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HUBERTOROHDEN
PASCAL
O HOMEM QUE APELOU DA
RAZÃO PARA O CORAÇÃO
E DE ROMA PARA DEUS
SEGUNDA EDIÇÃO
UNIÃO CULTURAL EDITORA LTDA.
S. PAULO
1956
Terceira Edição
Alvorada Editora e Livraria Ltda
1981
MEMÓRIA ROHDEN
3
Índice
Advertência 05
Vida e Obra de Huberto Rohden 06
Prefácio para a Terceira Edição 08
Tomando Perspectiva 10
Tabela Cronológica dos Principais Fatos da Vida de Pascal 18
Lampejos de Gênio 19
Os Eremitas de Port-Royal 21
Encontro Pessoal com Deus 23
Conflito Entre Duas Humanidades 28
Defendendo Jesus Contra os Jesuítas 32
Em Torno das "Lettres Provinciales" 34
Início da Polêmica Entre Pascal e os Jesuítas 37
Nas Trincheiras Inimigas. O que Ensinavam os Casuístas 40
Regulamentação Burocrática do Amor de Deus - Pró e Contra Pascal 49
A Casuística em Nossos Dias 52
"Meu Reino não é Deste Mundo" 55
Pascal e a Humanidade — O Seu Livro "Pensées" 58
As Razões do Coração que a Razão Ignora 63
Tragédia Metafísica do Homem 65
Cristianismo Político-Hierárquico — Ou Cristianismo Espiritual-Místico? 70
Diluindo-se em Deus 74
Texto da orelha da 2ª edição 80
Relação das Obras de Huberto Rohden 81
5
Advertência
Nos últimos anos de sua vida, Rohden residiu na capital de São Paulo, onde
permanecia alguns dias da semana, escrevendo e reescrevendo seus livros, nos
textos definitivos. Três dias da semana costumava passá-los no ashram, em contato
com a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário modelo.
Quando estava na capital, ministrava palestras e horas de meditação
regularmente na sede da instituição Alvorada. Rohden frequentava, periodicamente,
a editora Alvorada responsável pela editoração de seus livros, dando-lhe inspiração
e orientação cultural.
Fundamentalmente, toda a obra educacional e filosófica de Rohden divide-se
em quatro grandes segmentos:
1) a sede central da Instituição (Centro de Autorrealização Alvorada), em São
Paulo, com a finalidade de ministrar cursos e horas de meditação;
2) o ashram, situado a 70 quilômetros da capital, onde são dados,
periodicamente, os Retiros Espirituais, de 3 dias completos;
3) a Editora Martin Claret, de São Paulo, que difunde, através de livros e
cassetes, a Filosofia Univérsica;
4) um grupo de dedicados e fiéis amigos, alunos e discípulos, que trabalham
na consolidação e continuação da sua obra educacional.
A zero hora do dia 7 de outubro de 1981, após longa internação em uma
clínica naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiu
deste mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras, em
estado consciente, foram: “Eu estou a serviço da Humanidade”.
Rohden deixa, para as gerações futuras, um legado cultural e um exemplo de
fé e trabalho, somente comparado aos dos grandes homens do nosso século.
8
Por longos anos esteve esgotado e fora de circulação este livro. Cogitava-se
mesmo de não mais reeditá-lo porque trata, em boa parte, de um assunto polêmico
que parece superado em nosso tempo.
Trata-se de polêmicas satíricas que o grande gênio, Blaise Pascal, manteve
contra a poderosa ordem religiosa dos jesuítas, e dos teólogos em geral, no século 17.
Pascal é universalmente considerado como um cristão genuíno e autêntico, um
católico de pura catolicidade, como poucos.
E como se compreende que ele tenha combatido violentamente a poderosa
ordem eclesiástica da Companhia de Jesus? Como é que um católico autêntico - para
não dizer, um santo —, soube apelar de Roma para o tribunal de Jesus?
Como se depreende de todo o livro das Cartas Provinciais, Pascal não confunde
catolicismo com catolicidade, isto é, não identifica a teologia eclesiástica e clerical
com o puro Evangelho do Cristo; ele é 100% Cristo-evangélico, mas nada católico-
clerical. À primeira vista, a polêmica parece visar somente os jesuítas, quando na
realidade gira em torno de toda a teologia eclesiástica, em que Pascal não vê a
continuação da mensagem do Cristo. E como ele tinha tido na noite de 23 de
novembro de 1654 a sua misteriosa revelação da cristicidade genuína, Pascal defende
o seu grande ideal crístocêntrico contra todas as deturpações e falsificações desse
ideal pela teologia clerical.
Pascal, o exímio cientista e filósofo, viveu os melhores anos de sua vida na
austeridade do mosteiro de Port-Royal, onde sua irmã Jacqueline era madre
superiora, e juntamente com ela, não admitia qualquer amesquinhamento da
mensagem do Cristo pelo laxismo moral da época. Seguia a orientação supostamente
ascética do bispo herege Jansênio (jansenismo), que queria uma pura catolicidade
contra o catolicismo liberal que dominava a época.
Estranhamente, o livro das Cartas Provinciais foi condenado por Roma, mas a
pessoa de seu autor nunca foi anatematizada, porque toda a França católica venerava
Pascal como um santo, como ele era, de fato, embora não canonizado. Basta dizer que
ele deu a sua casa para hospital, num período em que os hospitais de França estavam
repletos de doentes, e ele mesmo levava uma vida de monge, num mosteiro.
Pascal não se revoltou, propriamente, contra a Ordem dos Jesuítas, mas viu
nos membros desta Ordem, a personificação da deturpação da pureza do Evangelho
do Cristo, a quem ele dava obediência e lealdade incondicional. Daí a veemência e a
sátira da sua luta...
Este fenômeno não se limita à França e ao século 17, mas repete-se e continua
desde o quarto século em que Constantino Magno contaminou com a política da
Igreja Romana a pureza do Evangelho do Cristo... O Mestre disse a Pilatos que o
reino dele não é “deste mundo”, mas é o “reino da verdade” — e todos os que são
discípulos do Cristo não podem identificar a mensagem do Cristo com nenhuma
espécie de doutrina teológica engendrada pelos homens; há uma diferença essencial
entre o reino dos céus que não é deste mundo, embora esteja no mundo, e quaisquer
outros reinos que se orientam por princípios humanos deste mundo, sobretudo pela
política financeira de certa teologia.
9
Tomando Perspectiva
(1) Seguindo o costume geral, Pascal chama "razão" o que, em terminologia mais exata, chamamos
"inteligência". A verdadeira razão nunca está em conflito com a fé.
***
"Pascal é uma vítima do Cristianismo", afirma Nietzsche, em tom dolente.
É uma grande verdade: Pascal é uma vítima, do Cristianismo — não no sentido em
que o entendia o pretenso super-homem germânico, mas em outro sentido, bem mais heróico
e trágico do que Nietzsche queria. Depois da sua definitiva conversão, a tal ponto penetrou
Pascal no mistério do Cristo que teve a sua grande experiência religiosa, o seu encontro
pessoal com Deus. Viu de relance o abismo da miséria humana e a infinita pureza e santidade
de Deus. Viu que só Deus pode purificar o homem impuro. Desde então foi Pascal o grande
descrente da impotência humana e o grande crente da onipotência divina. E esta intuição
profunda e intimamente vivida o levou a tremendos conflitos com outra orientação religiosa
da época. Desde então andou ele pelo mundo cristão do seu tempo como um enigma, um
paradoxo ambulante, herege e santo ao mesmo tempo. Pascal, o abnegado asceta, o ardente
discípulo do Cristo, o entusiasta da fé, o fervoroso católico, o impávido defensor da Igreja —
vê condenado em Roma o mais sincero documento da sua espiritualidade; mas ele,
sobranceiro a todas as misérias humanas que possam enfear o corpo da Igreja, continua a
amar ardentemente a alma divina da Igreja do Cristo. Quanto mais os homens reduzem o
Cristo vivo dos séculos a um esquálido Ecce-homo, tanto mais ama e adora Pascal esse
11
Cristo maltratado na forma da sua Igreja imortal. A Igreja não são para ele, os homens que
casualmente a representam, neste ou naquele período histórico; a Igreja é para ele uma
realidade infinitamente superior a todas as grandezas e a todas as misérias humanas. Ele
sabe que as potências do inferno não prevalecerão contra ela, ainda que os elementos
humanos do corpo da Igreja falhem deploravelmente. A Igreja de Deus subsiste e
subsistirá sempre, não por causa dos homens, mas a despeito dos homens. A realidade
divina da Igreja começa, para Pascal, lá onde terminam as realidades humanas, para
além das entidades jurídicas e hierárquicas; para além da ordem das coisas visíveis e
organizáveis; para além de tudo quanto constitui o corpo humano da sociedade
eclesiástica — é lá que começa a alma divina da Igreja.
É neste sentido, com uma fé inabalável na divindade da Igreja, que Pascal
escreve estas memoráveis palavras: "Roma condenou as minhas Cartas; mas o que
nelas condenei está condenado no céu — apelo para o teu tribunal, Senhor Jesus!"
O que da parte de outros seria um protesto, quase uma apostasia, nos lábios de
Pascal é uma sublime profissão de fé na alma divina e imortal da Igreja (1).
(1) Ver o livro do autor: "Problemas do Espírito", capítulos "Corpo e alma da Igreja" e "Harmonia espiritual da
humanidade".
***
Pascal será sempre um dos maiores enigmas e paradoxos da história espiritual
da humanidade. É possível que os séculos futuros cheguem a compreendê-lo melhor
do que nós.
Ele é, a bem dizer um crente descrente...
Um dogmático cético...
Um homem que possui a Deus com grande plenitude — e não cessa de o
procurar dia e noite, no deserto da sua enorme vacuidade...
Um homem eminentemente racional — 'mas que crê mais nas razões do
coração que a razão ignora do que nas razões que a razão conhece...
Pascal sente-se feliz na posse da fé cristã — mas a sua vida espiritual é uma perene
agonia metafísica...
Mártir da sua própria espiritualidade — vive ele o delicioso tormento do
Infinito...
Dono de uma poderosa inteligência — só encontra satisfação em imolar o
intelecto e a liberdade na ara da graça divina...
Pascal é o grande e impávido paladino da onipotência da graça.
Há homens que não chegam a uma fé integral e uma tranquilidade interior,
porque as janelas de sua alma, obstruídas pelo orgulho ou pela luxúria, não permitem
a entrada da luz divina da fé. Mas a vida de Pascal é uma vida de grande pureza e
humildade, vida de sincera compaixão e caridade, vida de solitude e oração — e, no
entanto, é o seu mundo espiritual uma grande noite, noite estrelada, é verdade, mas
uma treva imensa, ligeiramente iluminada pelos astros longínquos e silenciosos... As
belezas espirituais de que estão repletas os "Pensées" de Pascal parecem antes ser as
longínquas visões do seu grande e doloroso ideal do que o reflexo de uma felicidade
profundamente possuída. Pois, não é que o anseio de ideais inatingidos nos torna,
muitas vezes, mais eloquentes do que a posse tranquila da realidade?
12
***
Muito se tem escrito sobre a estranha mentalidade religiosa de Pascal. Por que
andava a sua tão sincera fé cristã sempre enlutada de tristeza e dor? Por que não
chegou a desabrochar em esplêndida flor de jubilosa alegria e felicidade?
Não o sabemos — nem ele o sabia...
Queria ele, o insigne matemático e geômetra, ter das supremas realidades do
mundo espiritual uma demonstração física, uma clareza matemática, em vez de uma
certeza espiritual?
"Crer" não passava, para ele, de um "querer-crer", de um sincero e ardente
desejo de fé. Quase que poderia dizer com aquele homem do Evangelho: "Creio,
Senhor - ajuda a minha incredulidade!"
Crer é para Pascal uma doce e querida necessidade, mas não deixa, afinal de
contas, de ser um jogo de azar, como ele o descreve nos "Pensées". É arriscar uma
partida, que pode sair bem e pode sair mal. Em todo caso, acha ele, é melhor crer do
que não crer. O homem que joga no "crer" arrisca (1), na pior das hipóteses, uns
poucos anos ou decênios de vida terrestre - ao passo que o homem que joga no
"descrer" expõe-se ao perigo de perder uma vida eterna. Ora, em qualquer hipótese, é
preferível expor-se à possibilidade de uma perda temporal a arriscar uma perda
eterna.
Conclusão: é necessário crer, mesmo que, humanamente, não se possa ter
plena certeza das realidades invisíveis de que fala a fé. Vale a pena arriscar o finito
pelo Infinito. O intelecto, (que Pascal chama razão) só atinge o finito, mas o coração
adivinha o Infinito. E as razões do coração que a razão ignora não são menos
razoáveis que as que a razão conhece. E, ainda que fossem irracionais ou
suprarracionais, nem por isto devia o homem deixar de se guiar por essas razões do
coração, porquanto a razão (o intelecto) não é a suprema instância nesse eterno
litígio em torno dos problemas centrais da vida humana.
(1) Dizemos "arrisca" porque Pascal não concebe o monstruoso paradoxo do homem que crê na vida eterna e vive
como se vida eterna não houvesse. Pascal é de uma sinceridade absoluta consigo mesmo, de uma lógica retilínea que
não pactua com a política curvilínea de certos cristãos penumbristas e acomodatícios. "Ou se é cristão — ou se é
pagão", diz ele. Não se pode ser semicristão e semipagão. Ou crer e viver a sua fé — ou então não crer! Esse
totalitarismo espiritual o levou ao tremendo conflito com os "casuístas" contra os quais escreveu as suas "Lettres
Provinciales".
Menos finita que a inteligência, ainda que não infinita, é a faculdade compreensiva do
coração, que é a razão espiritual. Verdade é que nem ele compreende a Deus, esse Deus
incompreensível, mas adivinha-o, pressente-o, experimenta-o, vive-o, em quase imediata
propinquidade. Entre o intelecto e Deus existe uma parede maciça, opaca — mas entre o coração
e Deus parece medeia apenas um tenuíssimo véu, quase transparente, que a cada momento pode
romper e revelar Deus face a face.
Por isto, é o coração mais amigo da fé que a inteligência. A inteligência trilha
estradas e veredas multiformes para encontrar a Deus, no vasto cenário da Natureza
externa e interna — o coração espera-o pacientemente na antecâmara do santuário,
escutando, em profundo silêncio, o esvaído eco de vozes que julga perceber por detrás
do misterioso véu que lhe oculta o sancta-sanctorumt da Divindade...
A fé é, para a inteligência, uma peregrina estranha; fala uma linguagem que a
inteligência não entende, e, não raro, entende às avessas...
Para o coração, porém, é a fé amiga íntima, quase uma irmã; elas se entendem,
porque falam uma linguagem, se não idêntica, ao menos muito parecida uma com a
outra. Verdade é que mesmo para o coração tem a fé as suas misteriosas reticências,
os seus grandes enigmas, os seus profundos abismos, as sua excelsitudcs, cujos cumes
se perdem para além das nuvens; mas, para o coração, não tem esses mistérios o
caráter hostil que sempre lhes descobre ou atribui a inteligência. Crer é, para o
coração, uma doce necessidade, um delicioso tormento, uma tormentosa delícia -
delícia, por causa daquilo que existe para além do véu, tormento por causa deste
véu...
A inteligência, nos domínios do mundo espiritual, após longas jornadas, chega
invariavelmente a um "ponto morto", à beira de um abismo que não consegue
transpor, uma vez que ela é essencialmente "bandeirante a pé", que abre o seu
caminho andando, com o auxílio de penosos e complicados silogismos, saltando de
pedra em pedra, da premissa maior para a menor, e daí para a conclusão para
atravessar a torrente dos fenômenos transitórios. A marcha da inteligência é um
movimento descontínuo, feito de passos sucessivos; é uma longa cadeia de elos
concatenados; se faltar um desses elos, não pode a inteligência prosseguir na marcha;
chegou a um "ponto morto".
O coração, porém, tem movimento contínuo, não anda — voa, transpõe
precipícios, sem necessidade de pontes silogísticas; de um jato está do outro lado, não
se sabe como... Nas jornadas do coração só se vê o ponto de partida e o termo de
chegada, nada, porém, se sabe do trajeto intermediário, nada do modo como ele
realizou esse movimento. Consta o quê do fato, não consta o seu como...
A inteligência é analítica — o coração é intuitivo...
Aquela marcha — este voa...
A inteligência sente-se nos domínios da ciência — o coração encontra seu clima no
mundo da mística...
***
Entretanto, como dizíamos, por maior que seja a afinidade entre as razões do
coração e visões da fé — um homem como Pascal, que possuía em altíssimo grau a
14
Pela inteligência sou apenas transformador — pela vontade sou creador. O ato
livre produz algo do nada, algo que antes não existia, e agora existe.
