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A Inviolabilidade do Lar

a Dimensão
(In)Constitucional
do Flagrante Oriundo
Exclusivamente de
Denúncia Anônima

1
INTRODUÇÃO
O presente escrito tem uma origem prática.
Atuando como juiz em uma das Varas Criminais da Zona Norte da Comarca de
Natal, começamos a nos deparar com uma série de prisões em flagrante por tráfico de drogas,
todas seguindo um mesmo padrão, isto é, oriundas de denúncias anônimas. Ouvira falar da
existência de um grupo de extermínio integrado por policiais e de extorsões, torturas e outros
abusos policiais nos referidos flagrantes, mas nenhuma informação concreta nos chegava.
Até que dois fatos nos chamaram atenção. Um dos policiais que mais realizava
esses flagrantes, que tanto a Defensoria Pública denunciava serem forjados, foi morto sob a
suspeita de estar extorquindo um traficante da região, e um companheiro seu de batidas foi
preso à mesma época sob a acusação de integrar um grupo de extermínio.
Paralelamente a isso, deparamo-nos com um dramático caso de um rapaz que
denunciou na televisão a existência de abusos da polícia nos bairros mais carentes e nominou
um dos policiais que invadiram sua casa indevidamente, só porque ela ficava na mesma vila
em que procuravam um suspeito de tráfico. Contou ele na televisão que os policiais entravam
à força nas casas, a qualquer hora, e ameaçavam quem reclamasse. Dias depois policiais, sob
a alegação de que teria havido uma denúncia anônima contra o rapaz, foram a casa dele,
teriam encontrado maconha e crack, e o prenderam.
Ao interrogá-lo, fomos saber dos inúmeros abusos que esse jovem rapaz sofreu
antes e durante a prisão. Percebemos que ele foi transferido, sem motivos aparentes, diversas
vezes, nos dois meses que passou preso, segundo ele, como forma de causar ainda mais terror
à família e para facilitar espancamentos. Seu interrogatório foi um dos mais convincentes que
já tínhamos visto nos, até então, dez anos de magistratura. O Ministério Público, em suas
alegações finais, não só pediu a absolvição como também solicitou a remessa de peças para
investigar a tortura e o abuso de autoridade contra o acusado.
06/06/2011
Demo-nos conta, então, da possibilidade de que tais fatos pudessem estar
acontecendo rotineiramente. E passamos a olhar com mais cautela os casos semelhantes de
Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior
flagrante nessas mesmas condições de preexistência de denúncia anônima.
Mas, infelizmente, a prática, na Justiça estadual, tem sido a de ter pouca atenção
para essa situação. Não para menos, o crime em que mais se atribui tais excessos é o de
tortura (nem vamos nos referir ao abuso de autoridade, pois a lei lhe deu penas tão pequeninas
que, na verdade, o chancelou como método de atuação das forças policiais). E as estatísticas

2
carcerárias do Rio Grande do Norte (incluindo a Justiça |Federal), existentes no INFOPEN, do
Ministério da Justiça, em dezembro de 2010, são as seguintes1:
• População carcerária: 6.123
• Homicídio Simples e Qualificado: 745
• Roubo Simples e Majorado: 986
• Furto: 555
• Peculato: 8
• Corrupção Passiva: 0
• Corrupção ativa: 0
• Tráfico: 1.001
• Tortura: 1
Essa plena impunidade só pode gerar tranquilidade no agir abusivo. De outro
tanto, atribuo os excessos à permissividade do senso comum teórico em não investigar e nem
punir os infratores, uma vez que os alvos são pessoas das camadas mais pobres da população,
os chamados subcidadãos, como explicarei mais abaixo. E o que é o senso comum teórico?
A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO – O SENSO COMUM DOS JURISTAS
O chamado “senso comum teórico” é o discurso que domina o imaginário dos
juristas, de cunho acrítico e sem conteúdo investigativo. É esclarecedor o apontamento feito
por ARTUR STAMFORD quando diz que
“o que nos interessa é que o exercício da atividade profissional produz
conhecimentos tão ideológicos quanto os do senso comum leigo, pois a prática
forense produz uma terminologia e uma forma de atuar própria do cotidiano
profissional. Esse conhecimento não é um saber científico, principalmente por se
preocuparem em justificar e não explicar a realidade de sua atividade profissional
(Souto, 1987: 42). A este senso comum, Warat chama ‘senso comum teórico dos
juristas’, distinguindo-o do saber científico, é que ‘o saber jurídico que emana da
necessidade de justificar a ordem jurídica, e não de explicá-la’ (Warat, 1993: 103).
O termo teoria empregado nesta expressão provoca uma confusão quanto ao
sentido deste termo. A origem desta confusão está em tratar por teórico o
conhecimento de senso comum de um cotidiano profissional. Para evitá-la basta
considerar que teoria é resultado de especulações científicas, não se referindo às

