o nome do bar.

Além dessa ocorrência, há no texto um trocadilho


25
“Nós dissemos que com o sobrenome de Paul (e de seu pai, que com
tocaríamos qualquer coisa
poderosa por dinheiro.”
efeito se chamava Jim). A troca de McCartney por
26
Numa tradução livre:
“Estamos nessa somente
pela grana.”

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49
McArtrey – irônica por si, no estrato sonoro – foi
idéia de John. O que ele não poderia prever é que o
editor do mesmo jornal, ao publicar uma matéria
sobre os Beatles alguns meses mais tarde e na
incerteza quanto ao nome de família de Paul, recorreu
ao texto de John para dirimir sua dúvida. Inadvertido
de que se tratava de um trocadilho, Bill Harry
finalmente estampou – em matéria de capa, diga-se de
passagem – a foto do baixista dos Beatles,
acompanhada da legenda “Paul McArtrey”.

Stuart Sutcliffe, que é citado várias vezes no texto, era


colega de John na escola de belas-artes. Ao ganhar um
concurso de pintura, foi persuadido por John, Paul e
George a investir o dinheiro do prêmio num baixo
elétrico (um Höfner modelo 333) – mesmo não
sabendo tocar, nem tendo a menor aptidão para a
música. Esses fatos são narrados no artigo de Lennon
na seguinte passagem: “So-o-o-o on discovering a
fourth little even littler man called Stuart Sutcliffe
running about them they said, quote ‘Sonny get a bass
guitar and you will be alright’ and he did – but he
wasn’t alright because he couldn’t play it.”27 Lennon
não poupa, é claro, a menção à pequena compleição
de Stuart.

Olhando em retrospecto, é irônico o fato de que


nenhum elemento da banda – nem mesmo Paul
McCartney – queria assumir o baixo, pois eles
achavam que se tratava de um instrumento sem
destaque. Quando finalmente Stuart saiu do grupo
para se dedicar à sua verdadeira vocação, a pintura, 27
“Então lá se foram eles a
descobrir um quarto
Paul, sempre diplomático, assumiu o instrumento homem – mais baixinho
para evitar atrito entre eles. McCartney se tornaria um ainda – chamado Stuart
Sutcliffe perambulando
dos mais criativos baixistas do mundo, influenciando perto deles, eles disseram
músicos tanto em matéria de estilo quanto na escolha aspas ‘Filhinho, descole um
baixo que você vai ficar
‘maneiro’ ’ – e ele o fez –
mas não ficou ‘maneiro’
porque não sabia tocar.”

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 41-56, mai. 2004


50
de seus instrumentos (destacando-se o modelo 500/1
da Höfner – o famoso “baixo-violino” – e o
Rickenbacker 4001).

Também irônica é a referência aos célebres


“terninhos”: “So suddenly all back in Liverpool
village were many groups playing in grey suits and
Jim said ‘Why have you no grey suits?’ ‘We don’t like
them, Jim’ we said speaking to Jim.”28 De acordo com
o texto, não eram os Beatles, mas todas as bandas do
Merseyside que envergavam os tais “terninhos” nas
noites de Liverpool (descrita como uma “village”, o
que marca seu caráter provinciano nos anos 60). No
entanto, naquela época a moda eram as roupas de
couro, e foi idéia do empresário dos Beatles, Brian
Epstein, de “limpar” a imagem dos Beatles, não os
deixando fumar ou beber no palco, instruindo-os a
evitar os palavrões e mudando radicalmente sua
indumentária das jaquetas e calças coladas para os
ternos. A partir do sucesso da banda, os Beatles
passaram a ditar moda para os demais grupos, desde
as roupas ao corte de cabelo, passando, naturalmente,
pelo estilo musical e pela escolha dos equipamentos.

Sobre o episódio da deportação de George Harrison


da Alemanha, algumas informações históricas
auxiliam no entendimento da passagem. George era o
mais jovem dos Beatles, e em 1960 – época à qual o
artigo se refere – contava dezessete anos. Aos olhos
de John, líder de banda, dois anos mais velho que
aquele e dono de um temperamento arrogante,
George não passava de um criançola. Daí o adjetivo
28
“Então de repente todos “little” e a referência aos seus “doze anos”. O
de volta à vila de Liverpool
havia muitos grupos
guitarrista ainda era menor de idade, razão pela qual
tocando com ternos cinza e foi impedido de trabalhar como músico em
Jim disse ‘Por que vocês
não têm ternos cinza?’ ‘Nós
Hamburgo – e não, logicamente, de votar, como diz
não gostamos deles, Jim’
nós dissemos falando com
Jim.”

BH, v. 1, n.3, p. 41-56, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


51
o texto. O nonsense reincide nessa passagem como
traço irônico do narrador. A aparente
inverossimilhança de se envelhecer seis anos em dois
meses (“[...] he was only twelve [...] but after two
months he grew eighteen”)29 será a leitura provável de
um leitor que não tenha acesso à biografia factual da
banda. Naturalmente, ele diz respeito ao
amadurecimento forçado de um grupo de rapazes
que saem de uma cidade provinciana para a capital
européia do pecado, Hamburgo, tendo de tocar uma
média de sete horas por noite, sete dias por semana,
convivendo com uma população formada por
prostitutas, strippers, marinheiros, estivadores,
arruaceiros, gangues, etc.

Outra marca irônica nessa passagem é a alusão à


polícia alemã, em que o narrador se refere aos
soldados como “The Gestapoes”. Neste caso, a
sinédoque conferiu-lhes um tom pejorativo. A
rivalidade histórica entre ingleses e alemães revela-se
também no comentário feito pelos tais “Gestapoes”:
“Bad Beatles, you must go home and light your
English cinemas”.30 O autor fornece a sua apreciação
(do ponto de vista inglês, of course) acerca dos
alemães: inimigos de guerra intolerantes, vingativos e
truculentos.

Para compreender a referência irônica à polícia


alemã, o leitor precisa se dar conta, primeiramente,
do anacronismo de os agentes nazistas estarem
atuando em plena década de 1960 e, em segundo
lugar, do ranço existente nas relações políticas entre
ingleses e alemães. Iríamos além: para entender por
que John Lennon faz questão de denegrir a imagem 29
“Ele só tinha doze anos
da polícia nazista em seu artigo, o leitor teria de saber [...] mas depois de dois
que na noite de 9 de outubro de 1940, em que ele meses já contava dezoito
anos.”
30
“Beatles maus, vocês
devem ir pra casa incendiar
seus cinemas ingleses.”

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 41-56, mai. 2004


52
veio ao mundo, Liverpool – segundo maior porto
inglês, e base estratégica na Segunda Guerra Mundial
– era duramente bombardeada pela Luftwaffe de
Hitler.

A referência a “incendiar cinemas” se deve a um


episódio ocorrido num dos bares de Hamburgo em
que os Beatles tocaram no início da carreira. A banda
estava insatisfeita com as condições de trabalho no
Kaiserkeller, bar de propriedade de Bruno Koschmider;
eles estavam hospedados no andar superior de um
cinema (Bambi Kino), que também pertencia àquele
empresário. Quando receberam um convite para tocar
no bar Top Ten – que lhes ofereceria melhores
condições, sendo a casa de shows mais cobiçada pelos
grupos da época – Paul McCartney e Pete Best, num
ato pueril, atearam fogo numa “camisinha”, nas
depedências do Bambi Kino. Apesar de ter sido apenas
uma brincadeira de rapazes, o empresário, que não
aceitara bem a idéia de eles mudarem de clube, levando
com eles todo um séquito de fãs, usou o pretexto do
preservativo para chamar a polícia e acusá-los de tentar
pôr fogo em seu estabelecimento. De quebra, dedurou
George Harrison, menor de idade, às autoridades
germânicas.

O tom irônico do artigo de Lennon dependia,


portanto, de muitos referenciais extratextuais, e seu
autor não se preocupou em dar pistas ao leitor. Não
esclarece, por exemplo, que George era mais novo que
ele, nem menciona a existência do clube Casbah (e não
“Some” Casbah), bem como não explica a confusão
feita em torno do nome de Paul. Do mesmo modo,
não dá qualquer indicação mais precisa sobre os
incidentes ocorridos em Hamburgo. O leitor ideal de
Lennon era, portanto, alguém que conhecesse a

BH, v. 1, n.3, p. 41-56, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


53
biografia do grupo de perto – mas naquela altura, em
que os Beatles eram uma banda iniciante numa cidade
industrial do noroeste da Inglaterra, o mais provável é
que apenas os próprios membros da banda e as
pessoas que haviam convivido com eles em Hamburgo
pudessem desnudar o texto por completo.

Em contrapartida, e ironicamente, Lennon faz questão


de explicar ao leitor que Kino é “cinema” em alemão
(como se essa explicação fosse a única necessária para
que se decifrasse o texto). Do mesmo modo, após
mencionar o distrito de origem de George (Speke),
reitera esse dado nas linhas finais, duvidando, assim, da
capacidade de retenção de informações do leitor. Ou
teria ele apenas sido gentil em relembrar o leitor desse
dado? Ou ainda, Lennon simplesmente não percebeu
a repetição (repetição que também aparece na
passagem “called The Beatles called”)?

Seja como for, a grande ironia desse texto reside no


fato de ele tratar de uma banda

1) que não tinha qualquer objetivo mais pretensioso


(“When they were together they wondered what for
after all, what for?”; “[...] no one was interested, least
of all the three little men”);31

2) cujo baixista não sabia tocar (“‘Sonny get a bass


guitar and you’ll be alright’ – but he wasn’t alright 31
“Quando eles estavam
juntos eles se perguntaram:
because he couldn’t play it”);32 aliás, o baixista só se pra que, afinal de contas,
reuniu ao grupo porque não tinha nada melhor para pra quê?”; [...] ninguém
estava interessado, muito
fazer (“[he was] running about them”);33 menos os três
homenzinhos”.
32
“Filhinho, descole um
3) que não tinha amplificadores (“[...] they had not a baixo que você vai ficar
‘maneiro’ – e ele o fez –
very nice sound – because they had no amplifiers”);34 mas ele não ficou ‘maneiro’
porque não sabia tocar.”
4) que não tinha bateria (“‘Thou hast no drums’ – ‘we 33
“Ele ficava correndo ao
redor deles.”
34
“Eles não tinham um som
muito legal – porque não
tinham amplificadores.”

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 41-56, mai. 2004


54
had no drums!’[...]”);35 – a propósito, quando os
empresários locais lhes indagavam sobre o baterista
(ou sobre a sua ausência), eles se saíam com uma
resposta muito pouco convincente: “O ritmo está nas
guitarras”;

5) e cuja identidade – o nome da banda – não fora


mérito deles (“It came in a vision”).36

Todas estas seriam condições sine qua non para que um


conjunto ganhasse destaque na disputada cena
artística. Contrariando todos os indícios, os Beatles se
tornaram o maior fenômeno de vendas da história
fonográfica mundial e conferiram ao rock o
reconhecimento dos críticos musicais; além disso,
reciclaram, direta e/ou indiretamente, o
comportamento ocidental.

REFERÊNCIAS

BOOTH, W. Is it ironic? In: A rhetoric of irony. Chicago: University of


Chicago Press, [s.d.], p. 47-86.
FISH, S. What makes an interpretation acceptable? In: Is there a text in
this class? 8.ed. London: Harvard University Press, 1994.
HARRY, B. The ultimate Beatles encyclopedia. London: Virgin, 1992.
HUTCHEON, L. The end(s) of irony. In: Irony’s edge: the theory and
politics of irony. New York: Routledge, 1995.
LENNON, J. Being a short diversion on the dubious origins of Beatles. In:
DAVIES, H. The Beatles: the only authorised biography. London: Arrow,
1985, p. 174-5.
NATHAN, D. O. Irony and the artist’s intentions. British Journal of
Aesthetics, [S.l.], v. 22, p. 245-6, 1982.
TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. São Paulo:
Perspectiva, 1975.

35
“ ‘Vós não tendes uma
bateria’ – ‘Nós não
tínhamos bateria!’ [...]”
36
“Veio numa visão.”

BH, v. 1, n.3, p. 41-56, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


55
ANEXO

O artigo original, publicado no jornal Mersey Beat


em 6 de julho de 1961.

“BEING A SHORT DIVERSION ON THE


DUBIOUS ORIGINS OF BEATLES”

Translated from the John Lennon

Once upon a time there were three little boys called


John, George and Paul, by name christened. They
decided to get together because they were the getting
together type. When they were together they
wondered what for after all, what for? So all of a
sudden they all grew guitars and formed a noise.
Funnily enough, no one was interested, least of all the
three little men. So-o-o-o on discovering a fourth little
even littler man called Stuart Sutcliffe running about
them they said, quote ‘Sonny get a bass guitar and you
will be alright’ and he did – but he wasn’t alright
because he couldn’t play it. So they sat on him with
comfort ‘til he could play. Still there was no beat, and
a kindly old aged man said, quote, ‘Thou hast no
drums!’ We had no drums! they coffed. So a series of
drums came and went and came.

Suddenly in Scotland, touring with Johnny Gentle, the


group (called the Beatles called) discovered they had
not a very nice sound – because they had no
amplifiers. They got some. Many people ask what are
Beatles? Why Beatles? Uh, Beatles, how did the name
arrive? So we will tell you. It came in a vision – a man
appeared on a flaming pie and said unto them ‘From
this day on you are Beatles with an A’. Thank you,
Mister Man, they said, thanking him.

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And then a man with a beard cut off said – will you go
to Germany (Hamburg) and play mighty rock for the
peasants for money? And we said we would play
mighty anything for money.

But before we could go we had to grow a drummer,


so we grew one in West Derby in a club called Some
Casbah, and his trouble was Pete Best. We called
‘Hello, Pete, come off to Germany!’ ‘Yes!’ Zooooom.
After a few months, Peter and Paul (who is called
McArtrey, son of Jim McArtrey, his father) lit a Kino
(cinema) and the German police said ‘Bad Beatles, you
must go home and light your English cinemas’.
Zoooooom, half a group. But even before this, the
Gestapo had taken my friend little George Harrison
(of Speke) away because he was only twelve and too
young to vote in Germany; but after two months in
England he grew eighteen, and the Gestapoes said
‘you can come’. So suddenly all back in Liverpool
village were many groups playing in grey suits and Jim
said ‘Why have you no grey suits?’ ‘We don’t like them,
Jim’ we said speaking to Jim. After playing in the clubs
a bit, everyone said ‘Go to Germany!’ So we are.
Zooooom. Stuart gone. Zoom zoom John (of
Woolton) George (of Speke) Peter and Paul zoom
zoom. All of them gone.

Thank you club members, from John and George


(what are friends).

BH, v. 1, n.3, p. 41-56, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


57
Criatividade e Rede:
expressão e intertextualidade em
ambientes digitais

Rodrigo Fonseca e Rodrigues1

Resumo: O presente artigo propõe a discussão acerca dos modos


de expressão e da experiência criativa a partir da coexistência
cultural, das prerrogativas da interface e da interatividade
propiciadas pelos ambientes digitalizados. Busca-se entender as
transformações culturais agudas geradas pelas maneiras de criação
por meio de processos reapropriativos e da intertextualidade, como
comportamentos expressivos não apenas permitidos, mas sim
estimulados pelas prerrogativas da tecnologia mediática digital.
Através desses recentes procedimentos comunicativos tornados
culturais, novos problemas vêm à baila, tais como: a revisão dos
princípios da autoria e de como uma criação “interativa” pode
ultrapassar a mera apropriação e expandir suas potencialidades de
significação e de força cultural.

Palavras-chave: Comunicação, Rede, Interatividade, Apropriação


Criativa, Autoria, Indústria Cultural.

Abstract: The present article considers the debate concerning the


ways of expression and the experience of the creative one from the
cultural coexistence, of the prerogatives of the interface and the
interactivity propelled by digital environments. One searchs to
understand the acute cultural transformations generated by the ways
of creation by means of reappropriative processes and the
intertextuality, as expressive behaviours which are not only allowed,
but stimulated by the prerogatives of the digital media technology.
Through these recent cultural communication procedures, new
problems arise, such as: the revision of the principles of authorship
and how the interactive creation can exceed the mere appropriation
and expand its potentialities of signification and cultural force.

Key-words: Communication, Web, Inteactivity, Creative


Appropriation, Authorship, Cultural Industry. 1
Graduado em História e
Mestre em Comunicação
Em nossa atualidade não há mais como se estar pela UFMG; Doutorando
em Comunicação e
indiferente diante de novos regimes de signos e dos Semiótica, na PUC/SP;
Professor de Estética e de
seus respectivos comportamentos, gradualmente Fundamentos Científicos
da Comunicação na
Faculdade Estácio de Sá –
Belo Horizonte.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 57-69, mai. 2004


58
rotinizados através das relações cotidianas com a
informática e a internet. É um sintoma irrefreável de
um mundo no qual homens e máquinas estão em
conexão íntima e constante, fato verificável em
situações corriqueiras como as simples operações
bancárias ou os hábitos gerados pelo uso de celulares,
até certas modalidades artísticas e manifestações
culturais baseadas na interface, na simulação e no
ciborgismo. Face a essa realidade, deve-se pensar o
domínio das práticas discursivas e da expressão
forjadas no crescente processo de digitalização, tanto
na atividade comunicativa como nos atos criativos
diante das novas mídias. Contudo, uma vez que as
tecnologias mediáticas digitalizadas, por seu caráter
lúdico e de generalidade, afetam concretamente as
práticas comunicacionais, os comportamentos sociais
e as produções culturais, esses mesmos
comportamentos, práticas e produções passam a
redesenhar o funcionamento sociotécnico das próprias
máquinas e das mídias que os tornam realmente
efetivos.

2
Interface: situação Jean Baudrillard pode estar correto quando diz que
tecnológica que coloca em
contato sistemas diferentes,
vivemos hoje numa temporalidade extensiva de
na conexão técnica entre cidades, história, memória, arquivos, palavras escritas
máquinas e homens, sendo
que o “sujeito
e, simultaneamente, num outro tempo, um tempo
interfaceado” tem a intensivo, digitalizado, o tempo das novas tecnologias.
experiência do seu corpo
acoplado a mundos virtuais Existimos, inexoravelmente, numa “era de conexões,
e, nas propagações do “eu” de contato, de contigüidade, de simultaneidades e de
no interior de circuitos
eletrônicos, é capaz de agir interface2 generalizada no universo da comunicação”.
e pensar acoplado às
máquinas. Na virtualização
(BAUDRILLARD, 2002, p. 126-127)
da realidade, é o estatuto da
interface a chave que define
o caráter atual de interação Portanto, ao se levar em conta que os atributos
e percepção humanas. técnicos desencadeiam novas relações entre humanos
Nesse universo paralelo
chamado de ciberespaço, os e ambientes, também a emergência de cada tecnologia
gestos humanos são
constantemente lidos pelas
determina o aparecimento de ecologias em que a
máquinas, o que chamamos
de “experiência da
interface”.

BH, v. 1, n.3, p. 57-69, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


59
percepção sensível do mundo incorpora as suas 3
Virtual: do latim (força,
qualidades e que daí ocorrem alterações no campo potência), é um termo
escolástico para descrever o
sensorial, redefinindo significativamente a experiência plano ideal ou o
transcendental. Atualização
íntima e social. É preciso, como já se disse, ter em vista era o termo utilizado para
que as práticas criativas desencadeadas pelas descrever a passagem do
virtual para o ato. Virtual é
tecnologias podem devolver às suas respectivas tudo o que existe como
circunstâncias técnicas e sociais problemas inéditos, ao faculdade, porém sem
exercício ou efeito actual.
reconfigurar, através dos hábitos culturais, a tecnosfera Em seu segundo
significado, virtual é algo
que lhes deu origem. suscetível de se realizar;
potencial, predeterminado
e que contém as condições
Porém, primeiramente é preciso definir o ambiente da essenciais à sua realização.
virtualidade em que ocorrem as experiências A virtualização
tecnologizada da realidade
comunicativas na internet. As “tecnologias do virtual”3 é a experiência de estar, ao
se configuram como uma meta-rede, abarcando mesmo tempo, em seu
corpo e fora dele, de ter a
milhares de redes e sub-redes na geografia eletrônica. presença imaterial, mas real,
do outro lado.
São elas mediações entre lugares físicos e realidades 4
Ciberespaço: William
incomensuráveis, onde se opera, em fluxo Gibson, autor de
Neuromancer, publicado
ininterrupto, a comunicação. A esfera da interlocução em 1984, foi quem primeiro
realiza-se, portanto, de um modo alterado, nesta era empregou o
ciberespaço, definindo-o
termo

pluridimensional de ramificações mediáticas, cuja como um espaço


imaginário, um universo
infinitude habita potencialmente em cada máquina paralelo que existe
conectada, a cada momento em que “mergulhamos” unicamente dentro dos
computadores. A palavra
no espaço digital. designa, mais do que os
suportes tecnológicos que
geram os ambientes
Uma vez que, nas redes, qualquer ponto pode ser digitais, os modos originais
de criação, de navegação no
diretamente acessível a partir de qualquer outro ponto, conhecimento e de relação
a internet poderá ser então pensada como um imenso social por ele propiciado.
5
Rizoma: termo da biologia
“desterritório” cuja fronteira é traçada pelo que não que pressupõe um
interessa àquele que faz o seu percurso imersivo no complexo em que qualquer
ponto se conecta a qualquer
ciberespaço4 e gera as suas conexões reiterativas com outro e em qualquer parte.
Não há nenhuma ordem
as zonas de seus interesses. hierárquica, sistêmica ou
classificatória no rizoma, o
que permite que seja
As redes telemáticas podem ser também imaginadas acessado de qualquer
através da metáfora advinda da biologia, o “rizoma”5, ponto, a qualquer
momento. Na semiótica, o
termo empregado por Gilles Deleuze e conveniente rizoma é pensado como
conexões associativas,
para pensar as redes sociotécnicas, redes que envolvem heterogêneas, sem um eixo
central, multiplicando as
ramificações e ampliando
os seus jogos de sentido.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 57-69, mai. 2004


60
não somente softwares, computadores, telas, cabos e
fibras ópticas, mas toda uma interface maquínica
biológico-comportamental, perceptual e cognitiva,
sensorialmente imersa em sua aparente e
incomensurável ubiqüidade. Elas se apresentam como
uma realidade virtualizada, forjando um ambiente
simulado no qual o homem se sente presente, mas
com as suas concepções de espaço alteradas e com o
conseqüente condicionamento dos seus aparatos
perceptivos. De fato, os ritmos do corpo, da
cronologia diária e a periodização vão sendo
inexoravelmente regulados por essa ecologia
cibernética.

O cibermundo pode ser concebido como uma


paisagem informacional, na qual a nossa percepção é
unida aos dados e a um espaço que é atópico, a um
lugar que não é um lugar, mas que é uma síntese da
experiência simulada. (HILLIS, 2002, p. 38) A suposta
imersão nos espaços virtuais e a adaptação constante
de tecnologias de interface às nossas disposições
fisiológicas e aos nossos sentidos, movimentos e
expectativas, propiciam o desenvolvimento de
situações específicas de comunicação e de
circunstâncias criativas não-localizáveis nas tramas em
que se fundem os processos fisiológicos e os
eletrônicos, os processos das sinapses dos neurônios e
os digitais, alterando significativamente parte de nossas
performances cognitivas, bem como dos nossos
comportamentos e hábitos culturais.