Por isto, se um homem crê, quando tem a possibilidade de não crer, é ele o
autor responsável por sua fé.
É absurdo afirmar "não posso crer". Querer crer é poder crer!
Há no Cristianismo bastante luz, escreve Pascal, para que o homem de boa
vontade possa aceitar as trevas que nele existem — mas há também no Cristianismo
bastante trevas para que o homem de má vontade possa negar toda a luz que nele
existe.
Quem se decide pela luz, quando podia decidir-se pelas trevas (mistérios) do
Cristianismo, pratica um ato livre e bom — quem se decide pelas trevas, quando
podia decidir-se pela luz, comete um ato livre e mau.
Por isto, cada um é responsável pela sua escolha. A consciência lhe diz que é
livre.
Mas, por que é bom decidir-se pela luz, e mau decidir-se pelas trevas? Por que
o crer é bom, e o descrer é mau?
É porque o crer subordina a parte ao todo - e o descrer sacrifica o todo pela
parte. É esta a razão ontológica da crença e descrença. Sendo o crer mais do coração
que da inteligência, é algo de panorâmico, total, compreensivo — ao passo que o
descrer, inspirado pela inteligência, é algo de parcial, estreito, unilateral. Sacrificar o
todo pela parte é desordem e insinceridade - subordinar as partes ao todo é ordem e
retitude. Por isto mesmo, os frutos naturais do crer são harmonia, justiça, bondade,
caridade, paz felicidade - ao passo que os filhos do descrer são geralmente, injustiça,
violência, crueldade, exploração, desassossego.
***
Quando as potências do Infinito empolgam o homem, torna-se ele ou poeta ou
santo. Poeta, artista, cientista, pensador, orador, quando o Infinito consegue atingir-
lhe apenas as faculdades periféricas: a inteligência, a fantasia... O sentimento; santo,
apóstolo, herói cristão, talvez mártir, quando o Infinito se apodera da zona central do
seu Eu, do íntimo quê do seu espírito.
O poeta impressiona pelo que diz — o santo impressiona pelo que é.
A influência daquele é verbal — a influência deste é existencial.
O poeta, quanto mais arrebatado pelo Infinito, tanto mais eloqüente se torna —
o santo, quanto mais identificado com o Infinito, tanto mais silencioso se faz. Não se
distrai com fogos de artifício. Não lhe apraz produzir e contemplar na câmara escura
as cores fantásticas do espetro solar. Tem só um desejo, profundo, sublime, veemente:
viver integralmente o seu ideal, submergir no Infinito, perder-se em Deus. Nada mais
o interessa. Todo o mais são sombras vagas, longínquas, quase irreais. E como ele
sabe de experiência pessoal que os grandes obstáculos dessa integração em Deus são
o culto da matéria e o culto unilateral do intelecto, torna-se ele antimaterialista e
anti-intelectualista, reprimindo os excessos da matéria pela ascese e os demandos do
intelecto pela mística.
16
Pascal passou por todas estas alturas e profundezas. E, quanto mais vazio se tornava
ele do Eu, tanto mais se enchia de Deus. Na razão direta dessa "desegoficação" e dessa
"cristificação" corre o crescimento do silêncio interior. Silenciosas são as grandes
profundezas do mar, silenciosas as grandes alturas das montanhas. Silencioso é o homem que
empreendeu a grande jornada da periferia para o centro do próprio Eu...
A vida de Pascal acabou em grande silêncio. Poucos homens da história terão tido
vida mis solitária e sem grandes eventos externos do que o eremita de Port-Royal. "Fugi do
mundo - escreve ele — e espero que o mundo fugirá de mim." Mas é este o estranho paradoxo
das coisas humanas: quando fugimos da sociedade; das honras e glórias, estas coisas correm
ao nosso encalço, como se tivessem confiança em nós — mas, quando as procuramos, elas
nos abandonam, porque não creem em nós. .
Onde quer que exista um grande foco de espiritualidade, para lá se voltam os
espíritos, mesmo que esse poderoso astro se oculte por detrás de espessas nuvens - o
heliotropismo das almas adivinha o sol a qualquer distância e através de qualquer
obstáculo...
***
***
Eram inevitáveis os sofrimentos da vida de Pascal. Não são senão a sombra
que todo o ser creador projeta atrás de si, quando se aproxima da Luz increada,
sombra que tanto mais se avoluma e tanto mais negra se torna, quanto mais perto de
17
Deus se acha a alma. Os homens que estão relativamente longe de Deus têm sombras
pequenas e difusas; e os que se acham a distância enorme, lá onde mal chega a luz
divina, esses nem percebem as sombras da sua humana imperfeição e insuficiência,
não porque as sombras sejam insignificantes, mas porque grande é a distância a que
se acham e fraquíssima a luz que os atinge...
Quanto mais perto da Luz, tanto maior e espessa é a sombra...
Só quando o homem submergir plenamente no oceano da Luz divina, acabarão
todas as sombras...
Nesta vida, porém, é inevitável que a alma sofra na razão direta da sua
proximidade de Deus. Essas sombras são, muitas vezes, a dúvida de si mesmo, a
descrença da sua missão, a náusea da própria vida espiritual — supremo e último
tormento dos santos...
Na vida de Pascal assumiu essa dúvida e essa náusea a forma de um doloroso
cepticismo, cujo único alívio era a consciência de um grande amor de Deus. Amar é
para Pascal a melhor forma de crer. É, em última análise, a tal "razão do coração que
a razão ignora". Ele não pode crer num Deus a quem não possa amar sinceramente.
Para ele, como para seu grande mestre Agostinho, Deus é, antes de tudo, o "Summum
Bonum", o Sumo Bem, o alvo do amor, e não tanto a "Verdade Eterna". Para ele, só
se conhece cabalmente o que se ama com ardor. Não importa que a filosofia afirme
que o querer segue ao conhecer; pode isto valer para as coisas naturais, onde o
intelecto é soberano absoluto; mas no reino de Deus há outras leis; a intuição do
coração já está no termo da jornada, em pleno querer, quando a filosofia do intelecto,
a meio caminho, ainda está ocupada na construção da ponte silogística do conhecer.
Só quem ama conhece cabalmente. O coração é o chaveiro da inteligência.
Pascal tem uma grande mensagem para a humanidade de hoje, para os
melhores homens do nosso século — uma mensagem equidistante do materialismo
deprimente e do intelectualismo esterilizante, uma grande mensagem de vasta,
profunda e panorâmica espiritualidade cristã.
A espiritualidade que brilha em todas as páginas do Evangelho.
A espiritualidade do próprio Cristo.
18
(1) Tratava-se, neste célebre concurso científico, de precisar matematicamente a trajetória descrita por uma roda de
carro em movimento. Sendo que essa trajetória se compõe do movimento rotativo da roda e do seu avanço
progressivo em sentido horizontal, era sumamente difícil precisar a chamada "roulette" - ou "ciclóide". A solução
final do problema foi dada pelo próprio Pascal, com admiração de todo o mundo profissional.
19
Lampejos de Gênio
Um menino de 10 anos, por nome Blaise Pascal (1), bate com uma colher
num prato e escuta atentamente o som que, por algum tempo, continua a vibrar,
cessando, porém, assim que o pequeno põe a mão sobre o prato.
Milhares de meninos terão observado o mesmo fenômeno trivial, mas só
este, estranha-mente intrigado com o fato, resolveu investigar o mistério — e
escreveu um tratado sobre o som, "Traté des sons".
_________
(1) Blaise (Braz) Pascal nasceu em Clermont (Auvergue), aos 19 de junho de 1623, filho de Etienne (Estevão)
Pascal e Antoinette Begon. Sua irmã mais velha, Gilberte, nasceu em 1620, e sua irmã mais nova, Jacqueline,
em 1625. Faleceu aos 19 de agosto de 1662, com 39 anos de idade. Suas últimas palavras foram: "Não me
desampare, Senhor!"
***
De resto, não era Blaise o único "prodígio" da família Pascal. Sua irmãzinha
Jacqueline, dois anos mais nova que ele, escrevia, aos 11 anos, poesias que excediam a
capacidade normal de uma criança. Aos 13 anos, compôs uma poesia sobre um assunto
que ninguém podia esperar de uma menina dessa idade — a gravidez da rainha Ana da
Áustria. Aos cépticos, que a supunham plagiária, provou-lhes Jacqueline a sua
capacidade, improvisando diante deles uma poesia de notável perfeição. Esse talento
precoce da menina contribuiu pouco para o melhoramento da situação econômica da
família Pascal, e isto de um modo singular. Quando em 1633, o poderoso Ministro de
Estado, Cardeal Richelieu, fez representar em seu palácio a tragédia "L'Amour
tyrannique", de G. de Scudéry, foi confiado um dos papéis a Jacqueline, que se
conduziu com tanto brilho que o Ministro manifestou o desejo de conhecer o pai e a
família da pequena atriz, que contava então 8 anos. Etienne Pascal havia perdido as
boas graças de Richelieu por causa de um incidente relativo às apólices do Estado, e,
para não ser preso, se refugiara a Clermont, na Auvergne. Por causa da talentosa
20
***
Em Rouen excogitou e construiu o jovem matemático, aos 18 anos, uma
máquina de contar a fim de aliviar os complicados cálculos de seu pai, lidar com as
finanças do Município. Esse aparelho, de que mais tarde, foram feitos numerosos
exemplares, prestou grandes serviços aos que se ocupavam com os mistérios da
aritmética, nesse tempo em que ainda não estavam aperfeiçoadas as tábuas
logarítmicas. Mais tarde, ofereceu Blaise Pascal uma dessas máquinas ao célebre
Condé, e outra à Rainha Cristina da Suécia, que então se achava na França. Na
carta, que acompanhava o original presente à jovem soberana, revelou-se o genial
matemático e mecânico, pela primeira vez, insigne estilista, embora essa epístola
não refletisse ainda a incomparável beleza e diáfana simplicidade que encontramos
nas "Pensées".
De 1646 a 1648, entre 23 e 25 anos, andou Pascal engolfado em estudos de
Física, escrevendo um tratado sobre o "espaço vazio" "Nouvelles experiences
touchant lê vide". Tão excessivos foram os esforços desse tempo que o corpo não
resistiu à sobrecarga do espírito. O jovem cientista caiu enfermo, e nunca mais se
restabeleceu completamente.
Inesperadamente, entrou em violenta polêmica científica com um jesuíta, por
nome Noel, polêmica em que se revela pela primeira vez a sutil ironia e candente
sátira que, mais tarde, fizeram das famosas "Lettres Provinciales" uma das maiores
sensações literárias do século, lidas nos palácios e nos tugúrios da França e, logo
depois, traduzidas em todas as línguas.
Uma força estranha, uma como energia cósmica parecia trabalhar nos
meandros desse cérebro juvenil — e Pascal deixou-se empolgar, consciente ou
inconscientemente, por esse sopro anônimo que tangia sua alma para mundos
ignotos...
Ignotos, mas pressentidos como soberanamente grandes e divinamente
belos...
21
Os Eremitas de Port-Royal
Em 1646, quando Blaise contava 23 anos, sofreu seu pai um acidente que por
largo tempo o reteve de cama.
Dois piedosos irmãos, fervorosos discípulos de Cornélio Jansênio, bispo de
Ypres (+1638), ofereceram-se como enfermeiros, e, além da saúde corpórea que
restituíram a Etienne Pascal, procuraram elevar-lhe também o espírito para as
alturas da Divindade. Falavam com grande unção e fervor das maravilhas da
graça divina.
Já era conhecida nesse tempo a grande obra teológica de Cornélio Jansênio
intitulada "Augustinus", obra que, após a morte do autor, encontrou no abade de
Saint-Cyran um dinâmico divulgador e apóstolo.
Em 1636 fora o dito abade nomeado diretor espiritual do convento das monjas
cistercienses em Port-Royal, nos arrabaldes de Paris. Quem diria que entre os
silenciosos muros desse mosteiro encontrassem as ideias do fundador do Jansenismo
tão poderoso eco que repercutissem pelo mundo inteiro, mantendo, por muito tempo,
em suspensão o catolicismo da França'? Não caísse a mensagem rigorista do bispo
de Ypres no meio de uma França profundamente anarquizada e espiritualmente
depauperada, talvez que não despertasse tão vasta ressonância em milhares de
almas sinceramente cristãs que não se conformavam com o laxismo reinante,
suspirando por uma espiritualidade mais profunda e uma regeneração moral
dentro do seio da Igreja.
Não tardou que, a certa distância do mosteiro cisterciense, se organizassem
diversas ermidas de homens atraídos por esse poderoso foco de espiritualidade
cristã, bebendo avidamente, dos lábios de Saint-Cyran, as grandes idéias de
Jansênio.
O poderoso cardeal Richelieu, que era tudo, menos o que devia ser, um
verdadeiro ministro de Deus, não via com bons olhos esse movimento e o insistente
brado de cristianização que de Port-Royal reboava pela sociedade profana do seu
tempo. Quem, mais que outro qualquer, necessitava de uma reforma era o hábil
Ministro de Estado, que do seu munus sacerdotal tinha apenas a veste talar. No
intuito de fazer calar a Saint-Cyran, ofereceu-lhe sucessivamente de cinco
Bispados, iscas que o abade recusou sucessivamente com toda a firmeza e polidez,
continuando a clamar pela reforma dos costumes dentro do catolicismo e do clero.
Em 1638 acabou a paciência de Richelieu, e, a exemplo de seu patrono
Herodes, mandou lançar ao cárcere o importuno pregador da moralidade pública, e
ordenou às monjas e aos eremitas de Port-Royal que abandonassem Paris. Saint-
Cyran, porém, mesmo na prisão, continuou o seu apostolado por meio de uma vasta
correspondência com grande número de pessoas desejosas de espiritualidade
cristã. Os seus discípulos, por seu turno, foram estabelecer-se fora da capital, no
velho convento de Chevreuse, que, daí por diante, passou a chamar-se "Port-Royal
dês Champs".
Dia a dia, crescia o número dos eremitas. Entre eles apareceu também o célebre
Antoine Arnauld, lente da Universidade de Paris e um dos grandes defensores das
ideias de Jansênio. Arnauld, tomando por base o "Augustinus", fez como que
cristalizar em alguns pontos nitidamente definidos o objetivo do movimento, que,
em resumo, consistia num retorno ao fervor religioso dos tempos apostólicos, à
simplicidade da vida pobre e à concretização do Evangelho na vida quotidiana.
Tudo isto queriam Jansênio e seus discípulos realizar de acordo com a hierarquia e
as tradições da Igreja Católica; não pretendiam de forma alguma fundar uma seita,
22
mas trabalhar por uma reforma religiosa e moral da vida católica e do clero. Eles
mesmos, os Jansenistas, davam, por meio de uma vida de grande austeridade e
prolongadas meditações, exemplo vivo do que ensinavam.
O que, antes de tudo, horrorizava aos severos ascetas de Port-Royal era o
laxismo da teologia moral da época patrocinado pelos famigerados "casuístas".
Sendo que os mais célebres desses "casuístas" eram sacerdotes da Co mpanhia de
Jesus, dirigiu-se o centro da ofensiva jansenista contra a Ordem dos Jesus.
Na opinião de Saint-Cyran, Arnauld e seus correligionários, era essa
"casuística" um corrosivo traiçoeiro que ia destruindo insensivelmente, na alma do
povo católico, a ética do Evangelho, acabando, assim, por adulterar o próprio
espírito do Cristianismo. Até que ponto tinham eles razão, poderá o leitor
depreendê-lo dos tópicos que, mais abaixo reproduziremos, tirados de alguns
desses livros impugnados.
Tivessem os Jansenistas limitado o seu zelo reformador a esse terreno
propriamente moral, talvez que prestassem ao Cristianismo maior serviço do
que prestaram. Lançaram-se, porém, a um terreno dogmático semeado de
princípios. Quiseram perscrutar o modo como a graça de Deus se compadece
com a liberdade humana. Davam à operação da graça divina tanta margem que,
na opinião de seus adversários, punham em risco o livre-arbítrio do homem. Mais
amigos da linha mística Platão-Agostinho do que da linha intelectual Aristóteles-
Tomaz d'Aquino, faziam de todo homem um "predestinado", ou então um
"condenado", por conta da graça divina, sem papel decisivo da parte da
liberdade humana.
Ingente polêmica travou-se em torno dessa questão, que, no fundo, será sempre
insondável mistério. É certo que graça divina é compatível com a liberdade
humana; mas nunca teólogo algum desvendará o íntimo como dessa harmonia
entre dois fatores aparentemente antagônicos.
***
Quem leu os "Pensées" conhece a célebre exposição que Pascal faz em torno
de uma espécie de aposta ou jogo de azar, que poderíamos chamar "cara ou coroa".
