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F O R T U N A C R Í T I C A 2

Ivan Teixeira

O FORMALISMO RUSSO
Movimento que desencadeou uma abordagem

Reprodução
lingüística da literatura teve Jakobson e
Chklovski entre seus representantes e procurou
mostrar como o texto poético instaura a
consciência formal do discurso literário em seus
níveis semântico, sintático e fonológico O lingüista russo Roman Jakobson

Série destaca as principais Um dos marcos da moderna teoria forma, entende a língua poética como
tendências da crítica literária literária encontra-se no ensaio “A arte uma oposição ao cânone literário domi-
como procedimento”, escrito em 1917 nante. Introduz, com isso, a noção de que
“Fortuna Crítica” é uma série de seis por Vítor Chklovski. Essa noção tornou- o valor artístico de uma obra decorre não
artigos de Ivan Teixeira sobre as prin- se consensual após os estudos de Victor apenas de sua estrutura verbal, mas
cipais correntes da crítica literária e das
Erlich nos Estados Unidos (1955) e, também da maneira como é lida. Con-
teorias poéticas. O primeiro ensaio,
publicado no número 12 da CULT sobretudo, depois que um teórico de forme essa perspectiva, não existe valor
(julho), abordou a retórica de Aristóteles orientação marxista, Terry Eagleton, se artístico em termos absolutos, pois
e Quintiliano. O presente texto delineia apropriou dos princípios do formalista afirma que há objetos concebidos como
o formalismo russo e, nos próximos russo em sua Teoria literária (1983), prosaicos e percebidos como poéticos,
ensaios, serão apontadas as diretrizes do atualmente o manual mais popular dessa assim como há objetos concebidos como
new criticism, do estruturalismo, do new
historicism e do desconstrutivismo. Ivan disciplina na Inglaterra. Como se sabe, poéticos e percebidos como prosaicos.
Teixeira é professor do Departamento de Roman Jakobson, outro integrante funda- Nesse sentido, o morfologista russo
Jornalismo e Editoração da ECA-USP, co- mental do Formalismo, é responsável por instaura uma espécie de teoria da rela-
autor do material didático do Anglo Ves- uma das teorias mais difundidas no tividade na avaliação da arte, cuja apre-
tibulares de São Paulo (onde lecionou Ocidente: a idéia de que a função poética ciação necessariamente implica uma
literatura brasileira durante mais de 20
anos) e autor de Apresentação de da linguagem consiste na ambigüidade teoria do conhecimento.
Machado de Assis (Martins Fontes) e da mensagem mediante o adensamento Chklovski define a arte como a singu-
Mecenato pombalino e poesia neo- do significante, princípio desenvolvido a larização de momentos importantes. Em
clássica (a sair pela Edusp). Tem se de- partir de pressupostos de Chklovski. rigor, os momentos tornam-se impor-
dicado a edições comentadas de clás- De fato, Chklovski é o desencadeador tantes somente depois de submetidos ao
sicos – entre eles as Obras poéticas de
Basílio da Gama (Edusp) e Poesias de
da abordagem lingüística da literatura, processo de singularização artística,
Olavo Bilac (Martins Fontes) – e dirige pois seu ensaio foi o primeiro a siste- porque, na vida prática, as coisas se tornam
a coleção “Clássicos para o vestibular”, matizar a idéia de língua poética como imperceptíveis em sua totalidade. Mo-
da Ateliê Editorial. um desvio da língua cotidiana. Da mesma vido pela pressa e pelo empenho em

