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Barueri:
Manole, p.31-58.
1
C. Lasch, The Culture of Narcissism, Nova York, Warner Books, 1979, p. 61. Sobre a temática
narcisística, além dos trabalhos de R. Sennett, C. Lasch cita os de: Jim Hougan, Decadence: Radical
nostalgia, narcissism and decline in the seventies, Nova York, Morrow, 1975; Peter Marin, The new
narcissism, Harper‘s, out. 1975; Edwin Schur, The Awareness Trap: self-absorption instead of social
change, Nova York, Quadrangle, N.Y. Times, 1976, bem como um número importante de trabalhos de
inspiração psi (cf. notas p. 404-7); principalemente P. L. Giovachinni, Psychoanalysis of Character
Disorders, Nova York, Jason Aronson, 1975; H. Kohut, The Analysis of the self, Nova York, International
Universities Press, 1971; O. F. Kernberg, Borderline conditions and pathological narcissism, New York,
Jason Aronson, 1975.
Depois deste texto estar redigido, o livro de C. Lasch foi traduzido sob o título Le Complexe de Narcisse,
1980. As páginas indicadas aqui são as da edição americana.
2
Richard Sennett, Les Tyrannies de l’intimité. trad. fr. de Antoine Rerman e Rebecca Folkman, Paris. Ed.
du Seuil, 1979.
3
Edward Shorter. Naissance de la famille moderne. Paris, Ed. Du Seuil, trad. Franc. 1977.
enquadramento transcendental, a própria esfera privada muda de sentido, uma vez
entregue aos desejos variáveis dos indivíduos. Se a modernidade se identifica com o
espírito do empreendimento e com a esperança futurista, é claro que, devido a sua
indiferença histórica o narcisismo inaugura a pós-modernidade, a última fase do homo
aequalis.
Viver no presente, nada mais do que o presente, não mais em função do passado
e do futuro: é esta ―perda do sentido da continuidade histórica‖ (C.N., p. 30), esta erosão
do sentimento de pertencer a uma ―sucessão de gerações enraizadas no passado e se
prolongando para o futuro‖ que, segundo C. Lasch, caracteriza e engendra a sociedade
narcisista. Hoje em dia vivemos para nós mesmos, sem nos preocuparmos com nossas
tradições e com a nossa posteridade: o sentido histórico foi abandonado, da mesma
maneira que os valores e as instituições sociais. A derrota no Vietnã, o caso Watergate,
o terrorismo internacional e também a crise econômica, a escassez das matérias-primas,
a angústia nuclear, os desastres ecológicos (C.N., p. 17 e 28) criaram uma crise de
confiança nos lideres políticos, um clima de pessimismo e de catástrofe iminente que
explicam o desenvolvimento das estratégias narcisísticas de ―sobrevida‖ que prometem
a saúde física e psicológica. Quando o futuro parece ameaçador e incerto, resta
debruçar-se sobre o presente, que não paramos de proteger, arrumar e reciclar,
permanecendo em uma juventude sem fim. Ao mesmo tempo em que coloca o futuro
entre parênteses, o sistema procede à ―desvalorização do passado‖, em razão de sua
avidez de soltar-se das tradições e das limitações arcaicas, de instituir uma sociedade
sem amarras e sem opacidade; com essa indiferença pelo tempo histórico instala-se o
―narcisismo coletivo‖, sintoma social da crise generalizada das sociedades burguesas,
incapazes de enfrentar o futuro de outro modo, a não ser com desespero.
O ZUMBI E O PSI
4
Nietzsche, Le Nihilisme européen. Fragmentos póstumos reunidos e traduzidos por A. Kremer-Marietti,
p. 207. Paris, UGE, col. «10/18».