O fim dessa exposição é fazer ver ao cético ou incrédulo o fraco e absurdo da sua
atitude em face dos problemas eternos. É bem possível que esse pensamento
remonte ao tempo em que Méré arrastava seu inteligente amigo aos salões de jogo
da haute-volée contemporânea.
Em 1651 faleceu Etienne Pascal, e no ano seguinte ingressou Jacqueline no
mosteiro cisterciense de Port-Royal, apesar da oposição de Blaise, que não queria
ver-se privado da companhia dessa alma congenial à sua.
Para encher ou esquecer o doloroso vácuo que a morte do pai e a despedida da
dileta irmã abriram em sua vida, voltou Pascal, com todo o ardor, às lucubrações
científicas, e, nas horas vagas, procurava distração e derivativo na sociedade. Levou
vida mundana e fútil, sem todavia, comprometer a sua dignidade de homem nem
abismar-se nos vícios tão próprios de jovens da sua idade.
Os biógrafos de Pascal discordam no tocante aos amores, reais ou supostos, do
jovem cientista. O que o autor dos "Pensées" diz sobre os problemas do coração e o
que consta do fragmento "Discours sur les passions de l'amour", publicado por
Cousin, não deixam a menor dúvida de que o grande pensador tenha sentido
profundamente o que os romancistas chamam "deliciosa tortura". Mas, se essa sen-
sação imanente se tenha tornado transitivo e encontrado objeto correspondente —
isto é uma questão aberta na vida desse homem mais que todos misterioso e
enigmático.
Querem alguns que tenha mantido correspondência amorosa com a irmã do
duque Roannez; mas as cartas que escreveu a essa jovem tratam de assuntos
essencialmente espirituais e não dão margem a conclusões de ordem romântica.
Amor tão eminentemente platônico como esse deixaria de ser amor — e Pascal era
homem não menos afetivo que intelectivo.
***
Em outubro de 1654, aos 31 anos, viu-se Pascal a um passo da morte. Passando, na
carruagem do duque de Roannez, pela ponte de Neuilly, cujo peitoril estava
quebrado, assustaram-se os cavalos e desembestaram rumo à beirada da ponte; dois
deles, rompendo os arreios, precipitaram-se ponte abaixo, ao passo que os outros
com a carruagem ficaram suspensos sobre o abismo, salvando assim a vida do
cientista.
Seguiu-se a este incidente a "segunda conversão" de Pascal, que muitos
atribuem ao violento abalo que o fato produziu em sua alma. Sua irmã, porém,
madame Périer, contesta essa relação causai, afirmando ter sido Jacqueline que,
com sua intensa espiritualidade, transformou a mente do irmão.
Depois da morte de Pascal foi encontrado, cosido no forro da sua vestimenta,
um bilhete datado da noite de 23 a 24 de novembro de 1654, em que seu autor revela
um profundo arrebatamento religioso e um ardente desejo de se consagrar
inteiramente às coisas divinas. O fato de levar Pascal consigo, dia e noite, esse cha-
mado "Memorial" deu azo a que muitos o considerassem como um amuleto a que o
convertido atribuísse virtudes mágicas. Afirma-se também que Pascal teria, nessa
noite, tido uma visão. Como se a extraordinária significação de um grande
acontecimento interior não fosse bastante para justificar o carinho com que o
agraciado levava consigo esse memorial de sua definitiva iniciação espiritual!
Pascal nunca se referiu a essa suposta visão, nem mesmo com Jacqueline,
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confidente de sua vida interior. De resto, que é uma visão? Um intenso lampejo
da graça divina e o sobre-humano vigor n i agem do duque de Roannez, pela ponte
de Neuilly, cujo peitoril estava quebrado, assustaram-se os cavalos e desembestaram
rumo à beirada da ponte; dois deles, rompendo os arreios, precipitaram-se ponte
abaixo, ao passo que os outros com a carruagem ficaram suspensos sobre o abismo,
salvando assim a vida do cientista.
Seguiu-se a este incidente a "segunda conversão" de Pascal, que muitos
atribuem ao violento abalo que o fato produziu em sua alma. Sua irmã, porém,
madame Périer, contesta essa relação causai, afirmando ter sido Jacqueline que,
com sua intensa espiritualidade, transformou a mente do irmão.
Depois da morte de Pascal foi encontrado, cosido no forro da sua vestimenta,
um bilhete datado da noite de 23 a 24 de novembro de 1654, em que seu autor
revela um profundo arrebatamento religioso e um ardente desejo de se consagrar
inteiramente às coisas divinas. O fato de levar Pascal consigo, dia e noite, esse cha-
mado "Memorial" deu azo a que muitos o considerassem como um amuleto a que o
convertido atribuísse virtudes mágicas. Afirma-se também que Pascal teria,
nessa noite, tido uma visão. Como se a extraordinária significação de um grande
acontecimento interior não fosse bastante para justificar o carinho com que o
agraciado levava consigo esse memorial de sua definitiva iniciação espiritual!
Pascal nunca se referiu a essa suposta visão, nem mesmo com Jacqueline,
confidente de sua vida interior. De resto, que é uma visão? Um intenso lam-
pejo da graça divina e o sobre-humano vigor por ela comunicado é uma
realidade muito superior a todas as chamadas visões.
Esse misterioso acontecimento íntimo, que exerceu decisiva influência sobre a
vida ulterior de Pascal, deixou no referido "Memorial" apenas as seguintes
palavras, do punho do agraciado:
"L'an de grâce 1654.
Lundi, 23 novembre, jour de saint Clé-ment, pape et martyr et autres au
martyrologe, veille de sant Chryso-gone, martyr., et autres.
Depuis envirou dix et demie du soir, jus-ques environ minuit et demie.
Feu.
Dieu d'Abraham, Dieu d'Isaac, Dieu
de Jacob, non dês philosophes et dês
savants.
Certitude. Certitude. Sentiment. Joie.
Paix.
Deum meum et Deum vestrum.
Ton Dieu será mon Dieu."
Tradução:
"Ano da graça de 1654.
Segunda-feira, 23 de novembro, dia de
São Clemente, papa e mártir, e outros no martirológio, vigília de São
Crisógono, mártir, e outros.
Desde pelas dez e meia da noite até pelas doze e meia.
Fogo.
Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus
De Jacó, não dos filósofos e dos cientistas.
Certeza. Certeza. Sentimento. Alegria.
Paz.
26
Pode-se dizer que estas duas horas de intensíssima experiência religiosa, das
10h30 até 12h30 da referida noite, marcam o nascimento espiritual do grande
pensador. Nessa memorável noite cristalizou-se definitivamente a alma cristã de
Pascal, assumindo aquela forma religiosa que nunca mais perdeu até a hora da
morte.
Depois dessa grande iluminação interior, de que o "Memorial" não é senão
pálido reflexo, dirigiu-se Pascal para Port-Royal, onde se associou aos eremitas lá
estabelecidos, sob a direção do Mestre de Sacy, filho de uma irmã do célebre
Jansenista Arnauld. "Fugi do mundo — escreve ele — e espero que o mundo fugirá
de mim." E, de fato, o mundo o abandonou — para depois correr atrás dele por
todos os séculos. Pois, é este, como dizíamos, o mistério de todas as coisas creadas:
quando as procuramos, fogem de nós; mas, quando as abandonamos por amor de
Deus, correm ao nosso encalço e prendem-se a nós, como se estivessem convencidas
de que um homem desprendido das creaturas pode conduzir a Deus todas as coisas.
A natureza só tem confiança num homem que dela não se enamora, guardando
absoluta liberdade de espírito e de coração, para se elevar a. Deus — e elevar a
Deus a natureza.
Começou com isto o período da grande introspecção de Pascal, a sua
cristalização interior, que, mais tarde, deixou incomparáveis vestígios nos
fragmentos da sua planejada apologia do Cristianismo, a que os editores deram o
nome de "Pensées". Nesse livro aparecem muitas vezes alusões a Epicteto e
Montaigne, ou mais exatamente, às ideologias características que esses filósofos,
um grego o outro francês, personificavam: enquanto o estóico frisa a grandeza do
homem, o epicureu faz ver a miséria do ser humano. Entre os dois está o
Cristianismo, que não super-humaniza nem infra-humaniza o homem, mas
soluciona esse enigma ambulante, esse animal-anjo, esse satânico serafim ou
seráfico satã, invocando o dualismo interno do homem introduzido pelo
despertar do Lúcifer do intelecto e solvido pelo advento do Logos ou Cristo.
Em torno dessa estranha dualidade do homem irredento é que giram os mais
luminosos pensamentos de Pascal. Que é o homem'? Em que consiste sua queda?
Sua redenção? Há uma ântroporredenção ou necessitamos de uma Teo-redenção?
M. de Sacy introduziu Pascal na vasta selva de grandiosos pensamentos que
são as obras de Agostinho. E a alma do grande pensador gaulês fundiu-se com o
espírito congenial do grande místico africano. Todos os futuros triunfos, como
também os seus violentos conflitos espirituais, têm raiz na ideologia agostiniana.
Não há, aliás, em toda a história do Cristianismo homem algum que tenha dado
ocasião a maior número de ideologias várias e desencontradas do que o célebre
filho de Mônica. Quem entra nessa selva tropical de pensamentos com o intuito
de fazer a sua coleção de ideias ou provar a sua tese predileta, encontra
abundantíssimo material para seu jardim ou seu museu espiritual — tão
panorâmico é o espírito de Agostinho. Com as obras do Bispo de Hipona
podem-se provar, mais ou menos, todas as ideologias espirituais; basta
colecionar pensamentos de certo colorido e deixar de parte os de outros
coloridos — assim como também se pode provar que a luz do sol é verde,
vermelha ou azul, conforme a afirmação exclusiva que se faça desta ou
daquela faixa do prisma produzido pelos raios solares. Os grandes homens,
porém, não são exclusivistas, mas, sim, eminentemente inclusivistas, e só um
espírito de vasto e panorâmico inclusivismo é que pode compreender e
interpretar corretamente os gênios de horizontes universais. O Evangelho de
27
Escreveu Keyserling que os grandes homens da história não são grandes pelos
problemas que solveram nem pelos pensamentos que definiram, mas, sim, pelas
direções cósmicas que deram, pelas vastas perspectivas que rasgaram a humanidade
de todos os tempos. Se solveram algum problema ou definiram algum pensamento,
é isto precisamente o limite da sua grandeza e o princípio da sua pequenez. A sua
verdadeira grandeza está nas orientações que deram, porque essas orientações vão
para o Infinito.
Quanto menos diferenciado é um ser tanto mais susceptível de evolução, tanto
mais fecundo de direções várias, de possibilidades vitais e evolutivas. Um ser
altamente diferenciado tem poucas possibilidades evolutivas: está colocado sobre
trilhos fixos, rigorosamente determinados, e daí não pode sair; só pode correr na
direção desses trilhos, e não enveredar pelas mil e uma estradas do ser não
diferenciado.
É o que se dá também no mundo dos pensamentos e das ideias. Poderosa
matéria-prima repleta de energias vitais são as ideias dos grandes homens.
Matéria-prima cósmica — e não artefato humano! Milhares e milhões de
pensamentos podem ser plasmados dessa enorme idéia cósmica, fundamental,
prenhe de ilimitada fecundidade. Lançar ao mundo dos homens essas ideias
fundamentais é obra do gênio, não do simples talento, menos ainda do homem
erudito. Destacar desse gigantesco bloco partículas maiores ou menores, modelá-las
em pensamentos, fazer desse minério geral pequenas moedas correntes para o
comércio espiritual da humanidade — é tarefa dos pequenos operários da
inteligência.
O gênio não fabrica pensamentos — crea ideias. Arranca das profundezas do
cosmos enormes blocos amorfos, verdadeiras montanhas de minério bruto — e segue
o seu caminho. O gênio é um estranho emissário do cosmos superconsciente. Causa
terror, estupefação. É geralmente combatido pelos pequenos mercadores da
inteligência e da moral, como algo de absurdo e monstruoso, como um ser de outros
mundos que venha perturbar o tépido sossego do nosso planeta. E têm razão esses
mercadores — lá do seu ponto de vista. Tempestades e terremotos são fenômenos
que incutem pavor...
Segundo a concepção do citado filósofo germânico não parece Pascal
pertencer aos grandes gênios da humanidade. A sua obra imortal, "Pensées",
são um escrínio de pensamentos de diáfana clareza e precisão, verdadeiros
pensamentos-cristais. Não é possível tirar nem acrescentar uma só palavra a esses
aforismos sem os destruir, assim como não se pode alterar os ângulos e as faces de
um cristal, sem o adulterar e desvalorizar.
E, no entanto, é Pascal um dos grandes gênios da humanidade, espírito
genuinamente cósmico, como os mais poderosos dentre os filhos dos homens. Mas é
necessário que o leitor enxergue para além desses cristais de pensamentos. É
necessário que tenha olhos para ver, ou antes, sentimento para sentir o fundo cós-
mico desses pensamentos, a vasta ideia fundamental da qual nasceram esses
maravilhosos imortal, "Pensées", são um escrínio de pensamentos de diáfana
clareza e precisão, verdadeiros pensamentos-cristais. Não é possível tirar nem
29
acrescentar uma só palavra a esses aforismos sem os destruir, assim como não se
pode alterar os ângulos e as faces de um cristal, sem o adulterar e desvalorizar.
E, no entanto, é Pascal um dos grandes gênios da humanidade, espírito
genuinamente cósmico, como os mais poderosos dentre os filhos dos homens. Mas é
necessário que o leitor enxergue para além desses cristais de pensamentos. É
necessário que tenha olhos para ver, ou antes, sentimento para sentir o fundo cós-
mico desses pensamentos, a vasta ideia fundamental da qual nasceram esses
maravilhosos cristais de pensamentos rigorosamente delineados.
Quem lê Pascal, longe de ver solvidos os eternos problemas da humanidade,
mais inebriado se sente desses problemas. Sente-se por eles empolgado e já não
pode viver sem eles. Não é possível continuar a vegetar no marasmo habitual da
sua indiferença... Entra-lhe no sangue uma febre metafísica, um fogo sagrado que
não o deixa em paz. Pois, o que forma o fundo, o background, de toda a atividade
literária, polêmica e espiritual do eremita de Port-Royal é o que há de mais vasto,
antigo e obscuro no seio da humanidade.
Pascal não vale pelos problemas que, porventura, tenha solvido - vale pela
inquietude metafísica que lançou nos espíritos estagnados e pela sede de
espiritualidade que acendeu.
E isto vale também das "Lettres Provinciales" do grande pensador.
Em Pascal e nos "casuístas" que ele impugna, defrontam-se dois mundos tão
antigos como a própria humanidade. Entram em conflito duas humanidades — a
humanidade da superconsciência intuitiva e a humanidade da consciência
intelectiva.
Que é o homem? É o homem apenas aquilo que ele faz intelectual, livre e
conscientemente — ou também aquilo que ele é no vasto subsolo da sua
individualidade inconsciente e involuntária? É o homem apenas o seu ser
consciente - ou é ele também o seu ser superconsciente?
Em torno desse tremendo dilema gira, em última análise, toda a luta de Pascal
e dos seus adversários. Pascal entende o homem na sua totalidade, consciente e
superconsciente — ao passo que seus impugnadores consideram o homem apenas
segundo a sua zona consciente e livre.
A França tem sido, desde tempos remotos, a terra clássica dessas duas
ideologias contrárias e insolúveis, ideologias que se concretizam em dois dos seus
maiores poetas: Racine e Corneille. Racine pinta o homem assim como ele é, de
fato, em sua generalidade, com todos os seus claros e escuros, e não assim como
poderia ou deveria ser. Corneille descreve os seus heróis assim como deviam ser à
luz da consciência cristã, mas como os homens não são geralmente.
Para os moralistas intelectualistas que Pascal combate, só é moralmente
imputável ao homem o que ele pensa, diz e faz na zona diurna da sua consciência
vígil, e não o que acontece na zona noturna da sua sub ou superconsciência
incontrolável.
Para Pascal e seus amigos de Port-Royal, de orientação platôníca-
intuitiva, é o homem responsável, não só pela parte diurna, mas, até certo
ponto, também pela parte noturna do seu ser e agir. O homem é um indivíduo,
sim, mas é também uma síntese da humanidade, e os pecados da humanidade
são, em certo sentido, os pecados do homem. Há um "pecado original" que é
da humanidade e é do homem, porque houve uma "queda" do homem na
"queda" da humanidade. Como poderia a célula ficar indene da contaminação
do organismo? Como poderia o indivíduo ser puro, quando impura é a
30
***
Nunca luta o homem com maior convicção e veemência do que quando toma a
ofensiva de um Eu contra um ex-Eu.
