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O SISTEMA INEXORÁVEL DE
KARL MARX
por todo canto. E seus temores não eram infundados. Nas fundições
francesas os trabalhadores cantavam canções radicais acompanhan-
do-as com o som dos martelos batendo nas bigornas e o poeta
romântico alemão, Heinrich Heine, que estava em viagem visitando
as fábricas, reportou que “as verdadeiras pessoas de nosso gentil
modo de viver não podem fazer idéia do estigma demoníaco que
há nessas canções.”4
Mas a despeito das retumbantes palavras do Manifesto, o dia-
bólico panfleto não era um chamado para a revolução do comunismo;
era um grito nascido apenas da frustração e do desespero. Toda
Europa estava nas garras de uma reação comparada com a qual
a situação na Inglaterra era positivamente idílica. O governo francês
havia sido caracterizado por John Stuart Mill como “completamente
sem espírito de progresso e ... forjado quase que exclusivamente
pelos mais mesquinhos e egoístas impulsos do ser humano” e os
franceses não tinham o monopólio dessas duvidosas qualidades para
a pretensa fama. Quanto a Alemanha, bem, ali estava a quarta
década do século dezenove e a Prússia ainda não tinha Parlamento,
não tinha liberdade de palavra, nem direito a assembléias, nem
liberdade de imprensa ou direito a julgamento por júri; não tinha
tolerância por idéia alguma que se desviasse, fosse por um fio de
cabelo, da antiquada noção do direito divino dos reis. A Itália era
uma mixórdia de principados anacrônicos. A Rússia sob Nicolau I
(apesar do czar ter ido conhecer a Nova Lanark de Robert Owen)
era caracterizada pelo historiador de Tocqueville como “a pedra
fundamental do despotismo na Europa”.
Se o desespero tivesse sido canalizado e orientado, o panfleto
diabólico teria se transformado em um incentivo realmente revo-
lucionário. Mas, na verdade, as sublevações eram espontâneas, in-
disciplinadas e sem finalidade; obtinham uma vitória inicial e então,
enquanto os revoltosos pensavam no que deveriam fazer a seguir,
a velha ordem invencível recolocava tudo nos devidos lugares. O
fervor revolucionário amornou e onde isso não aconteceu ele foi
impiedosamente esmagado. Ao preço de dez mil baixas, as turbas
de Paris foram subjugadas pela Guarda Nacional, Luís Napoleão
assumiu o comando da nação e não demorou a trocar a Segunda
República pelo Segundo Império. Na Bélgica, o país decidiu que
era melhor pedir ao rei que ficasse, afinal de contas; ele agradeceu
o tributo abolindo o direito de assembléias. As multidões vienenses
e húngaras foram atacadas a disparos de canhões em suas praças
fortes e na Alemanha uma assembléia constitucional, que havia
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A HISTÓRIA DO PENSAMENTO ECONÔMICO
de troca; devem ser vistas não por meio da filosofia, mas sim da
economia da época concernente”.9
O raciocínio é poderoso. Toda sociedade, diz Marx, é construída
sobre uma base econômica — a dura realidade dos seres humanos
que precisam organizar suas atividades a fim de vestir-se, alimen-
tar-se e morar. Esta organização pode diferir enormemente de so-
ciedade para sociedade e de época para época. Pode ser pastoral,
ser construída ao redor de caça, agrupada em unidades artesanais
ou estruturada num complexo conjunto industrial. Mas seja qual
for a forma com que os homens decidam resolver seu problema
econômico básico, a sociedade irá requerer uma “superestrutura”
completa de atividade não econômica e de pensamento — o conjunto
terá que ser amarrado por leis, supervisionado por um governo,
inspirado por religião e filosofia.
Mas a superestrutura de pensamento não pode ser selecionada
ao acaso. Ela terá que espelhar a fundação sobre a qual se apóia.
Nenhuma comunidade caçadora poderá desenvolver ou usar a estru-
tura legal de uma sociedade industrial e, do mesmo modo, nenhuma
comunidade industrial poderá utilizar a concepção de lei, ordem e
governo de uma aldeia primitiva. Note que a doutrina do materialismo
não exclui a função catalisadora e a criatividade de idéias. Ela apenas
exige que os pensamentos e idéias sejam produto do meio ambiente,
mesmo que tenham a finalidade de mudar esse ambiente.
