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Presidente da República

Luiz Inácio Lula da Silva

Ministro da Cultura
Gilberto Passos Gil Moreira

Presidente da Fundação Cultural Palmares


Zulu Araújo

Diretor de Promoção, Estudos, Pesquisa e Divulgação


da Cultura Afro-Brasileira
Antonio Pompêo

Diretora de Proteção do Patrimônio Afro-Brasileiro


Bernadete Lopes

Chefe de Gabinete
Juscelina do Nascimento

Assessora de Gestão Estratégica


Clemildes Carvalho

Coordenadora de Gestão Interna


Simone Hastenreiter

Procuradora Geral - Substituta


Ana Maria Lima Oliveira

Assessor de Comunicação
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Equipe de Trabalho
Leila Calaça: Chefe do CNIRCN
Ialê Garcia Bezerra de Mello: Gerente de Projetos
Isabela da Silva Sela: Pesquisadora
Emerson Nogueira Santana: Técnico em documentação
Marco Antonio E. da Silva: Analista de projetos
Edcleide Martins Honório: Secretária
Antonia Eliane Martins do Nascimento: Apoio Técnico
Clênia Zilmara Barbosa Oliveira: Apoio Técnico
Hermeson Alves M. Santos: Auxiliar Administrativo
Denyece Raquel dos Santos Chaves: Técnica Administrativa
Bruno Felipe J. Coelho: Estagiário
Elói Soares Lima Neto: Estagiário
Helena do Sul

ROTA
EXISTENCIAL

2007
Copyright 2007 - Maria Helena Vargas da Silveira

Capa
Nailê Cordeiro de Oliveira

Editoração eletrônica
Péricles Cruz

Revisão
Shaiane Vargas da Silveira

Ficha catalográfica: Kelly Martins – CRB1-1633

Sul, Helena do
Rota Existencial / Helena do Sul – Brasília, DF:
Funcação Cultural Palmares, 2007.
254 p. : il. color.

ISBN 978-85-7572-015-8

1. Literatura – Brasil. 2. Negros – História – Brasil.


I. Silveira, Maria Helena Vargas. II. Helena do Sul.
II. Título.

CDU 82(81=4140
LITERATURA AFIRMATIVA

R
ota Existencial, da escritora afro-descendente Maria He-
lena Vargas da Silveira, a Helena do Sul, aborda aspectos
implícitos e ou explícitos das relações étnico-raciais no
Brasil, a partir de contos breves, crônicas, depoimentos, sátiras e
poesias. A generosidade literária da autora transborda no univer-
so da negritude, fazendo deste novo livro um presente inusitado
de Literatura Afirmativa.
O livro divide-se em quatro momentos diferenciados, po-
rém de estrita relação.
Narrando especificidades do povo negro, que o poder he-
gemônico tenta tornar invisível, afloram o talento, a criatividade
e ousadia da escritora, na produção dos contos, crônicas e sátiras
que compõem o ineditismo da primeira parte da obra.
Com um olhar que remete à Antropologia Social, ao gêne-
ro literário memorialístico e às constatações de realidades atuais,
os textos se concretizam na prosa leve sem perder a firmeza da
narrativa que caminha, de forma natural, para a contundência
de muitas análises sócio-econômicas, culturais, educativas e de
gênero, provocativas para os leitores.
A segunda parte do livro traz um documento histórico que
se configura como revitalização e síntese da obra e da trajetória
da escritora. Brinda-nos com um original passeio pelos bastido-
res dos lançamentos dos livros anteriores, destacando, afirma-
tivamente, algumas pessoas da vida real. Uma “ação afirmativa
social” que reconhece e valoriza representantes daquelas e daque-
les que, por pertencerem a um segmento cujas identidades são
marcadas, lutam por uma nova forma de representação. Ousadia
prática e política.
A terceira parte acolhe preciosidades de cada um dos nove
livros anteriores da escritora, o que pode ser visto como um “mix”
entre a fidelidade com a literatura, a temática escolhida e a sinto-
nia com todas as gerações e os novos tempos.
A poesia fecha a Rota Existencial, sem ficar indiferente à
negritude, aos espaços, aos processos sociais e emocionais em
que a vida transita.
Destaca-se a preocupação e solidariedade de Maria Hele-
na, ao mencionar, nas últimas páginas do livro, pessoas e insti-
tuições que colaboraram para a concretização de sua caminhada
literária.
Considero relevante que nesta obra, ao tomar posse da
fala, a autora dá passagem para personagens reais atemporais que
ajudam a alicerçar a construção do passado, do presente e do fu-
turo do povo negro brasileiro, tendo por viés a dignidade. Sendo,
portanto, um poderoso e muito bem-vindo exercício das poten-
cialidades da narrativa pós-colonial, a partir da perspectiva de
uma brasileira, negra, mulher
Também o bom humor que, na hora certa, perpassa algu-
mas das narrativas apresentadas, mantém o estilo da autora, sem-
pre reconhecido pelo seu público fiel. Ninguém é de ferro! Salve
Ogum!
Rota Existencial é um livro que pode emocionar. Fazen-
do rir, chorar, lembrar... Uma obra para estudar, pesquisar. Mas,
sobretudo, um instrumento para refletir, acreditar na potenciali-
dade do poder resistente da humanidade e, em especial, da popu-
lação negra brasileira.
Acredito que tais argumentos sejam suficientes para atiçar
o desejo de leitoras e leitores que, a cada novo trabalho da autora,
multiplicam-se, estando reconhecidamente presentes em todas
as regiões do Brasil e em alguns países africanos e da diáspora
africana.
Diony Maria Oliveira Soares
Jornalista, especialista em Antropologia Social,
mestranda em Educação
REFLEXÕES DA AUTORA