1 http://portal.mj.gov.br/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?
DocumentID={3BC29926-7CDA-4485-815E-CE140647DC9E}&ServiceInstUID={4AB01622-7C49-420B-
9F76-15A4137F1CCD}
3
informações provenientes de um cotidiano profissional, por isso a expressão
‘senso comum forense’”2.
Inseridos que estão nesse palmilhar rotineiro, o imaginário dos nossos juristas
ainda está povoado da hermenêutica clássica, mergulhados que estão num dogmatismo
ultrapassado – como se refere LENIO LUIZ STRECK3 –, surgindo daí pretensões
interpretativas de encontrar “o espírito do legislador”, “a vontade do legislador”, “o espírito
da lei”, “a vontade da norma”, “a intenção da lei”. Trata-se de uma visão cega e amorfa do
Direito, apegando-se à lei em si mesma, como se ela fosse a tábua de salvação da
interpretação dos textos jurídicos. Essa visão quer transformar a própria norma em um oráculo
que responderá por si só, “pessoalmente”, à indagação interpretativa contida em um caso
concreto.
Com a Constituição não ocorre diferente. Pensa-se ser ela apenas mais uma “lei”,
sem compreender sua força normativa e a supremacia hierárquica dentro do sistema. Não
raras vezes o que o operador do direito faz é interpretar a Constituição de acordo com os
códigos ou mesmo as súmulas de tribunais superiores.
Na prática jurídica, o caminho foi o de ir pelo dogmatismo, com raras esparsas
exceções.4 O discurso do bem contra o mal e dos homens de bem contra os marginais termina
permitindo aberturas para que o utilitarismo contra as camadas desfavorecidas se imponha.
Existe uma Constituição, mas ela só vale até a subida do morro ou a entrada das favelas. O
discurso perverso e ideologicamente anestesiado causa muita opressão aos desfavorecidos.
Isso se dá porque o Brasil, em sua história, não teve o costume, em razão dos
diversos momentos em que se implantaram modelos ditatoriais, de fazer lume à Constituição
no momento de interpretar/aplicar o direito. E aproveito para fazer uma reflexão: “a vida só
pode ser compreendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se para frente”
(KIERKEGAARD). Apenas cinco anos antes da nossa Carta atual o Brasil vivia um Regime
Ditatorial.
Já se passaram vinte e um anos desde o advento da Constituição Federal.
Contudo, a mesma geração de juristas que hoje a (des)aplica, em sua boa parcela, nem cresceu
e nem foi educada sob o manto de um Estado Democrático de Direito (segundo dados
recentes de pesquisa feita pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB –, a idade

2 STAMFORD, Artur. E por falar em teoria jurídica, onde anda a cientificidade do direito? Disponível em:
http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=415. Acesso em 04.04.2006.
3 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 40.
4 Exemplo de decisão de vanguarda, e que a utilizamos em nossos julgamentos também, foi a lavrada pelo
colega catarinense Alexandre Morais da Rosa: BRASIL. PODER JUDICIÁRIO DE SANTA CATARINA.
COMARCA DE FLORIANÓPOLIS. Autos n° 023.09.039518-5. Disponível em
http://alexandremoraisdarosa.blogspot.com/2009/09/denuncia-anonima-e-flagrante.html. Acesso em
22.04.2011.
4
média do magistrado em atividade é de 44,4 anos)5. Ademais, a sua formação acadêmica
também foi conduzida, na sua ampla maioria, por docentes que não tiveram a oportunidade de
dialogar e debater criticamente durante pelo menos vinte anos. Um exemplo dessa situação foi
o AI-5, quiçá, nas palavras de STRECK6, o instrumento mais draconiano da história
brasileira.7 Assim, não estavam acostumados, ou liberados, nos bancos de faculdade, a fazer
juízos de constitucionalidade sobre os temas que eram explanados aos graduandos de então. E
esse desapego à filtragem hermenêutico-constitucional gerou (e gera) graves problemas
quando da aplicação do Direito pelo Judiciário de hoje.
Dizemos isso porque no contexto pós-constitucional de 1988, para que uma lei
ordinária federal seja promulgada, precisa passar, necessariamente, por três juízos a priori de
controle de constitucionalidade: pelas Comissões de Constituição e Justiça de cada uma das
Casas Legislativas (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, na Câmara dos
Deputados, e Comissão de Constituição, Justiça e Redação, no Senado). Depois, pelo juízo de
constitucionalidade (veto) do chefe do Executivo.
Já sob o manto de um regime totalitário, como foi o caso da época da publicação
do Código de Processo Penal em questão, não houve isso. O Executivo publicava as normas
(e dava a exeqüibilidade) como queria. Aliás, nesse tempo (1941), sequer a Constituição
“Polaca” havia erigido o Tribunal do Júri a preceito constitucional, consoante o já predito na
evolução legislativa.
Desta forma, tornou-se costume fazer um juízo de legalidade estrita dos fatos, sem
consciência de que antes de assim proceder, necessário se faz verificar a validade da norma
interpretada. Vigência não é o mesmo que validade. Vigência é o aspecto formal do texto, sua
inserção no ordenamento, depois de cumpridas as etapas procedimentais (formais)
legislativas. Há, nesse caso, como apregoa LUIGI FERRAJOLI, a necessidade de um juízo de
fato. A validade, por sua vez, deve ser vista segundo um juízo hermenêutico-constitucional,
isto é, a aferição do texto diante dos valores apregoados pela Carta Magna.