Os adversários de Pascal, percebendo o fraco da sua defensiva, passaram
também à ofensiva, cobrindo-o seu agressor de impropérios, atribuindo-lhe as
intenções mais infames, acusando-o de falsário, ridicularizando-o como palhaço,
tachando-o de herege, mas sem conseguirem destruir o ponto central da controvér-
sia. Pascal servia-se de armas forjadas pelos seus próprios adversários, de livros
deles estampados em dezenas de edições, e ainda que, na tradução do latim para o
francês, incorresse em uma ou outra inexatidão insignificante, qualquer pessoa
sincera poderá verificar, à luz dos próprios originais latinos, que o verdadeiro alvo
das acusações não é afetado por nenhuma dessas pequenas divergências de tradução
e citação. Mesmo que coássemos os "mosquitos", sempre ficariam os "camelos"...
Pode um homem mudar de ideias puramente intelectuais, mas não pode
discordar da sua íntima experiência. Essa experiência íntima é, para ele, o
Supremo Tribunal, a última instância, da qual não há apelação. O que o homem
viveu e sofreu nas mais profundas profundezas do seu Eu espiritual, isto a tal
ponto se consubstanciou e identificou com ele que chega a ser ele mesmo, o seu
próprio Ser personal. E, como ninguém pode divorciar-se de si mesmo, assim
também não pode o homem renunciar à sua íntima experiência espiritual. Um
homem desses está disposto a sacrificar tudo - forças, tempo, mocidade, carreira,
amigos, saúde, seu bom nome, a própria vida - em defesa do seu supremo ideal.
Tudo o mais lhe parece secundário; a própria morte se lhe afigura sem im-
portância em face da estupenda realidade interior que domina a sua vida.
33
Pascal, como foi dito, passou por essa grande experiência interior. Viveu
a Deus. Teve o seu Damasco, o seu encontro pessoal com Cristo. Viu a malícia do
pecado. Viveu a grandeza da redenção. Sentiu o terremoto da santidade de Deus.
Viu-se colocado na linha divisória entre a grande treva e a grande luz. Por isto
lhe parecia horripilante blasfêmia e sacrilégio qualquer compromisso covarde
entre a luz e as trevas, entre a santidade de Deus e a miséria do pecador, como
tentavam fazer os moralistas contra os quais ele vibrou o flamejante gládio do seu
grande espírito e da sua arrasadora dialética.
Nas "Lettres Provinciales" revela Pascal uma face do seu caráter que
ninguém lhe conhecia e que também não aparece nos "Pensées": serve-se de um
estilo irônico, esfuziante de chiste e genialidade, que, por vezes, faz lembrar o
deslumbrante chispar de uma esguia chama de oxigênio a derreter duros metais.
O seu gênio era antes melancólico do que colérico ou sanguíneo. O seu estilo é, por
via de regra, calmo, ponderado, algumas vezes épico e trágico.
Por que, pois, se serve Pascal, em sua polêmica, de um modo de escrever que
parece não condizer com o seu caráter?
Estamos aqui diante de um fenômeno psíquico dos mais notáveis. Por vezes é
uma sonora risada a manifestação de uma profunda tristeza. Pode a maior
comicidade revelar a mais sangrenta tragicidade de uma alma. Pessoas há que
trazem a alma em chaga viva, dia e noite, mas que são tidas na sociedade por
creaturas felizes e despreocupadas; o público ignora que essa aparente
serenidade é a única defesa e válvula de segurança para conter e disfarçar o
candente vulcão que estua nas ignotas profundezas dessas almas torturadas. Se
um desses mártires é interrogado a respeito do seu bem-estar, afirma
invariavelmente que vai às mil maravilhas, porque essa afirmação categórica é
necessária para manter o status quo e impedir o impetuoso transbordamento da lava
ígnea que arde nas profundezas dessa alma... Pois a sociedade, em geral, não
permite ao homem ser o que é. . .
Foi o que se deu com Pascal. O fundo melancólico e trágico de sua alma
explodiu numa verdadeira tempestade de ironia e sátira, quando viu que homens
tidos por muito religiosos desacreditavam o que para ele havia de mais querido e
sagrado: o seu Cristianismo. E Pascal, o grande asceta que, apesar de fraco e
doentio, cingia duro cilício sobre as carnes nuas; ele, o grande amigo da pobreza
que se privava de tudo para acudir aos indigentes; ele, o solitário eremita que
amava o silêncio e detestava o ruído — Pascal desce a mais ruidosa liça da época
e desfere a seus adversários golpes tais que até ao presente dia não lhes
cicatrizaram as chagas.
Se se tratasse de uma ofensa pessoal, não teria o grande asceta escrito uma só
palavra contra seus ofensores. Mas aqui estava em jogo a pureza da doutrina do
Cristo, o Evangelho de seu divino Senhor e Mestre, pelo qual havia o eremita
renunciado a todas as grandezas do mundo e escolhido a vida de solicitude e me-
ditação.
Quando, pouco antes da sua morte, perguntaram a Pascal se se arrependia de
haver escrito as "Lettres Provinciales", respondeu que não, e que, se mais uma
vez tivesse de escrevê-las, escrevê-las-ia com maior rigor ainda. Prova isto que as
escreveu por convicção íntima, e não por algum sentimento de rancor ou inimizade.
Escreveu-as com os lábios transbordantes de sátira - e com o coração afogado
em lágrimas. Irrompeu o vulcão da sua grande dor em uma tempestade de
risadas irônicas...
Tão enigmático é esse homem secular...
34
Tão árido e de tão limitado interesse para o grande público é o tema dessa
polêmica entre Pascal e os Jesuítas, que é deveras para admirar levantasse
tamanha celeuma na França, e muito além das suas fronteiras. Não fosse o grande
talento do solitário eremita, provavelmente morreria o caso, circunscrito à esfera
puramente escolástica e teológica da época.
Conforme foi dito, agitava-se então entre os teólogos católicos a questão
obscura, como a graça de Deus se compadece com a liberdade humana. Nenhum
dos contendores negava a ação da graça divina nem a existência da liberdade
humana, mas discutiam a maneira como harmonizavam entre si esses dois fatores
aparentemente inconciliáveis.
Formaram-se dois partidos, aliás, já existentes, frisando um, com grande
energia a atividade da graça, realçando o outro, com fervor, o papel da liberdade
humana. Dessas concepções diversas nasceram, naturalmente, dois modos
diferentes de encarar a vida humana e, sobretudo, a questão central da nossa
salvação; numa palavra, duas modalidades de moral cristã.
No tempo de que nos ocupamos, arvoraram-se os Jansenistas em estrênuos
advogados da graça, ao passo que os Jesuítas defendiam valentemente a liberdade.
E, como sói acontecer em toda polêmica, cada um exagera a questão a seu favor, a
tal ponto que, no fim, parecem inconciliáveis duas coisas que podiam andar de
mãos dadas.
Os Jansenistas - que poderíamos chamar os "calvinistas católicos" — eram
adeptos de uma moral cristã austera, pregando a fuga completa do mundo, dando a
toda a vida cristã um colorido lúgubre de renúncia, penitência, abnegação. E não
paravam em simples palavras e bons conselhos para os outros; eles mesmos davam
com a pureza e austeridade da sua vida exemplo concreto da possibilidade de sua
doutrina. Mère Angélique; a abadessa do mosteiro de Port-Royal, conseguira
restabelecer entre as monjas cistercienses o antigo rigor do espírito do grande
místico Bernardo de Clairvaux. E os eremitas que viviam a certa distância do
convento, levavam a mesma vida de oração e austeridade. Neste ponto mostraram-se
os Jansenistas irrepreensíveis, nem jamais pessoa alguma sincera os acusou de não
levarem a sério a moral cristã. O ponto de controvérsia era a concepção da doutrina
sobre a graça e a predestinação.
Os Jesuítas, por outro lado, não simpatizavam com essa espécie de
Cristianismo, que mais parecia a religião de um João Batista no deserto da Judeia,
do que o Evangelho de Jesus Cristo a andar no meio de homens e igualando-se aos
outros homens em tudo que não fosse pecado. Achavam eles que o Cristianismo
não era apenas para um grupo de homens piedosos segregados do mundo, mas
para toda e qualquer pessoa da sociedade que quisesse seguir a Cristo. E, na
intenção paulina de "ganhar a todos para Cristo", reduziam ao mínimo as exi-
gências da moral cristã, porque só assim lhes parecia possível a cristianização do
mundo, pela qual trabalhavam incessantemente. Não queriam criar mosteiros
cheios de ascetas, mas, sim, um mundo cheio de cristãos. Por mais que Pascal e
outros tenham dito contra os filhos espirituais de Inácio de Loiola, ninguém, de
35
reta consciência, negará que eles, tomados em conjunto (não há regra sem exceção!),
estivessem animados das melhores intenções, embora, como veremos mais abaixo,
muito dos seus membros tenham espalhado doutrinas que uma consciência
intensamente cristã, como a de Pascal, não podia considerar como reflexo do
espírito de Jesus Cristo.
Do louvável intuito dos Jesuítas, e outros, de levar todo o mundo aos pés do
Cristo e facilitar-lhe o mais possível o Cristianismo, nasceu uma teologia moral que
veio tornar-se tristemente célebre sob o nome de "casuística". Os livros de
casuística, escritos geralmente em latim, procuravam dar aos confessores e dire-
tores espirituais normas pelas quais pudessem conduzir os seus penitentes e as
almas a eles confiadas. Infinitamente várias são as condições e circunstâncias da
vida humana; sem conta as cores e cambiantes dos pecados que os homens
cometem. E, para cada situação moral, tem o confessor ou diretor de almas de ter
uma norma que salvaguarde os princípios eternos da moral cristã, por um lado, e,
por outro, respeite a liberdade do penitente e não o repila da igreja. Navegar
entre tantos escolhos sem naufragar, não é fácil tarefa para o piloto espiritual...
Nada mais difícil do que estabelecer normas éticas. Cravam-se as balizas ou muito
para a direita, ou muito para a esquerda, provocando colisão com uma de duas coisas
que devem ser, ambas, intangíveis...
Os Jansenistas eram, neste particular, simplesmente "direitistas", exigindo dos
cristãos os mais pesados sacrifícios — ao passo que os Jesuítas, muitos deles,
praticavam um "esquerdismo" tão largo e liberal que, segundo a opinião dos
adversários, destruíam o próprio Cristianismo. Em vez de converter os pecadores,
negavam os próprios pecados, tendência essa que pôs nos lábios de um dos amigos
de Pascal esta observação sarcástica: "Eis aí os homens que tiram os pecados do
mundo!" Estas palavras incisivas, parafraseando conhecido texto evangélico,
reproduzem bem a mentalidade de Pascal, embora não sejam da sua descoberta.
Foi assim que dois partidos católicos, ambos, certamente, com as melhores
intenções, se digladiavam reciprocamente e se cobriam de injúrias nada cristãs.
***
O mundo católico da época não conhecia, geralmente, os livros de casuística
escritos em latim; eram uma literatura quase privativa do clero; mas, como por
estes princípios dirigia o clero os seus penitentes, compreende-se a indignação
de Pascal, ao ter conhecimento de semelhantes normas de vida cristã. E, para
prevenir do perigo o mundo leigo católico, resolveu divulgar em vernáculo o que
havia de mais "escandaloso" nessa casuística. E com tanta eficiência se
desincumbiu da tarefa que as "Lettres Provinciales" provocaram inaudita sensação
em todas as camadas sociais, o que prova que a sociedade leiga não estava alheia
aos princípios exarados nesses livros.
Para que os nossos leitores possam julgar por si mesmos o caráter desses
livros, passaremos a dar um resumo de alguns dos mais conhecidos. É fora de
dúvida que os casuístas forjaram contra si mesmos armas terríveis, e não admira
que um homem da tempera ética de Pascal, tomado de profunda indignação,
levasse ao pelourinho do desprezo público certos moralistas do seu tempo.
Acresce a agravante que não se tratava de opiniões pessoais e particulares
deste ou daquele religioso, uma vez que todos esses livros vinham com permissão
do Superior Provincial dos Jesuítas e de outras autoridades, recaindo, assim, esse
36
laxismo moral não apenas sobre o autor do livro, mas sobre o próprio espírito da
Ordem que tais coisas aprovava como sendo expressão do espírito do Cristo — ou
melhor, esse laxismo ético afetava a própria igreja de que essa Ordem era parte
integrante e que se mostrava solidária com essa orientação. Pascal, pois,
combate, indiretamente, o espírito da própria hierarquia da igreja de Roma.
37
***
38
Arnauld exigia, pois, que a decisão fosse entregue ao povo católico. Mas quem
havia de elaborar essa exposição popular que vazasse em linguagem simples e
diáfana as complicadas controvérsias dos teólogos da Sorbonne?
Ninguém se sentiu com suficiente capacidade para essa empresa, pois é
incomparavelmente mais fácil escrever de um modo obscuro e complicado do que
de um modo simples e claro. Por fim, Pascal prometeu querer "tentar" uma
exposição em vernáculo; ia dar apenas um ligeiro esboço que servisse de diretriz
para outro homem mais competente. No dia seguinte apresentou esse esboço, em
forma de urna carta, que leu diante da assembléia. Foi unânime a aprovação, e
grandes os aplausos e entusiasmos que essa exposição mereceu.
No dia 23 de janeiro de 1656, apareceu, impressa, essa carta com o título
"Lettre à un Provincial par un de sés amis" (Carta a um homem da Província, por
um de seus amigos). Vinha assinada com o pseudônimo "Louis de Montalte". Esse
anonimato, que a um leitor dos nossos dias, talvez, cause estranheza, era medida de
prudência naquele tempo, em que a Inquisição levava ao cárcere ou à fogueira mi-
lhares de "hereges". Se o autor tivesse dado o seu verdadeiro nome, é certo que as
restantes dezessete cartas não teriam aparecido, nem mesmo a segunda. Por amor à
causa sagrada em questão convinha, pois usar da máxima prudência.
As 10 primeiras cartas são dirigidas a esse tal "homem da Província"; as 6
subsequentes, aos Jesuítas; e as duas últimas, ao Jesuíta P. Annat, confessor do
rei de França.
Apenas estava na rua a primeira carta, quando foi fechada, por ordem
superior, a oficina gráfica em que fora impressa. Mas nem por isto deixaram de
aparecer os outros números, estampados em oficinas clandestinas, que ninguém
conseguiu localizar. De um a outro número cresciam a curiosidade e sensação des-
pertadas por esses panfletos originais.
Logo depois de publicar a primeira carta, deixou Pascal Port-Royal, onde,
naturalmente, se suspeitava estar o autor da mesma, e retirou-se para Paris. Na
metrópole montou o seu quartel-general no hotel "Rói David", por detrás da
Sorbonne, bem defronte ao colégio dos Jesuítas. Ali, no coração da zona inimiga,
ninguém o viria procurar, e Pascal teria todo o sossego para forjar as suas
terríveis armas. Dezenas de homens foram detidos como sendo os autores das
fulminantes "Lettres". Quase ninguém pensava em Pascal, que nesse tempo, não
era conhecido como polemista nem como escritor tão brilhante e popular qual se
revelava "Louis de Montalte". Por fim, condensaram-se quase todas as suspeitas
na pessoa do abade de Haute-Fontaine, por nome Lê Rói, como também, da parte
de alguns, no romancista Gomberville. Ambos, porém, negaram a sua paternidade
literária, ainda que por motivos e de modos diversos: Gomberville queixou-se
amargamente do mau juízo que dele formavam; Le Roi lamentou sinceramente
não ser o autor...
Depois da impressão da 6ª carta fora Pascal por um triz descoberto como
autor dos panfletos, como ele mesmo insinua, com a devida cautela e discrição, no
princípio da 8ª_carta. Nesse comenos viera a Paris seu cunhado Périer e se
hospedara no mesmo hotel. Um jesuíta, amigo dele, veio visitá-lo e pediu-lhe
prevenisse Pascal, porque as suspeitas se concentravam cada vez mais na pessoa
dele como sendo o autor das "Lettres Provinciales". Périer estava sobre brasas
durante essa visita, porque, na mesma ocasião, se achava sua cama coberta de
exemplares da 7ª_ carta, que acabavam de chegar das oficinas gráficas; felizmen-
te, porém, estavam corridas as cortinas diante da cama - e assim saiu o Jesuíta
da caverna do leão sem nada suspeitar.
E as terríveis folhas volantes continuaram a sair regularmente. No fim da
17ª_ carta, dirigindo-se aos Jesuítas, diz o autor: "É sabido que enganastes o Papa;
mas isto já não causa escândalo porque agora todos vos conheceu."
39
***
Diz ainda que "Agnus Dei feitos de cera devem ser adorados da mesma forma
que a imagem de Jesus; mas é proibido, sob pena de excomunhão, pintá-los com
alvaiade, ouro ou outras tintas."