Um outro aspecto relevante sobre o tema é que,


atualmente, todas as mídias existentes – de sons,
imagens e textos – passaram a ser incorporadas às
máquinas digitais que se tornaram, por esta mesma
digitalidade, hipermáquinas mediáticas. É justamente a

BH, v. 1, n.3, p. 57-69, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


61
partir de princípios de não-linearidade na
comunicação, características inerentes aos softwares e às
redes, que são criados vários sistemas de proximidade
social, muitos espaços de coexistência e de
performances culturais, ainda que virtuais e não-
presentes.

Os computadores em rede são assim percebidos como


hipermáquinas que colocam o indivíduo numa
situação de experiência que tende a fundir a sua
subjetividade à paisagem informática, “interfaceada” e
conectada com outros “eus” anônimos nesse espaço
virtual. As hipermáquinas digitais são como máquinas
culturais de transformação, como meios que geram
diferentes provocações culturais e recentes atmosferas
imaginativas para a comunicação. É, portanto,
facilmente observável que, na tela luminosa das
simultaneidades, o nosso desejo de comunicar por
meio da conectividade digital é cada vez mais
expansivo. Esse atual desejo de interconectividade, ao
aumentar exponencialmente a quantidade de
participantes nos jogos da comunicação, pode gerar
novos laços coletivos, mesmo que intangíveis e, a
partir daí, propiciar novas formas de redes tecno-
sociais, tramando relações intensas entre pessoas de
corpos ausentes.

Com a larga e rápida penetração da internet, os ritmos


do corpo, a cronologia diária e a periodização vão
sendo inexoravelmente regulados pela chamada
“ecologia cibernética”.6 O computador se insere no 6
Cibernética: sistema teó-
comportamento cotidiano como instrumento cultural rico criado por Norbert
Wiener, em 1948, que
extremamente lúdico, o que por si só representa um problematiza a gestão da
grande apelo ao uso. É a generalidade do computador informação entre máquinas
e máquinas e entre
a sua característica mais persuasiva e que leva a um máquinas e homens. Por
influxo de novos modos de se pensar sobre a este pressuposto, não só os
sistemas artificiais, mas
todo o mundo natural é
pensado como complexos
informacionais.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 57-69, mai. 2004


62
criatividade. Especialmente a partir de meados dos
anos noventa, as hipermáquinas digitais vêm sendo
paulatinamente usadas como máquinas culturais de
transformação, como meios que geram diferentes
discursos, expressões e provocações culturais.

As sociedades contemporâneas, concebidas como um


cadinho de comunidades espacialmente fragmentadas
e definidas pela comunicação, só podem sintonizar-se,
de fato, com as devidas implicações culturais das novas
tecnologias. É sabido que todos os dias centenas de
milhões de pessoas tele-encontram-se em
comunidades informáticas baseadas em múltiplas
afinidades, desde aquelas que já existiam antes da
internet às que emergem exclusivamente dos hábitos
ciberculturais. Os grupos virtuais duplicam-se
anualmente, formando imensas e caóticas cadeias de
interlocutores multiculturais. E é justamente na
utilização comunicativa e expressiva dos suportes
tecnológicos que as redes são transformadas em um
importante espaço social. O ambiente virtual
transforma-se, então, numa teia de performances, uma
rede de problemáticas que pode incrementar a
potencialização cognitiva dos seus interagentes, um
ecossistema digital que se transforma em conjunções
de comportamentos culturais transientes.

Aquele que interage nas redes, participante e ao


mesmo tempo espectador, estabelece um contato com
os discursos e expressões, relaciona-os com as
referências do “mundo externo”, decifra e interpreta
as suas características e as suas qualidades, somando,
com isso, a sua própria contribuição para o processo
dos bens culturais, em contínua recriação e replicação.
É efetivamente um comportamento sintomático das
redes aquele de interferir em textos pré-elaborados ou

BH, v. 1, n.3, p. 57-69, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


63
nos preexistentes, criando outros, sempre passíveis de
novas intervenções, de maneira que se potencializam
exponencialmente as capacidades transformadoras da
interatividade7 na criação cultural. As potencialidades
performáticas da malha digital permitem que se
entrelace a apresentação dos trabalhos de produtores
culturais à manipulação interativa, à conversação não-
linear do público com os produtores, criando, cada um
e coletivamente, as suas próprias conexões culturais,
numa rede que é de crescimento indeterminado.

Orientando a nossa reflexão para os estudos sobre os


estatutos da “autoria” e da “obra” nas redes, um
aspecto sintomático dessa abertura na ecologia criativa
nas redes digitais é a fluidez que conceitos como o de
“autor” e de “originalidade” ganham nos últimos
tempos. Com efeito, a mediasfera do virtual
propulsionou inovações que tornaram possíveis
criações nas quais o autor não mais as define,
exclusivamente, absolvendo-se da participação
absoluta no processo de produção. Dito de outro
modo, a tecnologia do software permite e facilita o
desembaraço das idéias sobre a autoria e a obra. A
rede, por ser um sistema de interlocução multilinear, 7
Interatividade: ação con-
junta que ocorre por
possibilita inimagináveis alternativas de co-autoria situações compartilhadas
difusa, sendo que agentes de qualquer lugar do mundo do corpo com a linguagem
abstrata de softwares, com
podem participar da criação de um produto cultural, funções que transformam e
devolvem sinais enviados
sempre transiente. do ecossistema para o
tecnossistema. A
interatividade é a qualidade
A pesquisadora Karen O’Hourke é quem retoma, a mais performática dos
propósito, um conceito de Umberto Eco, ambientes numéricos-
digitais que, através de
desenvolvido ainda nos anos sessenta, sobre o que ele interfaces com dispositivos
de captura e tradução dos
denomina “obra aberta”, evocando com tal termo um sinais do corpo, a ação de
quadro criativo sensível interativo, onde algo pode ou um homem seja processada
e devolvida por máquinas.
não acontecer, tal como um dispositivo expressivo A interatividade digital nos
susceptível a provocar trocas. O autor torna-se, desse fornece uma dimensão
simbólico-tecnológica de
produzir construtos em
hábitats paralelos ao
natural.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 57-69, mai. 2004


64
modo, principalmente um criador de interfaces: ele
explora as relações entre os seres e as coisas, ao propor
uma nova abertura nas vias da comunicação.
(O’HOURKE, 2002, p. 9)

A digitalização e o ciberespaço, portanto,


estabeleceram uma espécie de imenso plano semântico
aberto, acessível em todo lugar e que todos podem
ajudar a produzir. Desta maneira, em contrapartida ao
alardeado temor quanto a um suposto colapso da
imaginação criativa, provocado pela experiência do
excesso, flui com bastante vigor o potencial lúdico,
inventivo, comunicacional e interativo, na esfera das
produções culturais.

Por essa razão, ativistas culturais espalhados pelo


mundo compartilham de produções já publicadas e se
envolvem para a concepção de produções inéditas.
Surge, com esses novos hábitos criativos, uma espécie
de megaprodução digital formada por múltiplas
produções micrológicas, configurando-se
constantemente como variáveis de outras variáveis.
Dessas esferas interativas emergem textos sem
fronteiras nítidas, uma vez que a multiplicação de
sinais separou estes mesmos signos de seus referentes,
que hoje podem circular autônomos nas redes.

O processo da criação por meio dos espaços digitais


parece aproximar-se do que se chama de
“transcodificação”, movimento através do qual um
código toma ou recebe fragmentos de outro código.
Então, todo texto transforma-se num espaço onde
muitos outros textos, nenhum dos quais original,
intervêm uns sobre os outros, confrontando-se ou
reunindo-se. (O’HOURKE, 2002, p. 17) A produção
cultural em redes atualiza-se então de uma forma

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65
quase autônoma, uma vez que o autor limita-se
geralmente a inscrever, apresentar dados ou intervir
eventualmente nas produções.

Existem, no entanto, vários modos e níveis de


interatividade, não havendo, evidentemente,
equivalência entre a interação e a qualidade dos textos
e produtos culturais. Obviamente são necessários
níveis múltiplos de aptidões, competências, instruções
técnicas e habilidades aprendidas. A qualidade do
empenho nas intervenções depende, em grande
medida, de conhecimentos construídos através dos
próprios investimentos culturais desenvolvidos por
meio dos comportamentos interativos.

Do que já foi dito, conclui-se que a rede é o grande


evento anárquico da cultura que vem para tentar
derrotar a exploração mercantil convencional da
indústria cultural. Efetivamente, a cibernética pode
pender, em grande medida, para a possibilidade da
criação de todos e para todos, característica que dá, a
qualquer um, a oportunidade de expressar-se e de
experimentar, de intervir ou de apropriar-se e de
redizer-se. Com efeito, as produções culturais on-line
são realizadas num mundo virtual independente e
paralelo ao mundo físico-cultural, fora de suas leis, de
seus códigos e das rubricas da indústria cultural. É já
bem sabido que os mais entusiastas da interatividade
fazem uso indiscriminado e livre de tudo o que
encontram, de modo que incrementam, copiam,
emendam, apagam, combinam e especulam com todos
os materiais a que têm acesso.

Este aspecto característico da malha digital é o que


mais nos interessa aqui: os modos de difusão,
estabelecendo-se fora dos circuitos tradicionais,

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 57-69, mai. 2004


66
exigem para a sua experiência, coerentemente
apreendida, um certo “esquecimento” dos
comportamentos e das pragmáticas culturais
introjetadas pelas mídias massivas. De fato, a
participação interativa nas redes constitui uma
possibilidade agonística com relação aos mass media,
como meios alternativos de escapar do controle
imposto por essa chamada “cultura da
transcendência”.

Oposta àquela, a “cultura da imanência” gerada pelas


redes pode constituir um mundo alternativo para a
ação criativa. Isto ocorre quando os seus produtos
culturais não são mais comercializados, quando o seu
valor não repousa sobre a sacralização ou sobre a
propriedade, mas na sua capacidade de potencializar os
agentes que com eles se conectam. As redes mediáticas
constituem, portanto, um plano de debate e de
encontro para autores e leitores conscientes dos
interesses coletivos que os unem.

Sendo a natureza da rede a de imanência anárquica,


qualquer produção cultural, estando ali para ser
destruída, deriva em novas produções que por sua vez
se conectam, de muitas maneiras, a outras. Por meio de
suas interconexões imanentes, emergem redes em que
cada interagente possui a sua própria rede de
imanência. (BARRETO; PERISSINOTTO, 2002, p.
17) O processo constante de heterogênese que se dá
pelas replicações livres e por procedimentos de
alteridade geram um anarqui-culturalismo e instauram
um jogo livre entre todas as performances a emergir
desse mundo virtual, liberto das mencionadas
instituições transcendentes. Vistos desta forma, muitos
indivíduos, antes atomizados pela cultura massiva têm,
através dos ambientes digitalizados, a possibilidade de

BH, v. 1, n.3, p. 57-69, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


67
se conectar culturalmente entre si, podendo construir
um novo plano de correspondências interativas de
modalidades de expressão.

Portanto, num tempo em que a experiência no espaço


virtual submerge em circunstâncias culturais que
parecem ter sido geradas segundo as suas próprias
regras, talvez seja o momento oportuno de conceber a
produção criativa, como queria FOUCAULT, “não
mais em seu valor expressivo ou nas suas
transformações formais, mas nas modalidades de sua
existência: os modos de circulação, de valorização, de
atribuição, de apropriação”. (1995, p. 268 )

Finalizando, um aspecto sintomático dessa nova


circunstância é o fato de o termo copyleft surgir como
uma divertida contrapartida à bicentenária ideologia da
cultura do copyright. John Perry Barlow, em sua
“Declaração de Independência do Ciberespaço”,
ressalta que os conceitos legais a respeito da
propriedade, da expressão, da identidade e do contexto
não se aplicam mais ao que não está baseado na
matéria. Para esse escritor, informação é relação, um
intercâmbio de significado contínuo no espaço entre
as mentes. Os comportamentos citados acabam por
produzir uma crítica cultural incisiva contra o
bombardeio de uma indústria da cultura global
monolítica, ao “deslocar” os efeitos da colonização da
cultura de massa sobre o ambiente cultural.

É importante abordar, neste ponto, o problema das


relações entre apropriação e transformação. Os
princípios conceituais que norteiam o trabalho desses
produtores em rede justificam-se, em grande medida,
como uma restauração da prática ancestral dos
procedimentos da tradição popular oral, quando uma

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 57-69, mai. 2004


68
obra usava, sem impedimentos, certos materiais já
usados para produzir uma obra subseqüente, tratando
o ambiente cultural como um estoque comum,
acessível a todos, permitindo aos indivíduos
reapropriarem-se, reutilizarem uma idéia preexistente e
envolvê-la em novas variações, tal como os artistas
populares faziam, ao usar livremente esse acervo
comum herdado.

À maneira de Marcel Duchamp e Kurt Schwitters na


prática de conectar com os ready-made, os ciberartistas
também operam segundo princípios de bricolagem e de
descontextualização de elementos, fazendo, de
qualquer coisa, uma matéria de expressão, a partir de
“pedaços” reunidos ou de lados a priori não-
comunicantes entre si. Isso significa que o material
sonoro não é mais redutível a um único ponto de
partida, a um único denominador comum. O que se
privilegia, em última instância, é a fusão da heterogenia
material, o confronto de seus exemplares.

O criador na rede procura excitar as relações virtuais


entre as obras preexistentes e buscar modos de fazer
ecoar uma dentro da outra. Tudo se opera pela
repartição de cada elemento e pela maneira como cada
um age sobre o outro, para entrar em combinações
complexas. Reside aí o potencial da prática de colagem:
ela pode correlacionar dois ou mais elementos sobre
um mesmo plano expressivo e provocar uma unidade
do não-unido, uma ligação intensa do disparatado.
Entre cada operação, exigem-se escolhas muito
cuidadosas no controle do “recortar-e-colar” para que
as novas conexões geradas funcionem juntas. É preciso
quebrar a série, através da cisão: o sentido nasce onde
se corta, como um modo de traçar um crivo no caos,
gerando outras conexões de linhas imprevisíveis.

BH, v. 1, n.3, p. 57-69, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


69

REFERÊNCIAS
BARRETO, R.; PERISSINOTTO, P. A Cultura da Imanência. [S.l]:
Internet Art, [s.d.].
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(org.). The Anti-Aesthetic: essays on postmodern culture. New York: The
NY Press, 2000.
FOUCAULT, M. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001.
HILLIS, K. Tecnologias da realidade virtual: elementos para uma geografia
da visão. Famecos, Porto Alegre, n. 17, abr. 2002.
O’HOURKE, K. Arte e Comunicação, Arte de Redes: práticas e
problemáticas. Cadernos da Pós-Graduação em Comunicação e
Semiótica - PUC-RJ, Rio de Janeiro, [s.d.].
PISCITELLI, A. Meta-cultura: o eclipse dos meios massivos na era
da internet. [S.l]: La Crujía, 2002.
REY, S. A Instauração da Obra no Espaço Virtual. Cadernos da Pós-
Graduação em Comunicação e Semiótica - PUC-RJ, Rio de Janeiro,
[s.d.].

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 57-69, mai. 2004


70
Encontros e confrontos entre saberes
no Projeto Doces Matas: um diálogo
possível? 1

Luciana Braga Paraíso2

Resumo: O discurso sobre a validade do saber tradicional como


forma de conhecimento profundo acerca da biodiversidade e dos
processos de conservação da natureza vem sendo incorporado de
maneira crescente às discussões sobre a relação entre homem e
meio ambiente, além de vir adquirindo força nos projetos de
conservação ambiental. Sendo assim, o esperado diálogo entre os
saberes técnico-científico e tradicional nestes projetos vem
alimentando a implementação de estratégias participativas que
procuram integrar o conhecimento da realidade local ao
conhecimento especializado dos agentes externos de forma que os
objetivos conservacionistas se tornem perenes. No entanto, o
encontro entre os dois saberes não se dá de maneira tranqüila: este
processo é atravessado por diversas questões que vão desde a
dificuldade de comunicação entre técnicos e população local, no
nível das micro-relações, até o nível estrutural dos projetos
conservacionistas, onde muitas vezes não se prevê a participação
de agentes e instituições locais em instâncias decisórias e na
elaboração das estratégias de conservação a serem implementadas.
Este paper propõe-se a discutir como se dá o encontro e o
confronto entre estes dois saberes no trabalho do Projeto Doces
Matas com as comunidades de entorno da Reserva Particular do
Patrimônio Natural (RPPN) Mata do Sossego e como seus atores
lidam com as dificuldades de se implantar um modelo de gestão
participativa nesta Unidade de Conservação. O Projeto Doces
Matas é uma cooperação técnica entre Brasil e Alemanha que visa
a estabelecer um sistema participativo de manejo para a proteção
da biodiversidade em três áreas remanescentes de Mata Atlântica
em Minas Gerais. Como estes saberes se articulam, interagem,
disputam, sobrepõem-se ou dialogam são algumas das questões
1 que nos propusemos a desenvolver neste trabalho.
Este trabalho, realizado
sob a orientação da Prof.
Dra. Andréa Zhouri, é o Palavras-chave: Unidades de Conservação, Conhecimento
resultado parcial da Técnico-Científico, Conhecimento Local, Participação.
pesquisa sobre o Projeto
Doces Matas, desenvolvida
no âmbito do convênio Abstract: The speech about the validity of traditional lore as a type
entre a UFMG e a of deep knowledge on biodiversity and the process of
Universität Greifswald, da conservation of nature has been increasingly incorporated to the
Alemanha. discussions about the relation between man and environment,
2
Mestre em Sociologia;
Professora da Faculdade
Estácio de Sá – Belo
Horizonte.

BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


71
besides gaining force in projects of environmental conservation.
Thus, the expected dialogue between the technical-scientific and
traditional lores in these projects has been fostering the
implementation of participating strategies in order to integrate the
knowledge of the local reality to the external agents’ specialized
knowledge so that the conservationist goals become perennial.
However, the meeting of these two lores does not take place in an
easy way: this process is crossed by several questions, from the
difficulty of communication between technicians and the local
population, in the micro-relations level, up to the structural level of
the conservationist projects, in which one does not preview the
participation of local institutions and agents in realms of decision
and in the development of conservation strategies to be implanted.
This paper proposes to discuss how the meetings happen and the
confrontation between these two lores in the work of Doces Matas
Project along with the surrounding communities from the Mata do
Sossego Private Reservation of the Natural Patrimony and how
their participants deal with the difficulties of implanting a model
of participating management in this Conservation Unit. Doces
Matas Project is a technical cooperation between Brazil and
Germany that aims at establishing a handling participating system
for the protection of the biodiversity in three remaining areas of
Mata Atlântica (Native Forest) in Minas Gerais. The way these
lores are articulated, the way they interact, dispute, overlap or
dialogue are some of the questions we seek to develop in this work.

Key-words: Conservation Units, Technical-Scientific Knowledge,


Local Knowledge, Participation.

INTRODUÇÃO

A preocupação com a conservação da natureza tem


origens remotas. Existem registros de restrições à
prática da caça, pesca e corte de árvores, bem como
da criação de reservas naturais que antecedem a Era
Cristã3. Mas é o século XIX, quando se institui o
Parque de Yellowstone, nos Estados Unidos, que tem
representado o ponto de partida da história da
conservação. O argumento de que é preciso
estabelecer determinados espaços territoriais livres da
presença humana a fim de garantir a preservação da
natureza tem fundamentado a criação de Unidades de 3
Ver exemplos em
DOUROJEANNI e
PÁDUA (2001) e BOUG
(1993).

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004


72
Conservação de Proteção Integral4 em todo o mundo.

Contudo, as percepções sobre o espaço natural, os


objetivos e categorias das Unidades de Conservação
(UCs), assim como as estratégias adotadas para a
conservação têm-se modificado, a partir das
influências históricas e com o surgimento de novas
correntes de pensamento e pressupostos teóricos
acerca da conservação. Também é importante
destacar, neste processo de transformação, a atuação
dos movimentos ambientalistas mais ligados às
questões sociais, em especial as Organizações Não-
Governamentais (ONGs) e dos segmentos da
sociedade em defesa do seu modo de vida e dos
direitos sobre o seu território. Sendo assim, a
perspectiva preservacionista, que considera
incompatíveis a convivência entre homem e natureza,
materializada na criação de Unidades de Conservação
de Proteção Integral, tem sido reavaliada e submetida
à discussão.

A prática da criação de “ilhas de natureza” vem se


tornando objeto de debate na atualidade, encontrando
nos âmbitos ecológico, político e social razões que
questionam a sua viabilidade. Tem-se constatado, por
exemplo, que é preciso interligar as Unidades de
4
De acordo com a lei do Conservação, através da criação de “corredores
SNUC (Sistema Nacional
das Unidades de
ecológicos”, para que haja a dispersão de plantas e
Conservação), de 18 de animais de uma reserva para outra, facilitando o fluxo
julho de 2000, as Unidades
de Conservação são de genes, de forma que as espécies ameaçadas de
espaços territoriais
legalmente instituídos pelo
extinção se fortaleçam e se tornem mais resistentes.
poder público aos quais se Do mesmo modo, amplia-se a discussão sobre a
aplicam garantias
adequadas de proteção. As
necessidade de uma planificação no nível nacional que
Unidades de Conservação estabeleça, de maneira sistematizada, parâmetros para
de Proteção Integral
admitem apenas o uso a criação e definição das categorias de manejo das
indireto de seus recursos, UCs, a fim de que, com uma proposta mais integrada
não sendo permitido
consumo, coleta, dano ou
destruição dos recursos
naturais.

BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


73
de ordenamento territorial, seja aumentado o seu
potencial de conservação.

Em contraposição ao isolamento das áreas protegidas,


é necessária a adoção de uma nova postura que
proporcione o envolvimento das comunidades
vizinhas às UCs. Essa proposta de conservação vem
tomando fôlego, especialmente diante do insucesso de
vários projetos ambientais que se propunham a
trabalhar a conservação sem a participação das
populações locais, o que gerou uma série de conflitos
sócio-ambientais resultantes das restrições à utilização
do solo e dos recursos naturais em áreas protegidas.
As estratégias participativas têm sido, dessa maneira,
consideradas uma importante medida para a resolução
destes problemas, configurando-se em uma
alternativa para assegurar a conservação das UCs a
longo prazo.

Ainda sob uma perspectiva que propõe a interação


entre homem e natureza, o reconhecimento do papel
das UCs na construção de uma sociedade mais
sustentável vem, recentemente, adquirindo força e já
há experiências conservacionistas que têm
incorporado em seu planejamento a difusão de
práticas agroecológicas e o apoio a novas alternativas
de geração de renda junto às comunidades rurais de
entorno das áreas protegidas.