uma consciência opcional, disseminada, nas antípodas da consciência voluntária,
―introdeterminada‖. O fim da vontade coincide com a era da indiferença pura, com o
desaparecimento dos grandes finalidades e grandes empreendimentos pelos quais a vida
merece ser sacrificada: ―tudo já, agora‖ e não mais per aspera ad astra5···. ―Divirtam-
se‖, lê-se de vez em quando nos grafites; acabou-se o temor: o sistema se encarrega
disso; o Eu foi pulverizado em tendência parciais de acordo com o mesmo processo de
desagregação que fez explodir a socialidade num conglomerado de moléculas
personalizadas. E o social átono é exatamente a réplica do Eu indiferente, de vontade
enfraquecida, um novo zumbi embaraçado em mensagens. Inútil se desesperar, o
―enfraquecimento da vontade‖ não é catastrófico e nem prepara uma humanidade
submissa e alienada, ele não anuncia de [p.39] modo algum a ascensão do totalitarismo:
a apatia desenvolta representa muito mais uma muralha contra os sobressaltos de
religiosidade histórica e os grandes desígnios paranóicos. Obcecado por si mesmo, à
espreita da sua realização pessoal e do seu equilíbrio, Narciso opõe obstáculo à idéia de
mobilização de massas; hoje em dia os apelos à aventura, aos riscos políticos, não
encontram eco; se a revolução ficou desclassificada, não é o caso de se incriminar
qualquer ―traição burocrática‖: a revolução se apagou sob os holofotes sedutores da
personalização do mundo. Assim a era da ―vontade‖ desaparece: mas não há
necessidade alguma de recorrer, a exemplo de Nietzsche, a qualquer tipo de
―decadência‖. É a lógica de um sistema experimental baseado na rapidez do
agenciamento das combinações, que exige a eliminação da ―vontade‖ como obstáculo
ao seu funcionamento operacional. Um centro ―voluntário‖ com as suas certezas
íntimas, sua força intrínseca, ainda representa um foco de resistência à aceleração das
experimentações: mais vale a apatia narcisística, o Eu instável, que é o único capaz de
se movimentar em sincronia com uma experimentação sistemática e acelerada.
5
Par delà les obstacle, vers les étoiles, citado por D. Riesman, La Foule solitaire, Arthaud, 1964, p. 164.
extrodeterminação, com a sua necessidade de aprovação do Outro, seu comportamento
orientado pelo Outro, dá lugar ao narcisismo, a uma auto-absorção que reduz a
dependência do Eu em relação aos outros. R. Sennett tem razão em parte: ―As
sociedades ocidentais estão passando de um tipo de sociedade mais ou menos dirigida
pelas outras a uma sociedade dirigida do interior‖ (T.I., p. 14). Na hora dos sistemas à
escolha, a personalidade não pode mais ser do tipo gregário ou mimético, mas, sim,
deve aprofundar sua diferença, sua singularidade: o narcisismo representa esse
desprendimento do domínio do Outro, a ruptura com a ordem da padronização dos
primeiros tempos da ―sociedade de consumo‖. Liquefação da identidade rígida do Eu e
suspensão da primazia do olhar do Outro - em todos os casos o narcisismo funciona
como agente do processo de personalização.
6
Marcel Gauchet. ―Tocqueville, l‘Amérique et nous‖. In: Libre, n.7, p.83-104
sempre assume uma função de integração social7, desta vez menos por meio da
conquista da dignidade pela luta de classe que por meio da pretensão da autenticidade e
da verdade do desejo.
O CORPO RECICLADO
C. Lasch demonstra muito bem que o medo atual de envelhecer e de morrer faz
parte do neonarcisismo. O desinteresse pelas gerações futuras intensifica a angústia da
morte, enquanto a degradação das condições de existência das pessoas idosas e a
permanente necessidade de ser valorizado, admirado pela beleza, pelo charme e pela
celebridade tornam intolerável a perspectiva do envelhecimento (C. N., p. 354-7). De
7
M.Gauchet, ibid., p.116.
fato, é o processo de personalização que, esvaziando sistematicamente toda a posição
transcendental, engendra uma existência puramente atual, uma subjetividade total sem
finalidade nem sentido, entregue à vertigem da auto-sedução. O indivíduo, fechado em
seu gueto de mensagens, hoje em dia enfrenta sua condição mortal sem qualquer apoio
―transcendental‖ (político, moral ou religioso). ―Para dizer a verdade, o que [p.43]
revolta em relação à dor não é a dor em si, mas o nonsense da dor‖, dizia Nietzsche. O
mesmo acontece com a morte e com a velhice, e é o seu nonsense contemporâneo que
exacerba o horror. Nos sistemas personalizados, então, resta apenas durar o máximo
possível e divertir-se, aumentar a confiabilidade do corpo, ganhar tempo e ganhar a
―corrida‖ contra o tempo. A personalização do corpo apela para o imperativo da
juventude, para a luta contra a adversidade temporal, o combate para conservar nossa
identidade sem hiatos ou panes. Permanecer jovem, não envelhecer: é o mesmo
imperativo da funcionalidade pura, o mesmo imperativo da reciclagem, o mesmo
imperativo da dessubstanciação que impede a manifestação dos estigmas do tempo a
fim de dissolver as heterogeneidades da idade.
8
J. Baudrillard fala justamente de um ―narcisismo dirigido‖; cf. L’Echange symbolique e la mort. Paris,
Gallimard, 1976, p. 171-3.