Pascal, como católico, admitia a veneração dos santos, mas não a adoração;
muito menos a adoração de uma figura de cera, uma vez que a adoração é devida
a Deus somente. Escobar e seus patronos teológicos não vêem pecado na adoração
de uma figura de cera, mas pecado gravíssimo, crime horrendo, em pintar esses
ídolos, porque, neste caso, podia ser que fosse adorado o alvaiade, o ouro ou outra
tinta profana, e não a cera sagrada.
***
Entretanto, a posição inimiga contra a qual o austero eremita assestou a
artilharia pesada da sua arrasadora dialética e tremenda sátira foi a famosa
"restrição mental" ensinada por quase todos os moralistas, e que equivale
praticamente a uma verdadeira mentira; e, mesmo que não fosse pecado, seria
em todo o caso o sepulcro da sinceridade e o assassino do caráter. "Seja o vosso
falar um simples sim, um simples não, diz o divino Mestre, o que passa daí vem do
mal." Escobar e seus 24 doutores da Companhia de Jesus arvoraram-se em estrênuos
paladinos da "restrição mental", que é na realidade uma engenhosa iniciação na
"arte de mentir". Para comprovação, vejamos alguns espécimes dos produtos dessa
fábrica:
l — No "Exame Terceiro" do referido livro, tratando do juramento e da
blasfêmia, escreve o douto compilador das opiniões de duas dúzias de eminentes
teólogos da Companhia de Jesus:
"No juramento, não é mau em si mesmo dar às palavras um sentido diferente
daquele que elas têm em si mesmas; muitas vezes, porém, pode ser pecado. É
permitido, quando as palavras são ambíguas. Se a ambiguidade não está nas
palavras, mas apenas no pensamento de quem jura, é sentença provável ser ilícito
esse juramento; mas é sentença mais provável que seja lícito."
Será isto Cristianismo'?
"Ê permitido induzir alguém a jurar falso, quando ele, por ignorância, julga
ser verdadeiro? O P. Hurtado (um dos 24 Jesuítas) responde que sim, porque o
que jura não peca, ao passo que a matéria do juramento em si é, neste caso, antes
boa que má; pois o juramento é um ato de religião pela glória de Deus."
Não é fácil descobrir com que artes mágicas conseguiram Escobar e Hurtado
harmonizar essa liceidade do juramento com aquilo que Jesus diz em MT. 5,22 ss:
"Ouvistes que foi dito: Não jurarás falso!. .. Eu, porém, vos digo: Não jureis de
forma alguma! seja o vosso modo de falar um simples sim, um simples não — o que
passa daí vem do mal."
"Sanchez (um dos 24 moralistas) afirma que se pode fazer um juramento que
pelos circunstantes seja entendido no sentido comum, mas pelo que jura tenha
secretamente outro sentido". E exemplifica: "Se o vendedor, segundo sentença
provável, acha que o preço de uma mercadoria é injusto, pode vendê-la com peso
falso, ou de outro modo conservar-se indene dessa injustiça; e se for sobre isto
interrogado pelo juiz, pode negar tudo com juramento, pensando lá consigo mesmo
que não agiu injustamente."
"Uma mulher adúltera interrogada por seu marido se adulterou, pode negá-
lo com juramento, subentendendo consigo mesma, por exemplo, que não o fez num
dia diferente daquele que seus acusadores supõem."
42
"Alguém que vem de um lugar tido como pestoso pode jurar que não vem desse
lugar, subentendendo como sendo um lugar pestoso."
Assim ensinaram Sanchez e outros — e chamam isto "moral cristã"...
Pergunta-se se é pecado mortal jurar, por justa causa e com palavras
ambíguas, por exemplo: "o príncipe está na corte", subentendendo consigo mesmo
"em pintura”? O Jesuíta Lessius, citado por Escobar, acha que é ilícito; o Jesuíta
Sanchez acha mais provável não ser pecado mortal, a não ser que daí resulte grave
prejuízo para terceiros, ou o juramento seja exigido oficialmente pelo juiz;
porquanto, 'diz Sanchez, "trata-se apenas de um erro de distinção; mas um
juramento assim, onde há apenas um erro de distinção, não passa de pecado
venial".
2 — No "Exame Sétimo" trata Escobar das leis, sobretudo em relação com o
quinto mandamento e o pecado do homicídio.
Pergunta: "Sabendo eu que uma falsa testemunha ou um acusador injusto
pretende publicar, de encontro à justiça legal, um crime verdadeiro, mas oculto, é-
me lícito 'matá-lo, se da acusação receio sentença de morte ou grande prejuízo
material?”
Opina o Jesuíta Banez "que é lícito, no caso que o acusador, previamente
admoestado, não desista do seu intento, e se para o culpado não há outra
possibilidade de escapar ao castigo".
Pergunta: "Posso matar alguém que quer apoderar-se dos meus bens?"
Resposta: "Pode, com o fim de evitar notável prejuízo, uma vez que os bens
materiais são meios para a conservação da vida, da honra e do estado de vida."
O Jesuíta Molina estende esta permissão de matar também aos clérigos.
Tanner inclui também os monges, embora estes não possuam propriedade senão em
comum. Entretanto, não é lícito matar o ladrão por uma coisa de pouco valor, por
exemplo, um florim, segundo diz Molina (Vol. I pg. 122, § 43, 44).
Prossegue Escobar:
"Uma vez que é permitida a todo homem, em defesa de sua honra e com a
devida moderação, matar a outrem, pergunta-se se é lícito ao monge matar o
caluniador que contra sua Ordem espalha graves acusações? Amicus, cujos oito
volumes De Cursu Theologico só nos últimos tempos me chegaram às mãos — diz
Escobar — não ousa aderir à sentença afirmativa, para não contrariar a opinião
comum, mas reforça aquela com um argumento, dizendo: "Se a um leigo, para
salvaguardar a sua honra e seu bom nome, é lícito matar, por maioria de razão
parece ser lícito a um clérigo e monge; porquanto, os votos, a sabedoria e virtude,
de que nasce a honra do clérigo, são bens maiores do que a habilidade no manejo
das armas, em que se baseia a honra do leigo. De resto, uma vez que aos clérigos e
monges, em defesa de sua fortuna, é lícito matar o ladrão, se não houver outro
meio, o mesmo também será lícito em defesa da sua honra." (§ 46).
"Quando um homem da nobreza recebe de alguém uma bofetada, pode matar
o ofensor? O Jesuíta Lessius responde que sim, porque para algumas classes é
considerado suprema vergonha receber bofetadas ou pauladas sem se vingar."
"Entretanto — diz Escobar — eu por mim limito esta sentença aos nobres,
porquanto, para os burgueses não é grande vergonha receberem bofetadas e
pauladas."
E acrescenta: "Muitos afirmam que é lícito perseguir e matar o homem que,
depois de dar bofetada, foge, a não ser que disto se receie, para o Estado, excessivo
43
***
Continuaremos a ler a grande obra do P. Antônio Escobar y Mendoza "Liber
Theologiae Moralis". Onde ele trata do quinto mandamento e do homicídio,
escreve:
"Uma mulher está para cometer suicídio a fim de escapar à desonra da
gravidez; é permitido sugerir-lhe o aborto? O cardeal De Lugo responde que sim, se
de outra forma não for possível dissuadi-la do seu intento; pois isto não é
induzi-la ao mal, mas apenas dar-lhe a escolha de um mal menor." Quer dizer que,
segundo o conhecido teólogo cardeal De Lugo, pode-se aconselhar aborto e
infanticídio para evitar suicídio — fantástica essa "moral"! Prossegue Escobar:
"É permitido declarar guerra a um povo pagão, ou em geral, não-cristão,
sobretudo quando este obsta à pregação do Evangelho." Foi o que Mussolini fez
com a Etiópia, a fim de evangelizá-la — à força de canhões e metralhadoras, embora
esse país não fosse pagão. Esse senhor Benito Mussolini deve ter sido um fervoroso
católico, segundo Escobar e companhia.
"É permitido ao nobre aceitar duelo para defender a sua nobreza e suas
dignidades, como também para salvar bens materiais."
3 — "Exame Undécimo". Sobre as leis em particular, com relação ao primeiro
mandamento da Igreja, de ouvir Missa.
44
Prossegue Escobar:
"Se a hóstia for devorada por um animal, deve ela, possivelmente, ser extraída
do corpo dele e conservada; o animal, porém, deve ser queimado, e suas cinzas
ser lançadas à piscina."
4 -"Décimo Terceiro Exame Sobre o quarto mandamento da igreja
concernente ao jejum".
"Tudo que é bebida não quebra o jejum, nem o vinho, mesmo quando
condimentado com especiarias da índia. Quando tomado em excesso, é pecado
contra a temperança (mas não quebra o jejum)."
Chocolate, segundo Escobar, é bebida, podendo, pois, sem escrúpulos, ser
tomado em qualquer quantidade pelo devoto jejuador, bem como vinho; não
quebram o jejum (1). Assim, corno o leitor vê, é uma delícia jejuar, por tempo
indefinido, sem possuir os segredos de Gandhi, e passar, ainda por cima, por um
grande asceta.
5 — "Décimo Sexto Exame. Sobre a dispensa como privilégio".
Segundo Hurtado, pode o Papa, por justo motivo, permitir o matrimônio
entre irmão e irmã, embora seja isto proibido por lei divina. Assim por exemplo —
expõe Escobar — se o rei da Espanha não tivesse possibilidade de contrair
matrimônio digno dele senão com uma herege ou pessoa suspeita de heresia, de
que resultasse perigo que o reino fosse contaminado, poderia o Papa conceder-lhe a
devida dispensa para casar com sua própria irmã, sobretudo se ela não fosse filha
da mesma mãe (Exame 16, § 44, pág. 238).
(1) Trata-se aqui do jejum quaresmal, e não eucarístico.
das satisfações de Jesus Cristo e dos Santos; as obras impostas são apenas
necessárias como condição. Por isto não importa que sejam feitas em estado de
pecado. Lucra-se a indulgência, ainda que as boas obras a que estão anexas sejam
obras más no respectivo indivíduo." (pág 849-50).
7 — "Tratado sexto. Exame nono. Do Matrimônio".
"O pagão que se torna cristão pode abandonar sua esposa, se esta se negar a
fazer o mesmo; e pode casar com outra. Se alguém se converte em Madrid e lhe é
difícil buscar sua mulher na África ou na América, pode calar o fato e casar de
novo."
"Benigno, grande senhor feudal, casou com Isabel, filha de um dos seus colonos
e vassalos, segundo o rito da Igreja, mas com intenção fraudulenta, isto é, sem
consentimento interno. Depois de viver alguns dias maritalmente com Isabel,
declara ao pároco que não teve intenção de a tomar por esposa, provando-o pelo
conteúdo de uma carta que, em vésperas do casamento, entregara, fechada, ao
pároco. Que deve fazer o pároco ?
Resposta: Ainda que Benigno seja culpado diante de Deus pelo fato de ter
enganado a Isabel e haver cometido sacrilégio, concordam contudo os teólogos em
que, num caso desses, um homem de tão desigual posição e de tão superior condição
social à da jovem, não pode em absoluto ser obrigado a renovar o seu consentimento
e reparar a injustiça que lhe causou com o seu casamento fictício. Pois, não se
pode dizer propriamente que Isabel tenha sido enganada, uma vez que ela conhecia
essa desigualdade; mas que ela quis enganar-se a si mesma. Cabe apenas a Benigno
declarar judicialmente a invalidade do matrimônio, fazer penitência e despedir Isa-
bel com dinheiro, para que possa casar em outra parte. (Pontas, doutor em Direito
Canônico na Faculdade Teológica de Paris, no "Dictionaire de cas de
conscience", artigo Mariage, III, cas 5, 1724).
Quem admira que, em face de semelhante imoralidade estampada como
doutrina do Cristo, tenha Pascal invocado a divina pureza do Evangelho e
exclamado: "Minhas Cartas foram condenadas em Roma, mas o que nelas condenei
está condenado no céu — apelo para o teu tribunal, Senhor Jesus!"
Juan de Alloza, outro Jesuíta espanhol, em sua obra latina "Flores
Summarum, seu Alphabetum Morale", publicada em Lyon, França, 166, Vol. L,
escreve, com a competente aprovação eclesiástica, o seguinte:
. "O homem que vir outro, inocente, punido pelo que ele (o primeiro) fez, e se
conservar calado, não tem obrigação de compensar o prejudicado."
"Um homem honesto que acharia demasiado duro mendigar, mas de outro modo
não tem com que ganhar o necessário sustento, pode apoderar-se dele às ocultas."
Isto é, em bom português, pode roubar!
"Fulano, que abre cartas escritas de Roma a Sicrano, e chega a saber assim que
vagou em Roma uma prebenda eclesiástica, e consegue para si essa prebenda, não
tem obrigação de indenizar a Sicrano, pois não lhe tirou direito algum que este
possuísse de fato."
"É permitido a um homem da nobreza matar outrem para defender a sua
honra. Doutores há que afirmam que ele não pode perseguir o ofensor, se este
fugir. Outros, porém, afirmam, com não menor probabilidade, que ele o pode
perseguir e matar, não no intuito de se vingar, mas na intenção de recuperar sua
honra. Assim segundo Henriquez."
Como se depreende claramente de diversos tópicos que extraímos dessas
insignes obras teológicas, há dois padrões de moral, dois códigos éticos para as ações
47
humanas: um para uso dos plebeus, e outro para uso (ou abuso) dos nobres.
Fatalmente, deve haver também dois Cristos e dois Deuses para essas duas classes de
homens e de cristãos católicos. O que para o nobre é virtude pode ser pecado
gravíssimo para o plebeu. Sobre a base deste princípio, será fácil construir tantas
espécies de moral ou ética quantos os indivíduos humanos dispostos a fugir ao
espírito divino do Evangelho e entregar-se como escravos às suas paixões.
"Pode ser até obra de caridade da minha parte matar alguém - é o exímio
teólogo que fala — se este atacar a honra de um inocente; ruas não há obrigação
para isto, se nisto houver perigo para meus próprios bens."
Ó Nazareno! Que é feito do teu Evangelho de justiça, pureza e amor?...
"O homicida, sabendo que outro, inocente, está no cárcere por causa dele, não
tem obrigação de se denunciar a si mesmo com perigo da própria vida (Navarrez)".
É claro que é preferível para esse cristão que o inocente morra em lugar do culpado
— qualquer pagão faria o mesmo...
Resumindo questões diversas, sintetiza Alloza a sua moral cristã nas
seguintes frases:
"Não está obrigado a indenização aquele que mata um ladrão para salvar os
seus bens, ainda que pudesse reaver estes por meio do juiz; nem aquele que mata
em defesa própria, ainda que, como clérigo, pudesse fugir sem desonra; nem o
adúltero que, defendendo a si mesmo matar o marido da outra." (Ver "Homicidium"
Sectio II).
***
Com a reprodução desses tópicos, não temos a intenção de ofender a alguém
ou desmoralizar unia classe de homens ou Ordem religiosa. Se há desmoralização, é
uma autodesmoralização, uma vez que essas obras foram impressas em dezenas de
edições, com expressa permissão de seus autores e das respectivas autoridades.
Queremos apenas fazer ver como é perigoso e fatal afastar-se o homem das normas
divinas e imutáveis do Evangelho de Jesus Cristo, e guiar-se por princípios de
outra origem, por melhores que esses princípios pareçam à razão humana, ou ante
ao coração do homem.
Por outro lado, queremos também mostrar que a atitude de Pascal não nasceu
de nenhum espírito de insubmissão ou revolta, mas, sim, da pureza e da sacralidade
do seu Cristianismo. Como católico, foi Pascal de uma conduta exemplar e de
grande fervor religioso, amigo da pobreza, da penitência, da caridade, da oração. E
foi precisamente essa sua acendrada Catolicidade cristã que o lançou a tão tremendo
conflito com numerosos representantes do Catolicismo romano.
Pascal sofreu cruel perseguição por causa da sua atitude desassombrada, mas
nunca revogou o que dissera nem modificou sua tempera espiritual. Muitas vezes se
repetiu, através da história, essa tragédia espiritual dos grandes gênios religiosos
da humanidade, postos em face do doloroso dilema: ou serem infiéis à própria
consciência — ou incompatibilizar-se com a religiosidade da época!
Pode Pascal ter exagerado as suas ideias no tocante à predestinação e à
atividade da graça divina, mas na defesa dos princípios intangíveis da moral
cristã, qualquer homem sério estaria disposto a lutar sob sua bandeira.
Por vezes, manda Deus um Paulo para dizer a Pedro, como daquela vez em
Antioquia: "Aberraste da verdade do Evangelho" (Gl. 2-14). E ainda que nem
48
sempre os Pedros tenham a humildade de Simão Pedro, a voz dos Paulos nunca
deixa de ser de grande utilidade para reavivar a consciência cristã do gênero
humano. De resto, nem Pedro nem Paulo são a Igreja do Cristo.