R
ealidades, ideologia e delírios do feminino negro estão
presentes por aqui, na “Rota Existencial”, além do debo-
che saudável e necessário para amenizar algumas verda-
des mais doloridas.
O primeiro momento do livro compõe-se de contos bre-
ves, crônicas e sátiras, onde a criatividade busca personagens do
passado e do presente, sem distanciamento do universo da po-
pulação negra, ainda que não ignore toda gama da diversidade
étnica brasileira.
Mesmo que tentasse, não conseguiria escrever sem um
passeio pelas paisagens, pela gente, pelas emoções, pelas realida-
des de minha negritude. Seria impossível não falar destas realida-
des próximas. Elas possuem colorido, vivacidade, vozes, cheiros,
animação e consistência de coisas vividas, observadas, participa-
das e, sobretudo sentidas. São quadros que vão sendo fortemente
pincelados na mente com matizes intensos, tornando-se figura-
fundo da existência.
A presença dos trabalhadores negros e negras, costureiras,
lavadeiras, motoristas, gráficos, professores e artistas protagoni-
zam as narrativas, assim como os militantes pelo desenvolvimen-
to da população negra, os conflitos emocionais, as enfermidades
da alma que atormentam os negros e geram morte, a inversão de
valores de nossa sociedade de aparências, os absurdos com que se
defrontam os que não têm vez de falar e submetem-se aos discur-
sos poderosos que se perdem no ar. São exemplos das realidades
que fazem a História.
Rota Existencial é o décimo livro que publico, ocasião
em que consolido 20 anos de Literatura. Então, em um segundo
momento do livro, aproveito para incorporar de forma desnuda,
muito franca, o que representam estas duas décadas de dedicação
à Literatura, envolvida com a população negra. Sou eu e os outros
e outras, nos bastidores da escrita e dos lançamentos de meus li-
vros. Vou simplesmente narrando os fatos que aconteceram. Mas,
ao final, sinto que compus um corolário temático que poderá mo-
vimentar os mais atentos sociólogos, antropólogos, psicólogos,
educadores e gente preocupada em entender de gente, principal-
mente de negras e negros e as históricas estratégias de resistência
para o alcance de suas aspirações.
O ser e o resistir importam muito, na rota existencial da
população negra. Inventamos o enfrentamento das adversidades
com um jeito próprio ou coletivo, capaz de nos fortalecer para
encarar as subidas e as descidas da gangorra vital, nosso cotidiano
na sociedade brasileira.
Podemos tombar, ralar no chão, em condições adversas.
Mas também podemos mudar o rumo da adversidade, inventan-
do estratégias de resistência. Eu invento. Os outros e outras in-
ventam comigo. Nós inventamos.
Observo o próprio passo e arrumo um tempinho para as-
sobiar ou cantar uma canção; fico com olho de choro diante do
tombo de mau jeito, mas sigo em busca de condições para sorrir
dos próprios arranjos que faço para não cair. Coloco um detalhe
a mais naquilo que realizo, enquanto realizo. Acrescento marcas
muito pessoais ao ato de viver cada história.
Muito pessoal é a tentativa ou o alcance daquilo que qual-
quer pessoa pretende realizar e realiza. Muito pessoal, mas nem
sempre tão individual. Nestes vinte anos de Literatura foi assim,
os outros e eu, envolvidos por uma gama de situações de toda
ordem e a conseqüente aprendizagem.
As narrativas da segunda parte do livro comprovam que
as realidades de uns se cruzam com a de outros e todas as coi-
sas acontecem, de bom ou de ruim, nas intersecções destas rea-
lidades. Elas permeiam pelos espaços temporais e estão sempre
nascendo. A sensação maravilhosa de que cada tempo é o nosso
tempo, advém da vivência destes renascimentos, que se deixam
acompanhar pelas nossas ideologias.
Em um terceiro momento, revisito brevemente a criação
de meus nove livros editados, anteriormente. Transcrevo alguns
textos desses livros e acredito ser uma estratégia atenciosa para
suprir a carência de não poder brindar a todos e todas com a ree-
dição solicitada do que tenho escrito. Exponho o exercício da es-
crita, desde o nascedouro da minha caminhada literária e ideoló-
gica que, fundamentada na “negricite”, meu vírus de nascença, vai
tomando formato de ensaios, contos, crônicas e novela social.
Sinto o quanto fico sem imunidade cerebral, acometida pe-
las aspirações do ideário de uma negritude mais feliz. Sendo um
processo que me ataca as idéias, isto é ideologia. Procuro convi-
ver com ela sem retê-la em tensão, materializando-a nas faíscas
das reflexões e dos deboches de mentiras que mexem com muitas
verdades. Nem mais me surpreendo, pois identifico na escrita,
minha atitude espontânea de resistência. Sei que não basta. Mas
também exercito outros processos ideológicos, no coletivo.
Aproveito o imprevisível tempo de viver e poemar. Com
todos os seus vértices filosóficos, emocionais e perceptivos, a poe­
sia germina e circula por armadilhas e sonhos a que estão sujeitos
os seres, finalizando o livro.
A vida é um poema que questiona, ama e resiste no proces-
so álmico, atávico, em paradoxal estado de delírio e consciência.
Escrever tem sido um ato solitário, mas publicar o que es-
crevo só é possível com o envolvimento e movimento de muita
gente. Agradeço a todos e todas por me acompanharem.