O Projeto Doces Matas pode ser considerado


representativo dessa nova tendência no campo da
conservação, uma vez que se propõe a criar um
sistema de manejo participativo nas áreas onde é
realizado, envolvendo as instituições gestoras e
comunidades do entorno das UCs. Este projeto-
piloto, associado ao PPG7,5 é o resultado de uma
5
Programa Piloto para a
Proteção das Florestas
Tropicais Brasileiras.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004


74
cooperação técnica entre Brasil e Alemanha e atua na
Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN)
Mata do Sossego, Parque Nacional do Caparaó e
Parque Estadual do Rio Doce, administrados pela
Fundação Biodiversitas, IBAMA6 e IEF7,
respectivamente. Estas instituições, juntamente com a
Agência de Cooperação Técnica Alemã GTZ, vêm
implementando o Projeto Doces Matas desde 1995,
sendo que o seu encerramento está previsto para
2005.

Conceitos-chave, como conhecimentos local e técnico


e participação, têm entrado em cena na experiência do
Projeto Doces Matas, por meio do desenvolvimento
de ações cujos objetivos principais são a articulação
interinstitucional e o envolvimento comunitário na
proposta de conservação. A discussão destes
conceitos, a partir da relação dos técnicos do Projeto
com as populações do entorno da RPPN Mata do
Sossego, Minas Gerais, estabelecida através das
atividades do Doces Matas, é foco deste trabalho, que
pretende discutir os alcances e limites de uma política
participativa dirigida à conservação, que é
constantemente atravessada pelo dilema da diferença
entre os saberes técnico-científico e local.

PROJETO DOCES MATAS: DO ESTABELE-


CIMENTO DOS OBJETIVOS À SUA
EFETIVAÇÃO

A RPPN Mata do Sossego, situada no município de


Simonésia, Minas Gerais, possui uma área de 180
hectares que, em conjunto com o seu entorno,
compõe 800 hectares de mata nativa, abrigando vários
elementos da fauna ameaçados de extinção, como o
6
Instituto Brasileiro do monocarvoeiro e a onça parda. Para assegurar a
Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais.
7
Instituto Estadual de
Florestas.

BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


75
preservação das espécies locais, o Projeto Doces
Matas considera essencial o envolvimento dos
agricultores na conservação dos remanescentes de
Mata Atlântica vizinhos à reserva, principalmente
porque vêm sendo utilizadas na região práticas
agrícolas avaliadas como agressivas ao meio ambiente
(uso intensivo de agrotóxicos e demais insumos
químicos, monocultura de café). Além disso, a
pequena extensão das propriedades rurais, variando
geralmente entre 5 e 30 hectares, tem representado
um risco de pressão sobre a mata, mediante a
possibilidade de subdivisão dessas terras entre os seus
herdeiros. (PROJETO DOCES MATAS, 2001)

As iniciativas do Projeto Doces Matas junto às


populações de entorno da RPPN e das demais áreas
protegidas onde atua têm-se caracterizado pela
realização de cursos de capacitação, reuniões dos
técnicos com as comunidades e encontros entre
agricultores. Nessas reuniões, são discutidas
estratégias para promover a disseminação de técnicas
agroecológicas e a organização social das
comunidades, de forma que estas possam desenvolver
práticas mais sustentáveis do ponto de vista sócio- 8
Segundo Mattes, o DRP
ambiental. Adotando uma abordagem participativa consiste em uma
nestas ações, o Projeto Doces Matas tem procurado metodologia de
investigação e prognóstico
proporcionar oportunidades para que a população do da realidade onde será
desenvolvido determinado
entorno interaja com os técnicos e se automobilize trabalho que prevê a
para solucionar questões locais. Metodologias como o participação da população
em todas as suas etapas,
monitoramento participativo das práticas desde a fase de
agroecológicas e o DRP (Diagnóstico Rural identificação dos
problemas locais até à
Participativo)8, são alternativas que buscam integrar o organização de comissões
conhecimento local e o técnico. para solucioná-los. Este
método representa uma
tentativa de estimular uma
Entretanto, contrariamente aos objetivos do Projeto, postura de cooperação
entre os técnicos e os
verificou-se que estes saberes nem sempre dialogam, grupos com os quais se
de forma que, na experiência do Doces Matas, o trabalha, de forma que o
conhecimento da
população local seja levado
em consideração.
(MATTES, 1999)

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004


76
conhecimento científico, em algumas circunstâncias,
sobrepõe-se ao fenomenológico. Dentre as razões
encontradas para que o saber local não goze do
mesmo status daquele trazido pelos técnicos do
Projeto destacam-se o desconhecimento de elementos
culturais significativos e até o não-reconhecimento
destes como relevantes à tarefa de conservação. A
contratação de técnicos especializados que não
compõem a equipe do Doces Matas para assessorar e
acompanhar as ações desenvolvidas com as
comunidades do entorno da RPPN Mata do Sossego
parece agravar a questão. Um dos problemas
observados é que o tempo de que dispõem esses
profissionais para desenvolverem seu trabalho nem
sempre é suficiente para que consigam compreender a
realidade local e as conexões entre a atividade que irão
implementar e o Projeto como um todo. Portanto, se
por um lado ganha-se com a sua experiência e
habilidade na área do conhecimento que dominam,
perde-se em termos de uma visão mais ampla que
englobe tanto os processos nos quais está envolvido o
Doces Matas quanto a complexa realidade das
populações locais. Como conseqüência, observa-se a
sobreposição de atividades, a descontinuidade das
ações e a percepção fragmentada das comunidades
locais sobre o que é o Projeto, que acaba sendo
compreendido como uma série de intervenções
pontuais.

Nota-se, também, momentos em que vêm ocorrendo


dificuldades na comunicação entre estes técnicos e as
comunidades onde atuam. Assim, a população local,
em diversas circunstâncias, não entende a linguagem
desses profissionais. Do mesmo modo, algumas
formas de expressão do conhecimento popular sobre
o mundo natural, muitas vezes diferentes daquelas

BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


77
desenvolvidas pela ciência moderna, não são
compreendidas pelos técnicos.

Para CARVALHO (2001), o meio ambiente é passível


de várias leituras, o que faz da “realidade ambiental”
uma “realidade da interpretação ambiental”.
Diferentemente da concepção de um “sujeito-
observador”, situado fora do tempo histórico e que
perseguiria os sentidos reais, verdadeiros,
permanentes, interage com a natureza o “sujeito-
intérprete”, que produz significados a partir do seu
horizonte social e histórico.

DIEGUES (2000), com uma abordagem semelhante,


destaca o novo enfoque dado à conservação, que tem
permitido compreender o mundo natural como uma
“paisagem” (estrutura espacial que resulta da
interação entre os processos naturais e atividades
humanas) construída por diferentes olhares.

Nesta perspectiva, é possível afirmar que, no campo


de atuação do Projeto Doces Matas defrontam-se
percepções sobre o ambiente que nem sempre são
convergentes, contradizendo-se e confrontando-se
inúmeras vezes. Há conflitos de legitimidade
pontuando o encontro entre estes saberes,
caracterizando as interações entre técnicos e
população local como relações de poder. A seguir,
analisaremos como os representantes das
comunidades rurais, da Ampromatas (ONG
ambientalista local) e do Projeto Doces Matas têm
compreendido o espaço onde vivem e atuam, de
acordo com a sua trajetória pessoal e inserção social,
e como as atividades do Projeto têm negociado com
estas interpretações.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004


78
AS COMUNIDADES RURAIS DO ENTORNO
DA RPPN: REPRESENTAÇÕES E ATUAÇÕES
SOBRE O ESPAÇO

Para além do pensamento ocidental moderno, que


compreende como distintos os mundos natural e
humano, as comunidades rurais do entorno da RPPN
parecem ter construído uma outra forma de explicar
o seu espaço. Embora as relações estabelecidas entre
os moradores e o seu meio pressuponham
classificações e atitudes diferenciadas, dependendo
do lugar onde estes atuam, as categorias criadas pelas
comunidades observadas para entender e descrever
estes espaços transitam entre os universos social e
natural, sem contudo estabelecer rupturas entre estes
dois mundos, como as observadas no paradigma
dominante do conhecimento.

Observa-se, por exemplo, uma concepção do espaço


que distingue a natureza cultivada (lavouras) da não-
cultivada (mato), provavelmente devido à prática
continuada do monocultivo de café na região, que
tem suas raízes em um modelo econômico que
desvalorizava a diversificação agrícola e que não
concedia apoio financeiro a produtos consorciados e
que conviviam com outras espécies de vegetação. A
baixa produtividade das propriedades da região,
resultado do desgaste da terra em função da
monocultura, tem, historicamente, fortalecido essa
contraposição, uma vez que o corte da mata nativa
para a ampliação das lavouras é utilizado como uma
alternativa para o aumento da produção9. Neste
9
Essa prática tem sido
sentido, a Mata do Sossego tem sido identificada com
coibida pela legislação a contenção da expansão da agricultura e limitação do
ambiental, que prevê
multas caso os trabalho.
proprietários rurais não
mantiverem uma reserva
legal de mata nativa com
20% do tamanho do
terreno.

BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


79
Da mesma forma, alguns animais nativos são vistos
como entraves ao trabalho na lavoura. As histórias e
anedotas sobre onças, cobras e queixadas10 retratam
esses bichos devorando plantações, perseguindo
lavradores, ferindo e matando os animais domésticos.

Se a Mata do Sossego, no universo do trabalho, é o


espaço que afronta o homem, no âmbito da memória,
é o lugar onde os mundos natural e humano se
entrecruzam. Nos depoimentos de moradores mais
antigos das comunidades locais, observa-se que, no
passado, a Mata se configurou em um ambiente de
convivência e estreitamento dos laços sociais. Sob
este aspecto a Mata detinha significados, histórias; era
um “lugar”. Giddens, em sua discussão sobre a
modernidade, distingue “espaço” de “lugar”.
Segundo o autor, “lugar” é a porção do ambiente
transformada pela ocupação, pelo uso, marcado pela
presença e prenhe de significação social. O “espaço”,
por outro lado, seria a extensão que escapa ao
contato físico nas suas mais diversas manifestações.
(GIDDENS, 1991)

A introdução do cultivo de café na região fez com


que os antigos moradores da Mata procurassem
outros lugares, com melhores condições de
produção. As terras foram, então, abandonadas e,
conseqüentemente, romperam-se os laços dos
moradores das comunidades vizinhas com a Mata do
Sossego.

O Projeto Doces Matas tem-se revelado um


reconstituidor dos laços desfeitos com a Mata do
Sossego ao mediar a relação entre os moradores de
entorno e a RPPN. Com a realização de cursos e
reuniões na Mata, um novo convívio com este espaço
natural vem se estabelecendo. Se antes eram as festas
Espécie de porco-do-
10

mato.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004


80
que levavam as pessoas até à Mata do Sossego, hoje
são as discussões sobre conservação da natureza e
sustentabilidade social que reconfiguram este
“espaço” como um “lugar”, ao qual se atribuem
novos sentidos.

Verifica-se, portanto, que a compreensão do meio


ambiente, evidenciada pelas comunidades rurais do
entorno da RPPN, não é pautada nem pela oposição
entre mundo humano e natural, já que homem e
natureza permanecem imbricados na percepção
destes moradores, nem por uma relação de simbiose
entre ambos, uma vez que, como já foi dito, a Mata é
também um obstáculo para a atividade agrícola. Para
as comunidades do entorno da RPPN contrapõem-se
o “espaço doméstico” (relativo às lavouras e à
“criação”) e o “espaço selvagem”, (aquele que não é
dominado pelo homem, hábitat dos animais
“perigosos”).

Tendo isso em vista, avalia-se que as práticas agrícolas


utilizadas na região, tidas como danosas ao meio
ambiente, não podem ser parâmetro para identificar
as concepções das comunidades do entorno sobre a
natureza. Conforme foi exposto anteriormente, há
vários meandros nessa relação, revelando, inclusive, a
importância da Mata do Sossego como espaço de
reprodução social dessas comunidades. Neste sentido,
a natureza não parece estar separada das demais
dimensões da vida social. Isto justifica o tratamento
dos temas natureza e conservação sob uma
perspectiva que considere as referências do trabalho e
a realidade das comunidades do entorno da RPPN,
levando-se em conta o conhecimento local manifesto
nesta maneira particular de relação com o meio
ambiente. Dessa forma, o processo de comunicação

BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


81
do Projeto Doces Matas com as comunidades do
entorno poderia se tornar mais eficiente.

Partindo do pressuposto de que é segundo o sistema


de representações, símbolos e mitos que as
populações agem sobre o meio natural (DIEGUES,
2001), a forma de compreensão do mundo expressa
pelas comunidades do entorno da RPPN é elemento
decisivo para a elaboração de estratégias para a
conservação que sejam plenamente absorvidas pela
agenda local. Essa preocupação já tem transparecido
na atuação do Projeto, haja vista a organização de
cursos e reuniões no espaço da RPPN, que
incentivam a utilização de técnicas sustentáveis na
agricultura e o apoio aos grupos comunitários locais,
que vêm se configurando em medidas para alcançar a
sustentabilidade socioambiental. Observa-se a
preocupação do Doces Matas em tratar a questão da
conservação sob uma perspectiva que considere a
experiência dos moradores com o seu meio.

Mas o estatuto de superioridade de que desfruta o


conhecimento técnico-científico diante do
conhecimento local, observado em determinados
momentos da experiência do Doces Matas com a
população de entorno da RPPN, tem dificultado a
instauração de uma relação horizontal entre técnicos e
moradores e o alcance de “participação interativa”11,
que se reflita, conseqüentemente, no estabelecimento
de parcerias em prol da proteção da Mata do Sossego.
A seguir serão discutidas as dificuldades na 11
PIMBERT e PRETTY
(2000) propõem que a
implementação do Projeto, e em se promover a participação seja classi-
ficada em vários níveis, de
comunicação entre os saberes local e técnico- acordo com o grau de
científico. envolvimento dos atores
sociais. A “participação
interativa”, segundo estes
autores, ocorre quando os
técnicos e a população
realizam análises conjuntas
e detêm, ambos, o controle
sobre as decisões locais.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004


82
AS EXPERIÊNCIAS DO PROJETO DOCES
MATAS COM AS COMUNIDADES RURAIS

Uma das atividades desenvolvidas com os agricultores


do entorno da RPPN Mata do Sossego envolve a
disseminação de técnicas agrícolas sustentáveis12.
Através da realização de cursos e palestras, e da
organização de visitas dos agricultores a propriedades
rurais onde se pratica a agroecologia, o Projeto Doces
Matas tem incentivado o emprego de técnicas
agrícolas que não agridam o meio ambiente e que
possam aumentar a produtividade das lavouras,
melhorando a qualidade do café. Também já se cogita
produzir o café orgânico, com melhor preço no
mercado.

Este processo, que tem se efetivado com a formação


de um grupo de “experimentadores” das técnicas
agroecológicas e da realização de um “monitoramento
participativo”, em que técnicos e população local
registram observações sobre as lavouras e trocam
experiências entre si, tem possibilitado um real
compartilhamento de informações. Inclusive,
observamos uma crescente adesão de outros
moradores da região às práticas agroecológicas, o que
indica a convergência entre os interesses dos
agricultores e do Projeto Doces Matas.

Por outro lado, constatamos que, no intercâmbio entre


técnicos e agricultores, o saber local ainda não obteve
o merecido destaque. Em algumas circunstâncias, a
lógica técnico-científica tem prevalecido e dificultado
uma equivalência entre os saberes. Verificamos esse
fato durante a realização de uma oficina com o grupo
12
Adubação Verde, utiliza- de experimentadores, que visava a discutir o
ção do “Supermagro” monitoramento participativo. Esta atividade foi
(biofertilizante) nas
plantações e a prática da
agrossilvicultura (plantio de
árvores na lavoura).

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83
marcada pelos extremos, da intensa participação ao
total desinteresse dos agricultores. Alguns entraves
verificados na oficina de monitoramento pareceram
estar relacionados a aspectos metodológicos desta
atividade, que exigiam habilidades cognitivas próprias
de um “saber escolarizado”13 que, com poucas
exceções, os agricultores não detinham. Porém, uma
concepção mais ampla desta problemática nos leva a
crer que os problemas de comunicação deveram-se
fundamentalmente a razões sociais que se
apresentaram como distintas e que não convergiram
em determinados momentos da oficina: a lógica
instrumental científica (que separa saber prático e
saber racional) contrapondo-se à lógica camponesa,
que articula estes dois saberes na compreensão do
processo produtivo.

Assim como a linguagem técnica mostrou-se de certa


forma inacessível aos agricultores que participaram da
oficina, algumas formas de expressão do
conhecimento local não parecem ter sido interpretadas
pelos técnicos como significativas para a atividade de
monitoramento das lavouras. E, não se empreendendo
um processo de “tradução” de uma linguagem para
outra, prevaleceu aquela que teve mais força, a
linguagem dos técnicos. Pode-se constatar tal
afirmação na forma como foram elaboradas as fichas
de monitoramento das roças. Modelos de registro de
avaliação da lavoura e de controle do trabalho na roça
apresentados por agricultores não foram utilizados
como referência para a elaboração do material que iria
sistematizar as observações dos agricultores sobre suas
plantações. Teria sido uma boa oportunidade de
conjugar o conhecimento local já existente sobre o
assunto e as novidades trazidas pelos técnicos, 13
Organização das idéias
promovendo-se, dessa forma, a abertura de um discutidas e dos temas
apresentados em fluxo-
gramas, fichas de registro,
tabelas, gráficos, etc.

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84
importante canal de comunicação entre o Projeto e os
agricultores, além de proporcionar uma participação
mais interativa entre os dois grupos.

Há também, nas comunidades do entorno da RPPN,


uma prática que poderia ser aproveitada no trabalho
do Projeto com as técnicas agroecológicas: o cultivo
de produtos variados no espaço das hortas domésticas.
Esta atividade tem se revelado um exemplo concreto
de agricultura sustentável, uma vez que, além da
variedade de produtos cultivada, não são utilizados
insumos químicos. A valorização da experiência das
hortas talvez contribuísse para que as novas
informações trazidas pelos técnicos do Projeto fossem
melhor assimiladas, aceitas e implementadas nas
lavouras de café, já que seriam o resultado do
aprofundamento do conhecimento local.

Uma outra experiência do Projeto Doces Matas com as


comunidades do entorno da RPPN foi a capacitação de
grupos comunitários (Associação de Moradores da
Comunidade Bom Jesus, Associação de Moradores das
Comunidades Eliotas-Teixeiras-São Sebastião e a
Comissão de Mulheres do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais). Esta atividade configurou-se em uma tentativa
de valorizar e apoiar experiências locais de mobilização
social. Através dos encontros de capacitação pretendia-
se articular o saber fenomenológico, adquirido nessas
vivências das comunidades, às estratégias
organizacionais e aos demais conteúdos trazidos por
um técnico especializado em questões de geração de
renda e estruturação de associações e cooperativas. O
objetivo central dessa atividade era instrumentalizar
estes grupos para a interlocução com órgãos técnicos,
participação em instâncias consultivas e decisórias
governamentais, reivindicação de direitos e criação de

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85
novas alternativas de renda. Além disso, os encontros
de capacitação pretendiam formar planos de ação para
cada grupo.

As demandas das organizações comunitárias em


relação à capacitação distinguiam-se entre si, uma vez
que os grupos pareciam estar atravessando diferentes
momentos na condução dos seus trabalhos. Não há,
contudo, evidências nos relatórios desta atividade de
que as experiências dos grupos tenham tido um espaço
específico na capacitação. Também não foi realizado
um balanço das ações já desenvolvidas pelos grupos
em suas respectivas comunidades.

De acordo com SILVA (2001), privilegiou-se a


elaboração de metas e a delimitação do campo de
atuação, tarefa fundamental para grupos que estão se
formando. Desse modo, os grupos pareciam estar
vivenciando nesta capacitação momentos pelos quais já
haviam passado.

Cabe discutir as razões que podem ter levado ao


reinício de um processo que já estava, nas experiências
dos grupos, em um estágio mais avançado. Duas
hipóteses mostram-se plausíveis: ou não se conhecia a
real situação em que eles se encontravam ou não se
considerava a sua experiência como legítima. Neste
último caso seria preciso, então, reformular as
propostas e objetivos dos grupos. A partir da leitura
dos relatórios e da entrevista realizada com a
consultora responsável por esta atividade, pode-se
afirmar que a falta de acesso a um conhecimento mais
profundo sobre a realidade local tenha dificultado o
alcance de importantes informações sobre os
diferentes momentos que os grupos comunitários
atravessavam.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004


86
SILVA (2001) afirma que a experiência dos grupos,
relativamente à questão produtiva, foi aproveitada,
tendo sido bem articulada às informações trazidas
através dos textos trabalhados e à exposição da
moderadora do curso. Mesmo assim, alguns problemas
de comunicação parecem ter ocorrido durante a
capacitação. Talvez a presença do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Simonésia nos trabalhos
desenvolvidos durante a capacitação tivesse
proporcionado a mediação entre a linguagem de um
agente externo e a comunidade local, traduzindo os
termos mais técnicos, ou ilustrando as noções
apresentadas com exemplos de situações mais
familiares aos participantes do curso. Esta poderia ter
sido uma maneira de reduzir os entraves de
comunicação.

Embora tenham surgido problemas na articulação


entre os saberes técnico e local, a atividade de
capacitação conseguiu estabelecer links importantes
com os grupos trabalhados. Os planos de ação da
Associação de Moradores da Comunidade Bom Jesus e
da Comissão de Mulheres, elaborados durante o curso,
estavam bem relacionados às expectativas que
apresentaram no início da capacitação. Da mesma
forma, o curso teve diferentes repercussões em cada
grupo e as propostas levantadas durante essa atividade
do Projeto Doces Matas podem vir a se reverter em
ações práticas nas comunidades. Assim, a Comissão de
Mulheres e a Associação de Moradores das
comunidades Eliotas-Teixeiras-São Sebastião estão
pensando em organizar, no espaço do sindicato, no
centro urbano de Simonésia, uma feirinha para
comercializar doces caseiros e hortaliças. Além disso,
pretendem articular, junto à prefeitura, o fornecimento
de alguns produtos agrícolas para a merenda escolar do

BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


87
município. Alguns membros da Associação de
Moradores do Bom Jesus têm feito cursos de
orientação para o crédito, gestão social e vêm
organizando um curso de computação para atender à
comunidade.

A análise desta atividade do Projeto Doces Matas


evidencia a abertura das comunidades para trabalhar
alternativas diferentes das que vinham sendo
adotadas até então. Percebeu-se, entre os moradores,
manifestações de interesse por novas estratégias de
organização comunitária e da atividade agrícola. Da
mesma forma, observou-se, por parte do Projeto, uma
tentativa de, através da capacitação dos grupos da
região de Simonésia, valorizar as formas de atuação
local, fornecendo elementos de um conhecimento
especializado no estudo das organizações,
disponibilizando informações às quais os moradores
dificilmente teriam acesso. Se já havia canais abertos
para o fluxo e a articulação entre os saberes local e
técnico-científico, é possível cogitar que as dificuldades
na sua comunicação deram-se, então, no momento de
tradução de um universo significativo para o outro.
Talvez este problema fosse minimizado se o Projeto
Doces Matas tivesse concedido mais tempo ao
consultor dessa atividade para que ele pudesse
conhecer mais profundamente o funcionamento das
organizações locais. Uma outra possibilidade seria
contar com a mediação das instituições locais, como a
Ampromatas e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais.