Para explicar a sua atitude, escreveu Pascal: "Se eu vivesse em uma cidade
onde houvesse 12 fontes de água, e se eu soubesse com certeza que uma delas está
envenenada, teria obrigação de prevenir todo O povo para não beber dessa água; e
se alguém visse nisto apenas idiotice minha, teria eu obrigação de denunciar
aquele que envenenou a fonte, a fim de não expor a cidade toda ao perigo de
envenenamento."
O abade Maynard(l) deu-se ao trabalho de querer "refutar" as "Lettres
Provinciales", mas não se pode afirmar que tenha logrado algo de positivo, uma vez
que os livros denunciados por Pascal existem realmente e o espírito que a eles
preside é, em numerosos pontos, incompatível com o verdadeiro Cristianismo.
O erro dos casuístas está em que eles considerem essas delicadas questões morais do
ponto de vista puramente legal e jurídico, quando é certo que só a perspectiva
espiritual e evangélica é que lhes pode dar solução satisfatória. Pascal é
intransigente defensor dessa atitude espiritual-evangélica, ao passo que Escobar è'
seus patronos desertaram evidentemente para os arraiais de um burocratismo
jurídico-legal, como se as relações entre o homem e Deus pudessem ser aferidas
pela bitola profana dos nossos códigos civis.
(1) Lês Lettres Provinciales de Louís de Montalte et leur rétufafion, par 1'abbé Maynard. Paris, 1851.
***
Em 1700 condenou o célebre Bossuet, em nome da Igreja Galicana, a moral
casuística dos Jesuítas e de outros moralistas como atentatória ao espírito do
verdadeiro Cristianismo. Também em Roma foram, mais tarde, condenados diversos
princípios ensinados por Escobar e seus amigos. Outros continuam em vigor.
Entretanto, só Deus sabe quantas almas, por espaço de mais de um século,
obediente a esses "diretores espirituais", foram ludibriados nos seus anseios
espirituais e afastados do Cristo.
49
Regulamentação
Burocrática do Amor de Deus —
Pró e Contra Pascal
O que, acima de tudo, parece ter disposto os ânimos, dentro e fora dos arraiais
católicos, contra certos teólogos e moralistas da Companhia de Jesus, foi a opinião que
muitos destes tinham sobre o dever que temos de amar a Deus. Ninguém nega que, de
um modo geral, vago, implícito, se deva sempre amar a Deus; mas o que esses
"mestres da vida espiritual" escreveram sobre o amor explícito e consciente que o
cristão deve ter para com o Bem Supremo — isto é sumamente vergonhoso. Paulo,
Agostinho, Francisco de Assis, Mahatma Gandhi e todos os outros espíritos abrasados
no amor de Deus, se tais opiniões tivessem lido, ter-se-iam levantado com santa
indignação contra semelhante deturpação do Cristianismo. O cristão sincero, não
contaminado de certa burocracia e sofisticação escolástica, não compreende que se
possam estabelecer determinados períodos, certas horas de "expediente", em que a
alma tenha "obrigação" de "amar a Deus de todo o coração, de toda a alma, de toda a
mente e com todas as suas forças". Não compreende que esse "mandamento máximo"
do Mestre, possa sofrer qualquer diminuição ou cerceamento da parte daqueles que,
deviam ser os primeiros a afirmar o amor de Deus em todas as circunstâncias da vida.
Acha Escobar, de acordo com Hurtado de Mendoza e outros moralistas, que há
obrigação de amar expressamente a Deus uma vez por ano. Outro teólogo, Coninck, é de
parecer que basta cada 3 ou 4 anos. Henriquez, mais liberal, estabelece o período de 5 anos
como obrigatório para fazer um ato explícito de amor a Deus. Filutius, porém, não concorda
com isto; acha que não se pode obrigar nenhum cristão a amar a Deus de 5 em 5 anos. O
Jesuíta Antônio Sirmond escreveu um manual de piedade intitulado "Défense de Ia vertue".
Sob este belo título, "defesa da virtude", espera o leitor encontrar páginas edificantes sobre a
vida cristã. Mas não é assim. "Tomás de Aquino - expõe o autor - acha que se deve amar a
Deus, logo que se chegue ao uso da razão." Em vez de concordar com esta ideia, que é que
faz o autor? Procura outros teólogos que o libertem desse dever ingrato de amar a Deus logo
ao despontar da razão. "Isto parece muito cedo — diz ele, e prossegue: — Scotus opina que
se deve amar a Deus cada domingo. Outros dizem, na hora da morte - e isto me parece meio
tarde! Eu, por mim, nem creio que se deva amar a Deus por ocasião de cada recepção dos
sacramentos; porquanto, para essa recepção, basta a contrição imperfeita em união
com a confissão, no caso que esta seja possível. Suarez diz que se deve amar a
Deus em determinados tempos — mas em que tempo? Deixa-o à escolha de cada
um; ele não o sabe; mas, o que esse teólogo não sabe, quem o poderia saber?"
E assim é que, de tanto burocratismo teológico, esses "chefes espirituais"
chegam, finalmente, à conclusão de que não há obrigação real de o homem amar a
Deus, sacrificando assim o "primeiro e maior de todos os mandamentos" e a alma
do Cristianismo ao arbítrio de uma infeliz teologia.
E isto é impingido ao povo católico como "catolicismo", e até como
"cristianismo"...
É este, talvez, o maior e mais funesto dos males de certas épocas: apregoarem-
se como cristianismo doutrinas e ideias que de cristianismo têm apenas o nome,
mas não a alma e realidade. É este um dos maiores crimes que se cometem contra o
maior tesouro que o homem possui aqui na terra — o tesouro do Evangelho genuíno
e integral.
50
Não há meio mais seguro para perder a fé no Cristo do que ler as obras ou
ouvir as doutrinas de certos teólogos e moralistas...
***
Em carta de 15 de janeiro de 1690 narra a escritora Madame de Sévigné que o
poeta Boileau, convidado à casa de Lamoignon, onde também se achava o Jesuíta
Bourdaloue, mostrara dar preferência aos escritores antigos sobre os modernos,
excetuando apenas um desses últimos. O Jesuíta quis saber quem era esse único
exceto. Boileau recusou-se a nomeá-lo. O reverendo insistiu. Ora, respondeu o
poeta, vossa Reverência de certo o leu mais de uma vez. O Jesuíta não se contentou
com essa evasiva, ao que Boileau lhe disse à queima-roupa": "Já que faz questão de
o saber — é Pascal." "Pascal? — exclama Bourdaloue, furioso - Pascal é tão lindo
como a mentira!”-"Como a mentira? — replica Boileau — acaso não é verdade que
os vossos padres escreveram que não somos obrigados a amar a Deus?”- "Por favor,
Senhor! — acode o Jesuíta - é necessário distinguir!"-"Como? — replica o poeta —
Distinguir? Mas, por Deus, distinguir se temos de amar a Deus ou não?”Fora de
si, o Jesuíta deixou a sala.
É provável que esta cena tenha levado Boileau a escrever a sua 12ª_epístola.
***
O historiador Crétineau-Joly, amigos dos Jesuítas, na sua "Histoire de Ia
Compagnie de Jesus, 1845, escreve: "Pascal tornou Deus inacessível, a fim de
impossibilitar os Jesuítas. Estes, por seu turno, tentaram popularizar a religião,
procurando conciliar a infinita perfeição (de Deus) com os vícios dos homens,
adaptando certos pontos da moral, aos caprichos do mundo. Desde o início
queixara-se o mundo do rigor de certos preceitos; os Jesuítas quiseram atender a
essas queixas."
O que o próprio Pascal pensa dessa tentativa de compromisso entre as trevas e
a luz resume-o ele mesmo nas seguintes palavras:
"Saibam todos que não é intenção dos Jesuítas corromper os costumes; tal não
é o seu propósito. Por outro lado, também não têm por fim único o melhoramento
dos costumes, o que seria péssima política. O seu pensamento é antes o seguinte:
Eles têm de si mesmos tão boa opinião que se julgam, por assim dizer, necessários
para o bem da religião; querem que sua influência abranja tudo e que possam
dominar todas as consciências.
Ora, uma vez que os princípios severos do Evangelho são próprios para dirigir
certa classe de pessoas, servem-se eles desses princípios quando favorecem suas
intenções. Mas como, por outro lado, esses princípios não agradam à maior parte
dos homens, sacrificam os Jesuítas esses princípios em atenção a esses tais, a fim
de contentar a todos, uma vez que têm de lidar com gente de todas as classes e de
nações diversas. Necessitam, por isto, de casuístas que saibam adaptar-se
inteiramente a essa massa heterogênea. Se eles tivessem apenas casuístas laxos,
51
que ver o meu nome usado para patrocinar semelhantes opiniões, que detesto de
todo o coração."
Com esses autores católicos concordam os escritores protestantes. Adolfo
Harnack, então reitor da Universidade de Berlim, escreve, em seu livro
"Dogmengeschichte":
"Com a ajuda do Probabilismo, conseguiu a Ordem dos Jesuítas
transformarem em pecado venial quase todos os pecados mortais. Por ele se
aprende como revolver-se na lama, como desorientar a consciência, e, no
confessionário, varrer um pecado com outro pecado. Os extensos manuais da ética
dos Jesuítas são, em parte, monstruosidades de abominação e repositórios de
execráveis pecados e hábitos imundos, descrições e tratados que provocam gritos
de revolta. As coisas mais chocantes são neles tratadas com cara de bronze, e isto
por padres solteiros... bastante vezes com o propósito de representar as coisas mais
infames como perdoáveis, e para mostrar aos mais empedernidos prevaricadores
um caminho para viverem em paz com a igreja.
Aparece aqui a influência deletéria de um sistema religioso do qual esses
homens são servidores, uma vez que esse sistema é capaz de produzir tão sutis
licenciosidades e tão perversa avaliação dos princípios morais... E tudo isto em
nome do Cristo. . . O interesse que preside a tudo isto está em manter e robustecer
a força e o prestígio externo do eclesisticismo”(l).
Essa mesma doutrina deletéria, explanada nos tratados de teologia moral, e
contra a qual tanto se revoltou Pascal, aparece também nos Catecismos populares,
embora em forma menos positiva. Tenho casualmente sobre a mesa um exemplar do
"Catholic Manual of Christian Doctrine", usado nas escolas católicas dos Estados
Unidos e devidamente aprovado pela autoridade diocesana. Na pergunta 41 vem
explicado que uma pessoa convencida de que recebe de menos por seu trabalho ou
mercadoria, pode, sem pecar, praticar "compensação oculta", isto é, em bom
português, furtar o resto a que julga ter direito. Onde o empregado ou a empregada
que não esteja convencido de receber de menos1?
Na conhecida revista católica "The Ecclesiastical Review", publicada pela
Universidade Católica de Washington. D. C., Estados Unidos escreve o Padre J.
Francis Connel, C. SS. R. (isto é, da Congregação do Santíssimo Redentor), às
páginas 68-9, número de janeiro de 1945, o seguinte:
(1) Ver: Harnack: História do dogma, Vol. VIII pg. 102, Oxford 1899.
“Question: What would be regarded now-days as the absolute sum for grave
theft?
Answer: To lay down a genral norm, in view of actual conditions and the
value of money, it would seem that the absolute sum for grave theft would be about
$ 40."
Em tradução: "Pergunta: Qual seria, hoje em dia, considerada como soma
absoluta para constituir roubo grave?
Resposta: Para estatuir norma geral, atentas as condições reais e o valor do
dinheiro, parece que a soma absoluta para constituir roubo grave seria cerca de
40 dólares."
Quarenta dólares equivalem mais ou menos a Cr$ 4.500,00 cruzeiros (ou 80
reais hoje) nossos. Quer dizer que, segundo as normas morais do padre Connel,
aprovadas pela competente autoridade eclesiástica e reconhecidas pelos
54
suspenso entre o céu e a terra, gemia: "Pai, em tuas mãos encomendo o meu
espírito"... Nunca foi a igreja tão divinamente bela e vitoriosa como naqueles 300
anos em que vivia em extrema pobreza e suprema espiritualidade, no fundo das
catacumbas ou ensangüentava a arena do Coliseu...
"Estão por dentro todas as magnificências da filha do rei"...
"O reino de Deus está dentro de vós"...
Quem considera as organizações eclesiásticas como bitola do espírito do Cristo
mostra que é analfabeto e tábua-rasa precisamente naquilo que é a essência do
Evangelho. Leia o Sermão da Montanha, leia o colóquio noturno de Jesus com
Nicodemos, e procure retificar o seu erro à luz desses relâmpagos divinos.
Pode a organização eclesiástica atingir ao infinito — e o espírito do Cristo
estar a zero. Pode a parte humana da igreja subir ao supremo zênite — e o elemento
divino descer ao mais profundo nadir". ..
"Quem não renascer pelo espírito não pode ver o reino de Deus"...
"O meu reino não é deste mundo"...
É necessário que a Divina Providência, para contrabalançar a obra nefasta dos
Constantinos, nos mande alguns Neros, a fim de que a benéfica inimizade destes
reconstrua o que a maléfica amizade daqueles destruiu, a fim de arrasar a
orgulhosa torre de Babel do nosso cristianismo político-diplomático-financeiro e
levantar o divino santuário dum cristianismo espiritual como o dos primeiros
tempos...
Uma vez que, segundo Tertuliano, toda alma é cristã por natureza, é certo
que as almas sinceras se voltarão sempre, como plantas heliotrópicas, para lá onde
sentem irradiar a "luz do mundo"...
Foi por este Cristianismo que Pascal lutou a vida inteira, desde a sua
conversão definitiva, defendendo-o contra todas as tentativas de adulteração ou
mescla com elementos profanos. Está provado, através de quase vinte séculos,
que só um Cristianismo puro, 100% genuíno e integral, é que possui a força de
arrancar os homens da Sodoma da sua luxúria ou da Babel do seu orgulho.
Os que advogam um cristianismo político, diplomático, moderno, elegante, tipo
salão, ou outra espécie qualquer de cristianismo "condicionado" - são piores
inimigos do Cristianismo do que os hereges e ateus manifestos.
Ou aceitamos um Cristianismo em estado puro, assim como brotou dos lábios
do Nazareno — ou não somos cristãos de forma alguma!...
O reino de Deus está no mundo — mas "não é deste mundo". . .
E precisamente por não ser deste mundo é que pode salvar o mundo.
58
Pascal e a Humanidade
— O seu Livro
"Pensées"
Pascal é uma das poucas celebridades mundiais que não publicou livros. Ver-
dade é que escreveu tratados sobre matemática e geometria; mas essas conquistas,
há tempo, se divorciaram do nome do seu autor e se perderam no vasto anonimato
da ciência como bem comum da humanidade.
As "Lettres Provinciales", que escreveu quase por acaso, tornaram-no temido
e admirado, mas não fizeram de seu autor, propriamente, uma celebridade
mundial.
O livro central e eterno a que esse homem, que morreu com 39 anos de idade,
deve a sua imortalidade sobre a face da terra, não foi por ele publicado; dele
foram encontrados, após sua morte, apenas os tijolos do edifício, ou antes as
esplêndidas peças de alvenaria, mas o edifício mesmo, em sua forma atual, é de
outros. E, no entanto, bastaram essas mil e tantas "pedras" para dar a Pascal um
dos primeiros lugares na galeria dos grandes gênios da humanidade e do
Cristianismo.
Assim como Colombo morreu sem saber que descobrira um novo continente
cheio de maravilhas e grandezas, assim deixou também Pascal este mundo sem
suspeitar que aquele punhado de fragmentos de papel que deixara nas gavetas
viria a ser para a humanidade do futuro uma verdadeira América de
magnificências espirituais.
O Pascal que a humanidade cristã conhece, admira e ama, não é o autor do
"Essai sur les coniques", nem o hábil experimentador das "Experiences nouvelles
touchant le vide", nem o Pascal do "Traité de l'équilibre dês liqueurs", embora
tenham esses estudos rasgado novos horizontes à aerostática e hidrostática. Nem tão
pouco nos curvamos ante o vibrante polemista das "Lettres Provinciales", ainda
que essas 18 cartas sejam um dos maiores monumentos da literatura francesa e o
atestado de uma grande sinceridade cristã.
O Pascal que atravessa os séculos e empolga as almas de todos os tempos é o
Pascal dos "Pensées", porque, por menos que os materialistas ou os intelectualistas
queiram, o escol da humanidade é essencialmente espiritualista, e os melhores
dentre os filhos dos homens têm os olhos voltados para os horizontes eternos da
Divindade. Depois que o homem pensou, viveu, lutou e sofreu muito, está mais
do que nunca disposto a crer num mundo sobre-material e ultraintelectual; ou,
como dizia Pascal, "o último passo da razão (inteligência) está em admitir que há
infinitas coisas que ultrapassar o seu alcance; se a isto não chegar, dá prova de
grande fraqueza."