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imediatizar o cotidiano, o homem acaba decorre de técnicas específicas aplicadas facilitar o conhecimento. Por isso, a
por perder a consciência individual das às palavras, em seus níveis semântico, imagem devia ser mais simples do que
ações, dos objetos e das situações. Por isso, sintático e fonológico: instaura-se a aquilo que explica. Por essa perspectiva,
abreviam-se palavras, criam-se siglas, consciência lingüística da literatura. a história dos estilos e das escolas basear-
desenvolvem-se esquemas para tornar Desfaz-se, enfim, a concepção do se-ia no estudo das imagens carac-
mais rápida a superação dos compro- senso comum segundo o qual literatura é terísticas de cada autor nos diversos
missos e dos contatos com as pessoas. A expressão imediata da vida, como se o períodos. Contrariando essas noções,
lei da economia das energias reduz tudo texto não fosse um simulacro conven- Chklovski negou a idéia da imagem
a números ou a volumes sem identidade, cional de signos. Pela perspectiva desses como instrumento conhecido para se
processo que objetiva o máximo de teóricos, o desconforto dos enunciados atingir o desconhecido, assim como
rendimento com um mínimo de atenção. inovadores integra o complexo de pro- demonstrou que os autores e as escolas
Esse processo – pensa Chklovski – priedades que atribuem valor estético ao não criam as próprias imagens. Ao
resulta na automatização da vida psíquica, texto. Nesse sentido, os seguintes versos contrário, as imagens são essencialmente
pois, em nome da rapidez, anula-se a de Sousândrade servem de exemplo de as mesmas ao longo da história, cabendo
intensidade do ato de conhecer. Nele, as enunciado poético, cuja decodificação aos períodos e aos respectivos autores
coisas possuem importância apenas a seleção de velhas ima-
apenas quando reconhecidas, gens em novas combinações,
esvaindo-se o entusiasmo da como ocorre nesses versos de
descoberta. O próprio conceito Sousândrade.
de aprendizado pressupõe o uso O escritor Joaquim Segundo a teoria de
automático das noções e dos de Sousa Andrade Chklovski, as imagens são um
movimentos. O simples fato de (1833-1902), dos dispositivos pelos quais o
conhecido como
uma ação se tornar habitual basta poeta singulariza o texto, me-
Sousândrade, cuja
para desencadear a inconsciência poesia, para ser diante a produção do estra-
em quem a executa. melhor entendida, nhamento, responsável pela
Assim, a principal função da pressupõe uma dificuldade que atribui den-
arte seria restaurar a intensidade idéia formalista sidade à percepção estética.
do conhecimento, promovendo da literatura como Elas são uma das possíveis
a virgindade dos contatos e o organização de manifestações da idéia de
encanto da descoberta. Nesse signos procedimento artístico, que é o
sentido, o artista deve criar conjunto de atitudes rumo ao
situações inéditas e imprevistas, desvio da linguagem comum
em busca da restauração do ato em favor do insólito e do im-
de conhecer. Numa palavra, a finalidade pressupõe um mínimo de vivência com o previsto. Embrionária em Aristóteles,
da arte é gerar a desautomatização, conceito de literatura enquanto orga- essa idéia dominou as preceptivas seis-
mediante o estranhamento ou a singu- nização de signos: centistas, chegando até o século XVIII,
larização da estrutura que o artista Lá, onde o ponto do condor negreja, quando encontrou clara expressão em
oferece à contemplação. Se algo aspira à Cintilando no espaço como brilhos Muratori, vertido para o português por
condição de enunciado artístico, precisa D’olhos Francisco José Freire, em sua Arte poética
ser dito de forma impressionante. Ao Antes do ensaio de Chklovski, domi- (1759), onde se lê que o poeta reveste suas
contrário do convívio cotidiano com as nava na Rússia a idéia de que fazer arte é matérias “de tal maneira e lhes dá um tal
coisas, o convívio com a arte deve ser pensar por imagens, princípio defendido colorido que aparecem cheias de novi-
particularizado, dificultoso e lento. pelo teórico Potebnia e incorporado pelos dade e de beleza, por virtude do mara-
Tomando o texto poético como meto- poetas simbolistas. Conforme esse prin- vilhoso e esquisito artifício, da vivacidade
nímia de arte, o morfologista russo cípio, a função da imagem é procurar da pintura e do novo ornato poético que
entende que a particularização do texto semelhança entre coisas diferentes para lhes deu”.