O processo participativo pressupõe a equivalência


entre os saberes. Portanto, o acesso da população local
ao saber especializado trazido pelos agentes técnicos
pode colaborar para o equilíbrio entre as relações dos
atores de grupos sociais distintos. Mas um efetivo

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004


88
intercâmbio entre Projeto e comunidades só se torna
possível na medida em que se atribui legitimidade à
experiência local.

ALGUNS CONFLITOS E A BUSCA DE


SOLUÇÕES NA RELAÇÃO AMPROMATAS,
PROJETO DOCES MATAS E RPPN MATA DO
SOSSEGO

De maneira inversa às comunidades rurais, que


perderam o contato com a Mata, quando esta foi
desocupada pelos agricultores que lá viviam, os
moradores da cidade valeram-se deste fato para
poderem freqüentar livremente esse espaço. Assim,
realizavam caminhadas, piqueniques e passeios sem
sofrerem nenhum tipo de restrição. A Mata do
Sossego representava a alternativa de lazer, o ambiente
das amenidades, do descanso e oferecia a
oportunidade de um convívio social que resultava da
busca do deleite com as belezas cênicas.

Nos anos 80, ao descobrir a existência de macacos


monocarvoeiros na Mata, um grupo de pessoas de
Manhuaçu e Simonésia formaram uma ONG, a AMA
(Amigos do Meio Ambiente). Periodicamente, o grupo
visitava a Mata para observar e fotografar os macacos,
além de realizar campanhas de educação ambiental na
região, distribuindo cartazes, folders e exibindo filmes
educativos. Após arrecadar recursos junto a
organizações de outros países, a AMA comprou
algumas terras de agricultores da região, as quais
posteriormente seriam adquiridas pela Fundação
Biodiversitas para a criação da RPPN.

Durante um episódio de desmatamento autorizado pelo


IEF em uma área de floresta próxima à reserva, surge

BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


89
a Ampromatas. Trata-se de uma outra ONG, dissidente
da AMA, formada basicamente por pessoas de
Simonésia, e que iria também defender a Mata do
Sossego. A AMA encerrou sua atuação na região e
passou a trabalhar apenas em Manhuaçu.

Embora a AMA e a Ampromatas estivessem


interessadas em proteger a Mata do Sossego, não se
cogitava o isolamento dessa área do contato humano.
Pelo contrário, eram os passeios e visitas à Mata que
garantiam, na visão destes moradores, a sua
preservação. Quando a Mata do Sossego tornou-se,
enfim, uma RPPN, gerida pela Fundação Biodiversitas,
conflitos de uso deste espaço começaram a surgir, uma
vez que no manejo dessa categoria de UC são
estabelecidas várias restrições (número de pessoas por
grupo visitante, zonas interditadas à visitação, etc).

O Projeto Doces Matas tem respondido a esta demanda


por um maior acesso à RPPN de maneira interessante e,
ao apoiar a realização de cavalgadas anuais dos
moradores do núcleo urbano de Simonésia na RPPN,
vem conseguindo minimizar este conflito. Mesmo que
essa atividade traga alguns riscos para a reserva, ela é
admitida em função de uma melhor relação com a
população local, passando a ser um pretexto para a
divulgação dos ideais conservacionistas. Sendo assim, a
cavalgada tem sido programada para a Semana do Meio
Ambiente, quando os cavaleiros vão às comunidades da
região para distribuir panfletos contra as queimadas e
para incentivar a proteção da Mata do Sossego.

A Ampromatas também tem reivindicado uma


participação mais efetiva no Doces Matas, uma relação
de parceria que a posicione no patamar das demais
instituições articuladoras do Projeto (IEF, IBAMA,

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004


90
Fundação Biodiversitas e GTZ). Mas esta ONG,
segundo a estruturação do Projeto, está enquadrada
dentro da categoria “instituição local”, cuja participação
é prevista apenas em grupos temáticos, os quais não
têm o poder decisório que a Ampromatas deseja. Para
defender uma participação mais interativa na
implementação do Doces Matas, a Ampromatas tem
argumentado sobre a intermediação que vem realizando
entre comunidade e técnicos.

A estrutura do projeto, no entanto, não impede que haja


uma flexibilização diante das demandas que vão se
impondo ao longo do seu desenvolvimento. Os
próprios atores locais têm exercido influência sobre o
planejamento do Doces Matas, provocando alterações e
readaptações. A Bambuzeria, uma experiência de
geração de renda realizada com a população do centro
urbano de Simonésia, é um exemplo de conflito que foi
contornado através de negociações entre a Ampromatas
e o Projeto. Esta ONG, que reivindicava o
gerenciamento da Bambuzeria está tendo, agora, a
oportunidade de conduzir este empreendimento.

A exposição destas situações de encontros e confrontos


entre os saberes técnico-científico e local, revelados na
interação do Projeto Doces Matas com as populações
do entorno da RPPN, estimulam uma discussão a
respeito da possibilidade de haver uma relação de
complementaridade entre estes conhecimentos. Para
PIMBERT e PRETTY, os conhecimentos dos
especialistas são limitados, e “(…) precisam ser
efetivamente combinados com a força do
conhecimento e experimentação locais, pela atribuição
de poder à população nativa mediante a modificação
dos papéis e das atividades convencionais”. (2000, p.
201)

BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


91
Como já foi levantado, há vários indícios de que o
insucesso em se alcançar determinados resultados nas
ações do Projeto Doces Matas decorra do não-
reconhecimento do saber local como peça
fundamental na implementação da proposta de
conservação. Por outro lado, é preciso também
ressaltar que as populações do entorno da RPPN têm
ansiado por um saber sobre o qual ainda não tiveram
acesso. A aquisição deste novo conhecimento é vista
como uma ferramenta que poderá ser extremamente
útil na sua atuação sobre o meio em que vivem, bem
como na implementação do Projeto Doces Matas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É fato que a questão ambiental e, conseqüentemente,


a conservação da natureza, continua sendo matéria do
saber técnico-científico, ainda que as reivindicações
pela valorização do conhecimento tradicional sejam
crescentes nos dias de hoje. Isto nos leva a crer que,
mesmo diante da emergência da possibilidade de um
novo saber que rearticule as relações sociedade-
natureza, o paradigma fragmentário do conhecimento
moderno ainda prevalece. Assim, os esforços do
Projeto Doces Matas em empreender uma prática que
consiga realmente alcançar a plena participação da
população local têm sido minados por uma
racionalidade que não é sensível às diferenças culturais
e que se impõe sobre as demais formas de
compreensão do mundo como sendo a única
verdadeira ou definitiva.

Mas as experiências descritas aqui não motivam um


olhar pessimista sobre a busca da sustentabilidade em
suas mais variadas dimensões (ambiental, social,
política, cultural...). Pelo contrário, acenam para um

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004


92
paradigma emergente, que, em fase de gestação, já
começa a formar um saber que é o ponto de
condensação entre o empírico e o simbólico, o ideal e
o material, reintegrando a ordem social dentro da
natureza. (LEFF, 2001)

O Projeto Doces Matas enfrenta o desafio que se


expressa na relação entre os conhecimentos local e
técnico-científico, que exige amplas articulações e
hibridações as quais, mesmo se efetivando, ainda não
conseguem anular as relações de poder. A Mata do
Sossego, espaço da interseção entre os saberes, ainda é
um lugar onde os conflitos se materializam e a sua
resolução pressupõe a instauração de um processo de
“ambientalização interdisciplinar do saber” (LEFF,
2001). É o que Leff chama de “racionalidade
ambiental”, conjunto de valores, significações e
objetivos que orientam um processo de reconstrução
social, pautado na mudança dos paradigmas do
conhecimento. Esta racionalidade, para se constituir,
requer a formação de um saber ambiental que seja
capaz de levantar a questão da diversidade cultural no
conhecimento da realidade.

A instauração desta nova postura sobre o meio


ambiente ainda é um caminho longo e há muito a se
percorrer para que todas as formas de conhecimento,
inclusive os saberes esquecidos e subjugados pelo
conhecimento dominante, sejam reincorporados no
processo de conservação. Desse modo, ao possibilitar
que as comunidades locais se reapropriem do
conhecimento sobre o seu meio, ao mesmo tempo em
que revejam suas práticas e estabeleçam uma atitude
mais sustentável em relação à natureza, a proposta de
conservação ambiental do Doces Matas passa a ser
apenas um dos itens de um projeto mais amplo, com

BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


93
todas as chances de tornar-se pauta na agenda social
das comunidades locais. Ao procurar desenvolver uma
alternativa capaz de promover, mobilizar e articular os
processos naturais e sociais e os saberes relativos a
eles, o Projeto Doces Matas pode tornar-se referência
importante, abrindo perspectivas para a construção de
uma nova racionalidade e de uma sociedade
efetivamente sustentável.

REFERÊNCIAS

BOURG, D. Os sentimentos da natureza. Lisboa: Ed. Instituto Piaget,


1993.
CARVALHO, I. A invenção ecológica: narrativas e trajetórias da
educação ambiental no Brasil. Porto Alegre: Editora da Universidade,
2001.
DIEGUES, A.(org). Etnoconservação da natureza: enfoques alternativos.
In: Etnoconservação: novos rumos para a conservação. São Paulo:
Hucitec, 2000.
_____. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília:
Ministério do Meio Ambiente, 2001.
DOUROJEANN, M.; PÁDUA, M. Biodiversidade, a hora decisiva.
Curitiba: UFPR, 2001.
GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Unesp,
1991.
LEFF, E. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade,
poder. Petrópolis: Vozes, 2001.
PIMBERT, M.; PRETTY, J. Parques, comunidades e profissionais:
incluindo “participação” no manejo de áreas protegidas. In: DIEGUES, A.
(org.) Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos
trópicos. São Paulo: Hucitec, 2000.
PROJETO DOCES MATAS. Conservação e manejo dos recursos
naturais da Mata Atlântica em Minas Gerais: Relatório de Avaliação.
Belo Horizonte, 2001.
SILVA, Z.G. Metodologia dos encontros de planejamento com
grupos comunitários de Simonésia, MG. Belo Horizonte: [s.n.], 2001.
35p. Relatório técnico.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 70-93, mai. 2004


94
Brasil, Portugal e os processos
identificatórios
Ricardo Moreira Figueiredo Filho1

Resumo: Utilizando-se de fontes literárias, este artigo pretende


pontuar, a partir do século XIX, a acomodação dos conceitos de
cultura, civilização e identificação em Portugal e no Brasil.
Pretendemos investigar como esses dois países se colocam frente
ao espírito da Belle Époque e como, atravessando o Atlântico, seus
olhares se entrecruzam.

Palavras-chave: Cultura, Civilização, Identificação, Desterro,


Brasil, Portugal.

Abstract: Stemming from literary sources, this article intends to


pinpoint the accommodation of the concepts of culture,
civilization and identification in Portugal and in Brazil, from the
XIX Century onwards. We also intend to investigate how these two
countries react to the spirit of the Belle Époque and how, by crossing
the Atlantic, they regard each other.

Key-words: Culture, Civilization, Identification, Expatriation,


Brazil, Portugal.

Eia eletricidade, nervos, doentes da Matéria!


Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica
do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! Eia!
Eia! Eia! Eia! 2

INTRODUÇÃO

Tentaremos, neste breve artigo, perceber os processos


formadores identificatórios de Portugal e do Brasil,
1
Mestre em História durante as últimas três décadas dos Oitocentos.
Moderna e Contemporânea
pela Faculdade de Letras do Examinaremos como se formalizaram e delimitaram as
Porto, Portugal. Professor imagens e representações de si mesmos e entre os dois
de Culturas Políticas e
Sociais Brasileiras na países, levando-se em conta que essas construções
Faculdade Estácio de Sá –
Belo Horizonte.
partem de uma mesma base civilizacional,
2
Fernando Pessoa – Álvaro
de Campos, “Ode
Triunfal”.

BH, v. 1, n.3, p. 94-115, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


95
essencialmente européia. Em um primeiro momento,
serão analisadas as formações e as conotações que
passam a simbolizar os conceitos de “civilização” e
“cultura” no mundo ocidental, principalmente na
Alemanha, França e Inglaterra. Em seguida,
pontuaremos as características específicas lusitanas e
brasileiras.

CULTURA E CIVILIZAÇÃO: CONSTRUÇÕES E


REPRESENTAÇÕES

O século XVIII é considerado o período da formação


do sentido moderno da palavra “cultura”. Vindo do
latim, o termo “cultura” significa “o cuidado
dispensado ao campo ou ao gado”, e aparece nos fins
do século XIII para designar “uma parcela de terra
cultivada”. No começo do século XVI, ele passa a
designar uma aptidão, ou seja, o fato de trabalhar para
desenvolvê-la. Mas até meados do século XVII, terá
pequena amplitude no meio acadêmico, não sendo
registrado pela maior parte dos dicionários da época.
Somente em 1718 faria sua entrada no Dicionário da
Academia Francesa.

Durante os Setecentos, impregnados pelo


universalismo iluminista, o termo cultura será sempre
empregado no singular, como “condição do próprio
homem, associado às idéias de progresso, de evolução
e razão”, tendo encontrado na França seu centro
propulsor, embora tenha nascido na Inglaterra. 3
Termo francês usado para
Percorre, a partir daí, toda a Europa Ocidental, caracterizar o otimismo do
final do século XIX,
principalmente os grandes centros urbanos como marcado pelas conquistas
industriais e tecnológicas,
Amsterdã, Berlim, Lisboa, Milão, Madri e Roma, onde pelo crescimento urbano e
irá formar o cerne do otimismo que dará fôlego ao pelas idéias deterministas
do darwinismo social,
espírito da Belle Époque.3 O termo “cultura” está, então, destacando e demons-
muito próximo de outra terminologia que terá um trando as excelências da
cultura européia ocidental
em oposição às outras, que
passam a ser categorizadas
como inferiores.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 94-115, mai. 2004


96
grande sucesso no vocabulário francês: “civilização”.
Às vezes associadas, elas não têm, porém, o mesmo
sentido. Cultura remete principalmente aos progressos
individuais, enquanto que civilização, aos processos
coletivos.

O conceito de civilização, que também emergiu no


sentido moderno durante o século XVIII, pode se
referir a um vasto leque de fatos: ao nível técnico, aos
costumes religiosos, aos hábitos cotidianos, às idéias
científicas e a outras diversas peculiaridades. Mas se
for analisada qual a sua função geral, segundo Nobert
Elias, expressará “a consciência que o Ocidente tem
de si mesmo. Poderíamos até dizer a consciência
nacional. Ele resume tudo em que a sociedade
ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga
superior a sociedades mais antigas ou a sociedades
contemporâneas [tidas como] ‘mais primitivas’”
(ELIAS, 1990, p. 23)

A “civilização” será um movimento não-acabado, um


processo em aberto, cuja amplitude deve tocar a
sociedade como um todo, começando pelo Estado,
cujo dever seria o de se desfazer de sua irracionalidade
funcional e de apoiar sua propagação a todos os
povos que compõem a humanidade, arrancando-os
dessa sua ignorância teocêntrica, medieval. As idéias
otimistas de progresso, inscritas nas noções de cultura
e civilização, passam a ser consideradas como uma
forma de substituição das expectativas religiosas,
colocando o homem no centro das reflexões e
atenções.

Porém, “civilização” não carrega a mesma


significação para diferentes nações ocidentais, o que
também explica as diferenças de representações entre

BH, v. 1, n.3, p. 94-115, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


97
essa e “cultura”. Enquanto que para os ingleses e
franceses “civilização” representa o orgulho do papel
de suas nações dentro do processo histórico
ocidental, para os alemães, Zivilization possui um valor
considerável, mas de segunda ordem, compreendendo
apenas a superficialidade da existência humana. A
palavra pela qual os alemães se orgulham e se
percebem é Kultur.

De fato, contrariamente à situação francesa, a


burguesia e a aristocracia alemãs não possuíam laços
estreitos entre si, o que alimentava um certo
ressentimento, principalmente entre os intelectuais
que, na segunda metade dos Setecentos, vão opor os
valores chamados “espirituais”, constituídos a partir
das ciências, das artes, das filosofias e também das
religiões, aos valores “corteses” da aristocracia. Esses
intelectuais, freqüentemente saídos dos meios
acadêmicos, criticavam os príncipes por governarem
os diversos Estados alemães, abandonando as artes e
literaturas germânicas e consagrando a maior parte de
seu tempo às cerimônias afrancesadas da corte:
Tudo o que é autêntico e que contribui para o enriquecimento
intelectual e espiritual será considerado como vindo da cultura: ao
contrário, o que é somente aparência brilhante, leviandade,
refinamento superficial, pertence à civilização. A cultura se opõe à
civilização como a profundidade se opõe à superficialidade.”
(CUCHE, 1999, p. 25)

Outra diferença entre os dois conceitos é que


civilização descreve um processo, um movimento
ininterrupto, enquanto que o conceito alemão de
Kultur delimita, empregando uma relação contrária à
de movimento, um sentimento de intrinsicosidade, de
individualidade de um povo. Em outras palavras,
“civilização” tenta minimizar as diferenças nacionais,
enfatizando o que é comum a todos os seres

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 94-115, mai. 2004


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humanos, e Kultur dá ênfase especial às diferenças e às
singularidades. Ou ainda, nas palavras de Nobert
Elias,
Enquanto o conceito de civilização inclui a função de dar
expressão a uma tendência continuamente expansionista de grupos
colonizadores, o conceito de Kultur reflete a consciência de si
mesma de uma nação que teve de buscar e constituir
incessantemente e novamente suas fronteiras, tanto no sentido
político como espiritual, e repetidas vezes perguntar a si mesma:
“Qual é, realmente, nossa identidade?” (ELIAS, 1990, p. 25)

Na França, a evolução da palavra “cultura” durante os


Oitocentos será diferente do sentido alemão, que
permanece quase inalterado em relação à centúria
anterior. Ela ultrapassa as fronteiras do
desenvolvimento intelectual individual e toma uma
simbologia mais vasta e imprecisa. “Cultura” está
muito próxima da palavra “civilização” e às vezes é
vista ou referenciada como seu sinônimo. Em uma
conferência pronunciada na Sorbonne, em 1882,
Ernest RENAN afirma que: “Antes da cultura
francesa, da cultura alemã, da cultura italiana, existe
uma cultura humana.” (apud CUCHE, 1999, p. 30)
Ainda mais: dentro da idéia universalista francesa que
acompanha a concepção de nação explicitada com a
Revolução, RENAN disserta, ainda, que “pertencem à
nação francesa (...) todos os que se reconhecem nela,
quaisquer que sejam suas origens.” (apud CUCHE,
1999, p. 30) Estava posto o modelo civilizatório a ser
seguido. Todos, pelo menos teoricamente, poderiam
ter acesso a ele, desde que se esforçassem para
acompanhar e imitar as posturas e aspirações
francesas.

Associado à idéia de “cultura”, surgirá outro termo


que freqüentemente se entrelaça a ele, o de
“identidade”. Mas mesmo que haja uma interação

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entre esses, é necessário sublinhá-los e delimitá-los. “A
cultura depende, em grande parte, de processos
inconscientes. A identidade remete a uma norma de
vinculação, necessariamente consciente, baseada em
aposições simbólicas”. (CUCHE, 1999, p. 176) No
âmbito das ciências sociais, o conceito de identidade
cultural se caracteriza por sua polissemia e
plasticidade, que junto à formação dos Estados
Modernos, passou a ser atrelado a esses, tendendo à
“monoidentificação”,4 definindo um padrão
referencial ou reconhecendo apenas uma identidade,
mesmo percebendo seu pluralismo interior. Porém,
isto não impede aqueles que se sentem mutilados ou
coibidos identitariamente de adotarem posturas
reivindicatórias e conflitantes frente à ação do Estado.
Assim, a identidade possibilita ao indivíduo que ele
seja localizado socialmente e que se localize, incluindo
ou excluindo, aceitando e reconhecendo certos grupos
e distinguindo outros, identificando e diferenciando.

Os limites estabelecidos entre os grupos ou entre


“eles” e “nós” denomina-se “fronteira”. Dentro de
uma mesma comunidade, pode coexistir
harmonicamente uma certa variedade cultural. O que
cria a “fronteira” é o desejo de diferenciação e o uso
de dispositivos morais que demarquem as diferenças
de identidades. Grupos muito próximos culturalmente
podem eleger traços fortes de distinção em relação aos
outros, passando a adotar uma atitude hostil. Participar
de traços constituintes de certa cultura não implica,
necessariamente, vincular-se a uma identidade
particular específica.

Stuart Hall distingue três concepções diferentes de


identidade. A primeira é o “sujeito do Ilusionismo”, 4
Termo utilizado por
baseado na idéia de indivíduo centrado, unificado e Cuche, em seu: A Noção
de Cultura nas Ciências
Sociais. Trad. Viviane
Ribeiro. Bauru: EDUSC,
1999, p. 59.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 94-115, mai. 2004


100
racional, cujo “centro”, intrínseco a ele, desenvolve-se
no decorrer de sua vida, embora permaneça
essencialmente o mesmo. A segunda é a noção de
“sujeito sociológico”, que rompe com a idéia de
autonomia e auto-suficiência, assumindo um olhar de
interatividade entre o “mesmo” e os “outros”,
preenchendo o espaço entre o mundo pessoal e o
mundo público e atrelando o sujeito à estrutura. E,
finalmente, o “sujeito pós-moderno”, não-detentor de
uma identidade fixa ou permanente, constantemente
permeável, constituindo-se interpeladamente junto aos
sistemas que o rodeia. “O sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos, identidades que
não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente.”
(HALL, 2001, p. 13)

Preferindo falar em identidade como algo não-


acabado, Stuart Hall utiliza também o conceito de
“identificação”, enfatizando a idéia de processo e
maior subjetividade, constituída a partir do
reconhecimento de origens comuns, de traços
compartilhados ou, ainda, a partir de um mesmo
anseio. Surge, então, o fechamento formador das bases
de fidelidade e reconhecimento, onde a fusão entre o
“mesmo” e o “outro” passa a ser uma incorporação
fantasiosa, imagética, não-monolítica e sim
fragmentada e diversificada, construída ao longo de
discursos, práticas e ideologias que podem se
interpelar, cruzando-se ou não. Elas são as posições
assumidas pelos sujeitos, em forma de representações
simbólicas, nunca ajustadas ou idênticas.
O termo “identidade” – que surge precisamente no ponto de
interseção entre [os campos psicanalíticos e sociais] – é, assim, o
local da dificuldade. Vale a pena acrescentar que é improvável que
consigamos, algum dia, estabelecer esses dois constituintes [o
psíquico e o social] como equivalentes – o próprio inconsciente age
como a barra ou como o corte entre eles, o que faz do inconsciente

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101
“um local de diferenciamento ou adiamento perpétuo da
equivalência”, mas não é por essa razão que ele deve ser
abandonado. (HALL, 2000, p. 114)

Dessa maneira, a nação torna-se não apenas uma


entidade política, mas algo que produz sentidos, um
sistema de representações culturais. Levando-se em
consideração que a cultura nacional é um “discurso”
que organiza tanto as ações, quanto a própria
concepção dos indivíduos, segundo Benedict
ANDERSON, a identidade nacional é uma
comunidade imaginada, devendo haver três conceitos
constitutivos: as “memórias” do passado; o “desejo”
por viver em conjunto, a perpetuação da “herança”.
(apud HALL, 2001, p. 58) “Para dizer de forma
simples: não importa quão diferentes seus membros
possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma
cultura nacional busca unificá-los numa identidade
cultural, para representá-los todos como pertencendo
à mesma e grande família nacional.” (HALL, 2001, p.
59)

ANTROPOFAGIA LUSO-BRASILEIRA:
CONSTRUÇÕES IDENTIFICATÓRIAS

Para José Mattoso, será seguindo a bandeira do seu rei


que os portugueses, nos campos de batalha,
reconhecendo seus inimigos, passam a se perceber
como tais. Mas os camponeses medievais, limitados e
ainda com grandes dificuldades em conceber idéias
abstratas como a de portugalidade, vivendo em um
ambiente rarefeito em estruturas administrativas que
pudessem pontuar seus cotidianos, vão prolongar essa
limitação durante toda a Idade Média e grande parte da
Idade Moderna, identificando-se como portugueses,
decisivamente, somente no decorrer do século XIX.