O materialismo em si iria reduzir as idéias a meros e passivos
complementos da atividade econômica. Esta nunca foi a afirmação
de Marx. A nova teoria era tão dialética quanto materialista: visava
mudança, constante e inerente mudança; e nesse infindável fluxo
de idéias emanadas em um período iria ajudar a formar outro. “Os
homens fazem sua própria História”, escreveu Marx, comentando
o coup d’état de Luís Napoleão em 1852, “mas não a fazem só como
ela lhes agradaria; não a fazem sob circunstâncias escolhidas por
si mesmas, mas sob circunstâncias diretamente encontradas, dadas
e transmitidas pelo passado”.10
Mas o aspecto dialético — mutável — desta teoria sobre a
História não depende simplesmente da interação de idéias e estru-
turas sociais. Havia um outro e muito mais poderoso agente em
ação. O mundo econômico em si estava mudando; os próprios ali-
cerces sobre os quais a estrutura de idéias tinha sido construída
estavam em movimento.
Por exemplo, os mercados isolados da Idade Média começaram
a desaparecer sob o ímpeto da exploração e da unificação política
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OS ECONOMISTAS
com algum conforto, até mesmo fazer uma pequena viagem para
melhorar a saúde. Engels também, afinal, recebeu uma herança e
abandonou os negócios; em 1869 ele foi ao escritório pela última
vez, depois foi para o campo, ao encontro da filha de Marx, “girando
sua bengala no ar e cantando, com o rosto radiante”.
Em 1881 Jenny morreu; ela enterrara dois de seus cinco filhos,
inclusive o único menino; estava velha e cansada. Marx encontra-
va-se doente demais para ir ao funeral; depois de observá-lo, Engels
disse: “O Mouro também está morto”.
Não foi bem assim; Marx ainda viveu por mais dois anos;
desaprovou os maridos que suas duas filhas escolheram; ficou des-
gostoso com as brigas no movimento das classes trabalhadoras e
libertou-se delas com uma declaração que jamais deixou de ator-
mentar os seguidores fiéis ("Não sou marxista", disse ele, um dia);19
então, quietamente, adormeceu para sempre numa noite de março.
O que ele fez durante aqueles longos anos de privações?
Para começar, produziu o movimento internacional das classes
trabalhadoras. Quando jovem, Marx escreveu: “Os filósofos, até agora,
apenas interpretaram o mundo de várias maneiras; trata-se agora de
mudá-lo”.20 Marx e Engels deram dignidade ao proletariado em sua
interpretação da História; em seguida passaram a orientar e dirigir
o proletariado para poder exercer sua influência máxima na História.
Não se tratou de uma tentativa coroada de muito sucesso.
Coincidentemente com a publicação do Manifesto, havia sido for-
mada a Liga Comunista, no entanto nunca houve muito mais do
que uma organização no papel; o Manifesto, que era a plataforma
deles, ainda não havia sido posto à venda para o povo e, com o
esvaziamento da revolução de 1848, a Liga também morreu.
Ela teve continuidade em 1864, com a mais ambiciosa das
organizações, a International Workingmen’s Association (Associação
Internacional dos Trabalhadores). A International reuniu sete mi-
lhões de membros e era real o bastante para ter o controle de uma
onda de greves que varreram o continente e lhe valeram uma re-
putação bastante assustadora. Mas também isso estava destinado
a ter uma história breve. A International não consistia em um
consciente e disciplinado exército de comunistas, mas sim em um
mosaico de owenistas, proudhonistas, fourieristas, de indiferentes
socialistas, enfurecidos nacionalistas e sindicalistas que ignoravam
qualquer tipo de teoria revolucionária. Com considerável habilidade,
Marx manteve sua gente unida por cinco anos, e então a Interna-
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OS ECONOMISTAS
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VII
O MUNDO VITORIANO E OS
SUBTERRÂNEOS DA ECONOMIA