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Transcendendo os limites das figuras sonagem (leitor incluso). A desautoma- garrafa. Conforme essa visão, a literatura
e dos tropos, a concepção de proce- tização decorre também da reiteração nunca é sobre coisas ou situações. Será
dimento artístico de Chklovski pode intensiva do vocábulo todos, pronunciado sempre o resultado da adequação entre
consistir em qualquer agudeza favorável quatro vezes em diferentes tons de procedimento e matéria, fenômeno que
ao estranhamento da disposição e da surpresa. automaticamente a insere num código de
elocução da matéria: qualquer escolha e A abordagem tradicional afirma que referência literária.
combinação que transmita a sensação de O alienista é uma novela sobre a falácia da Surge daí um conceito funcional de
surpresa e espanto. Dentre os inúmeros ciência, a precariedade do conceito de literatura, entendida não mais como um
exemplos de procedimento literário, discurso ornado e ficcional que visa à
o morfologista menciona o caso da imortalidade, mas como um modo
novela Kholstomer, de Tolstoi, em que especial de articulação da linguagem,
o ponto de vista não é o de um ser cuja idéia de valor é rigorosamente
humano, mas o de um cavalo, cujas relativa, pois leva em conta tanto a
observações sobre os homens pro- estrutura verbal do texto quanto a
duzem um relato carregado de percepção do leitor e o eventual
imprevisibilidades. Na literatura desgaste das formas, que, de estranhas
brasileira talvez o exemplo mais e desautomatizadoras, podem, com o
evidente de procedimento artístico passar do tempo, se tornar corri-
bem-sucedido se encontra nas Me- queiras e previsíveis. Até então,
mórias póstumas de Brás Cubas, em que jamais se chegara a um conceito tão
a perspectiva de um defunto é res- relativo do valor da obra de arte, que
ponsável pelo estranhamento do texto. passou a ser definida como uma
A abertura do capítulo XI de O estrutura sígnica contrária ou
alienista também se constrói conforme divergente do padrão dominante.
o princípio da singularização, capaz O relativismo da percepção do
de conduzir o leitor ao centro da O romancista russo Leon Tolstoi objeto artístico encontra apoio não
narrativa: (1828-1910), autor da novela apenas em Chklovski e Boris Toma-
E agora prepare-se o leitor para o Kholstomer, objeto de análise chevski, mas também em Jakobson,
mesmo assombro em que ficou a vila ao morfológica do lingüista Chklovski responsável por uma instigante teoria
saber um dia que os loucos da Casa Verde relativista da noção de Realismo,
iam todos ser postos na rua. apresentada no artigo “Do realismo
– Todos? artístico”, escrito na fase inicial do
– Todos. loucura e o autoritarismo dos governos. teórico, quando ainda integrava o grupo
– É impossível; alguns sim, mas todos... Os formalistas colocariam o problema dos formalistas russos, na década de 10.
– Todos. Assim o disse ele no ofício que de outra forma: as incertezas da ciência e Ao questionar a arbitrariedade da termi-
mandou hoje de manhã à câmara. a arbitrariedade dos governos são um nologia da crítica precedente, Jakobson
O estranhamento provocado pelo dispositivo para o exercício da alegoria. exemplifica essa crise mediante o exame
texto decorre sobretudo da inclusão do A motivação inicial de Machado teria do vocábulo realismo, então empregado
leitor no universo dos habitantes de sido a formulação da sátira ou do escárnio com muita imprecisão.
Itaguaí, cujo espanto com o recolhimento alegórico, categorias preexistentes ao Com extremo rigor lógico, o mor-
dos loucos fora tão grande quanto com a tema da loucura mal interpretada. Assim, fologista enumera diversas acepções do
súbita libertação deles: conhecedor do os procedimentos buscam suas matérias, termo e acaba por demonstrar que ele é
assombro em que vivia a cidade, o leitor é cujo resultado é a forma literária. Com praticamente nulo enquanto categoria
convidado a sentir o mesmo espanto dos isso, elimina-se a idéia de que as matérias descritiva. De modo geral, o termo se refere
moradores, deixando a posição de espec- podem ser incluídas ou excluídas de um a obras que aspiram a reproduzir fielmente
tador para assumir o estatuto de per- texto, como se fossem o conteúdo de uma a realidade, buscando o máximo de veros-