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102
Porém, mesmo não distinguindo e formulando, no
sentido moderno, o conceito de identidade nacional,
haverá momentos decisivos para a construção do
sentir-se português, que até o final dos Oitocentos,
serão nove: o primeiro, durante a Reconquista, tendo
como referência a luta entre cristãos e os inimigos da
fé, os muçulmanos. O segundo, no decorrer das lutas
fronteiriças entre os primeiros reis portugueses e os
nobres de Leão e Castela. O terceiro, nas guerras
contra Castela nos reinados de D. Fernando e de D.
João I, quando entram no interior do país um número
considerável de tropas estrangeiras. O quarto, durante
a expansão marítima portuguesa, colocando milhares
de lusitanos em contato com outros povos e culturas.
O quinto, com a dominação filipina, onde se arquiteta
o movimento sebastianista. O sexto, no decorrer das
invasões francesas. O sétimo, com as Guerras Liberais,
opondo os compatriotas uns contra os outros. O
oitavo, com o conceito romântico de espírito do povo
(Volksgeist) que se difundiu entre os intelectuais
burgueses como uma espécie de dogma5 e, finalmente,
no final do século XIX, sobretudo a partir de 1890,
“com a difusão da escrita e da impressão, a
implementação de um sistema eleitoral, a
generalização de práticas administrativas uniformes e a
participação activa da população na vida pública.” 6

Além da tentativa de monoidentificação do Estado,


ideologicamente o Romantismo, nas primeiras décadas
dos Oitocentos, terá um papel importante na busca do
sentido de nacionalidade portuguesa, sendo o famoso
poema “Camões” (1825), de Almeida Garrett, um
marco desse processo. Imbuído do espírito
Romântico-Nacionalista, e na busca de suas raízes
étnicas, o poeta volta seu olhar para o período das
grandes navegações, fase áurea da história lusitana,
5
MATTOSO, 1998, p. 20.
6
Ibid., p. 21.

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103
para encontrar aí o sentido e o orgulho portugueses.
Constitui-se, assim, um sentimento de melancolia e
saudosismo, onde o passado sustenta a imagem do
pequeno país que se havia lançado ao mar tenebroso e
cruzado os quatro cantos do mundo, intercambiando-
os: “É esse lugar de sonho, esse lugar ao abrigo do
sonho, esse passado-presente, que a ‘alma portuguesa’
não quer abandonar.” (LOURENÇO, 1999, p. 14)

A partir da comemoração do tricentenário de morte de


Camões, em 1880, cujo épico Os Lusíadas é o
símbolo das aventuras dos Descobrimentos, esse
escritor passa a ocupar, definitivamente, um lugar
central no âmbito nacional, como a esfera armilar
fincada no coração lusitano. Não por acaso, ainda hoje
comemora-se o Dia de Portugal no Dia de Camões.
Metaforicamente, conforme reza o ditado popular:
“Em terra de cego, quem tem um olho é rei”, a figura
do poeta que teve seu olho direito vazado em
confronto com um muçulmano, no momento do
século XIX em que Portugal se sentia inferiorizado
frente à Europa além-Pirineus, passa a constituir a
“válvula de escape” do complexo lusitano. A
constituição identificatória não se desvincula, pois, à
questão do poder, formulando-se a partir do
reconhecimento do outro, do que falta e do que é
instrumento de sobressalência. E em que período
Portugal espalhou e impôs sua força mais
contundentemente senão no período das navegações?
Como iria se afirmar esse país, metrópole de áreas
africanas e ao mesmo tempo visto como um povo
atrasado pelos europeus do norte? As identificações
constituídas a partir do “mundo pós-colonial”
parecem invocar uma origem que residiria em um passado
histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa
correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a questão da

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utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para
a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos
tornamos. (...) Elas têm a ver com a invenção da tradição quanto
com a própria tradição, a qual elas nos obrigam a ler não como uma
incessante reiteração mas como “o mesmo que se transforma” não
ao assim chamado “retorno às raízes”, mas uma negociação com
nossas “rotas”. (SILVA, 2000, p. 108-109)

Não aceitando essa negociação, representantes da


chamada geração de 70, como Alexandre Herculano,
Antero de Quental, Eça de Queiroz e Oliveira Martins,
partem para posturas mais críticas e de confronto em
relação ao que, para eles, representava o atraso e a
decadência de seu país. “De mito cultural positivo,
Camões transforma-se, de algum modo, em mito
cultural negativo na sua relação com o presente”.
(LOURENÇO, 1999, p. 61) É o que se pode perceber
em Notas Contemporâneas, quando Eça de
Queiroz, ironizando Pinheiro Chagas, que o havia
combatido por criticar a pátria, disserta:
Mas agora vejo com evidência que Portugal não necessita nem forte
cultura intelectual, nem educação científica, nem elevação de gosto;
não precisa ter escolas, nem mesmo saber ler: esses esforços são para
a França, a Inglaterra, a Alemanha, países não-privilegiados;
Portugal, esse, tem tudo garantido, a sua grandeza, a sua
prosperidade, a sua independência, a sua riqueza, a sua força – desde
que (como você afirma com a autoridade do seu saber) há nos mares
do Oriente uma ilha, onde debaixo de um coqueiro, à beira de um
arroio, estão quatro indígenas, de carapinha branca e tanga suja,
ocupados de cócoras a respeitar Portugal! (QUEIROZ, 1880, p. 58)

Enquanto a Inglaterra já assistia à sua Segunda


Revolução Industrial (1870), Portugal ainda se detinha,
bucólica e letargicamente, em um considerável atraso
material e tecnológico, como defende Vitorino
Godinho ao citar Alexandre Herculano:
Lá fora a civilização industrial levou já à colisão entre o trabalho e o
capital, “hoje o supremo, o tremendo problema político das nações

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105
mais adiantadas”. Ora, Portugal, pelo seu atraso industrial, pela sua
civilização comparativamente pequena, ainda está isento de tais
conflitos. Mas a indústria fabril “é uma necessidade da época e da
civilização”. (HERCULANO apud GODINHO, 1977, p. 159)

Antero de QUENTAL, por sua vez, define três


fenômenos capitais que levaram à decadência ibérica:
“O primeiro é a transformação do catolicismo, pelo
Concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do
absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O
terceiro, o desenvolvimento das conquistas
longínquas.” (1987, p. 30) Esses fatores interferiram
no pensamento, na política e nas relações de trabalho,
em detrimento da educação (acadêmico-cientificista),
da liberdade política e do trabalho, e, principalmente,
do desenvolvimento da indústria agrícola portuguesa,
sendo esses os símbolos da sociedade moderna que se
consolidava: “Essa é a tendência do século: esta deve
também ser a nossa. Somos uma raça decaída por ter
rejeitado o espírito moderno: regenerar-nos-emos
abraçando francamente esse espírito”. (QUENTAL,
1987, p. 68)

O moderno era ser inglês ou francês, cuja Paris


representava o coração ideológico, vinculando à idéia
de civilização valores como industrialização,
urbanização, lógica científica e uma população,
efetivamente, de pele branca. Esse posicionamento
afeta não somente Portugal, mas também, e em cheio,
a ânsia de se constituir e reconhecer uma nação
brasileira, ou seja, uma civilização tropical. Como para
Jacinto, em A Cidade e as Serras, “a idéia de
Civilização (...) não se separava da imagem de Cidade,
de uma enorme Cidade, com todos os seus vastos
órgãos funcionando poderosamente.” (QUEIROZ,
1994, p. 22)

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Brasil e Portugal, basicamente agrários, com poucos
investimentos em recursos tecnológicos e com uma
população, principalmente no caso brasileiro,
altamente miscigenada, tornam-se desterrados7 do
então distante e ofuscante mundo moderno. Dessa
forma, o modelo civilizador a ser seguido pelo Brasil
não será o da antiga metrópole, pois essa também se
sentia humilhada: “Em tudo sentimos [portugueses] a
triste conseqüência de sermos pequenos – pequenos
em número e em território, pequenos em gosto e,
sobretudo, pequenos em patriotismo”. (AMORIN,
2000, p. 350) Eça de Queiroz não se furta a emitir seu
parecer acerca da adoção do modelo civilizatório das
metrópoles européias em terras lusitanas:
– Enfim – exclamou o Ega – se não aparecem mulheres,
importam-se, que é em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui,
importa-se tudo. Leis, idéias, filosofia, assuntos, estéticas, ciências,
estilo, indústria, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em
caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima, com os
direitos da alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós,
fica-nos curta nas mangas... Nós julgamo-nos civilizados como os
negros de São Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo
brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão...
Isto é uma choldra torpe. Onde pus eu a charuteira? (QUEIROZ,
1975, p. 86)

Mesmo no âmbito estético, quando se falava sobre a


beleza feminina, sobre a literatura portuguesa, ou
sobre os seus vinhos, pesava um sentimento de
subvalorização e desprezo:
Parece que o tipo nacional é indigno de referência, e que só
quando dele aberra e, por um capricho da natureza, reveste a
feição estrangeira, é que uma figura de mulher merece as fórmulas,
mais ou menos sonoras e hiperbólicas, da nossa admiração. É
vulgar ouvir-se dizer: “– Que mulher! Há naquele todo vaporoso
certo ar germânico!”; “– Que mulher! Tem o salero de uma
7
Termo utilizado por espanhola!”; “– Que majestade! Que morbideza! É uma perfeita
HOLANDA, Sérgio
madonna italiana!”; “– Que poética gravidade! Dir-se-ia uma
Buarque de. Raízes do
Brasil. 26.ed. São Paulo:
Companhia das Letras,
1995, p. 35.

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107
cândida lady ”. O que porém se não ouve, pelo menos o que eu
ainda não ouvi, é: “– Que simpática rapariga! É uma portuguesa
perfeita!” (...) Se ousamos falar de Camões, ao mesmo tempo que
de Tasso, de Dante e de Milton; se ousamos apregoar o vinho do
Porto, junto com o de Xerez, Chateau Laffite e Tokay, é porque
lhes deram lá fora o diploma de fidalguia; que por nós...
continuaríamos, calados, a ler um e a beber o outro, sem bem
conhecermos a preciosidade que líamos e bebíamos, ou pelo
menos correndo-nos de uma nos parecer sublime, e a outra
deliciosa. (DINIS, 1986, p. 106-107)

Não ser branco sob as flâmulas da Belle Époque, numa


perspectiva hierárquica de “evolução”, era sinal de
atraso, inferioridade e barbarismo, que embebecido
por uma perspectiva determinista, tornava-se um
freio, um obstáculo à formação da “nação-civilização”
brasileira. É o que percebemos no seguinte excerto de
O mulato, de Aluísio Azevedo:
Maria Bárbara tinha o verdadeiro tipo das velhas maranhenses
criadas na fazenda. Tratava muito dos avós, quase todos
portugueses; muito orgulhosa; muito cheia de escrúpulos de
sangue. Quando falava nos pretos, dizia “os sujos” e, quando se
referia a um mulato, dizia “o cabra” (...) Quando a filha foi pedida
por Manoel Pedroso, então principiante no comércio da capital,
ela dissera: “Bem! Ao menos tenho a certeza de que é branco!”
(AZEVEDO, 1981, p. 18)

Ou ainda:
E Raimundo, ali, no desconforto do seu quarto, sentia-se mais só
do que nunca; sentia-se estrangeiro na sua própria terra,
desprezado e perseguido ao mesmo tempo. “E tudo por quê?...
pensava ele, porque sucedera sua mãe não ser branca!... Mas do
que serviria então ter-se instruído e educado com tanto esmero?
Do que servira a sua conduta reta e a inteireza do seu caráter?...
Para que se conservou imaculado?... para que diabo tivera ele a
pretensão de fazer de si um homem útil e sincero?...” Ah!
Amaldiçoada fosse aquela maldita raça de contrabandistas que
introduziu o africano no Brasil! Maldita! Mil vezes maldita! Com
ele quantos desgraçados não sofriam o mesmo desespero e a
mesma humilhação sem remédio? E quantos outros não gemiam

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no tronco, debaixo do relho? E lembrar-se que ainda havia surras
e assassínios irresponsáveis, tanto nas fazendas como nas
capitais!...” (AZEVEDO, 1981, p. 144-145)

O Romantismo, que no Brasil havia elegido o índio


como ícone nacional, no decorrer das últimas décadas
dos Oitocentos, cedeu lugar à vontade de ser
estrangeiro, leia-se francês ou inglês. No âmbito
literário, essa tendência teve repercussão imediata: “É
certo que a civilização brasileira não está ligada ao
elemento indiano (sic), nem dele recebeu influxo
nenhum, e isto basta para não ir buscar entre as tribos
vencidas os títulos de nossa personalidade literária. Mas
se isto é verdade, não é menos certo que é matéria de
poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os
elementos de que ela se compõe.” (ASSIS, 1997, p. 19)

A cidade do Rio de Janeiro, que servia de modelo para


o restante do país, afrancesava-se e não tardaria, a
partir de 1898, com a subida de Campos Sales ao
poder, a iniciar definitivamente sua Belle Époque. Mas
será o prefeito Pereira Passos (1902-1904), inspirado
nas obras parisienses de Haussman, levantando a
bandeira de racionalidade, progresso e higienização
que mudará, drasticamente, o perfil central da cidade.
Mas as transformações se davam a partir de um
modelo vindo de fora, e embora satisfizessem
interesses internos como o da segurança e o ideal de
progresso, não valorizavam os hábitos culturais das
populações mais pobres, impedindo sua circulação nos
centros, e não elaborando propostas concretas para a
inserção dessas na sociedade, principalmente em
relação aos ex-escravos. Percebe-se situação
semelhante na cidade do Porto, que enquanto
remodelava seus espaços e seus discursos, também
sofria, principalmente nas partes de maior
concentração demográfica, como na Ribeira, de surtos

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epidêmicos como a febre tifóide, o cólera, a varíola,
etc. Em 1899, era considerada “a última cidade da
Europa a ter peste bubônica.” (RAMOS, 1994, p. 505)

Para Nicolau Sevcenko, o novo grupo hegemônico


brasileiro irá sagrar seus primeiros monumentos aos
novos ideais, sendo o primeiro deles a Avenida
Central, em 1904, tendo, como princípios
fundamentais,
a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à
sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer elemento de
cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da
sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos
grupos populares da área central da cidade, que será praticamente
isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um
cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida
parisiense. (SEVCENKO, 1985, p. 30)

O país se constituía digerindo suas aspirações a partir


de modelos estrangeirizados, vindos de fora, recebidos
às suas portas com pompas e galas de chefes de
Estado, como agentes salvadores da barbárie e do
atraso, representantes do moderno, do inovador, da
última moda. O Brasil se afastava ainda mais de
Portugal, e esse lançava-se novamente para fora de si e
retornava ao seu passado, buscando-se.

Durante a década de 1930, período em que o Estado


brasileiro saído da Revolução passa a investir em
educação superior para a formação de quadros e para
o debate mais intensificado de seus problemas, há a
substituição do conceito de cultura pelo de raça, tendo
importância fundamental a figura de Gilberto Freyre,
filho de um nordeste decadente que se torna “otimista
em relação ao passado e pessimista em relação ao
futuro” (REIS, 1999, p. 60). Freyre constrói, como
Varnhagen, um reelogio à colonização portuguesa,

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110
justificando suas conquistas, suas ocupações e
valorizando a miscigenação como fator fundamental e
positivo da sociedade brasileira, criando um mito da
democracia racial brasileira: “Tenhamos a honestidade
de reconhecer que só a colonização latifundiária e
escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos
enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo
europeu. Só a casa grande e a senzala. O senhor de
engenho rico e o escravo capaz de esforço agrícola e a
ele obrigado pelo regime de trabalho escravo”.
(FREYRE, 1994, p. 244)

Ao mesmo tempo, mais diretamente vinculado ao


meio acadêmico que se formava, Sérgio Buarque de
Holanda reforça a idéia de que o mundo que o
português criou não interessa ao Brasil, fazendo-se
necessário romper, abruptamente, com o passado
lusitano. “O Brasil é mais português do que
gostaríamos que fosse. Somos sobretudo
neoportugueses e devemos nos tornar pós-
portugueses, isto é, brasileiros.”(REIS, 1999, p. 117)
“Trazendo de países distantes nossas formas de
convívio, nossas instituições, nossas idéias, e também
em manter tudo isso em ambiente muitas vezes
desfavorável e hostil, somos ainda uns desterrados em
nossa terra.” (HOLANDA, 1994, p. 16) E arremata:
No caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa
parecer a alguns dos nossos patriotas, é que ainda nos associa à
Península Ibérica, a Portugal especialmente, uma tradição longa e
viva, bastante viva para nutrir, até hoje, uma alma comum, a
despeito de tudo quanto nos separa. Podemos dizer que lá nos veio
a forma atual de nossa cultura, o resto foi matéria que se sujeitou
mal ou bem a essa forma. (HOLANDA, 1994, p. 30)

Reconhecia-se que a sociedade brasileira possuía seu


alicerce, em grande parte, a partir da herança
portuguesa, mas é justamente ela e por causa dela que

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111
o país se encontrava desprestigiado e atrasado, pois os
lusitanos não foram homens de trabalho: sua ordem
fora a do “semeador”, e não a do “ladrilhador”. E por
mais que a nação construa obras excelentes, erga
marcos e adereços civilizados, o brasileiro será sempre
um desterrado, ao menos enquanto não abrir mão de
sua descendência portuguesa, rejeitando-a.

Como a Independência de 1822 não significou uma


ruptura brusca com Portugal, tendo à frente do
Império um herdeiro direto da monarquia lusitana,
será com a Proclamação da República e sob seus
lemas, soprados em outras línguas, que se constituirá a
idéia de uma civilização brasileira. Mas ao virar as
costas para Portugal, em um montante considerável, o
Brasil acabou por virar as costas para si mesmo,
passando a enxergar o outro e a sua própria imagem
com olhos de desterro. Ao mesmo tempo, Portugal
também vislumbrava, com orgulho, seu passado
glorioso, voltando-se sempre para fora, para o Oriente,
para o Brasil, para a África e, depois, para a
Comunidade Européia. Segundo Boaventura Santos,
A nossa fronteira não é frontier, é border. A cultura portuguesa é uma
cultura de fronteira, não porque para além de nós se conceba o
vazio, uma terra de ninguém, mas porque de algum modo o vazio
está do lado de cá, do nosso lado. E é por isso que no nosso
trajecto histórico-cultural da modernidade fomos tanto o europeu
como o selvagem, tanto o colonizador como o emigrante.
(SANTOS, 1997, p. 152-153)

Será que as duas nações ainda esperam, vindos do


exterior, seus heróis sebastianistas? Não reconhecem a
importância de se conhecerem melhor, de interagirem
e de se valorizarem? Como falar em semeador,
símbolo de letargia e preguiça, levando-se em
consideração, por exemplo, o trabalho de milhares de
portugueses que vieram para o Brasil a partir dos

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meados dos Oitocentos? Como virar as costas para
Portugal, sendo que, ainda hoje, possuímos estruturas
sociais, políticas e ideológicas herdadas desse? Ou
melhor, como perceber no português o outro
totalmente diferente, distante, o colonizador
desvinculado e afastado, sendo que em grande parcela
os brasileiros são filhos, netos ou bisnetos de
portugueses? Não se trata de acreditar que os
brasileiros sejam uma continuação simples e pura do
processo lusitano; há no Brasil um caldeirão étnico-
cultural, mas como vasculhar esse caldeirão sem
perceber uma parte consistente de seu fermento, sem
que necessariamente tenha de se excluir a percepção
de seus outros constituintes?

Embora fosse Eça de Queiroz um crítico ferrenho de


seu país, tendo a oportunidade de conhecer e morar
nos centros propulsores da Belle Époque, como a
França e a Inglaterra, ele lembra que:
As civilizações muito brilhantes e as mágicas são para contemplar
de longe, através da vibração luminosa da rampa. Subindo ao
tablado, vemos logo que o mármore do palácio que nos deslumbra
está pintado no papelão, e que os ondeados cabelos de ouro, de que
já nos íamos namorando, são uma peruca tingida, que custou
quinze tostões no cabeleireiro. Aquele que vive misturando a esta
representação da Europa toda a cada instante com o avesso
sórdido das coisas belas. (QUEIROZ, [s.d.], p. 182)

Quando vêm à tona escritores como Oscar Wilde,


Victor Hugo ou Émile Zola, poder-se-ia dizer que a
Inglaterra ou a França eram o paraíso perdido após a
dentada sediciosa de Adão? Não há como negar que
conquistaram direitos e estruturas consideráveis no
final do século XIX, que muito se deveu ao mérito e
ao esforço de alguns grupos, mas para isso quanto não
chorou a África ou a Ásia, quantos não se humilharam
por legitimarem ou persistirem na volúpia pela
grandeza, como Portugal através do Ultimato Inglês

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113
de 1889? Quem, como defende Albert Camus, não
8

vive seu absurdo, ou seja, o fosso que separa as


aspirações humanas, seus desejos, suas pulsões e o que
a sociedade lhe propicia, permite, organiza e ordena?
Dentro de uma perspectiva existencialista, como não
ser um “estrangeiro”, um “desterrado” em sociedades
onde o sentimento de solidão pode se abater em um
transeunte em meio à Avenida Paulista, às dezoito
horas, repleta de carros, buzinas e pessoas, ou em
qualquer outra avenida de um grande centro urbano?

Diferente do conceito cultural germânico oitocentista,


o conceito de cultura vem sendo estudado dentro de
perspectivas múltiplas, valorizando-se as diferenças e
reconhecendo a não-“inferioridade” dos traços não-
ocidentais e não-europeus. Percebe-se que os
processos civilizacionais não são obtusos, e sim
constituídos de plasticidade e mutabilidade,
permitindo que em seus espaços se reconheçam
formas imagéticas e identificatórias diversificadas.
Nesse sentido, tendo a Literatura do século XIX como
referência, Brasil e Portugal ainda carregam fortes
resquícios de desvalorização e de vir-a-ser em suas
identidades, olhando com um certo desprezo entre si e
para si.