9
O processo de personalização anexou a própria norma, assim como anexou a produção, o consumismo,
a educação ou a informação. A norma dirigista ou autoritária foi substituída pela norma ―indicativa‖,
suave, pelos ―conselhos práticos‖, as terapias ―sob medida‖, as campanhas de informação e de
sensibilização por meio de filmes humorísticos e publicidades repletas de sorrisos.
papéis públicos‖, quer dizer, com a supressão de tudo quanto é convenção, artifício ou
uso, considerado hoje em dia como ―algo de seco, de formal, senão de artificial‖ (T.I., p.
12), e como algo que opõe [p.45] obstáculos à expressão da intimidade e da
autenticidade do Eu. Esteja onde estiver a validade parcial desta tese, ela não resiste à
prova de idolatria regulamentada do corpo sobre a qual, curiosamente, R. Sennett não
diz uma única palavra: se o narcisismo é mesmo ocasionado por uma onda de
desafeição, são as finalidades e valores ―superiores‖ que estão em jogo, não os papéis e
regras sociais. Nada menos do que o grau zero do social, o narcisismo procede de um
hiperinvestimento de regras e funciona como tipo inédito de controle social sobre a
alma e o corpo.
UM TEATRO DISCRETO
10
Ph. Ariès. Essais sur l’histoire de la mort en Occident. Paris, Ed. du Seuil, 1975, p. 187.
11
Ibid., p.173
personalizados, [p.48] os cismas, as heresias já não têm sentido: quando uma sociedade
―valoriza o sentimento subjetivo dos atores e desvaloriza o caráter objetivo da ação‖
(TI., p. 21), aciona um processo de dessubstanciação das ações e doutrinas, cujo efeito
imediato é uma ―descrispação‖ ideológica e política. Neutralizando os conteúdos em
benefício da sedução psi, o intimismo generaliza a indiferença, coordena uma estratégia
de desarmamento nos antípodas do dogmatismo das exclusões.
APOCALYPSE NOW?
C. Lasch, rejeitando as teorias de Riesman e de Fromm que, aos seus olhos, são
culpados de terem exagerado a capacidade de socialização das pulsões agressivas pela
sociedade permissiva, não faz mais do que voltar à representação dominante, mass-
midiática, da ascensão da violência no mundo moderno: a guerra está às nossas portas,
vivemos sobre um barril de pólvora, basta ver o terrorismo internacional, os crimes, a
insegurança das cidades, a violência racial nas ruas e escolas, os assaltos à mão armada,
etc. (C. N., p. 130). O estado natural de Hobbes encontra-se, assim, no fim da História: a
burocracia, a proliferação das imagens, as ideologias terapêuticas, o culto ao
consumismo, as transformações da família, a educação permissiva engendraram uma
estrutura da personalidade, o narcisismo, indo a par com as relações humanas cada vez
mais bárbaras e conflituosas. Os indivíduos se tornam mais sociáveis e cooperativos
apenas aparentemente; por trás da tela do hedonismo e da solicitude, cada um explora
cinicamente os [p.50] sentimentos dos outros e satisfaz seus próprios interesses sem a
menor preocupação com as gerações futuras. É curioso que concepção desse narcisismo,
apresentado como estrutura psíquica inédita e que se encontra de fato aprisionada nas
redes do amor-próprio e do desejo de reconhecimento, já tenha sido percebido por
Hobbes, Rousseau e Hegel como responsável pelo estado de guerra. Se o narcisismo
representa um novo estágio do individualismo - esta é hipótese mais proveitosa nos
atuais trabalhos americanos, muito mais do que o seu conteúdo, inclinado demais a um
catastrofismo simplista -, é preciso notar que ele se acompanha de um relacionamento
original com o Outro, assim como implica em uma relação inédita com o corpo, o
tempo, o afeto, etc.
Assim sendo, é natural que a luta pelo reconhecimento não cesse; mais
exatamente, ela se privatiza, manifestando-se com prioridade nos circuitos íntimos, nos
problemas relacionais; o desejo de reconhecimento foi colonizado pela lógica
narcisística e torna-se cada vez menos competitivo, cada vez mais estético, erótico,
afetivo. O conflito de consciências se personaliza, está menos em jogo a classificação
social do que o desejo de agradar, de seduzir - e isto, por um longo tempo, se possível -
o desejo de ser ouvido, aceito, protegido, amado. É por isso que hoje em dia há menos
agressividade, domínio e servidão nos relacionamentos e conflitos sociais do que nos
relacionamentos sentimentais de pessoa a pessoa. Por um lado, a cenário público e as
condutas individuais não param de se pacificar por meio da auto-absorção narcisística;
por outro, o espaço particular se psicologiza, perde as suas amarras convencionais e se
torna uma dependência narcisística na qual cada um encontra apenas o que ―deseja‖: o
narcisismo não significa a exclusão dos outros, designa a transcrição progressiva das
realidades individuais e sociais para o código da subjetividade.