5 SADEK, Maria Tereza (org.). Pesquisa AMB. Disponível em:


<http://www.amb.com.br/portal/docs/noticias/pesquisaamb2005.pdf>. Acesso em: 01.05.2006.
6 Ob. cit., p. 24.
7 Fazemos questão de destacar alguns pontos do AI-5, de 13 de dezembro de 1968: O ditador poderia decretar
o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, podendo
legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos
Municípios. Poderia suspender os direitos políticos dos cidadãos, cessar o foro por prerrogativa de função,
suspender do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais, proibir manifestações públicas sobre
assunto de natureza política, aplicar liberdade vigiada, proibição de freqüentar determinados lugares e
determinar que alguém ficasse em domicílio determinado e vetar o exercício de quaisquer outros direitos
públicos ou privados. Ficaram suspensas a vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de
exercício em funções por prazo certo. Podia o ditador demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade
qualquer servidor civil ou militar, ou agente político. Suspendeu a garantia de hábeas corpus, nos casos de
crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Para fechar
em grande estilo, excluiu de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com o AI-5 e
seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.
5
Enquanto o juízo de vigor é de fato, o juízo de validade é de valor. Nos regimes
autoritários não há essa distinção, aliás, não se dá essa indagação.
Quando da interpretação/aplicação do Direito a um caso concreto, cumpre ao
Poder Judiciário, órgão diverso do qual emanou a lei vigente, analisar, à luz dos valores da
Constituição, a perfectibilidade daquela em relação a essa para, só então, admitir-lhe válida
para o caso posto em discussão.8
Em reforço, a Constituição, em um Estado Democrático de Direito, deve ser vista
não somente como um sistema de valores a serem perseguidos pelo legislador ordinário,
quando da feitura das leis, mas sim tal qual instrumento de transformação social, atuando
sobre a realidade presente e sobre todas as normas vigentes. E a Carta Maior se coloca no
vértice superior desse sistema jurídico, a quem as normas abaixo deverão se conformar
quando da interpretação/aplicação do direito.
Interessante destacar as lições de EROS GRAU. Ele diferencia texto de norma,
sendo aquele o produto do legislador e esta o resultado do processo interpretativo. Salienta e
adverte que o processo de interpretação e aplicação do direito não é um ato uno. Interpreta-se
ao aplicar o Direito. E ao fazê-lo, se faz por um todo, entendendo que a norma (produto da
interpretação) extraída do texto está inserida em todo um sistema. Não se pode interpretar,
assim, em tiras. E conclui:
“A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sempre, em
qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele – do
texto – até a Constituição. Um texto de direito isolado, destacado, desprendido do
sistema jurídico, não expressa significado algum”.9
E nesse ponto se faz de boa acolhida a crítica de DALMO DE ABREU
DALLARI:
“Ainda é comum ouvir-se um juiz afirmar, com orgulho vizinho da arrogância,
que é ‘escravo da lei’. E com isso fica em paz com sua consciência, como se
tivesse atingido o cume da perfeição, e não assume a responsabilidade pelas
injustiças e pelos conflitos humanos e sociais que muitas vezes decorrem de suas
decisões. Com alguma consciência esse juiz perceberia a contradição de um juiz-
escravo e saberia que um julgador só poderá ser justo se for independente. Um
juiz não pode ser escravo de ninguém nem de nada, nem mesmo da lei.”10