REFERÊNCIAS
ANDERSON, B. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ática,
1989.
ASSIS, M. de. Crítica & Variedades. São Paulo: Globo, 1997.
AZEVEDO, A. O Mulato. 3.ed. São Paulo: Ática, 1981. (Bom Livro)
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Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 94-115, mai. 2004


116
Criminalização seletiva
1
Flávia Teixeira

Resumo: Motivou o presente artigo a grande preocupação com


o descrédito nos princípios da igualdade e da justiça constatado
até mesmo entre os estudantes do Direito. Nossa realidade
demonstra, de fato, uma significativa contradição entre o
discurso oficial da dogmática penal e o processo de
criminalização seletiva. O Labelling Approach, corrente
criminológica que se configurou nos anos sessenta, empenhou-
se no estudo dessa criminalização seletiva, conseqüência de um
controle social estigmatizante e discriminatório. Justifica-se,
portanto, uma abordagem, ainda que breve, dos pontos basilares,
das críticas e dos argumentos de defesa dessa perspectiva para,
na fase conclusiva, ressaltarmos seu valor e oferecer uma
proposta a fim de, novamente, vermos os princípios penais
gozando de credibilidade.

Palavras-Chave: Descrédito, Princípios Penais, Labelling


Approach, Criminalização Seletiva, Proposta

Abstract: The present article was motivated by the great


concern with the discredit on the principles of equality and
justice, noticed even among Law students. Our reality
demonstrates, in fact, a significant contradiction between the
official discourse of penal dogmatics and the process of
selective criminalization. The Labelling Approach, a
criminological chain from the sixties, deeply studied this
selective criminalization, consequence of a stigmatized and
discriminating social control. There is the need, therefore, of an
approach, however short, of the basic points, criticisms and
defense arguments of this perspective so that, on the conclusive
phase, we can bring up its value to light and offer a proposition
in order to see the penal principles having credibility once again.

Key-words: Discredit, Penal Principles, Labelling Approach,


Selective Criminalization, Proposition

Lamentável sim, porém inevitável constatar que


igualdade e justiça formam, na atualidade, uma dupla
em total descrédito. Mais preocupante torna-se essa
constatação quando se percebe que esse é um
1
Mestre em Direito;
Professora da Faculdade
Estácio de Sá – Belo
Horizonte.

BH, v. 1, n.3, p. 116-127, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


117
sentimento não apenas da sociedade em geral, mas
também de uma parcela formada por estudantes que 2
Nesse cenário, governo,
família e instituições em
se lançam no Curso de Direito e que se dedicam a geral eram alvos
determinadas cadeiras jurídicas onde tais princípios permanentes de críticas. O
movimento estudantil
são enfocados com especial atenção, como a Parte francês, o movimento hippie
Geral do Direito Penal. e o movimento feminista
são exemplos contundentes
da defesa da bandeira da
não-repressão. Nesse
Não é para menos. Se, como costuma acontecer, as sentido contestatório, as
primeiras aulas de Direito Penal devem inaugurar drogas, mais que um
interesse meramente
temas como conceito, função, importância, natureza mercadológico, simbolizam
e princípios desse ramo do Direito Público, acaba o a busca de novas dimensões
espirituais e corporais e o
professor afirmando que o Direito Penal se rock’n’roll inaugura um novo
estilo de vida. Contra a
direciona ao fato e não ao autor, e que a pena, além Guerra do Vietnã, jovens
de caráter retributivo, carrega consigo a função de americanos manifestam-se
queimando certificados de
ressocializar o condenado e prevenir futuros delitos. reservista. O Marxismo
Ora, nada mais natural que o aluno suspeite da arrecada adeptos e, em
Cuba, Fidel assume o poder.
confiabilidade daquela “fonte”. Como aceitar que o O Brasil vivencia um
Direito Penal seja o Direito Penal do fato quando o período de ditadura militar e
muitos opositores ao regime
que a realidade acaba por demonstrar é um sistema sofrem os horrores da
repressão.
penal voltado, mais que contra determinadas ações, 3
Como precursor dessa
contra certas pessoas? Como aceitar que a função da teoria, pode ser apontado o
professor de História Frank
pena seja a de prevenção e de ressocialização se é TANNENBAUM, autor de
público e notório que o sistema atual oferece à sua Crime and community,
1938. (GOODE, 1977, p.
clientela, formada predominantemente de pobres e 105). Em 1951, Edwin
Lemert, com sua obra
negros, brilhantes oportunidades na carreira Social Pathology, retoma
criminal? as idéias de Tannenbaum de
forma mais requintada e
com maior complexidade.
Nos idos dos anos sessenta, década marcada por (GIBBONS, 1977, p. 217)
Não menos relevantes,
profundas transformações tanto na vida política de contudo, foram as
contribuições dos demais
diversos países como nos costumes das mais diversas teóricos dessa corrente,
comunidades, 2 um grupo de teóricos 3 conferia como H. GARFINKEL
(1956), J. KITSUSE (1962),
especial atenção a essa função do Direito Penal em E. GOFFMAN (1961), K.
criminalizar seletivamente os marginalizados. ERIKSON (1962, 1966) e
H. BECKER (1963, 1964).
Embora BECKER (1973) e
KITSUSE (1972, 1975,
Proveniente de um movimento mais amplo da 1980) tenham elaborado
Criminologia e da Sociologia, essa nova perspectiva, em momento posterior
algumas de suas originais
formulações, para a grande
maioria doutrinária, o que é
hoje conhecido por Teoria
Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 116-127, mai. 2004
118
denominada Labelling Approach,4 rompe com as
noções positivistas ou absolutistas do delito e com as
explicações genéticas, psicológicas ou multifatoriais
do crime e da desviação.

Se o vocábulo label é definido como “pedaço de papel


ou outro material, fixado a alguma coisa, que dá
informação sobre o que é, onde levar, quem é o dono,
do Etiquetamento foi
etc”,5 também na seara criminológica vigora a idéia de
construído no período rótulo, etiqueta. Dessa forma, o Labelling, retomando o
compreendido entre os anos
de 1962 e 1966. (DIAS; conceito de interacionismo simbólico, noção
ANDRADE, 1997, p. 51) desenvolvida em momento anterior pela Escola de
4
Sob inúmeras outras
denominações pode ser Chicago mas ofuscada pelas teorias estrutural-
encontrada a corrente ora
abordada: Teoria do
funcionalistas, significou uma verdadeira mudança de
Controle Social, da Reação paradigma à medida que, deixando de visualizar o
Social, do Etiquetamento,
da Rotulação, Teoria desvio e a criminalidade como uma qualidade
Interacionista ou Escola da intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica
Costa do Pacífico. Matza
preferiu, porém, chamar preconstituída ao controle social e penal (paradigma
esses teóricos de Neo
Chicagoans por entender que
etiológico), passa a encará-los como um rótulo
alguns aspectos da tradição aplicado a certos sujeitos por meio da interação social,
sociológica de Chicago
haviam sido retomados, processo seletivo e discriminatório (paradigma da
especialmente em relação ao reação social).
comportamento desviado.
(MATZA, 1969, p. 37)
Mister salientar
discordância que emerge do
a Em Crime and Community, Tannenbaum
emprego de alguns termos desenvolve um estudo acerca de meninos moradores
usados nas denominações
acima mencionadas. A
de favelas que, por apresentarem um comportamento
rejeição do vocábulo labelling tido como irregular pelas autoridades, eram
e “teoria” para uma válida
descrição dessa perspectiva apreendidos e punidos. O especialista latino-
proveio, inclusive, de dois de
seus maiores teóricos –
americano observou, todavia, que nem sempre a
Becker e Kitsuse – que punição colocava um fim àquelas atividades
preferiram a expressão
The Interactionist Approach.
transviadas. Ao contrário, por serem tratados
(GOODE, 1997, p. 103) realmente como criminosos, os meninos associavam-
5
Trata-se da tradução livre
do seguinte texto: “A piece se aos mais experientes do reformatório e acabavam
of paper or other material,
fixed to something, which
por se imaginarem realmente como delinqüentes. A
gives information about desviação, portanto, passa a ser vista muito mais como
what it is, where it is to go,
who owns it, etc.”
fruto de uma reação ao comportamento do que o
(Longman Dictionary of
Contemporary English, p.
582)

BH, v. 1, n.3, p. 116-127, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


119
comportamento em si mesmo. (GOODE, 1997, p.
105)

Já nesse estudo precursor da Teoria do Etiquetamento,


nota-se, com clareza, a idéia do “interacionismo
simbólico”. Se natureza humana e sociedade não são
cunhadas pela característica da imutabilidade, uma vez
que o ser humano encontra-se imerso em um
constante processo de envolvimento, comunicação e
interação social, é com base na percepção do
significado do comportamento de seu semelhante que
esse indivíduo planejará seu curso de ação subseqüente
e acabará por edificar sua identidade pessoal.

No que concerne ao “desvio”, outro ponto crucial


dessa teoria, BECKER (1991, p. 4-18), antes de
oferecer seu próprio conceito, analisou algumas
definições dadas por outros cientistas. Sob um
enfoque estatístico, a mais simples delas considerava
desviado aquilo / alguém que destoava
significativamente da média. Outra, menos simples e
mais comum, identificava o desvio como algo
essencialmente patológico, uma doença. Com uma
visão mais restrita, havia ainda aqueles que
equiparavam o desvio (como por exemplo, o
comportamento de um drogado ou de um
homossexual) a uma verdadeira doença mental.
Também com base em noções médicas, certos
sociólogos analisavam a sociedade a fim de identificar
qual parte seria a responsável pela estabilidade e qual a
promovedora da instabilidade. O autor, por sua vez,
mostrou certa simpatia por uma visão mais realista – o
desvio como o fracasso em obedecer às regras de um
determinado grupo, apesar de considerá-la ambígua e
omitente do fator central do desvio, qual seja, o de ser
criado pela própria sociedade.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 116-127, mai. 2004


120
Contudo, pode ser conferido a Lemert o grande
mérito pela diferenciação entre “desviação primária” e
“desviação secundária”. A primeira remonta a um
leque de fatores culturais, sociais, psicológicos e
sociológicos e não chega a atingir uma reorganização
simbólica na postura do indivíduo consigo mesmo e
frente à sociedade. Por outro lado, na desviação
secundária, o indivíduo passa a empregar sua conduta
desviada como meio de defesa, ataque ou mesmo
adaptação frente aos problemas manifestos ou ocultos
criados pela reação social à desviação primária. A
seqüência da desviação que conduz a esse estágio vem
desmembrada nos seguintes passos:
1) desviação primária; 2) sanções sociais; 3) mais desviação
primária; 4) penalidades mais fortes e rejeições; 5) mais desviação,
talvez com hostilidade e ressentimento direcionado aos que
penalizam; 6) crises no auge do quociente de tolerância,
expressadas na ação formal da comunidade de estigmatização do
desviado; 7) fortalecimento da conduta desviada como reação à
estigmatização e penalidades; 8) aceitação final do status de
desviado social e esforço em ajustar-se às bases da proposta
associativa.6

Assim, o criminoso secundário, com sua estrutura


psíquica alterada, torna-se uma pessoa com vida e
identidade organizadas em função da deviance.

Apontado na seqüência exposta por Lemert, o


“processo de estigmatização” abarca duas etapas: na
primeira, uma atividade, uma condição ou um
comportamento etiquetados de desviados e, na
segunda, um determinado indivíduo etiquetado como
criminoso. Nesse sentido, elucidam DIAS e
ANDRADE (1997, p. 343): “Toda investigação
interacionista gravita em torno da problematização da
estigmatização, assumida quer como variável
6
Trad. Livre. LEMERT, dependente (quais os critérios em nome dos quais
Edwin M. Primary and
Second Deviation. In:
PONTELL, 1995, p. 65-66.

BH, v. 1, n.3, p. 116-127, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


121
certas pessoas e só elas são estigmatizadas como
delinqüentes?), quer como variável independente
(quais as conseqüências desta estigmatização?).”

E. Goffman, em “Stigma and Social Identity”


(PONTELL, 1995, p. 67), retomou, numa perspectiva
histórica, o conceito de estigma ofertado em épocas
distintas. Os gregos antigos usavam o termo referindo-
se a sinais corporais que expunham algo incomum ou
maléfico acerca do status moral da pessoa.
Posteriormente, na época cristã, foram acrescidos dois
outros significados: o de sinais corporais, em forma de
erupções sangrentas na pele e decorrentes da graça
divina ou de sinais corporais com o mesmo caráter
religioso mas revelados por problemas físicos. Em
tempos modernos, a expressão passa a ser empregada
comumente em seu sentido literal, embora com maior
ênfase na desgraça em si mesma do que nas evidências
do corpo. Em relação à perspectiva sociológica,
Goffman doutrina que a palavra estigma há de ser
usada como um atributo negativo, ou melhor, como
um tipo especial de relação entre atributo e
estereótipo.

Parece-nos, pois, apropriada a definição de E. Goode,


para quem estigma constitui-se em “uma marca, um
sinal de reprovação ou rejeição social, a indicação para
o mundo de que alguém foi escolhido como
vergonhoso, um ser social moralmente desacreditado”.
(GOODE, 1977, p. 109)

Uma vez estigmatizado, portanto, o ser humano


carregará essa carga diferencial na rotina de seu dia a
dia – ex-condenados terão dificuldade em encontrar
um emprego após deixar a prisão, ex-pacientes
mentais terão suas atitudes vistas como bizarras, uma

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 116-127, mai. 2004


122
prostituta continuará a ser tida como promíscua até
que deixe seu círculo de convivência. Com isso, o
processo de etiquetamento, ao estrangular a abertura
de novas oportunidades, pode vir a aumentar as
chances dessas pessoas de prosseguirem e de
reincidirem no comportamento desviado, cumprindo,
assim, a self-fulfilling prophecy7.

Pelo exposto, nota-se que a perspectiva interacionista


não reconhece que haja uma criminalidade a priori.
Isso porque, para seus adeptos, a criminalidade é
criada pelo controle social8. Expliquemos: uma
conduta não é delitiva in se ou per se, nem seu autor é
criminoso por motivos objetivos (influência nociva
do meio, patologia da personalidade). São os
processos sociais de definição os responsáveis pela
atribuição do caráter delitivo a uma conduta e a seu
autor.

Duas são as características marcantes desse controle


social: a seletividade e a discriminatoriedade. O delito
é fruto de uma construção social que batiza o
significado de um ato como desviado. Por isso, não é
de se espantar quando encontramos um determinado
ato tido como desviado para um grupo e normal para
outro (relativismo cultural). Além disso, nem todos
os que violam uma regra ou uma norma serão
criticados, condenados ou punidos, pois o risco de vir
a ser etiquetado não fica a depender somente da
conduta executada mas, também, e principalmente,
do status ostentado pelo indivíduo na pirâmide
social.
7
Empregada por Becker,
essa expressão tornou-se
muito conhecida e é
traduzida como “profecia
Tampouco será igualitária a persecução. Estatísticas
que se autocumpre”. demonstram uma distinta persecução policial de que
8
Sobre controle social,
interessantes as lições de
são objetos certos comportamentos. Os índices
ZAFFARONI e
PIERANGELI (1997) e de
MUÑOZ CONDE (1999).

BH, v. 1, n.3, p. 116-127, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


123
delitivos acabam por retratar qual o alvo de maior
persecução e quais os grupos sociais com maior
vulnerabilidade de serem perseguidos.

Traçadas as linhas gerais sobre as bases do Labelling


Approach, perspectiva que parece espelhar a realidade
brasileira, forçoso é reconhecer que essa teoria não 9
BARATTA, 1999, p. 116.
restou isenta de críticas, chegando a ser apontada Assim escreve o referido
como “teoria de médio alcance”,9 sendo até mesmo autor: “Valem aqui as
mesmas observações feitas
negada como teoria. para a teoria das subculturas,
como teoria de médio
alcance: o álibi teórico e
Presos a uma tradição positivista, alguns sociologistas prático diante da estrutura
das relações de hegemonia
condenam o Labelling por não explicar a etiologia ou as equivale, na falta de qualquer
causas de determinados atos como o estupro, o indicação das condições
objetivas e de estratégias
homicídio, a homossexualidade, o roubo, a práticas para a trans-
formação de tal estrutura, a
dependência de droga. Acusam-no de ignorar toda e uma racionalização hiposta-
qualquer justificativa plenamente social de como se tizante dela, e do
correspondente sistema de
origina a conduta desviada, conferindo, sem razão mediação política e
aparente, uma maior relevância à desviação secundária institucional”.
10
Enquanto a conduta é
para a aceitação do desvio, além de fazer uso meramente física, a ação
possui um significado
indiscriminado de alguns termos como conduta, ação socialmente dado porque,
e desviação e reação social ou rótulo.10 excetuando-se os comporta-
mentos integralmente novos,
a maioria esmagadora de
Sob influência da corrente radical ou marxista, surgem uma comunidade sabe
discernir quais atos são
aqueles que acusam o Labelling de ter solidificado a desviados e quais não o são.
A desviação, portanto,
norma dos poderosos em detrimento dos mais fracos contrariamente ao
sem, entretanto, ter explicado satisfatoriamente o posicionamento de Becker,
seria uma qualidade do ato.
papel do poder na abordagem do desvio. Além disso, Ademais, nem sempre a
ficou ausente o exame de como a autoridade e os desviação ou parte dela vem
explicada pela reação social,
interesses aplicam e mantêm um corpo de leis que, por pois “a medida com que a
si mesmas, atuam diretamente na criação da conduta reação social influi sobre um
desviado pode depender, em
criminosa. parte, de que esse desviado a
considere legítima”. Caso a
desviação fosse algo
Outros críticos sustentam a efetividade da punição sob dependende unicamente da
reação pública, explicação
o argumento de que muitos daqueles que são punidos não haveria para a existência
abandonam o mundo criminoso e voltam a trilhar o da categoria de “desviado
secreto” previsto por
Becker. (TAYLOR;
WALTON; YOUNG, 1990,
p. 161 - 166)

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 116-127, mai. 2004


124
caminho convencional. Acrescenta-se o fato de que é
possível o ingresso no comportamento desviado
anteriormente ou mesmo na ausência do
etiquetamento e que a aceitação de um rótulo não é,
por seu turno, inevitável.

Na seara moral, os teóricos do controle social, ao


semearem a idéia de que o problema dos desviados é
tão-somente da sociedade que assim os classifica e que
tal problema desapareceria caso a comunidade viesse a
aceitar o leque de comportamentos não-
convencionais, foram tidos como extremamente
tolerantes em face de todas as formas de atividades
perigosas.

Todas essas críticas perpetradas merecem, todavia, ser


rebatidas.

Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que os próprios


edificadores do Labelling acordaram em que a
perspectiva em questão não poderia ser pensada em
termos de uma teoria explicativa mas, sobretudo,
como uma orientação. Ademais, em tempo algum foi
proposta como objeto de pesquisa a explicação da
desviação primária e da razão pela qual um indivíduo
entra, inicialmente, no mundo do crime.

Comungam eles também da opinião de que nem


sempre o ato de etiquetar funciona como agravante do
desvio e de que a sanção pode pressionar os desviados
primários a não continuar na carreira criminal.
Entretanto, alertam para a chance de alguns serem
“imunes” à efetividade de referidas sanções.

Uma vez concentrados os esforços nos


comportamentos etiquetados como desviados, os

BH, v. 1, n.3, p. 116-127, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


125
estudiosos da reação social, realmente, não abordaram
os “opressores da elite capitalista”, tão-somente
porque não são os mesmos considerados criminosos
pelo público e, conseqüentemente, não são
estigmatizados.

Infelizmente, é imperioso reconhecer que se fez


ausente uma análise verticalizada sobre o poder,
conceito que ficou amorfo e com um entendimento
empobrecido no âmbito dessa perspectiva.

O laissez-faire approach, ou seja, o espírito excessivo de


tolerância de “viver e deixar viver” consiste em uma
visão errônea oriunda dos tempos mais radicais do
Labelling. Em fase posterior, emerge, todavia, a clara
consciência da necessidade de delimitar-se o
comportamento danoso, qual o desvio inofensivo,
quais os desviados malcompreendidos e quais as
condenações irracionais e preconceituosas.

Dessa forma, não há como fechar os olhos para as


lacunas e inadequações do Labelling Approach, fato que
não lhe destitui, contudo, de seu valor. Como
sabiamente dito, “o valor, às vezes, de uma palavra está
não tanto no que diz, mas no que provoca”
(CAMELLO, 2003, p. 207). E, sem sombra de dúvida,
essa corrente significou uma importante mudança de
paradigma capaz de revolucionar a ideologia penal
tradicional.

Princípios como igualdade e justiça, hoje vistos com


descrédito, já naquela época, e ao som do rock’n’roll,
estavam sendo questionados. O processo de
criminalização passou a centralizar a atenção de
estudiosos que acabaram por revelá-lo fruto de um
controle social altamente seletivo e discriminatório.

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 116-127, mai. 2004


126
Não obstante um discurso oficial acerca da função do
sistema penal, é notório um código paralelo, isto é, um
second code. Este não se propõe a uma incriminação
igualitária de condutas. Ao contrário, é o status social
o responsável pela impunidade do autor e pela
criminalização de condutas.

Ora, se a fórmula de Ulpiano – o dar a cada um o que


é seu – merece ser repensada para deixar de ser
considerada uma fórmula vazia da justiça, também o
merece esse processo de criminalização e quer-nos
parecer ser a solução coincidente: “um projeto social e
político de extremada urgência”11. Um único
acréscimo: feito o diagnóstico, a busca dessa “cura” há
de ser coletiva e, principalmente, um desafio para
estudantes e profissionais do Direito para quem a
esperança na igualdade e na justiça, ainda que
adormecida, é a força motriz imprescindível para essa
profissão.

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Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 116-127, mai. 2004


128
A Política Interna de Turismo no Brasil
1992 - 2002
José Henrique da Silva Júnior1

Resumo: O presente artigo traz algumas reflexões sobre a Política


Interna de Turismo no Brasil, no período entre 1992 e 2002,
sobretudo no que diz respeito ao seu mais importante instrumento,
o Programa Nacional de Municipalização do Turismo – PNMT.
Para efeito desta reflexão tomou-se como referencial, num esforço
analítico, os elementos, características e a contextualização do que
se convencionou chamar de Arranjos Produtivos Locais – APL,
importante instrumento de promoção do desenvolvimento
regional e local. Baseamo-nos, também, nos resultados
encontrados num estudo de caso onde se procurou identificar os
principais fatores que têm influenciado a implementação e
operacionalização do Programa, no município de Diamantina,
Minas Gerais, bem como seus pontos fortes e fracos, vantagens e
ameaças. (SILVA JÚNIOR, 2003) O objetivo principal do estudo
de caso foi comprovar a eficácia e a eficiência do PNMT, tendo em
vista seus objetivos e pressupostos, quais sejam: conscientizar a
comunidade para a importância do turismo como fator de
crescimento econômico, geração de empregos e melhoria da
qualidade de vida da população; conscientizá-los, ainda, da
necessidade de preservação do patrimônio natural e cultural, de
dotação do município de condições técnicas para promover o
desenvolvimento da atividade turística, de descentralização das
ações de planejamento, de capacitação do município para elaborar
o seu próprio plano de desenvolvimento turístico, entre outros.
Palavras-chave: Desenvolvimento, Municipalização, Turismo

Abstract: This article brings to light some reflections about the


Brazilian Internal Tourism Policy, especially with regard to its most
important instrument, the National Program for the
Municipalization of Tourism – PNMT. In an analytical effort, we
took as a reference the elements, characteristics and the
contextualization of what has been conventionally called Local
Productive Arrangements – APL, an important tool for regional
and local development. We also based ourselves on the results
obtained in a case study in which we attempted at identifying the
main factors that have influenced the implementation and
operativeness of that program in the city of Diamantina – Minas
Gerais, as well as its strong and weak points, advantages and
1
Mestre em Turismo e
Hospitalidade pela
Universitat de les Illes
Baleares (UIB) – Espanha.