É por causa dessa inextinguível sede do sobrenatural e por causa desse
veemente heliotropismo metafísico que os "Pensées" são um livro sempre novo,
atual e querido, e serão lidos e meditados, enquanto as "Confessiones" de Agostinho
fizerem parte integrante da literatura cristã da humanidade.
59
***
Mas, afinal de contas, que são os "Pensées”?
O leitor comum e superficial não vê, talvez, neste livro senão algumas centenas
de lindos cristais de pensamentos, idéias filosóficas, metafísicas, místicas, sobre a
vida humana e o Cristianismo. Há tantos homens que coligiram belos pensamentos
- Sêneca, Marco Aurélio, Rousseau; nem faltam entre os escritores cristãos
coletâneas de lampejos altamente espirituais... Fossem os "Pensées" célebres
apenas na França, atribuí-lo-íamos, talvez, à clássica beleza e diafaneidade de
estilo, mas esse livro se tornou patrimônio espiritual da humanidade, como a
"Imitação do Cristo" e as "Confessiones". Na última guerra mundial foi este livro
encontrado, freqüentemente, na bagagem de soldados franceses mortos no campo de
batalha.
Não é possível solvermos o mistério dos "Pensées", sem remontarmos a uma
zona que, possivelmente, é terra incógnita para muitos dos nossos leitores.
Pascal é o grande representante de uma faculdade humana que poderíamos
chamar ultraintelectiva, como já foi lembrado no início deste livro. E como, no
fundo, essa faculdade existe e atua em todos os homens, por isto milhares de homens
introspectivos encontram nos pensamentos claros e explícitos de Pascal o seu
próprio pensar e sentir, embora esse seu sentir e pensar lhes seja apenas obscura e
implicitamente consciente. Quando um livro nos diz o que nós mesmos quiséramos
dizer, mas dizer não sabemos, então esse livro se nos torna amigo querido,
confidente e conselheiro nas horas incertas e angustiosas da vida. Um livro
realmente bom não tem que dizer coisas novas; tem que dizer as coisas mais antigas
que existem, tão antigas como a humanidade, quase tão antigas como o próprio
Deus, uma vez que todas essas coisas antigas e eternas estão dentro de nós, em
estado dormente e potencial; o livro, quando realmente bom, é o misterioso condão,
a varinha mágica, o divino talitha-cumi que do longo sono tia potencialidade
inconsciente suscita esses elementos eternos para a luminosa vigília de uma
atualidade consciente.
Pascal é o locutor consciente do subconsciente da humanidade.
Há certas realidades que o homem atinge, não com um dos cinco sentidos, nem com
a inteligência, mas com uma faculdade que, por ignota, não tem nome próprio;
uns lhe chamam "coração"; outros, "intuição" ou "razão"; Bérgson fala num certo
"élan vital". No fundo, todas estas palavras tentam exprimir a mesma faculdade
anônima e inominável que preside aos mais profundos conhecimentos do homem(1).
O que se pode provar matemática ou analiticamente, por meio de cálculos ou
silogismos, são realidades relativamente simples e primitivas, mais próximas do
jardim de infância ou da escola primária do que da Universidade do nosso
verdadeiro Eu humano. As mais altas realidades estão para a inteligência, assim
como a luz solar está para o cego ou as vibrações sonoras estão para o surdo.
O homem comum considera a inteligência consciente como o mais perfeito
estado do ser humano, o que é, certamente, um grande erro, ou então uma
filosofia fartamente infantil. Há um estado superconsciente, que é
incomparavelmente mais perfeito do que o estado comumente chamado consciente. O
gênio, nos seus momentos mais fecundos e dinâmicos, não age de um modo
plenamente consciente; está "inspirado", dizemos, isto é, tomado de um "espírito",
de uma força cósmica, que não coincide simplesmente com o Eu histórico desse
homem, é algo que ultrapassa todas as barreiras da sua consciência intelectual. O
verdadeiro gênio é antes "atuado" do que "atuante"; é empolgado e arrebatado por
uma potência superconsciente e, quiçá, ultrapersonal.
60
(1) Pascal toma o termo “raison" (razão) como idêntico a "inteligência". Na realidade, a "Razão", o Logos dos pensadores
helênicos, é o espírito. O 4° Evangelho identifica o Logos com Deus, a Razão cósmica, o Espírito Eterno.
***
Há aqui no mundo homens altamente superconscientes, ou, como se diz
geralmente, intuitivos, visionários, videntes. Quase todos nós, em certos momentos
da vida, somo videntes ou intuitivos. Atingimos, então, realidades inacessíveis à
faculdade puramente intelectiva, ou aos sentidos corpóreos. O sofrimento contribui
poderosamente para a intensificação da vidência ou intuição. Também o jejum e a
oração dispõem a alma para esse estado superior, libertando-a, por assim dizer da
tirania da matéria, que lhe veda ou cerceia o poder intuitivo.
A intuição é como que uma antena ou um aparelho receptor dotado de extrema
sensibilidade; apanha vibrações que não afetam o aparelho grosseiro da consciência
puramente intelectiva. É fora de dúvida que a faculdade intuitiva é de uma finura
e receptividade muito superior à faculdade intelectiva.
Ora, sendo Deus e as coisas divinas algo essencialmente ultraintelectivo e
superconsciente, é natural que essas supremas realidades sejam mais facilmente
atingíveis por uma faculdade superconsciente, como é a intuição, do que por uma
faculdade consciente, como é a inteligência.
Pascal é um dos homens mais superconscientes da humanidade, no que revela
grande afinidade com seu mestre Agostinho. E tanto mais estranho é isto, à
primeira vista, quanto maior era o seu potencial consciente e intelectivo. De fato,
porém, não há antagonismo entre o poder intelectivo e o poder intuitivo. Esse
aparente antagonismo é devido à fragilidade da nossa compreensão. Deus é
infinitamente inteligente e infinitamente intuitivo ou racional.
Os "Pensées" movem-se essencialmente nesse ambiente superconsciente, por
mais intelectualmente conscientes que pareçam. São de fato "um apelo da razão
61
***
Pedira Pascal a Deus que lhe concedesse dez anos de saúde, a fim de escrever
uma apologia do Cristianismo; Deus, porém, como ele diz, lhe deu apenas quatro
anos de enfermidade. E, assim, não pôde terminar sua obra.
O que dessa obra existe como dissemos, são mais de mil pensamentos avulsos,
que, depois da morte de Pascal, foram encontrados no seu quarto, escritos em
bilhetes de tamanhos diversos e enfiados em cordéis.
Os testamenteiros espirituais do autor empreenderam o trabalho árduo de
sistematizar esses pensamentos e reduzi-los, quanto possível, a um todo uniforme e
lógico, o que só em parte conseguiram.
Ao darmos crédito ao editor Léon Brunschvieg, tencionava o autor dialogar o
seu livro, suposição esta que explica certas frases que parecem contradizer às idéias
e convicções que Pascal tinha em matéria de religião; provavelmente,
representavam esses tópicos ideias e objeções do adversário.
As primeiras edições dos "Pensées" apareceram "expurgadas", isto é, com
frases truncadas ou parcialmente modificadas, a fim de as tornar mais assimiláveis
para certos leitores. Mais tarde, porém, prevaleceu o bom senso, e apareceram
edições genuínas e autênticas, que reproduzem fielmente as idéias de Pascal.
***
Através de todo esse livro frisa o autor duas coisas: a grandeza e a pequenez
do homem. Em face da imanência de Deus no homem, é este divinamente
grande; em face da transcendência de Deus, é o homem indizivelmente pequeno. Ai
do homem que só experimentar em si o Deus imanente! Acabará num panteísmo
amorfo, em que pecado e santidade não o mesmo. Ai do homem que só crer no Deus
transcendente! Acabará na frialdade polar do desânimo ou desespero.
Feliz do homem que se sentir divinamente grande e humanamente pequeno! A
tensão dinâmica entre esses dois polos lhe dará força e arrojo para se elevar às
alturas do Cristo, do Deus-homem, do homem-Deus.
62
***
Três grandes lutas têm de sustentar o homem normal até chegar a uma
relativa quietação interior: l — a luta entre a matéria e o espírito; 2 — a luta
entre liberdade e autoridade; 3 — a luta entre o intelecto e a fé.
A primeira dessas guerras é de duração limitada; atinge a sua maior
veemência na juventude, quando as potências do corpo, em rápido avanço,
pretendem tomar de assalto o espírito e proclamar sobre ele a sua tirânica
ditadura. Mais tarde, equilibradas as duas forças e devidamente subordinadas
uma à outra, estabelece-se, geralmente, uma paz relativa, ou, pelo menos um estado
de "não-beligerância", como se diria modernamente, dando novo sentido a esta
palavra.
Muito mais intensa e prolongada é a segunda guerra, onde se digladiam a
liberdade e a autoridade, ou seja, o princípio de autonomia individual e o da
harmonia social. É inerente a todo ser vivo e, sobretudo, ao ser racional, a
tendência de querer afirmar ao extremo o seu Eu individual. Esse amor-próprio,
esse instinto egocêntrico é, de per si, necessário. É uma lei natural, e, por isto
mesmo, a vontade do autor na natureza. Nenhum ser se realizaria devidamente a si
mesmo, se não tivesse dentro de si esse veemente anseio de auto-afirmação. O
desejo de progressivo aperfeiçoamento leva todo ser a empolgar e centralizar
dentro de si tudo o que de valioso encontre em derredor. É o amor-próprio vital e
existencial de todos os seres em evolução.
Mas, como o indivíduo "A" não é o único ser da sua espécie, deve respeitar
os direitos do indivíduo "B", como se fossem seus próprios. Na esfera humana,
deve o Eu conceder ao não-Eu, ao Tu, ao Nós, o mesmo que reclama para si, ou,
como diz o divino Mestre, deve "amar o próximo como a si mesmo".
Afirmar o Eu à custa do Tu, é o grande pecado contra a ordem sagrada do
Universo. É um delito cósmico. Respeitar os, direitos do Tu, segundo a bitola do
Eu, é estabelecer a harmonia cósmica.
"Amar a Deus sobre todas as coisas, e o próximo como a si mesmo — nisto
consistem toda a lei e os profetas." (Jesus).
O amor que o Eu deve a Deus vai, por assim dizer, na vertical. O amor que o
Eu deve ao Tu vai na horizontal. Fazer isto é respeitar a ordem e harmonia do
mundo, é "praticar o bem", é ser "homem bom".
O homem bom traça a sua vontade paralela à de Deus manifestada na ordem
natural. O homem mau traça a sua vontade em linha oblíqua à de Deus, acabando
assim, fatalmente, por colidir com a reta eterna, num ângulo maior ou menor — e
esse desajustamento de linhas é injustiça, é desordem, é pecado.
Ora, a legítima autoridade humana tem por fim zelar por essa geometria
vertical-horizontal; impedir que se desloquem estas linhas essenciais da vida
humana: a linha do amor do Eu e a linha do amor do Tu e do Nós.
Mas o indivíduo de Ego hipertrofiado não aceita de bom grado essa limitação à
sua tendência, essa coação anti-egoística exercida pelo fator "autoridade". Procura,
por isto, eliminar a autoridade, ou furtar-se à sua ação, a fim de poder invadir
desimpedidamente a zona do Tu, cercear-lhe os direitos em benefício próprio,
eliminá-lo por completo, se necessário for, para o completo triunfo do Eu.
Nenhum Cain tolera de bom grado um Abel. A incorporação do Eu no plano do
cosmos, divino e humano, exige notável potencial de compreensão e virtude.
66
***
Entretanto, a luta suprema do homem chegado à sua maturidade espiritual
é outra. É a luta titânica de harmonizar o intelecto com a fé.
A luta entre matéria e espírito é individual.
A luta entre liberdade e autoridade é social.
A luta entre o intelecto e fé é metafísica. Atinge as últimas e mais profundas
raízes do ser humano, lá onde corre a linha divisória entre Deus e o homem,
entre o finito e o Infinito.
Não sei se na vida presente, é possível um definitivo tratado de paz entre essas
duas potências beligerantes. O único homem que até hoje, ao que sabemos, viveu
num ambiente de perfeita paz entre o intelecto e a f é foi Jesus, o Cristo. Nele não
aparece nenhum sintoma de angústia espiritual, de dolorosa problemática interior,
de conflito entre o mundo visível e invisível. E isto pela simples razão de não existir
nele a fé em sua forma especificamente humana, mas, sim, na forma sobre-humana
ou divina da visão. Isto nos dá esperança, e até certeza, de que, um dia, também nós
proclamaremos em nosso Eu a harmonia do intelecto e da fé. E esta visão
longínqua de paz nos preserva do desespero no meio da luta atual.
Para estabelecer unia relativa harmonia entre o intelecto e a f é, já na vida
presente, não basta provar que a fé não é contrária ao intelecto, como fazem os
bons apologistas. É uma tese verdadeira, porém negativa — e o homem não se
satisfaz com teses negativas.
Quanto mais o homem procura transformar em intuição o seu intelecto, tanto
mais diminui ele a distância entre o intelecto e a fé; porque, sendo a fé uma espécie
de botão ou germe da visão futura, tanto mais diminui a tensão hostil entre o
intelecto e a fé, quanto mais aquele se assemelhar à intuição, e quanto mais esta
se aproximar da visão.
O homem primitivo passou do Éden do inconsciente para o mundo do semi-
inconsciente intelectual; o homem cristificado passa dessa semiconsciência
intelectual para a pleniconsciência espiritual. A inteligência traça ziguezague,
serpentinas, meandros, mil e mil caminhos labirínticos, rumo à verdade - ao passo
que a fé não conhece propriamente caminho algum, só conhece o termo da
jornada, atinge esse termo, sem nenhum espaço intermediário; não calcula, não
analisa, não forja silogismos, não pondera argumentos pró e contra — a f é atinge o
seu alvo de um jacto, pela simples, ingênua e corajosa reafirmação vital daquilo
que Deus afirmou. A fé é por essência um ato de suprema audácia, quase uma
temeridade metafísica. O herói da fé joga-se às ondas bravias do mar, de um mar
ignoto e infinito. Não usa flutuadores nem salva-vidas. Não nada ao longo da
praia, prudentemente agarrado aos arbustos, como fazem os nadadores incipientes
e medrosos; perde de vista todos os litorais do continente dos sentidos e do
intelecto, e tanto maior é o arrojo do herói da fé, quanto mais veementes são as
tempestuosas vagas do oceano divino que o empolgam com sua irresistível
sedução.
Devido a essa sublime audácia é que a fé nos parece algo de irracional e anti-
intelectual. E ela é, de fato, o mais radical e veemente protesto contra certo
burguesismo pseudo-espiritual cuja virtude máxima é a "prudência". A fé é, à luz
dessa "prudência" burguesa, a maior "imprudência" que imaginar se possa. Por
isto agradecia Jesus ao Pai eterno o fato de ter revelado essas coisas divinas ao
"simples e pequeninos" e ocultado aos "doutos e entendidos". Estes últimos, por via
de regra, obstruem a tal ponto o caminho que nada mais enxergam do termo da
jornada; as montanhas dos seus argumentos intelectualistas lhes ocultam toda e
67
***
***
O homem, na vida presente, depois de harmonizar o intelecto e a f é pela
vivência, chega a um ponto em que a "ex-sistência" (existência) (1) das coisas
espirituais e divinas lhe parece antes uma "in-sistência". O que o convence dessas
supremas realidades não é tanto aquilo que está "ex" (fora), mas, sim, aquilo que
está "in" (dentro). Para esse homem, a "in-sistência" ou "imanência" é o fator
primário e decisivo, ao passo que a "ex-sistência" (existência) ou "emanência"
(transcendência) lhe é secundária e acidental.
(1) A palavra "existência", ou primitivamente "exsistência", é formada da partícula "ec" ou "ex" (fora), e
"sistere" (colocar) — isto é, "aquilo que está colocado para fora", ou seja, o que é visível e
cognoscívelmente acessível. Sendo que o homem intuitivo se guia de preferência pela realidade interna
68
das coisas ou de seu próprio Eu, poderíamos designar esse modo de ser e conhecer pela palavra "in-
sistência", no sentido de "realidade interna".
Cristianismo Político-
Hierárquico — Ou
Cristianismo Espiritual
Místico?
(1) Tomamos a palavra "profeta" em sua acepção primitiva de "intérprete" ou "locutor" de Deus — e
não no sentido posterior, de alguém que prediz eventos futuros. O papel essencial dos vates de Israel era receber
as mensagens divinas e transmiti-las ao povo, interpretando-as ao mesmo tempo, segundo o espírito de seu
Autor.
71
outro lado, também pode alguém cultivar com absoluta perfeição toda a liturgia da
igreja católica, e não ser bom cristão.