8 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2002, p. 701-702.
9 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros,
2003, p. 40.
10 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. 2ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 82.
6
E ao interpretar o texto e extrair a norma dele, o intérprete já antecipa o sentido do
que conhece da Constituição. O juiz se transmudou de, como disse Montesquieu, la bouche
de la loi (a boca da lei) para la bouche du droit, a boca do Direito (WILLIS SANTIAGO
GUERRA FILHO).11
Arrematando, uma baixa compreensão do sentido da Constituição só pode levar a
sua baixa aplicação. E está certo LENIO STRECK quando diz que as condições para que o
intérprete possa compreender um texto implicam – sempre e inexoravelmente – na existência
de uma pré-compreensão (seus pré-juízos) acerca da totalidade (que sua linguagem
possibilita) do sistema jurídico-político-social.12
Além disso, o “senso comum teórico”, que para nós melhor soaria como sendo
senso comum da práxis jurídica,13 peca por partir de uma premissa atemporal. É preciso
compreender, entretanto, que o texto jurídico é elaborado em um determinado momento
histórico, e sob o auspício de uma certa realidade jurídica, política, econômica e social. Daí
que durante o processo de interpretação/aplicação do direito devem o intérprete e o
destinatário da norma por excelência – que é o julgador –, entender essa inevitável relação. E
é nesse momento em que entra a força normativa dos princípios constitucionais.
A Constituição Federal foi prodigiosa ao determinar, no parágrafo primeiro do
artigo 5º, o seguinte: “§ 1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata”. Portanto, em relação a esses princípios a aplicabilidade imediata e a
eficácia plena assumem a condição de regra geral, obrigando-se o Poder Público a dar-lhes a
interpretação que mais eficácia possa dar a tais princípios. Como assevera IGON
WOLFGANG SARLET, “a qualificação de determinados direitos como fundamentais decorre
justamente de sua especial relevância na ordem constitucional, que assume uma dimensão
simultaneamente material e formal”.14
Os princípios constitucionais são a síntese dos valores mais relevantes da ordem
jurídica. A Constituição é um sistema de normas, e não um mero amontoado de preceitos que
se justapõem. Não há, assim, no seu nascedouro, desarmonia no sistema de um texto
constitucional, sendo repelida no Brasil a declaração de inconstitucionalidade de normas
constitucionais originárias. Mas isso não quer dizer que não haja uma tensão entre eles. Ao