24 MIL WATTS
À guerra de cada um contra todos vem juntar-se uma guerra interior, dirigida e
amplificada pelo desenvolvimento de um Sobre-Eu duro e punitivo, resultante das
transformações da família, tais como a ―ausência‖ do pai e [p.53] a dependência da mãe
em relação aos peritos e conselheiros psicopedagógicos (C. N., cap. VII). O
―desaparecimento‖ do pai, devido à freqüência dos divórcios, leva a criança a imaginar
a mãe como castradora do pai: é nessas condições que os filhos alimentam o sonho de
substituí-lo, de ser o falo, ganhando celebridade ou se juntando aos que representam o
sucesso. A educação permissiva e a socialização crescente das funções dos pais, que
tornam difícil a interiorização da autoridade familiar, não destroem o Sobre-Eu, mas
transformam seu conteúdo num sentido cada vez mais ―ditatorial‖ e feroz (C. N., p.
305). O Sobre-Eu se apresenta atualmente sob a forma de imperativos de celebridade e
de sucesso que ao não serem alcançados desencadeiam críticas implacáveis contra o Eu.
Assim se explica o fascínio exercido pelos indivíduos célebres, estrelas e ídolos,
vivamente estimulado pela mídia que ―intensifica os sonhos narcisísticos de celebridade
e de glória, encorajando o homem ‗comum‘ a se identificar com estrelas, a odiar o
‗rebanho‘, e torna cada vez mais difícil para ele aceitar a banalidade da existência
cotidiana‖ (C. N., p. 55-6): a América tornou- se uma nação de ―fãs‖. Do mesmo modo
que a proliferação de conselheiros médico-psicológicos destrói a confiança dos pais na
própria capacidade educativa e aumenta a sua ansiedade, as imagens da felicidade
associadas a imagens de celebridade têm como efeito engendrar mais dúvidas e
angústias. Ativando o desenvolvimento de ambições desmesuradas e tornando suas
realizações impossíveis, a sociedade narcisística favorece a autodepreciação e o
desprezo por si mesmo. A sociedade hedonista produz tolerância e indulgência apenas
superficialmente, ao passo que a ansiedade, a incerteza e a frustração jamais se
desenvolveram tanto quanto nela. O narcisismo alimenta mais ódio do que admiração
pelo Eu (C. N., p. 72).
12
P. Virílio. ―Un confort subliminal‖ In : Traverses, n.14-15, p. 159. Sobre o ―constrangimento à
movimentação‖, ver igualmente P. Virílio, Vitesse et politique, Paris, Galilée, 1977.
Circulação, informação, iluminação trabalham para um mesmo enfraquecimento do real,
o que, por sua vez, reforça o investimento narcisístico: uma vez o real se tornando
inabitável, resta o dobrar-se para dentro de si mesmo, o refugiar-se na autarquia, que a
nova voga dos decibéis, dos fones de ouvido e dos concertos pop tão bem ilustra.
Neutralizar o mundo pelo poder sonoro, fechar-se em si mesmo, flutuar e sentir no
corpo o ritmo dos amplificadores. Hoje em dia o barulho e as vozes da vida se tornam
parasitas, é preciso identificar-se com a música e esquecer a exterioridade do real. Já dá
para ver isso: adeptos do jogging e do skate praticando os seus esportes com
transmissores estereofônicos diretamente nos tímpanos, automóveis equipados com
aparelhos de som com amplificadores que funcionam a 100 W, discotecas com
amplificadores com 4.000 W de potência, concertos pop nos quais o som atinge 14.000
W; enfim, toda uma civilização que ultimamente vem fabricando, como dizia Le
Monde, uma ―geração de surdos‖, jovens que já perderam 50% da sua capacidade
auditiva. Surge uma nova indiferença ao mundo que já não acompanha nem mesmo o
êxtase narcisístico da contemplação de si mesmo; hoje em dia Narciso se desoprime
rodeado por amplificadores, com fones de ouvido, auto-suficiente em sua prótese de
sons ―graves‖.