BH, v. 1, n.3, p. 128-144, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


129
threats. (SILVA JÚNIOR, J H. 2003) The main goal of the case
study was to prove the effectiveness and efficiency of the PNMT,
considering its objectives and principles, namely: to make the
population aware of the importance of tourism as an economical
growth factor; to create new jobs; to improve the population’s
quality of life and to preserve the natural and cultural estate; to
endow the borough with the necessary technical conditions to
promote the development of tourist activity; to decentralise the
planning actions; to enable the borough to elaborate its own tourist
development plan, amongst others.
Key-words: Development, Municipalization, Tourism

O presente artigo busca refletir a Política Interna de


Turismo no Brasil, na última década, sob o comando
do Instituto Brasileiro do Turismo – EMBRATUR,
com ênfase no seu mais importante instrumento de
desenvolvimento, o Programa Nacional de
Municipalização do Turismo – PNMT. Este programa
tem o objetivo de tornar a atividade turística um
agente de transformações socioeconômicas nos
municípios, comparativamente a um tipo de
organização industrial/regional importante na
implementação de políticas de desenvolvimento
industrial, tecnológico e regional: os Arranjos
Produtivos Locais – APL. Nesse sentido, o artigo
discute a eficácia do PNMT, cujas ações
fundamentam-se na participação efetiva da
comunidade local como ferramenta de
desenvolvimento daquela localidade, à luz dos
aspectos da natureza e do padrão específicos dos
Arranjos Produtivos Locais, também conhecidos
como clusters, hoje em franco crescimento pelo país.
Essa reflexão tomou como base o estudo de caso
sobre o PNMT realizado no município de Diamantina,
Minas Gerais, por SILVA JÚNIOR (2003), onde o
autor procurou averiguar a sua eficácia à luz dos seus
objetivos e pressupostos. Esse pesquisador também se
baseou em alguns estudos empíricos ou avaliações ex

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 128-144, mai. 2004


130
post de APL já existentes, uma vez que são raros os
estudos científicos que procuram identificar o seu
surgimento e natureza.

Segundo SERRA (1994), a crise econômica instalada


no país nos últimos anos deflagrou um processo cujo
resultado foi o surgimento de vários desequilíbrios
regionais. De acordo com o autor, passou a ocorrer, no
plano municipal, uma flagrante retração relativamente
à atividade econômica. Esse fenômeno provocava um
enfraquecimento da economia tradicional, causando
reflexos negativos na oferta de emprego, no nível de
renda e de bem-estar social da população local,
ocasionando, por conseguinte, seu empobrecimento
relativo. Frente à estagnação econômica estabelecida
no município e à falta de apoio por parte das políticas
públicas de caráter nacional, a busca por alternativas
econômicas tornou-se uma obsessão para um sem-
número de prefeitos e administrações públicas,
suscitando um debate nacional sobre a necessidade de
se estabelecer uma nova realidade para a
sustentabilidade dos municípios.

Muito se tem falado sobre o assunto nos últimos anos,


muito embora essa discussão esteja sendo feita de
forma incompleta. Muitas vezes, deixam-se de lado
questões mais profundas, como, por exemplo, a
inserção destes municípios dentro de um contexto
mais amplo, em que predomina, de um lado, um
ambiente globalizado, de maior, melhor e mais
sofisticada competição, onde todos têm de se adaptar
aos crescentes padrões internacionais de qualidade e
operação (BDMG, 2003); de outro lado, um cenário,
decorrente do primeiro, onde se articulam os arranjos
e sistemas produtivos locais, incluindo-se aí aspectos
mercadológicos, tecnológicos, de gestão, de

BH, v. 1, n.3, p. 128-144, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


131
treinamento e qualificação de mão-de-obra e de
cooperação e interação entre as empresas dos arranjos,
estabelecendo um padrão de desenvolvimento
específico para a região onde está inserido o
município. (SANTOS, 2002)

Vários municípios com algum patrimônio cultural,


arquitetônico ou paisagístico passaram a ver na sua
exploração uma alternativa econômica diante do fraco
desempenho da economia tradicional. Ou seja, diante
da crise e de seus efeitos, e pela premência de uma
solução a curto prazo para os problemas sociais,
muitas administrações municipais, com ações
imediatistas, passaram a promover a exploração da
atividade turística, como uma forma de superação da
crise da economia daquela localidade. Assim,
promovem a exploração dos atrativos turísticos
municipais, a qualquer tempo e a qualquer custo, na
esperança de que, como se num passe de mágica, a
realidade se altere, gerando dinamismo na atividade
econômica local. Muitas vezes, essa ilusão não permite
que se avalie a incapacidade da atividade turística em se
tornar instrumento de retomada do crescimento
econômico local, de forma isolada.

Como se verifica em Diamantina, apesar de todo o seu


potencial turístico, composto por paisagens
exuberantes e riquezas culturais, o turismo ainda não
se firmou como fator de dinamismo econômico. Isto
porque o município está inserido num padrão de
desenvolvimento local, influenciado por variáveis
exógenas, autônomas, que agem independentemente
da vontade e controle dos gestores públicos
municipais, o que limita sobremaneira a política
pública, de nível local, voltada para estimular e
incentivar novas atividades produtivas, entre elas o

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 128-144, mai. 2004


132
turismo. O agravante é que, via de regra, a exploração
do turismo se dá de forma desastrosa do ponto de
vista ambiental, gerando impactos negativos, bem
como ganhos econômicos não tão significativos.

Muitos municípios que, como Diamantina, são


dotados de algum patrimônio turístico, não
conseguem transformar o turismo no motor da
atividade econômica, apesar de todo o esforço das
prefeituras, dos empresários e da própria comunidade.
Grande parte desses municípios acham-se inseridos
em um Arranjo Produtivo Local onde há diferentes
interesses. Ali há uma concentração de empresas de
vários portes, com graus diferenciados de coesão e
características comuns, que podem pertencer aos
mesmos setores ou a setores conexos (horizontal), ou
são estruturadas em uma cadeia produtiva (vertical)
ou, ainda, mistas. (SANTOS, 2002).

Segundo estudo do Banco de Desenvolvimento de


Minas Gerais (BDMG, 2003), há na região norte do
Estado, onde está localizado o município de
Diamantina, uma concentração horizontal nos setores
de couros, madeira, calçados, móveis, e uma
concentração vertical, nos setores de papel, química e
têxtil, ambas polarizadas pela capital do estado, Belo
Horizonte. Ali se destacam, ainda, arranjos de
sobrevivência ou pequenas atividades artesanais, que
estão fortemente ligados à sobrevivência. Ainda
segundo o estudo, o conjunto de atividades
econômicas da maioria dos agrupamentos de micro e
pequenas empresas naquela região constitui-se em
Arranjo Produtivo Local não-avançado ou não-
sistematizado. Suas principais características são: 1)
concentração geográfica; 2) especialização setorial; 3)
grupos de micro e pequenas empresas sem nucleação

BH, v. 1, n.3, p. 128-144, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


133
por grandes empresas ou empresa-âncora; 4) baixo
nível de eficiência coletiva baseada em economias
externas e em ação conjunta; 5) coesão e intensidade
na divisão de trabalho entre firmas relativamente
limitadas.

Isso nos induz a pensar que antes de optar pela


retomada do crescimento econômico a partir de uma
atividade muitas vezes nova e desconhecida, como o
turismo, faz-se necessário, aos municípios em questão,
adotarem ações, programas e estímulos que visem à
promoção e ao desenvolvimento de arranjos e
sistemas produtivos locais. Ou seja, são necessárias
medidas de apoio e estímulo, elaboradas coletivamente
por meio de um planejamento estratégico. Também
indispensáveis são os arranjos e sistemas produtivos
locais, formados por conjuntos de micro e pequenas
empresas formais e informais isoladas, dispersas em
municípios ou microrregiões, que contemplem
aspectos mercadológicos, tecnológicos, de gestão, de
treinamento e qualificação da mão-de-obra e de
cooperação e interação entre empresas. Não é o caso,
ao que parece, de um programa como o PNMT, cuja
concepção, estratégia e ação mais se assemelham a
uma receita de bolo, feita para ser aplicada
indiscriminadamente.

Hoje, mais do que nunca, o desenvolvimento local e


regional tem sido entendido, por alguns estudiosos,
não como decorrência da adoção de uma única política
nacional de caráter generalizante, e sim a partir da
adoção de uma política onde se considera cada caso
isoladamente, respeitando-se as peculiaridades de cada
aglomeração e, principalmente, a sua trajetória.
(SANTOS, 2002)

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 128-144, mai. 2004


134
Segundo o estudo acima, deve ser utilizado um
conjunto de ações que considerem as características
locais e, principalmente, do entorno regional, em sua
totalidade. A partir da atividade ali predominante,
constata-se uma concentração do ponto de vista
geográfico e, às vezes, o desenvolvimento do turismo
é impedido porque as atividades quase nunca estão
voltadas para o mesmo mercado final. Da mesma
forma, é raro que elas compartilhem dos mesmos
valores e conhecimentos, que estejam inseridas num
mesmo ambiente cultural ou interligadas, criando-se,
assim, uma situação que pode ser descrita como um
mix de competição e cooperação.

Pode-se dizer, então, que há a necessidade de se


estimular atividades que resultem no desenvolvimento
de arranjos e sistemas produtivos locais que se
encontrem em diferentes estágios de evolução e que
compartilhem dos objetivos primordiais de governos
estaduais e federais.

A Política de Turismo Interna, objeto de análise deste


trabalho, tem ido justamente na contramão desses
princípios. Conforme verificado no estudo de caso em
Diamantina, a adoção do PNMT vem sendo feita, mas
sem que haja a preocupação de interagir com o
município, o que contribui para impedir,
sobremaneira, sua eficácia e eficiência. Esse Programa
parte do pressuposto de que ações isoladas de
sensibilização e conscientização poderiam criar
condições para alavancar a atividade turística
municipal, o que geraria emprego e renda, propiciando
o bem-estar da população. Desconsidera, portanto, as
interações do local com um ambiente globalizado.

O turismo até poderia vir a ser uma atividade

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135
importante no nível municipal e cumprir, sem dúvida,
um papel de destaque de coadjuvante na economia
local. Porém, ao contrário do que preconiza a Política
Nacional de Turismo, através de seu Programa de
Municipalização do Turismo, faz-se necessário
considerá-lo à luz de um contexto mais amplo.

Quando bem planejada, a estratégia


desenvolvimentista do turismo pode gerar empregos,
renda e ainda oferecer oportunidades aos micro e
pequenos empresários locais de criar novos negócios.
Isso tudo se reverteria, para a população, na melhoria
do nível de vida e no seu bem-estar. Porém, há uma
série de condições para se atingir esses objetivos,
como, por exemplo, a criação de infra-estrutura
turística, que depende de articulações mais amplas e
que transcendem o perímetro onde a atividade turística
se insere, o que em Diamantina vem acontecendo de
forma muito tímida.

Por outro lado, se o turismo não é bem planejado,


pode acarretar uma série de problemas, entre eles a
degradação ambiental, a poluição sonora, visual, do ar,
a descaracterização cultural e o aumento da
marginalidade, problemas esses que lamentavelmente
vêm ocorrendo no município de Diamantina. De
qualquer forma, sob certo contexto, a utilização do
PNMT, propalado pela Política Nacional de Turismo,
pode otimizar as oportunidades e reduzir ao mínimo
os riscos e problemas advindos da introdução do
turismo ou mesmo de sua expansão como meio de
crescimento econômico.

De acordo com a EMBRATUR, a Política de Turismo


Interna, através do PNMT, motivou, desde 1993,
aproximadamente 1700 municípios brasileiros a

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136
iniciarem a implementação do Programa, com a crença
de que o turismo pode ser uma atividade econômica
municipal, através de uma ação que se desenvolva com
base nos atrativos locais, utilizando serviços e
produzindo impostos, primordialmente municipais.
Porém, como já mencionado, nem sempre isso é feito
de forma planejada e gerenciada, sobretudo no que diz
respeito ao envolvimento dos residentes e pequenos e
médios empresários locais dispostos a investir na
atividade.

Conforme entendido até agora, a estratégia e atuação


da Política de Turismo Interna, através do PNMT, nos
municípios, baseia-se no estímulo à participação das
comunidades locais no planejamento e implantação
das ações relativas à atividade turística no seu
território. De acordo com estudo da FUNDAÇÃO
JOÃO PINHEIRO (1980), quanto mais o processo de
planejamento facilitar a participação dos cidadãos,
mais a comunidade considerará a função de
planejamento como democrática. Porém, não se pode
assumir uma atitude ingênua face ao planejamento
com participação comunitária. Segundo o estudo de
caso do município de Diamantina, existem numerosas
dificuldades para se estabelecer esse tipo de
participação, quanto ao conceito a ser aplicado, aos
recursos necessários, à definição da legitimidade das
representações, ao seu nível de responsabilidade, etc.
Tudo isso sem falar que a participação, de fato, pode
ou não ser um meio de reduzir diferenças de poder,
fato que envolve, pois, delicadas questões no bojo do
sistema político.

Sabe-se o quanto a sociedade brasileira está


acostumada a esperar pela solução de seus problemas.
De modo geral, as decisões são tomadas nos meandros

BH, v. 1, n.3, p. 128-144, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


137
do aparato burocrático, com marcada centralização
administrativa. Normalmente, o que se assiste é a
tendência geral em conduzir os problemas, através dos
canais tradicionais do sistema político-administrativo,
até Brasília, onde se termina por organizar um
programa ou instituição nova para cuidar do assunto,
consolidando-se, ainda mais, o processo de
concentração do poder político e administrativo.

Uma intervenção no contexto socioeconômico e


político local, através de um enfoque participativo,
como é o caso do PNMT, não pode ser apresentado
como panacéia para equacionar problemas sociais em
cujas raízes estejam a ausência de uma política de
emprego adequada, uma organização industrial e
financeira oligopolizada, conduzindo a uma alta
lucratividade, a uma estrutura fundiária inadequada e à
expansão acelerada do produto agrícola, etc. Nesse
sentido, deveria a Política de Turismo Interna, através
do PNMT, criar, primeiramente, condições para uma
melhor distribuição do poder sobre decisões e
instrumentos de políticas públicas entre a área central
da máquina político-administrativa e os grupos
periféricos. Dessa forma, aumentar-se-ia o grau de
participação das comunidades, dos vários grupos não-
governamentais e dos diferentes níveis de governo, o
que possibilitaria uma maior mobilização de recursos
para as soluções alternativas que, em geral, são mais
bem conhecidas pelos próprios grupos afetados.
Contudo, a implantação do Programa tem sofrido pela
incapacidade de se gerar uma mobilização mais
adequada, a partir da qual a institucionalização de uma
ação mais participativa estimule novos arranjos
organizacionais e gere incentivos econômicos e
políticos. Assim, a iniciativa privada e as comunidades
teriam melhores condições para desenvolverem, ao

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138
máximo, sua criatividade e capacidade gerencial para
mobilizar os seus próprios recursos humanos e
materiais na solução de seus problemas. A Política de
Turismo Interna, através do PNMT, deveria pressupor
tornar o Estado mais aberto e mais sensível às
aspirações e demandas da sociedade e, concretamente,
pressupor ainda o fortalecimento do poder político
subnacional e a realização de uma reforma
institucional que reconstrua a autonomia de decisão
dos Estados e municípios. Essas e outras formas
institucionalizadas de operacionalizar os conceitos do
planejamento participativo mostram que a
participação de diferentes grupos sociais, como as
associações comunitárias e profissionais, que se
processa de forma direta e informal, complementa a
participação formal e indireta também, através de
representantes no poder legislativo.

O efeito positivo dessa nova forma de participação no


processo de planejamento decorreria dos movimentos
que segmentos da sociedade civil desencadeiam em
favor de seus direitos. Esses grupos forçariam os
técnicos da burocracia estatal a estabelecer, com maior
legitimidade política, a hierarquia das prioridades que
norteiam as ações governamentais e o conteúdo
adequado da intervenção estatal na economia. Deste
modo, as decisões relativas ao desenvolvimento
nacional ocorreriam democraticamente, ao contrário
do que vem acontecendo nos últimos anos, uma vez
que essas decisões vêm sendo tomadas por um
pequeno grupo de técnicos que dispõe de informações
e formação limitadas.

O PNMT, assim como outros programas da Política


Nacional de Turismo, têm sido implantados visando a
proporcionar uma melhoria das condições de vida das

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139
comunidades. Isso se evidencia nas metas explicitadas
em vários programas e políticas compensatórias afins.
Há a preocupação com o aumento da renda, com a
geração de empregos e com a organização da
sociedade na busca da solução de seus problemas. Mas,
na prática, as ações do PNMT não criam as condições
para envolver, efetivamente, as pessoas como
verdadeiros protagonistas da atividade turística, que
deveria ser discutida, analisada e implementada pela
sociedade local.

Verificou-se que, nas diversas ações e intervenções


efetuadas para a implantação do PNMT no município
de Diamantina, não houve a participação efetiva dos
atores principais, isto é, os habitantes das comunidades
e do município supostamente beneficiados pelo
Programa. De modo geral, muitos desses personagens
sequer têm como exercer seus poderes de cidadãos.
Nem sabem bem o que significa cidadania, já que, em
seu cotidiano, sofrem inúmeras violações a esses
princípios.

Por outro lado, verificou-se que as instâncias locais não


assistem, pelo menos a partir da atividade turística, a
uma melhoria nas condições de vida de sua população,
sejam os produtores rurais de base familiar, que
encontram sérias restrições ao colocar seus produtos
no mercado, sejam os jovens que não estão
devidamente capacitados para enfrentar a
competitividade ou as organizações que se constituem
apenas para receberem benefícios governamentais.

Sabe-se que não é tarefa das mais fáceis melhorar as


condições de vida da população, pois quando se
consolida o poder da população local, evidentemente
divide-se o poder político. A partir daí, descentralizam-

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140
se ações que poderão ser empreendidas pela própria
base, restando ao aparelho de Estado apoiar entidades
que se empenhem no fortalecimento da sociedade
local na busca de um desenvolvimento que leve em
consideração a comunidade, contribuindo, assim, para
a quebra do vínculo paternalista que se vem repetindo
historicamente.

Em última análise, pode-se dizer que a Política Interna


de Turismo buscou implantar o PNMT numa nova
realidade política, econômica e institucional. Uma
realidade em mutação, em que o planejamento, por
parte do setor público, convive com a crença e o
ceticismo relacionados à ineficácia e à ineficiência do
instrumento. Uma situação que se agrava na medida
em que o Estado se afasta de atividades produtivas,
através das privatizações, e pela dificuldade do
Governo Federal em estabelecer políticas
desenvolvimentistas de longo e médio prazos. Isso
para não mencionar o enorme poder que as grandes
empresas vêm obtendo no mercado.

Essa ação resulta de uma nova composição de forças


provocada pela expansão recente do capitalismo em
que o Estado, em estágio de transição, procura ficar
cada vez mais ausente, preocupando-se mais em
garantir o funcionamento harmonioso do mecanismo
clássico de mercado, de atuação livre, onde se obtém
um ajuste e equilíbrio maior e mais eficiente, do que
em viabilizar políticas públicas, como o PNMT.

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145
“Política Internacional
vista da Europa”*
D R . I TAMAR F RANCO
Embaixador do Brasil na Itália

Vou tentar não cansá-los. Não se assustem com o


volume de papéis que tenho em mãos. Quero dizer
que, tive a oportunidade de conversar com o adido
militar e ele me disse que seu pai havia sido um oficial
da Polícia Militar de São Paulo. Para mim, a Polícia
Militar de Minas tem sentimento de pátria, de diálogo.
Vejo vários oficiais presentes. No meu governo
tivemos mais de 300 invasões do Movimento sem
Terra e a Polícia Militar agiu sempre com diálogo. Ela
honra a todos nós de Minas Gerais.

Vou apenas fazer uma citação. Há pouco eu brincava


com o Hindemburgo Pereira Diniz. É a seguinte:
“costumam dizer que a inovação moderna substituiu a
história pelo jornalismo. Os jornais não trazem
notícias apenas que são novas, mas tudo como se fosse
inteiramente novo”. Falo sem qualquer alusão ao que
se passa hoje no Brasil.

Não falarei sobre o colonialismo europeu que,


segundo certos historiadores, devastou meio planeta e
destruiu civilizações e culturas na América, África e
Ásia. E deixou nestes três continentes absurdas
demarcações nacionais que, em muito lugares, ainda
continuam com conflitos e questões étnicas sem
soluções. Para ele nasceram ideologias totalitárias.
Agradeço aos senhores da Estácio de Sá a
oportunidade de aqui estar e particularmente ao prof.
Carlos Alberto Teixeira de Oliveira, diretor-geral.

Pretendo ater-me ao tema que me foi sugerido,


fazendo breve exposição sobre a situação internacional

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 145-156, mai. 2004


146
vista da Europa, além de alguns temas da agenda que
considero relevantes para nós brasileiros.

A cena política internacional é marcada nos dias que


correm pelo signo do conflito em suas mais diversas
formas, étnico, econômico, religioso, social e político.
Esta realidade frustra as nossas esperanças de que a
comunidade das nações pode e deve conviver
pacificamente e cooperar na paz para o progresso
comum.

O mundo unipolar emergiu com o fim do conflito Leste-


Oeste e da guerra fria. Os trágicos acontecimentos de
200l nos Estados Unidos colocam-nos diante de novos
imperativos da ordem internacional e dos desafios daí
decorrentes. Além disso, a globalização econômica e
financeira, impulsionada por avanços tecnológicos em
transportes, telecomunicações e serviços, contribue para
tornar o quadro internacional ainda mais complexo.

Multiplicam-se as alianças possíveis entre os países e


confere-se acesso a novos agentes à chamada sociedade
civil organizada, à espera da política internacional até
então prerrogativa única dos Estados nacionais e de seus
representantes.

A Europa tem buscado posicionar-se neste novo cenário


internacional, para reforçar seu poder político e
econômico. Hoje, mais do que nunca, o projeto de
integração europeu assume o significado de projeção
global da Europa unificada e de sua legitimação como
um dos pólos do poder de uma nova ordem
internacional.

O fim da guerra fria anunciava um novo começo para o


multilateralismo e para a segurança coletiva. Num
primeiro momento, as questões da segurança coletiva
pareciam ter sido colocadas em plano secundário. Mas

BH, v. 1, n.3, p. 145-156, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


147
cabe recordar que, nós, do Brasil, defendemos o
multilateralismo, enquanto os americanos, mais do que
nunca, defendem o unilateralismo.