11 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiesis na Sociedade Contemporânea. Porto Alegre, Livraria do
Advogado, 1997, p. 37.
12 STRECK, Lenio Luiz. Da Proibição de Excesso (Übermassverbot) à Proibição de Proteção Deficiente
(Untermassverbot): de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. (Neo)
Constitucionalismo: ontem, os códigos hoje, as constituições. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica.
Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, n. 2, 2004, p. 245.
13 STAMFORD, Artur. E por falar em teoria jurídica, onde anda a cientificidade do direito? Disponível em:
http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=415. Acesso em 04.04.2006.
14 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4ª ed. rev. atual. e ampl. Livraria do
Advogado: Porto Alegre, 2004, p. 265.
7
contrário, isso é próprio e particular de um sistema dinâmico como o Direito, que está sempre
em contínua compatibilização com a realidade. Assim, pode ocorrer de princípios
constitucionais se oporem ou entrarem em rota de colisão.15 Mas tal fato se dá quando de sua
inserção no mundo da vida, quando de sua aplicação/interpretação a um caso concreto.
E leciona o hoje Ministro EROS GRAU que
“O momento da atribuição de peso maior a um determinado princípio é
extremamente rico, porque nele – desde que se esteja a perseguir a definição de
uma das soluções corretas, no elenco das possíveis soluções corretas a que a
interpretação jurídica pode conduzir – pondera-se o direito em seu todo, desde o
texto da Constituição até aos mais singelos atos normativos, como totalidade.
Variáveis múltiplas, de fato – as circunstâncias peculiares do problema
considerado – e jurídicas – lingüísticas, sistêmicas e funcionais – são, então
descortinadas. E, paradoxalmente, é precisamente o fato de o intérprete estar
vinculado, retido, pelos princípios, que torna mais criativa a prudência que
pratica”.16
Já JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO acentua como colisão autêntica de
direitos. E diz que ela ocorre quando o exercício por parte do seu titular colide com o
exercício do direito fundamental por parte de outro titular. E exemplifica casos em que há
conflitos entre o direito à vida e o exercício da ação penal, e entre o direito à vida e a gravidez
resultante de estupro. E continua:
“Os exemplos anteriores apontam para a necessidade de as regras do direito
constitucional de conflitos deverem constituir-se com base na harmonização de
direitos, e, no caso de isso ser necessário, na prevalência (ou relação de
prevalência) de um direito em relação ao outro. Todavia, uma relação de
prevalência, mas só em face das circunstâncias concretas e depois de um juízo de
ponderação se poderá determinar, pois só nestas condições se poderá dizer que um
direito tem mais peso do que outro (D1 P D2)C, ou seja, um direito (D1) prefere
(P) outro (D2) em face das circunstâncias do caso (C)”.17
De volta ao caso que originou este escrito, cabe trazer à baila a reflexão de JOSÉ
EDUARDO FARIA sobre o Poder Judiciário em seu habitus. Diz o autor que há dois fatores
que agravam a situação atual:
“O excessivo individualismo e o formalismo na visão de mundo: esse
individualismo se traduz pela convicção de que a parte precede o todo, ou seja, de
15 GRAU, 2003, p. 48.
16 Ob. cit., p. 50.
17 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. 2ª reimpressão.
Coimbra: Almedina, 2003, p. 1274.
8
que os direitos do indivíduo estão acima dos direitos da comunidade; como o que
importa é o mercado, espaço onde as relações sociais e econômicas são travadas, o
individualismo tende a transbordar em atomismo: a magistratura é treinada para
lidar com as diferentes formas de ação, mas não consegue ter um entendimento
preciso das estruturas sócio-econômicas onde elas são travadas. Já o formalismo
decorre do apego a um conjunto de ritos e procedimentos burocratizados e
impessoais, justificados em norma da certeza jurídica e da ‘segurança do
processo’. Não preparada técnica e doutrinariamente para compreender os
aspectos substantivos dos pleitos a ela submetidos, ela enfrenta dificuldades para
interpretar os novos conceitos dos textos legais típicos da sociedade industrial,
principalmente os que estabelecem direitos coletivos, protegem os direitos difusos
e dispensam tratamento preferencial aos segmentos economicamente
desfavorecidos” 18.
O Direito não pode aceitar e nem permitir que agentes das forças policiais, a
pretexto de investigarem a ocorrência de crimes, a pretexto de cumprir a lei, violem-na.
São tantas as denúncias de ilegalidades nos flagrantes denunciadas nos meios de
comunicação, corroboradas pelos testemunhos que colhemos, que começamos, como já dito, a
nos questionar acerca da legalidade, para não dizer constitucionalidade das inúmeras prisões e
apreensões em virtude de denúncias anônimas.
E passamos a observar que o script era, quase que invariavelmente, o mesmo:
dizia a polícia que recebeu denúncia anônima de que determinada pessoa estava praticando
algum crime. Dirigiam-se ao local e visualizavam o cidadão entrar ou sair de casa, geralmente
correndo. Numa situação de suspeita, entravam na casa à força, pois desconfiavam da
movimentação do suspeito. E lá eram encontradas armas ou drogas. Com isso, prendiam o
pretenso suspeito e o encaminhavam à delegacia.
Diz a Constituição Federal, em relação à questão: Art. 5º Todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: (...) XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém
nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou
desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; (...) LXI -
ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de
autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime
propriamente militar, definidos em lei; (...) LIV - ninguém será privado da liberdade ou de