Maria Helena Vargas da Silveira


(Helena do Sul)
pagina em branco
Sumário

Rota Existencial
Parte 1.............................................................................................. 15
Cortes e recortes.............................................................................. 17
Pouco mais que um guri.................................................................. 20
A menina do cartaz.......................................................................... 22
Reportagem de jornal...................................................................... 24
Movimentos de um operário da palavra....................................... 26
De Bilac ao Negro Drama............................................................... 29
Performance aliada.......................................................................... 32
Senhora do avesso........................................................................... 34
As irmãs Limeira e o samba de roda............................................. 36
Contadora de histórias..................................................................... 40
Cambitus............................................................................................ 44
Obituário .......................................................................................... 48
Bailarinos odara................................................................................ 51
Atrás desse mato mora um povo.................................................... 53
Interrogação de um silêncio............................................................ 61

Rota existencial
Parte 2.............................................................................................. 67
É Fogo - ano 1987 – Descobertas e polêmicas.............................. 68
Meu Nome Pessoa - três momentos de poesia - ano 1989 –
Cidadania no morro......................................................................... 74
O Sol de Fevereiro - ano 1991 – Negritude na periferia............. 78
Odara, Fantasia e Realidade - ano 1993 – Mística e
irreverência........................................................................................ 82
Negrada - ano 1995 – Registros vivenciais do universo
da população negra.......................................................................... 86
Tipuana - ano 1997 – Escola pública de maioria negra.............. 93
O Encontro - ano 2000 – Saudades e contextos de
diversidade........................................................................................ 98
As Filhas das Lavadeiras - ano 2003 – Tributo às mulheres
negras e mobilização social........................................................... 101
Os Corpos e Obá Contemporânea - ano 2005 –
Transgredindo “normas culturais” e trabalhando o
imaginário popular sobre os corpos afrodescendentes............ 107

Rota existencial
Parte 3............................................................................................ 112
Identidade........................................................................................ 114
A trova do Bola............................................................................... 116
Simiesca........................................................................................... 119
Iniciação........................................................................................... 122
Rezumbindo.................................................................................... 128
Rebelião dos sambistas.................................................................. 131
Conversa de negro.......................................................................... 143
O super evento................................................................................ 155
Forasteiros de muitos lugares........................................................ 159
Apresentação do nome da lomba................................................. 162
Izolda Maria mais ou menos......................................................... 163
Ata ordinária................................................................................... 165
Capítulo XXVI................................................................................ 167
Casarão das lavadeiras em Caxambu........................................... 171
Do Bengo à paixão pelas Congadas ............................................ 176
Lavação de roupas.......................................................................... 183
Corpo-inquietação......................................................................... 210
Corpo-texto..................................................................................... 212
Corpo-ironia (O ensaio)................................................................ 215