O VAZIO
―Se pelo menos pudesse sentir alguma coisa!‖ Esta frase traduz o ―novo‖
desespero que aflige um número cada maior de pessoas. Neste ponto, parece que é geral
a concordância dos psicólogos: depois dos vinte e cinco ou trinta anos são as
perturbações de tipo narcisístico que constituem a maior parte das perturbações
psíquicas tratadas pelos terapeutas, enquanto as neuroses ―clássicas‖ do século XIX,
histerias, fobias, obsessões, sobre as quais a psicanálise tomou corpo, não representam
mais a forma predominante dos sintomas (T. I., p. 259 e C. N., p. 88-9). As perturbações
narcisísticas se apresentam menos sob a forma de ―perturbações com sintomas nítidos e
bem definidos‖ e mais sob a forma de ―perturbações do caráter‖ [p.56] que se
manifestam por meio de um mal-estar difuso e invasor, de um sentimento de vazio
interior e de absurdo da vida, de uma incapacidade de sentir as coisas e as pessoas. Os
sintomas neuróticos, que correspondiam ao capitalismo autoritário e puritano, deram
lugar, sob a pressão da sociedade permissiva, às desordens narcisísticas, sem formas e
intermitentes. Os pacientes não sofrem mais de sintomas fixos, mas, sim, de
perturbações vagas e difusas; a patologia mental obedece à lei do tempo, cuja tendência
é a redução das rigidezes assim como a liquefação das referências estáveis: a crispação
neurótica foi substituída pela flutuação narcisística. Impossibilidade de sentir, vazio
emotivo, a dessubstancialização a esta altura está se completando, revelando a verdade
do processo narcisístico como estratégia do vazio.
13
Entre 1970 e 1978 o número de americanos entre quatorze e os trinta e quatro anos vivendo sós, fora de
toda e qualquer situação familiar, quase triplicou, passando de um milhão e meio para 4.300.000. ―Hoje
em dia, 20% dos lares americanos se reduzem a uma pessoa que vive sozinha... quase um quinto dos
compradores atualmente são solteiros‖. Alvin Toffler, La Troisième Vague, Paris, Denoël, 1980, p. 265.
sentimento deve alcançar um estado personalizado, eliminando os sintagmas
congelados, a teatralidade melodramática, o kitsch convencional. O pudor sentimental é
comandado por um princípio de economia e de sobriedade constitutivo do processo de
personalização. Deste modo, o que caracteriza o nosso tempo é menos a fuga diante do
sentimento que a fuga dos sinais do sentimentalismo. Não é verdade que as pessoas
estejam procurando um distanciamento emocional e uma proteção contra a irrupção do
sentimento; a este inferno povoado de mônadas insensíveis e independentes é preciso
opor os clubes de encontros, os ―pequenos anúncios‖, as ―agências‖, enfim, todas essas
milhares de esperanças de encontros, de ligações, de amor que são cada vez mais
difíceis de se realizarem. É aí que o drama se torna mais profundo do que o pretenso
desapego cool: homens e mulheres continuam aspirando (talvez nunca tenha havido
tanta ―demanda‖ afetiva como nesses tempos de deserção generalizada) à intensidade
emocional dos relacionamentos privilegiados, e quanto mais a esperança é forte, mais o
milagre da união se torna raro ou, pelo menos, breve14 Quanto mais a cidade desenvolve
as possibilidades de encontros, mais os indivíduos se sentem sós; quanto mais as
relações se tornam livres, emancipadas das antigas restrições, mais rara se torna a
possibilidade de conhecer uma relação intensa. Por todo o lado há solidão, vazio,
dificuldade de sentir, de ser transportado para fora de si [p.58] mesmo; daí uma fuga
para as ―experiências‖, que apenas traduz a busca de uma ―experiência‖ emocional
forte. Por que eu não posso amar e vibrar? Desolação de Narciso, muito bem
programado em sua absorção em si mesmo para poder ser afetado pelo Outro, para sair
de si mesmo e, no entanto, insuficientemente programado, uma vez que ainda deseja um
relacionamento afetivo.
14
O processo de despadronização precipita a duração das ―aventuras‖, os relacionamentos repetitivos,
com sua inércia ou peso, fazendo dano à disponibilidade e à ―personalidade‖ viva do indivíduo. Para ter
alegria de viver é preciso reciclar os afetos, jogar fora tudo que envelhece: nos sistemas desestabilizados,
a única ―ligação perigosa‖ é uma ligação indefinidamente prolongada. Daí quedas e elevações cíclicas da
tensão: do estresse à euforia, a existência torna-se sismográfica. Cf. Manhattan, de W. Allen.