18 FARIA, José Eduardo. O Poder Judiciário no Brasil. Paradoxos, desafios, alternativas. Brasília: Conselho
da Justiça federal, 1995, p.14 e 15.
9
seus bens sem o devido processo legal; (...) LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas
obtidas por meios ilícitos.
Nesse momento, para nós urge identificar qual tipo de processo penal queremos
praticar, e quais direitos estaremos nós, enquanto agentes do Poder encarregado da guarda da
Constituição, garantindo.
Com efeito, o trabalho de um juiz não em muito diferencia do executado pelo
historiador. Como não presenciamos os fatos, reproduzimos em momento posterior, numa
cadeia dos significantes que elegemos como os mais importantes para produzir uma imagem
mental do ocorrido, a historicidade dos fatos, para concluirmos qual a repercussão jurídico-
penal que a eles devemos atribuir.
Para isso, precisamo-nos valer das provas colhidas nos autos, provas essas que
devem repercutir um juízo de convencimento, após a filtragem hermenêutico-constitucional
(significa dizer respeito pelo devido processo legal, pelo contraditório e ampla defesa,
presunção de inocência, licitude das provas, etc.).
O que nos intriga, por ora, é o comum fato de que bens ilícitos, como uma arma
ou drogas, nesse caso, são apreendidos com base em denúncia anônima, sem mandado
judicial prévio.
Num Estado verdadeiramente Democrático, o juiz aplica o direito e o processo
penais, garantindo ao acusado o respeito aos seus direitos fundamentais. Um deles é o de não
sofrer coação com base em denúncias anônimas. A relevância disso é grande, pois impede que
haja abusos ou manipulações.
E alguém pode perguntar como é que a polícia vai trabalhar? Ora, é fácil para uma
boa parcela da população cobrar maior eficiência da polícia, pois usualmente estão
imunizados de possíveis abusos cometidos sob o pálio do denuncismo sem rosto.
Nesse país, aliás, tem sido tônica a existência de três classes de pessoas, tal qual
alertado por Roberto Damatta: o cidadão, o sobrecidadão e o subcidadão.
O primeiro é aquele que cumpre seus deveres e pode cobrar seus direitos. O
segundo é aquele que não necessita do Estado, mas aufere deles vantagens não muitas vezes
indevidas, e que pela proximidade do poder, imuniza-se contra o Estado Polícia, pois não
raras vezes faz parte dele. Por fim, temos o subcidadão, ou subintegrado, que necessita do
Estado, mas só conhece dele o Estado Polícia que não raras vezes o agride ou, finalmente,
mata-o.
Visando evitar tais posturas, nossa Constituição elegeu, entre um dos seus
princípios, o de que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.” (CF-
88, art. 5º, IV).
10
Em recente decisão, entendeu o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, César
Asfor Rocha, no HABEAS CORPUS nº 159.159 - SP (2010/0004039-3), o seguinte:
“Cumpre observar que o sistema jurídico do País e o seu ordenamento positivo
não aceitam que o escrito anônimo possa, em linha de princípio e por si,
isoladamente considerado, justificar a imediata instauração da persecutio criminis,
porquanto a Constituição proscreve o anonimato (art. 5º, IV), daí resultando o
inegável desvalor jurídico de qualquer ato oficial de qualquer agente estatal que
repouse o seu fundamento sobre comunicação anônima, como o reconheceu o
Pleno do STF no julgamento do INQ 1957, Rel. Min. Cézar Peluso (DJU de
11.11.2005), ainda que se admita que possa servir para instauração de
averiguações preliminares, na forma do art. 5º, § 3º, do CPP, ao fim das quais se
confirmará – ou não – a notícia dada por pessoa de identidade ignorada ou
mediante escrito apócrifo. Nesta Corte Superior a orientação dos julgamentos
segue esse mesmo roteiro, destacando dentre muitos e por todos o que decidido no
HC 74.581” (Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU 10.03.2008) e no HC 64.096
(Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJU 04.08.2008).
E como acentua Alexandre Morais da Rosa, em
http://alexandremoraisdarosa.blogspot.com/2010/03/trafico-sem-mandado.html,
“Assim é que a denúncia anônima não pode ser tida, a priori, como verdade, nem
justifica qualquer medida direta pela autoridade policial que não a investigação
preliminar e, se for o caso, requerer-se ao Juízo competente, o respectivo mandado
de busca e apreensão, apresentando-se as investigações preliminares.
Claro que se verificar alguma das hipóteses do art. 302, I ou II, do CPP, estará
autorizada a agir. Mas esta ação precisa estar autorizada anteriormente, ou seja, o
flagrante não pode ser pressuposto, mas deve estar posto, a saber, não se pode
achar que há um crime acontecendo e se adentrar um lar.”
É preciso que, por exemplo, a arma de fogo ou a droga encontrada fosse vista
anteriormente ou sua entrega ou mesmo a venda, situação diversa da presente.
E prossegue o referido autor dizendo que não basta que o agente estatal afirme
que recebeu uma ligação anônima, sem que indique quem fez a denúncia, nem mesmo o
número de telefone, dizendo que havia chegado droga, na casa do acusado, bem como que
“acharam” que havia droga porque era um traficante conhecido, muito menos que pelo
comportamento do agente “parecia” que havia droga. É preciso que haja evidências ex ante.
Assim é que a atuação policial será abusiva e inconstitucional por violação do domicílio do
acusado.