A nova agenda contemplaria temas de cunho ambiental,


econômico e social, No caso de um país como o Brasil,
representaria um desdobramento positivo e salutar. A
primeira guerra do Golfo reforçou esta percepção, ao se
constituir em exemplo de cooperação entre os membros
permanentes do Conselho de Segurança da ONU, que
autorizara, naquela época, o uso da força contra o regime
de Sadan.

No entanto, posteriormente a erupção de diversos


conflitos na Somália, Bósnia, Afeganistão e, agora, no
Iraque e o advento das ameaças do terrorismo
internacional e destinação de armas de destruição em
massa a regimes poucos confiáveis, dissiparam aquela
impressão pouco favorável.

A Europa procura hoje preparar-se para enfrentar estes


desafios e influir o máximo possível na reorganização da
ordem mundial. A evolução do projeto de integração
política da União Européia constitui peça fundamental
desta estratégia. Há algum tempo atrás, a revista britânica
The Economist reconheceu que a União Européia
representa um modelo inédito de agregado político
fundado na persuasão e em acordos democráticos, e não
na força das armas.

No último dia primeiro de maio, após laboriosas


negociações, foi dado um passo de grande importância
para a unificação continental da Uunião Européia, com a
incorporação de mais 10 países: Eslováquia, Eslovênia,
Estônia, Chipre, Hungria, Letônia, Lituânia, Malta,
Polônia e República Checa. Os analistas europeus
afirmam que, ao menos por enquanto, o significado
desta unificação é mais político do que econômico. O

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 145-156, mai. 2004


148
PIB dos 10 novos membros corresponde apenas ao PIB
da Holanda. Mas, a União Européia formará, sem
dúvida, o maior pólo demográfico depois da Índia e da
China, com cerca de 450 milhões de habitantes. Para a
Polônia, a Hungria e outros países, antigos satélites da
União Soviética, a adesão à União Européia marcará o
eclipse final do bloco comunista, o afastamento da esfera
de influência da Rússia e o início de uma nova era de
vinculação à democracia e ao ocidente.

Após a adesão destes 10 países, a próxima etapa da


União Européia prevê a conclusão de negociações para a
entrada da Bulgária e da Romênia. Já em relação à
Turquia, mais tempo a União Européia espera para a sua
integração.

Neste ponto, deve ser enfatizado o que os historiadores


não nos deixam esquecer: que a construção da União
Européia, quando for completada, congregará numa
mesma entidade política nações que estiveram no centro
de guerras, de conflitos causados durante séculos, como
os embates de três grandes impérios, o austro-húngaro,
o otomano e o russo.

Da mesma forma, a maioria dos observadores considera


que a conclusão do espaço europeu, com a futura
integração da Turquia, país otomano com cerca de 70
milhões de habitantes, com uma constituição laica, que
separa rigorosamente o estado e a religião, poderá
constituir passo decisivo no sentido de maior
entendimento e redução dos conflitos entre o ocidente e
os países islâmicos.

Uma série de mudanças fundamentais anuncia-se no


âmbito desta nova Europa, mas o processo de sua
criação não correrá sem dificuldades. Mas, este fato
tornou-se claro após o fracasso da conferência dos 25
países realizada em dezembro último em Bruxelas,

BH, v. 1, n.3, p. 145-156, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


149
durante a presidência da Itália, que deveria aprovar o
projeto de constituição européia e fixar os
procedimentos do governo comum da União Européia.
Não se chegou a um acordo sobre a futura constituição
da União Européia, não só porque o ex-primeiro
ministro da Espanha bloqueava a todo momento a nova
Constituição da União Européia. Portanto, as
dificuldades durante a presidência italiana da União
Européia fizeram com que a Itália não visse realizado
aquilo que ela desejava, que é a nova Constituição da
União Européia.

Apenas para curiosidade, eu indicaria os números do


parlamento europeu, cuja eleição vai se dar agora para
sua renovação. Há uma característica diferente na Itália:
quem for deputado no Congresso italiano, não poderá
ser deputado no Parlamento Europeu.

Apenas para citar alguns países que têm assento na


União Européia: a Alemanha terá 99 deputados, a Gran-
Bretanha, 87; a Itália, 87; a Espanha, 64; os demais, 3l e
Luxemburgo, com apenas três deputados.

Veja-se a eleição do novo premier espanhol, numa virada


impressionante da política espanhola. Faltando três dias
para as eleições, havia um quadro totalmente adverso ao
hoje premier Zapateiro. Não apenas em relação ao
problema do terrorismo em Madri. Mas, isto sim, e isto
serve de advertência a todos nós, meu caro Carlos
Alberto, a todos nós que, daqui a pouco vamos entrar
num processo eleitoral muito importante neste país.

Quando eu digo a verdade ao povo, o povo tem a


oportunidade de dar a resposta. E foi o que aconteceu na
Espanha. Quando o governo do premier Aznar quis
dizer que o problema do terrorismo naquele dia
pertencia aos bascos, ficou provado que não pertencia
aos bascos. E o resultado foi exatamente a sua derrota

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 145-156, mai. 2004


150
nas eleições.

Pode-se tudo em relação ao povo. Mas não se pode, nem


aqui, nem na Europa, é mentir demasiadamente ao povo,
seja ele europeu, seja brasileiro. Outra discussão, muito
atual entre os parceiros europeus é a que trata da
eventual revisão da estabilidade dos parâmetros
macroeconômicos.

O prof. Carlos Alberto falou do crescimento do nosso


Produto Interno Bruto durante o meu governo, o que é
verdade. Verdade insofismável. Basta comparar os
indicadores de 1994 com os atuais indicadores do Brasil.
Lá também se discute porque a Alemanha, a França e a
própria Itália, Portugal e outros países não têm cumprido
os índices determinados por Maastrich. De que a relação
entre o déficit e o PIB não pode passar dos 3 por cento.
E o que eles estão alegando com isto? Alegam que não
podem ficar presos a estes compromissos do acordo em
relação ao déficit. Por quê? Porque todos eles, sem
exceção, não estão crescendo e estão com uma inflação
alta. De repente, os indicadores econômicos adotados
fazem com que os próprios países europeus sentem a
necessidade de sua modificação, para que o país possa
crescer, porque, lá como aqui, o desemprego caminha a
passos bastante largos.

Ao examinar-se o quadro internacional a partir da União


Européia, não se pode deixar de mencionar a Aliança
Atlântica, ou seja, o relacionamento com a única
superpotência do mundo, ou seja, os Estados Unidos. E
isto não é bom para ninguém. Forjada no pós guerra e
consolidada durante a guerra fria, a aliança estratégica
entre europeus e norte-americanos teve na OTAN-
Organização do Tratado do Atlântico Norte sua
expressão militar.

Em seguida à derrocada da União Soviética e a todos os

BH, v. 1, n.3, p. 145-156, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


151
acontecimentos supervenientes, o fim do Pacto de
Varsóvia e a aproximação das ex-repúblicas soviéticas
com a União Européia, a OTAN tem passado hoje por
momentos de redefinição de sua missão.

A ameaça terrorista difusa territorialmente confronta a


Aliança Atlântica com desafio que poderia substituir o
chamado perigo comunista. E, aí, no nosso
entendimento, vale uma advertência que faço sob a
minha responsabilidade. O terrorismo internacional
deve ser combatido. Mas nós não podemos transformar
nossos países sob uma ação militar, que surpreende hoje
em várias partes do globo: o Estado se vê manietado
pelas forças militares e substituído pelas forças que
devem comandar os países.

A decisão americana de invadir o Iraque, baseada na


suposição de que Sadan Hussein detinha armas de
exterminação de massa, provocou uma profunda fratura
no bloco europeu. De um lado, países como a Itália,
apoiando sofregadamente os Estados Unidos, e de outro
lado, a Alemanha e a França combatendo a intervenção
americana naquele país e alegando que as Nações Unidas
não deveriam ter dado qualquer ação militar no Iraque.
Portanto, o Conselho das Nações Unidas, não tendo
aprovado esta ação, os americanos, juntamente com os
britânicos resolveram que eles iam determinar, acima das
Nações Unidas, a invasão do Iraque.

Aqui vale uma observação apenas: um ex-presidente


americano, que tinha em sua chapa o vice-presidente
Wallace, que mais tarde perderia as eleições nos Estados
Unidos, dizia, naquela época, já antes de 1945, que os
Estados Unidos tinham suas áreas de influência, mas
poderiam invadir qualquer país, sem a determinação das
Nações Unidas. O vice-presidente Wallace foi bastante
combatido, perdeu, inclusive, as eleições na época, nos
Estados Unidos. Mas, pouco depois suas palavras vieram

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 145-156, mai. 2004


152
ressoar com grande efeito na população americana,
quando se deu a guerra da Coréia e quando se deu a
guerra no Vietnam. Como sabemos, a decisão americana
de invadir o Iraque, alegada numa situação até agora
falsa.

Não vamos esquecer que os ataques terroristas em


Madri, em 11 de março, feriram o coração da Europa,
do mesmo modo como os de 11 de setembro feriram os
Estados Unidos. Na verdade, eles feriram toda a
humanidade. Criou-se uma sensação de insegurança na
população diretamente atingida e reforçada por conta
daqueles atentados, as forças políticas que desde aquele
momento se opuseram à invasão do Iraque. É o que
bem, demonstra decisão do novo premier espanhol de
retirar as forças espanholas do Iraque.

E aí vem aquilo que a gente percebe, quando se


caminha na Europa hoje: o medo da população ao
terror. De repente, eles podem ser vítimas dos ataques
terroristas. Nos aeroportos, nas estações ferroviárias,
seja onde for, percebe-se no olhar de cada cidadão um
certo sentimento de medo, em função exatamente
destes conflitos surgidos em relação ao Iraque

Ameaça difusa do terrorismo, de matriz islâmica,


segundo alguns, que pode causar tragédias fora das
fronteiras dos países que o geraram, com seus ataques a
alvos não militares, reforça a idéia , para alguns, de um
conflito entre civilizações, entre o ocidente e o oriente,
entre o cristianismo e o islamismo. Esta é uma noção
que não está confinada a uma visão tradicional de
guerra, a qual previa a ocorrência de combate
delimitado tão somente entre as forças em confronto.

A Itália apresenta situação singular neste quadro


mundial. E eu aqui não vou fazer muita abordagem
sobre a Itália, onde sou eventualmente embaixador do

BH, v. 1, n.3, p. 145-156, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


153
Brasil, já que a matéria determinada a mim foi de
política internacional. Mas a Itália optou por se alinhar à
coligação anglo-americana na questão iraquiana. De
acordo com a opinião de alguns analistas, optou
também por privilegiar seus laços com os Estados
Unidos, em detrimento do bloco europeu. Muitos
afirmam que a escolha do governo italiano teria
ocorrido em função da percepção de que estaria
havendo perda de influência italiana, face a união da
Alemanha, da França e, agora, da própria Inglaterra.

Deve-se estar presente, no que tange à Itália, que


recente pesquisa de opinião realizada naquele país
revelou que , a despeito de alguns sinais às vezes
contraditórios, provenientes da atual coligação do
governo italiano, a Itália se mantém fiel ao projeto de
integração. A própria Itália hoje tem um aspecto
interessante que vamos observar nas eleições agora de
junho para o Parlamento Europeu. Até então, lá, como
aqui, forças de esquerda, estavam desunidas para as
eleições do Parlamento Europeu. De repente, face ao
incidente que está envolvendo hoje a Itália de maneira
preocupante para os italianos, a morte de um italiano e
mais três reféns ainda em poder de forças do Iraque
que ninguém sabe quais são estas forças, fez com que a
esquerda italiana olhasse o horizonte do Parlamento
Europeu de uma maneira diferente. Já se esboça, mas
não sabemos se vai redundar no processo eleitoral, a
tese de que ela precisa estar unida para combater o
regime direitista que hoje impera naquele país.

Senhoras e senhores

Um dos aspectos definidores dos tempos em que


vivemos é a emergência crescente de temas
internacionais na vida dos países e dos povos. De fato,
no passado, um país como o Brasil pôde construir, com
razoável êxito, sua soberania por meio de um relativo

Ciência&Conhecimento BH, v. 1, n.3, p. 145-156, mai. 2004


154
distanciamento das políticas adotadas em outras partes
do mundo. Neste novo milênio, a autonomia possível e
necessária somente poderá ser construída pela
participação ativa na elaboração das normas e de
políticas sintonizadas no foro da ordem internacional. E
é por isso que o próprio ensino acadêmico dos
diplomatas brasileiros, sob a minha ótica, deve sofrer
algumas alterações em seu currículo, já que hoje os
chefes de estado se comunicam rapidamente e a
diplomacia é esquecida, como foi no caso do Iraque,
quando se abandonou totalmente a diplomacia para
entender que, através de uma ação bélica, eles poderiam
resolver os conflitos que aí estão. E o que é mais grave,
não é apenas no Iraque que eles falam em intervenção.
Hoje, eles admitem que, em qualquer lugar, que os
americanos entenderem, particularmente os americanos,
que podem e devem intervir, eles utilizarão a sua força
militar. Por isso é que o mundo hoje não é mais bipolar,
o mundo hoje é unipolar, sob o comando dos Estados
Unidos.

Neste sentido, ao agradecer, uma vez mais, a


oportunidade de estar aqui, desejaria registrar o meu
apreço e a minha especial estima pelo trabalho que a
Faculdade Estácio de Sá está realizando em Belo
Horizonte.

E, antes de terminar, gostaria, em poucas palavras, de


chamar a atenção dos membros da Faculdade, dos
colaboradores que aqui estão e dos ex-secretários, dos
senhores deputados federais, ex-ministros, por aquilo
que estamos chamando e percebendo: são os soldados
mercenários. Esta é uma preocupação que nós todos
devemos ter. E eu ousaria dizer, já que tenho uma
posição diferenciada da do governo brasileiro em relação
às tropas no Haiti. Devemos ter cuidado com estas
forças mercenárias que hoje estão atuando em mais de
50 países. Só no Iraque, segundo os observadores, estas

BH, v. 1, n.3, p. 145-156, mai. 2004 Ciência&Conhecimento


155
forças mercenárias somam mais de 20 mil homens. Só
são inferiores ao contingente americano e ao contingente
britânico. Elas atuam não apenas no confronto bélico,
mas também na proteção de organizações para-militares,
na defesa de oleodutos. Mas, os chamados soldados
mercenários aí estão e não vamos esquecer a definição de
Max Weber, novamente como aconteceu no século XVI
e XVII, o estado não detém mais o monopólio destes
serviços. Atuando em mais de 50 países, elas não podem
substituir o Estado nacional, elas não podem substituir
as nossas forças armadas. Eles são capazes de mudar os
conflitos que aí estão.

Eu gostaria também de falar apenas ligeiramente,


embora não seja o meu tema, sobre o problema nuclear.
Falam no problema nuclear brasileiro, e falam sem
conhecimento, sobretudo os norte-americanos, que não
conhecem sequer a nossa constituição ao abordar o
problema nuclear brasileiro. Pouca gente sabe, meu caro
Hindemburgo Pereira Diniz, que já se usa nos combates,
e isto já aconteceu na Bósnia, aconteceu em Kosovo, já
se usa em armas o chamado urânio empobrecido, que
tem causado sentimento de revolta naqueles mesmos
combatentes que utilizaram estas armas com o chamado
urânio pobre enriquecido. Porque os soldados que
utilizaram tal armamento, como se deu com o
combatente italiano, estão sofrendo problemas,
sobretudo da chamada doença da leucemia.
Portanto, é preciso que se deixe de lado esta paranóia
contra os países emergentes que buscam o seu
desenvolvimento pacífico, como é o caso do Brasil, na
questão nuclear, e ninguém fala que, de repente
combatentes de outros países estão usando para perigo
não apenas para os soldados, mas para todos nós, o
mistério de uma arma anti-tanque, uma arma que deixou
mais de 260 doentes, que é chamado o metal da desonra,
o urânio pobre enriquecido.

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Antes de terminar a minha palestra, prof. Carlos Alberto,
agradeço mais uma vez a todos que aqui estão. Gostaria
de passar às mãos de V. Excia. já que terá início em
agosto de 2004, na Estácio de Sá de Belo Horizonte, o
Curso de Especialização em Relações Internacionais, em
nível de pós graduação e preparatório ao acesso à
carreira diplomática, dois livros lançados agora nos
Estados Unidos. Eu me permitiria recomendá-los
àqueles que vão ingressar no curso de Direito
Internacional nesta universidade. Um do Richard Clarke,
ex-assessor do presidente George Bush, que diz o que se
passou nos bastidores antes de os americanos entrarem
no conflito do Iraque. Outro, escrito pelo jornalista que
desvendou o caso Watergate, que ele chama de plano de
Ataque, de Bob Woodward. São estas duas lembras, que
eu não chamaria de presente.
Quero agradecer todas as homenagens que aqui recebo,
deixar em mãos de V. Excia para que aqueles que vão
estudar a política internacional nesta universidade
tenham conhecimento de que, às vezes aquilo que nós
lemos e ouvimos, não corresponde também ao que se
passa nos livros de Richard Ckarke e de Bob Woodward.

Muito Obrigado.

Palestra pronunciada no dia 14 de maio para os


membros do Conselho Superior de Integração Social da
Faculdade.

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REGRAS PARA PUBLICAÇÃO
NA REVISTA CIÊNCIA&CONHECIMENTO
Ciência & Conhecimento publicará trabalhos inéditos
sob a forma de ensaios, artigos, resenhas de livros e
entrevistas.

Os artigos podem ser de origem diversa, tais como:


trabalhos acadêmicos de alunos orientados por seus
professores; resultado de pesquisas individuais dos
professores da instituição para a obtenção do seu título de
Mestre e/ou de Doutor; reflexões teóricas e/ou reflexões
sobre experiências e pesquisas profissionais de
professores em torno de temas relevantes para os cursos
ofertados pela Faculdade Estácio de Sá de Belo
Horizonte; resultados de pesquisas científicas
desenvolvidas com o apoio do Centro de Pesquisa e
Extensão – CEPE; relato de experiência profissional
(estudo de caso com análise de implicações conceituais,
descrição de procedimentos ou estratégias de
intervenção, contendo evidência metodologicamente
apropriada de avaliação, de eficácia e de interesse para o
profissional de um dos cursos da Faculdade Estácio de Sá
de Belo Horizonte); resultado de pesquisa ou estudo
acadêmico relevante desenvolvido por profissional
qualificado, independente da Instituição a que pertença;
revisão crítica de literatura; comunicação breve (relato
sucinto, mas completo, de investigação científica); carta
ao editor (avaliação crítica de artigo publicado pela
revista ou resposta de autores a crítica formulada a artigo
de sua autoria); nota técnica (descrição de instrumentos e
técnicas originais de pesquisa).

Os ensaios são trabalhos de natureza filosófica ou


técnico-científica.

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As resenhas deverão ser de livros recentes.

As entrevistas deverão ser conduzidas em torno de


idéias, pesquisas ou temas relevantes para as ciências
sociais aplicadas, cuidando-se de preservar a natureza
acadêmica e científica da Revista. A entrevista será
realizada pelo Conselho Editorial ou por professor ou
grupo de professores da Faculdade Estácio de Sá de Belo
Horizonte.

Os artigos encaminhados são submetidos à análise do


Conselho Editorial para aceitação ou recusa e devem
seguir as seguintes normas:
— Os textos devem ser digitados no programa Word
for Windows, em espaço 1,5 e margens de 2,5 cm, com
no máximo 15 (quinze) laudas. A fonte deve ser Times
New Roman 12, e os textos devem ser entregues ao
Centro de Pesquisa e Extensão da Faculdade Estácio de
Sá de Belo Horizonte da seguinte forma: 1) em um
envelope: uma cópia impressa e um disquete, ambos com
identificação do autor, uma breve autorização de
publicação e seus dados completos de endereço, para que
receba 3 exemplares da Revista; 2) em um segundo
envelope: duas cópias impressas, sem identificação de
autor;
— Os artigos deverão ser acompanhados de um
resumo em português, com até 300 palavras, incluindo
palavras-chave; um resumo em inglês (Abstract),
incluindo palavras-chave (Key-words);
— As notas explicativas e informações
complementares devem ser numeradas em notas de
rodapé, com fonte tamanho 9;
— As citações de textos originais com mais de 5
(cinco) linhas devem vir destacadas do texto, sem aspas,
em fonte do tamanho 10. As que vierem no texto devem

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estar entre aspas, seguidas do sobrenome do(s) autor(es),
data e número de página, escritos entre parênteses;
— Gráficos, tabelas, mapas e ilustrações devem ser
apresentados no original, em arquivo separado, com
indicações ao longo do texto, dos locais em que devem
ser inseridos.
— As referências devem aparecer após o texto,
obedecendo às seguintes normas da ABNT:
• Sobrenome do autor em caixa alta seguido de vírgula e
inicial do nome seguida de ponto. No caso de mais de um
autor, deve ser usado o ponto-e-vírgula para separá-los.
Quando existirem mais de três autores, indica-se apenas
o primeiro, acrescentando-se “et al.”
• Logo a seguir, o título da obra deve vir em itálico,
sendo só a primeira letra em maiúscula (exceto nome
próprio), seguido de ponto. Caso haja subtítulo, deve
estar separado do título por dois pontos e escrito
normalmente sem grifo. Depois do título, tem-se o local
escrito por dois pontos, o nome da editora seguido por
vírgula e a data da publicação, pontuada.
• Se houver número de edição, este deve vir
imediatamente após o título da obra, escrito conforme o
exemplo:
CERVO, A. L.; BERVIAN, P.A. Metodologia
científica: para uso dos estudantes universitários.
2.ed. São Paulo: McGraw-Hill, 1978.
• Para revista ou periódico, temos primeiro o sobrenome
do autor do artigo em caixa alta, seguido da inicial do
nome e ponto, o título do artigo, também pontuado, sem
estar destacado em itálico. Depois, o título da revista em
negrito ou itálico, seguido por vírgula, o local
acompanhado de vírgula, o volume abreviado em sua
primeira letra seguido por vírgula e o número da revista
também abreviado e seguido por vírgula. As páginas
inicial e final que compreendem o artigo devem estar

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separadas por hífen e precedidas de p., depois vírgula, o
mês abreviado, o ano e ponto final. Exemplo:
CHIN, Elizabeth. Ethnically correct dolls: toying
with the race industry. American Anthropologist,
New York, v. 101, n. 2, p. 305-321, jan. 1999.

Consultas on-line:
Se a fonte for INTERNET, é obrigatório escrever:
Disponível em:<http//www....>. Acesso em: número do
dia, mês abreviado e ano com quatro dígitos. Se a fonte
for e-mail, tem de constar: mensagem recebida por
biblioteca@estacio.br em 14 nov. 2002.

— Não serão aceitos artigos que estejam em


desacordo com as normas estabelecidas.

Para outras informações, os interessados podem contatar


o coordenador do Centro de Pesquisa e Extensão da
Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte, prof. Paulo
Vítor de Lara Resende, no local de trabalho ou no
endereço eletrônico <pvlresende@hotmail.com>.

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