Cristianismo não é simplesmente ética, nem liturgia.
O Cristianismo é antes e acima de tudo, uma grande realidade sacral, um
fenômeno essencialmente divino que se projetou para dentro deste mundo, através
da pessoa de Jesus Cristo. Este caráter ontológico e metafísico do Cristianismo e
essencial à sua definição. Não é uma idéia, não é um símbolo, não é um sistema
ético, não é um complexo litúrgico — é uma estupenda REALIDADE, uma infinita
e divina SACRALIDADE.
O que Jesus disse a Nicodemos naquela memorável noite em Jerusalém é a
alma do Cristianismo: uma VIDA DIVINA. E o caminho para alcançarmos esta
vida divina chama-se RENASCIMENTO PELO ESPIRITO. Nascer quer dizer
receber a vida. Renascer significa nascer de novo, receber uma nova vida,
diferente da vida natural que o homem recebeu através de seus pais. "O que nasce
da carne é carne — mas o que nasce do espírito é espírito." O autor e a causa
eficiente dessa vida nova é, pois, o espírito de Deus, Deus mesmo. O Espírito de
Deus não pode dar senão vida espiritual e divina.
Receber essa vida divina e desenvolvê-la - isto é que é Cristianismo.
Assim como a criança nascitura nada pode contribuir para o seu nascimento,
dependendo inteiramente dos pais — assim também não pode o homem dar a si
mesmo essa vida espiritual e divina, que lhe é dada gratuitamente por Deus, como
autor, causa e doador único dessa vida. O homem pode, porém, aumentar essa
vida divina, assim como a criança, depois de nascer, pode aperfeiçoar a vida que os
pais lhe deram. O homem não deve praticar "boas obras", para receber essa vida
divina — que é absurdo - mas deve praticá-las, porque recebeu essa vida,
gratuitamente.
O Verbo eterno, Jesus Cristo, "veio ao mundo, e a todos os que o receberam
deu-lhes ele o poder de se tornarem filhos de Deus, os que nasceram, não do
sangue, nem do desejo da carne, nem do desejo do varão, mas de Deus".
Essa vida dada por Deus, vivida em Deus e para Deus - - é o que se chama
Cristianismo.
Pascal teve dessa vida divina uma profunda e inexplicável experiência pessoal,
naquela noite de 23 a 24 de novembro de 1654, quando escreveu numa folha de
papel, que levou consigo até a hora da morte, estas palavras: "Desde as dez e
meia até cerca da meia-noite... FOGO... Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de
Jacó... Não o Deus dos filósofos e dos cientistas... Certeza... Certeza...
Emoção... Alegria... Paz... Teu Deus será meu Deus".
Nunca revelou à pessoa alguma o que lhe aconteceu nessa noite luminosa, mas
foi a noite da sua definitiva conversão ao Cristianismo. Nessa noite nasceu o Pascal
cristão, quando o Pascal humano e intelectual já contava trinta anos.
Desde então viveu Pascal unicamente para esta grande realidade espiritual, para
esta infinita sacralidade divina. Desde então se tornou ele intransigente e não
tolerava nenhuma outra concepção do Cristianismo, por mais bela que parecesse e
por mais célebre que fossem os seus defensores. Para ele, ser cristão era ter
nascido de Deus e viver essa nova vida em Deus. Por este seu cristianismo
trabalhou, lutou e sofreu Pascal. Por amor dele arrostou os ódios de uma
poderosa Ordem religiosa e aceitou todos os anátemas que lhe lançaram os que
tinham outra ideia do cristianismo.
Bem sabia Pascal que não podia comunicar a sua experiência íntima a quem
não tivesse tido experiência igual; sabia que, teológica e hierarquicamente, seria
73
derrotado — mas sabia também que da firme e sincera afirmação de uma grande
experiência cristã resultaria maior benefício espiritual para a humanidade do que
da elaboração de eruditas teses sobre Cristo e o Cristianismo.
Experiência cristã — é disto que o mundo de hoje precisa. Não é a teologia que
o pode cristianizar. Ninguém se converte, ninguém se cristianiza intimamente,
ninguém renasce em Deus, pelo fato de ouvir belos sermões ou ler esplêndidos
livros sobre as coisas divinas. Se o homem não tiver um encontro pessoal com
Deus, uma experiência religiosa individual, íntima, profunda, incomunicável,
mística — não é cristão, nem religioso, ainda que recite os mais ardentes atos de
fé e acompanhe todos os atos culturais da sua religião. Não renasceu do espírito e
para o espírito.
A cristianização da humanidade é, em última análise, a cristificação do
homem, e esta é uma questão de experiência individual. Não há conversão de
massas — só há conversão de indivíduos. Mas um indivíduo realmente cristificado
arrasta consigo milhões de outros; basta que possua suficiente "voltagem"
espiritual.
A maior energia do Universo não está na veemência da tempestade ou dos
terremotos, não está em erupções vulcânicas ou na violência do raio — a maior
energia do Universo está dentro de um átomo invisível. Quem conseguir penetrar
dentro desse Nada infinito terá nas mãos a energia atômica, que excede toda e
qualquer outra forma de energia.
Quando o homem vive o seu encontro pessoal com Deus, quando Deus penetra
no íntimo centro do Ego humano — então se dá a grande "explosão", uma espécie
de "desintegração atômica". Então abre-se o homem, desfaz-se de si mesmo,
"desegofica-se", diviniza-se, integra-se em Deus...E nesse processo de
"desegoficação" e divinização libertam-se todas as energias latentes do homem. E,
uma vez que esse homem deixou de pertencer ao Eu, passando a ser de Deus, passa a
ser também de todos os filhos de Deus, e o mundo inteiro recebe das energias
libertadas por essa explosão do átomo humano...
Pascal é um excelente modelo para todo homem que queira, de fato, viver o
seu cristianismo e encontrar-se pessoalmente com Deus...
74
Diluindo-se em Deus...
***
Quando o homeopata dilui um grama de essência vegetal em dezenas, centenas
ou milhares de litros de água ou outro líquido — que é que fica da primitiva
seiva vegetal? Será possível afirmar que, numa determinada grama de água tirada
desse enorme reservatório ainda exista algo da primitiva essência terapêutica?
Praticamente, diríamos nada existe. Nem uma molécula, nem um átomo sequer.
E, no entanto, é sabido que essa solução exerce poderosos efeitos. Existe mesmo o
princípio: quanto mais se diluir a primeira essência vegetal, tanto mais poderoso
é o seu efeito. O que nos faz suspeitar que não é propriamente a matéria que produz
efeito curativo, mas algo imaterial, digamos, a energia, o elemento dinâmico que
na matéria existe, ou que é, possivelmente a própria essência da chamada matéria.
O que cura é a energia, dizem os homeopatas.
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Nem isto é bem exato. O que cura o corpo é unicamente a alma. Só pode
reconstruir o corpo quem o construiu. Ora, desde o momento da concepção, é a
alma que constrói o seu corpo. Nenhum outro fator é capaz disto. Por isto, é
certo que também é a alma o único fator capaz de reconstruir o seu corpo, quando
parcialmente destruído pela moléstia, ou mesmo quando totalmente destruído pela
chamada morte. A ressurreição da carne, de que as religiões fazem um dogma — e
de que os analfabetos do espírito fazem escárneo — é um simples postulado da
harmonia do universo. Seria absurdo negar à alma, essencialmente construtora, o
poder reconstrutor. Entretanto, não vamos tratar aqui desse assunto tão
importante e sedutor. Limitemo-nos a encarar o fato inegável de que é a alma, e
não o "remédio" que cura o corpo. O "remédio", é certo, tem a sua função, que é a
de desobstruir o caminho para que a alma possa passar e desempenhar a sua
atividade reconstrutora; pois, não raro, a insipiência do homo sapiens obstrui esse
caminho, impedindo o livre trânsito da alma e provocando, assim, distúrbios
orgânicos.
Quanto menos material for o "remédio", quanto mais energético e dinâmico,
tanto mais se aproxima ele da natureza da alma, e tanto mais seguramente pode
agir e desempenhar o seu trabalho de precursor e desobstruidor.
Mas, a que vem essa digressão terapêutica?
Perdoe-se-nos essa alegoria, um tanto grosseira e ingênua, destinada a
ilustrar tão elevado assunto como o que estamos versando.
A essência duma seiva vegetal, diluindo-se num meio absorvente, não perde
as suas propriedades características; pelo contrário, mais ainda acentua, pela
diluição, essas propriedades. De modo análogo, não produz a diluição do
pequeno Eu humano no oceano imenso do Tu divino uma destruição da
consciência individual. Antes potencializa a consciência humana pela imersão na
consciência divina. Quanto mais profunda e intensamente a alma se "perder" em
Deus, tanto mais salvará e aumentará a sua consciência individual. Se assim não
fosse, se o ingresso e a submersão na atmosfera divina não aumentasse e
superpotencializasse a natural capacidade da alma consciente, como poderia o ser
humano resistir a essa tempestade divina, sem sucumbir e ser aniquilada?
Praticamente, não deve a alma humana, na sua contemplação espiritual,
recear, de modo algum, que possa exceder dos limites, que possa diluir-se de fato
e afogar-se em Deus, ao ponto de se tornar inconsciente e, portanto, inexistente
como indivíduo humano. É impossível que tal coisa aconteça. Consciência será
sempre consciência, e não chegará nunca a ser inconsciência. Onde começa a
consciência começa a indissolubilidade, a imortalidade do ser. Ser que uma vez se
focalizou em consciência nunca mais poderá desfocalizar-se em inconsciência.
O estado do espírito humano integrado em Deus, longe de ser inconsciência, é
antes superconsciente, representando um estado consciente na mais alta potência.
Na vida atual, devido à nossa fraqueza de compreensão, o estado de consciência
intelectual nos parece ser o estado mais perfeito do ser humano. A
superconsciência, porém, se revelará, mais tarde, como o mais perfeito grau da
consciência humana. Um Ego despersonalizado seria um não-Ego; mas um Ego
divinizado ou integrado em Deus, bem merece o nome de super-Ego.
***
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Para que essa misteriosa integração em Deus atinja o máximo grau da sua
intensidade, na vida presente, uma coisa é necessária e absolutamente indispensável:
que a alma se reduza à expressão mais simples, que solva todos os seus complexos
e todas as suas complicações mundanas e egoísticas; que revogue, neutralize e anule
todas essas mil e uma ramificações através do mundo profano e antidivino; que
desnasça, por assim dizer; que estabeleça dentro de si um grande e silencioso
vácuo. Assim como aquela essência vegetal sã se integra plenamente na água
circunfusa, depois de se dissolver e como que neutralizar a si mesma, parecendo
aniquilar-se, assim também só poderá a alma fluir livremente para dentro do
oceano divino depois de se "desegoficar" e revogar todos os seus compromissos
egoísticos, uma vez que essa integração na divindade é uma espécie de
recosmificação e um regresso à primeira fonte de todas as coisas.
Sem amor não há redenção, porque sem amor não há integração em Deus.
Todo egoísmo é desamor e antiamor — portanto, irredenção.
O homem que atingiu o seu centro espiritual e ali encontrou a Deus e o reino
dos céus, é o único homem que pode realmente fazer bem a seus semelhantes.
Da periferia não se pode atuar eficazmente sobre a periferia; só do centro é
possível uma atuação eficiente sobre a zona periférica. E assim resulta o estranho
paradoxo, que o homem que se isolou temporariamente de seus semelhantes por
amor a Deus é o único que pode realmente ajudar a seus semelhantes —
porque age de dentro para fora, do centro para a periferia...
Se é possível, entre o homem e Deus, uma união íntima só é ela possível, como
dizíamos, sobre a base de uma absoluta vacuidade da parte do homem. Onde não
existe essa vacuidade, não existe a necessária polaridade, sem a qual não é possível
união alguma. Só se pode unir o que é unível; uníveis, porém, só são dois seres
heterogêneos, se existe essa polaridade ou potencialidade complementar.
Entretanto, não basta uma vacuidade puramente passiva ou negativa. Esta é
apenas condição indispensável para uma vacuidade ativa e positiva, uma
misteriosa "sucção" entre a vacuidade e a plenitude. Com outras palavras, é
necessário que o homem, evacuado do Eu, sinta o desejo da plenitude de Deus. A
consciência de uma grande vacuidade, sem a possibilidade e esperança de uma
grande plenitude, seria um desastre para o homem, um envenenamento da sua
personalidade, uma verdadeira catástrofe metafísica. O "horror vacui", de que fala
a ciência antiga, seria aqui um fato, e seria um vácuo literalmente mortífero.
Em todo homem normal, a consciência do seu vácuo gera ao mesmo tempo
uma grande receptividade, que não é senão a capacidade e o desejo duma
plenitude. Esse delicioso tormento, essa angustiosa inquietude metafísica, essa feliz
infelicidade que todo homem pensante percebe dentro de si, nos melhores e mais
sinceros momentos da sua vida - que é isto senão a sensação duma grande
vacuidade e a consciência duma plenitude possível e em vias de realização?
Digo, "em vias de realização", porque, na vida presente, talvez nunca venha a
ser de todo real a divina plenitude a derramar-se na humana vacuidade. Na
hipótese mais feliz, é um contínuo fluir e refluir, um enchimento parcial e
fragmentário, sem nunca chegar a um termo definitivo. A capacidade espiritual
da alma é, de per si, ilimitada. Por outro lado, a abundância das torrentes divinas
também é sem limite. Possivelmente, quando a alma estiver liberta do corpo,
chegará essa torrente divina a encher toda a potencialidade receptiva do espírito
humano, comunicando-lhe beatitude perfeita e absoluta. No estado presente, apesar
da ilimitada capacidade potencial do espírito, não é ainda possível esse enchimento
cabal e — coisa estranha! — em vez duma progressiva beatitude que o crescente
fluir da divina torrente deveria produzir no homem espiritual, aumenta nele o
sofrimento na razão direta da sua abundância. Esse sofrimento não é,
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***
A alma, uma vez liberta da ilusão do pseudo-Eu, alargará quase ao infinito os
limites da sua capacidade receptiva. Por vezes, já na vida presente, é tão grande a
abundância divina que a alma humana se sente como que fora do corpo; "êxtase"
lançasse com tamanha veemência para dentro do leito da alma humana
devidamente evacuada que transbordasse, impetuosa, por todos os lados, alagando
as margens e arrastando consigo tudo quanto encontra em sua passagem. Êxtase!
Posto fora de si mesmo...
***
Pascal tinha uma noção extraordinariamente clara da necessidade dessa
evacuação do Eu como condição indispensável para o advento da plenitude de
Deus. A tal extremo chegou a sua "humildade" - nome comum que se dá a essa
vacuidade — que não admitia homenagens da parte de quem quer que fosse.
Qualquer homenagem lhe parecia mentira e insinceridade para consigo mesmo.
Se os escritos de Pascal não revelam arroubos místicos, os últimos anos da
sua vida são uma grande mística. Chega a dizer que o estado natural do cristão é a
enfermidade. Os últimos dois anos de sua vida, de 37 a 39 anos, são de uma quase
completa inatividade; não lhe permitia a saúde precária o menor esforço físico ou
intelectual. Só Deus sabe o que esse homem, dotado de uma extraordinária dinâ-
mica natural, sofreu com essa forçada passividade! Entretanto, ninguém se lembra
de ter ouvido dos lábios de Pascal a menor queixa ou o mais ligeiro assomo de
impaciência.
Estabelecido o grande vácuo do Eu, integrou-se esse homem em Deus, e
poderia em verdade dizer com o apóstolo Paulo: "Já não sou eu que vivo - - o
Cristo é que vive em mim"...
Esse fundo místico da vida de Pascal, vai pelas entrelinhas da sua grande obra, e o
leitor que saiba de experiência própria o que significa "integrar-se em Deus"
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Nota:
O epílogo da 2ª edição foi retirado pelo autor.
A antologia contendo 100 pensamentos de Pascal da 3ª edição não foi
incluída no presente trabalho. Caso o leitor se interesse contate com Iris Helena
Gomes que será enviado um opúsculo com o referido texto.
Não foram incluídas as ilustrações contidas na 3ª edição. É óbvio: elas
dificultariam a impressão.
Email: irishgomes@ig.com.br
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PASCAL
COLEÇÃO: BIOGRAFIAS
Paulo de Tarso
Agostinho
Por Um Ideal - 2 vols. (autobiografia)
Mahatma Gandhi
Pascal
Jesus Nazareno - 2 vols.
Myriam
Einstein, o Enigma da Matemática
O Profeta das Selvas - Vida e Obra de Albert Schweitzer (Prefácio e coordenação)
OPÚSCULOS
Aconteceu entre 2000 e 3000
Ciência, Milagre e Oração
Rumo à Consciência Cósmica
Saúde e Felicidade pela Cosmo-Meditação