11
Embora seja uma prática rotineira a violação da casa de pessoas pobres, porque a
polícia não entra assim em moradores das classes ditas altas, não se pode continuar tolerando
a arbitrariedade.
Desde há muito se sabe – lá se vão quase vinte anos da CR-88 e os policiais não
podem desconhecer a lei – que não se pode entrar na casa de ninguém – pobre ou rico – sem
mandado judicial, salvo na hipótese de flagrante próprio, o qual não existe com denúncia
anônima. Nem se diga que depois se verificou o flagrante porque quando ele se deu já havia
contaminação pela entrada inconstitucional no domicílio.
Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho aponta:
“só é possível o ingresso em domicílio alheio nas circunstâncias seguintes: à noite
ou de dia, sem mandado judicial, em caso de flagrante próprio (CPP, art. 302, I e
II), desastre ou prestação de socorro; e durante o dia, com mandado judicial, em
todas as outras hipóteses de flagrante (CPP, art. 302, III e IV). Reconheço que a
falta de estrutura do sistema investigatório brasileiro, tornando inviável o contato
próximo e a tempo com a autoridade judiciária, possa fazer com que o
entendimento exposto se transforme em mais um entrave burocrático à persecução
penal. Não é essa a intenção, mas não se pode aceitar que a doutrina fique à mercê
da boa-vontade dos governantes para dotarem a polícia dos recursos técnicos e
humanos necessários para o desempenho da função.
Assim é que não se pode tolerar violações de Direitos Fundamentais em nome do
resultado, pois pelo mesmo argumento seria legítima a tortura, a qual, no fundo
não é tão diferente da ação iniciada exclusivamente por denúncia anônima, à
margem da legalidade e com franca violação dos Direitos Fundamentais. (...)
Qualquer um agora pode plantar droga em quem quiser e depois ligar para polícia
denunciando anonimamente o depósito de drogas no terreno e a polícia, sem mais,
vai até o local, sem mandado, e prende o proprietário. Não dá para tolerar isto!
(...)”19
Além dessa arbitrariedade, uma variante começou a surgir. A alegação de que o
flagranteado permitiu a entrada na casa, sem nenhuma evidência disso. Alertamos para o fato
de que em regra existem outras pessoas na casa e precisaria que todas elas concordassem com
a violação de sua intimidade, o que não ocorre.
Ganha mais relevo ainda, além da abusividade da prisão sem flagrante, o
completo desconhecimento (ou desrespeito mesmo) do devido processo legal, a
desconsideração da existência do Poder Judiciário e da necessidade de obtenção de um

19 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo Penal e Constituição – Princípios
Constitucionais do Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 92.
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Mandado de Busca e Apreensão. “Pra quê Judiciário se nós mesmos podemos nos investir de
(usurpar) tal função? Eles sempre terminam aceitando essa prática, diante da materialidade do
crime”. A prevalecer esta lógica, a garantia do cidadão resta fenecida.
Aos agentes da lei bem intencionados, é simples solicitar ao juiz competente e se
obter rapidamente um Mandado de Busca e Apreensão, evitando, assim, o prejuízo causado à
sociedade com a nulidade da prisão e a contaminação da prova produzida.
Ana Maria Campos Tôrres sustenta:
“Ora, sabendo que alguém tem em depósito drogas, vende droga, ou outras
situações de permanência é que pode, conforme a Constituição, penetrar em
domicílio sem o consentimento do morador. Sabe, logo tem indícios que
permitam solicitar ao juiz o mandado, imprescindível contra o abuso. Não basta a
mera desconfiança, pois corre o risco de responder por descumprimento da lei,
logo, impossível considerar válida a apreensão nesses casos, sem ordem judicial.
Seria, como o é de fato, fazer vista grossa aos abusos policiais (..) Como entender
urgente o que se protrai no tempo? É possível, graças à presença diuturna do
Judiciário guardião da lei, requerer e ser atendido em pouco tempo, o direito
constitucionalmente previsto de entrar em domicílio. A facilidade do arguir-se
urgência é forma espúria de desconhecer direitos, é subterfúgio para o exercício
de força, é descumprimento do dever de acatar as diretrizes políticas assumidas
pelo Estado. Impossível legalizar o ilícito. Deve, nestes crimes chamados
permanentes, especificamente por durarem, não se reconhecer a urgência do
flagrante próprio, pois nem se evita sua consumação, nem se impede maiores
consequências, e, sobretudo, arrisca-se sequer determinar a autoria, interesse
maior nesses casos. O argumento de urgência deve fundamentar pedido à
autoridade judiciária, inclusive, modos legais de realização. Nada impede o
respeito à intimidade nessa hipótese. (...) No caso do flagrante em crime
permanente, vê-se com muita frequência não só o descumprimento da lei, mais
que isto, um caminho perigoso a permitir retornem as más autoridade o modelo
inquisitorial, buscando provar a qualquer custo, não se preocupando com mais
nada, senão com a punição pela punição.”20
Cabe destacar julgado relatado pelo Des. Geraldo Prado, do Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro (Apelação Criminal n. 2009.050.07372), uma verdadeira aula de como se deve
proceder na garantia de Direitos Fundamentais:

20 TÔRRES, Ana Maria Campos. A busca e apreensão e o devido processo. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.
153-154
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“O ingresso não pode decorrer de um estado de ânimo do agente estatal no
exercício do poder de polícia. Ao revés, é necessário que fique demonstrada a
fundada – e não simplesmente íntima – suspeita de que um crime esteja sendo
praticado no interior da casa em que se pretende ingressar e que o ingresso tenha
justamente o propósito de evitar que esse crime se consume. Se assim não fosse,
seria permitido ingressar nas casas alheias, de forma aleatória, até encontrar
substrato fático, consistente em flagrante delito, capaz de ensejar a formal
instauração de procedimento investigatório criminal. Mais que isso, seria
incentivar que a autoridade policial assim fizesse e, com a intenção de se livrar de
uma eventual imputação de abuso de autoridade, ‘encontrasse’ à força o estado de
flagrância no domicílio indevidamente violado.’ Por tais razões, diante das
condições em que a droga continua sendo apreendida neste país, em franca
violação dos direitos fundamentais, a prova deve ser declarada ilícita,
especialmente nos casos de ilegal denúncia anônima, bem assim quando a atuação
dos policiais acontece sem mandado judicial, implicando, pois, na ilegalidade da
apreensão da droga e, por via de consequência, da ausência de materialidade.
Agora não se pode é se acovardar em nome do resultado. A função do Judiciário é
de garantia!”.
Paradoxal e contraditória é a conduta do chamado “agente da lei” que, a pretexto
de cumpri-la, viola-a! A despeito do que diz a Constituição e a legislação penal, arvora-se na
posição juiz, executando, sponte propria, atos que somente com autorização judicial poderiam
ser concebidos e executados, ante a chamada RESERVA DE JURISDIÇÃO, princípio
constitucional, pelo qual se expressa que é reservado ao Poder Judiciário a primeira e última
palavra sobre determinados assuntos, como a quebra de sigilo bancário, fiscal ou profissional,
ou a expedição de busca e apreensão e a prisão fora das situações de flagrância.
CONCLUSÃO
Sempre que nos deparamos com questões de cunho moral, quando o enunciador
do discurso se imagina um homem de bem e exige medidas duras, gosto muito de fazer um
juízo de alteridade com o interlocutor. Fazer com que ele possa sentir como é estar “do lado
de lá”: se um procedimento como esse, de ingresso da polícia na casa de alguém por meio de
telefonema anônimo, de alguém completamente desconhecido da polícia e sem antecedentes,
como usualmente acontece, em um caso qualquer de delito permanente, se desse em um dos
inúmeros condomínios fechados da cidade? Qual seria a repercussão nos dias de hoje? Será
que o interlocutor concordaria com a medida e exclamaria, indignado: alguém pode perguntar
como é que a polícia vai trabalhar?

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O que precisamos, na verdade, é fazer um exame de consciência e dizer se
realmente o princípio da isonomia realmente existe ou se é a Constituição, usando uma
expressão de Ferdinand Lassale, apenas “uma folha de papel”.
Por isso nos preocupa esse efienciencitismo. Não devemos esquecer que a
inquisição seguia um roteiro de delatores sem rosto, envoltos em sobras, e foram essas
sombras responsáveis pela morte de centenas de milhares de pessoas (estima-se que somente
na Alemanha, durante esse período do terror religioso, cem mil foram queimadas na fogueira).
Há muito que a Constituição exige uma postura diferente dos atores jurídicos. E
essa só vai acontecer quando houve uma quebra da prática judiciária acrítica e chanceladora
da violência.
Não fosse assim, daqui a pouco estaríamos admitindo igualmente a prática da
tortura como meio para obtenção de provas. Trata-se de meio apto a obter uma prova? Claro.
Muito eficiente, por sinal, pois sob tortura a vítima confessa até o que não fez. Não à toa foi e
é tão largamente utilizada pelos regimes totalitários. Mas não convém isso em um Estado
Democrático de Direito. Existe uma Constituição. E ainda há juízes nesse país.
Tal qual o personagem Neo, do filme Matrix, precisamos despertar. E esse
despertar não tem volta. Ser alienado tem lá suas vantagens, é verdade, pois quem assim se
mantém, não sente. E o preço do senso crítico é o incômodo... Porém, somente quando
despertamos, abrimos os olhos e podemos ver onde (ou em quem) pisamos, e trilharmos um
caminho que não desague na violência velada contra os mais carentes, mas sim no respeito
aos ditames da Constituição da República e dos Direitos Humanos. Esse é o nosso inegável,
inafastável e indiscutível papel. Vamos cumpri-lo!

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BIBLIOGRAFIA
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FLORIANÓPOLIS. Autos n° 023.09.039518-5. Disponível em
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