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similhança, entendida não no sentido posturas com a idéia da incorporação do B I B L I O G R A F I A
clássico de adequação entre matéria e real: assim procederam os românticos, os
gênero literário, mas na acepção con- realistas, os simbolistas, os futuristas, os
temporânea de semelhança com a verdade impressionistas e os expressionistas.
referencial. A cristalização típica dessa Entre nós, convém lembrar que até a
tendência observa-se na escola artística poesia concreta, ao romper com a • Modern literary theory: a reader,
representada por Flaubert, Zola, Dostoi- linguagem discursiva, o fez sob o pretexto
évski e Aluísio Azevedo. da incorporação de certos traços dinâ- editado por Philip Rice e Patricia
Além desse sentido, há um outro, micos da realidade industrializada.
segundo o qual os autores propõem suas Os românticos alemães afirmavam
Waugh. Londres, Arnold, 1996.
obras como verossímeis, por se filiarem que o reino da fantasia é a própria rea- • “Narrative composition: a link
a um padrão tradicionalmente aceito co- lidade. Novalis, em particular, procla-
mo tal. Mas exatamente por se vincula- mou que, quanto mais poético o enun- between german and russian
rem a um cânone já estabelecido, essas ciado, tanto mais real. Como conclusão,
poetics”, de Lubomír Dolezel. In:
obras podem facultar ao crítico a Jakobson propõe que se tome o termo
interpretação delas como distantes da realismo como um código convencional Russian formalism – A collection of
realidade e próximas dos clichês. segundo o qual as diversas gerações
Nessa mesma dinâmica, em nome do procuram validar seus experimentos articles and texts in translation,
realismo, um escritor revolucionário poéticos. Mas não deixa de explicitar
editado por Stephen Bann e John
pode se afastar do cânone vigente como que a realidade não se confunde com a
meio de se aproximar da realidade, arte, cuja estrutura sígnica deve ser E. Bowlt. Edimburgo, Scottish
propondo deformações grosseiras como apreendida com toda a consciência das
índices de incorporação do real. Para os convenções intrínsecas a seu modo de Academic Press, 1973.
críticos de vanguarda, uma obra dessa ser.
• Russian formalism: history,
espécie será de fato realista; para os Pelo que fica exposto, evidenciam-se
conservadores, não só não incorpora o diversas conexões do método formal com doctrine, de Victor Erlich. The
real como também se afasta do padrão de a retórica antiga, o que foi enfim sufi-
bom gosto. cientemente demonstrado pelo estudioso Hague/Paris, Mouton, 1969.
O ensaio de Jakobson estuda inú- tcheco Lubomír Dolezel, mediante a • Teoria da literatura: formalistas
meras outras acepções do termo realismo, investigação do contato da poética russa
afirmando (e nisso consiste o aspecto com a tradição dos retoricistas ger- russos, organização de Dionísio de
mais interessante do ensaio) que todas as mânicos, representada sobretudo por
escolas literárias fundamentam suas Schissel, Seuffert e Dibelius. Oliveira Toledo e prefácio de
Boris Schnaiderman. Porto
Alegre, Editora Globo, 1971.
O escritor alemão
• Théorie de la littérature: textes des
Novalis (à direita) expressou
a idéia de que, quanto mais formalistes russes, reunidos, apre-
poético é um enunciado,
mais ele representa o real – sentados e traduzidos para o
formulação que teve forte
impacto sobre a noção de francês por Tzvetan Todorov,
realismo de Roman Jakobson prefácio de Roman Jakobson.
Paris, Éditions du Seuil, 1965.

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