Rota existencial
Parte 4............................................................................................ 220
Morro, clave de sol......................................................................... 222
Quero mais que falas . ................................................................... 225
Prece do negro ao professor de qualquer cor............................. 226
Neguinha na rede........................................................................... 228
Palavras............................................................................................ 229
Verdade............................................................................................ 230
Plim! Plim!...................................................................................... 231
Infantil.............................................................................................. 232
A lágrima......................................................................................... 233
Retalhos de esperança.................................................................... 234
Parada cardiáca............................................................................... 235
Sobrevivência.................................................................................. 237
Alvorada dos negros....................................................................... 238
Criança-cidadã................................................................................ 239
Rota existencial .............................................................................. 240
Herança dos deserdados................................................................ 241
Oficina do Rap............................................................................... 242
Histórias........................................................................................... 245
Outro êxtase.................................................................................... 246
Insana............................................................................................... 247
Mórbida........................................................................................... 249
Sonho bom...................................................................................... 250
Descoberta afinal............................................................................ 251
pagina em branco
HELENA DO SUL

Rota Existencial
Parte 1

Contos breves, crônicas e sátiras. Um passeio da criativi-


dade por espaços e personagens do passado e do presente, sem
distanciamento do universo da população negra, ainda que não
ignore toda gama da diversidade étnica brasileira.

Cortes e recortes
Pouco mais que um guri
A menina do cartaz
Reportagem de jornal
Movimentos de um operário da palavra
De Bilac ao Negro Drama
Performance aliada
Senhora do avesso
As irmãs Limeira e o samba de roda
Contadora de histórias
Cambitus
Obituário
Bailarinos odara
Atrás desse mato mora um povo
Interrogação de um silêncio

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HELENA DO SUL

CORTES E RECORTES

A freguesia chegava com os panos coloridos para que ela


os transformasse em vestes, das mais variadas. Fazia casaco, casa-
cão, camisola, saia justa, de prega, de machos, godê ponche, saia
balão, de cadeirão, blusa com nervuras, de golas, decotadas, ves-
tidos tomara que caia, estilo sereia, os inventos da moda que em
nome da moda chegam, tornam e retornam novidade.
As freguesas variavam como as roupas e vinham de perto
ou de muito longe, para os cortes e recortes da costureira.
As senhoras obesas, atraídas pelas habilidades da costurei-
ra, vinham de muito longe, lá de Povo Novo, de Capão Seco, dois
povoados da região da artesã. Valia o sacrifício. Voltavam felizes
para casa, com as gordurinhas escondidas nas pregas e machos
das saias e vestidos maravilhosos, perfeitos. A costureira cortava
os moldes das roupas em folhas de jornais velhos e passava para
os tecidos que se transformavam nas vestes que cobriam o corpo
das mulheres, ocultando quaisquer imperfeições.
Com a velha máquina Singer, movida com a agilidade sin-
cronizada dos pés, uma tesoura mágica e a necessidade de tra-
balhar, operava milagres. Nada de máquina a motor. Nem havia
eletricidade onde morava a costureira. Os panos e os olhos eram
iluminados à noite, com os candeeiros, com os lampiões ou com
os fedidos carburetos. Às vezes ganhava de presente o brilho do
luar, sempre que vinha a lua, no céu das vilas do bairro Fragata.
Tratava a freguesia de mulheres, com a delicadeza de anfi-
triã bem humorada.
Costurava coletes para os homens, mas jamais lhes viu a
cara. Apanhava os coletes, já cortados, no alfaiate e os aprontava
com dedicação, tanto faz de linho ou casimira. A frente do colete
tinha a austeridade do bom pano dos ternos. Atrás, aparecia a

17
ROTA EXISTENCIAL

luminosidade do cetim que emoldurava as costas dos machos que


usavam tais peças da elite masculina. Era uma elite que gerava um
ganho a mais para a costureira que emprestava seus préstimos a
um renomado negro, alfaiate da cidade.
A costureira também não conhecia a clientela de homens e
mulheres que compravam nas lojas dos turcos, para quem fazia
uma tal costura de carregação, uma produção em série. No fardo
da carregação vinham, já cortadas, as roupas de chita, de pelúcia,
de algodão, calça de riscado, cueca samba-canção. Vinham deze-
nas de peças repetidas, feitios massificados para vender barato.
Eram roupas que uniformizavam, deixando igual na indumentá-
ria aparente, o povo que comprava na loja dos turcos.
A freguesia chamava a atenção das crianças, ora pelos ges-
tos, pelas vozes, pelo exotismo dos adornos pendurados às ore-
lhas e pescoço. E, ainda, pelo tempo enorme que as privavam do
convívio com a mãe costureira.
Mas bom mesmo, era quando as senhoras não ignoravam
os pequenos e lhes davam pirulitos e balas, para compensar as
horas que lhes roubavam a mãe, enquanto ficavam indecisas, es-
colhendo os complicados vestidos dos figurinos.
A costureira parecia muito feliz. Sorria. Precisava daquele
trabalho.
As crianças ficavam assanhadas e riam baixinho, às escon-
didas, quando aparecia uma freguesa, usando estranho chapéu
que exibia os primeiros ensaios da reciclagem de plástico. A mu-
lher usava um chapeuzinho feito de tiras de saco de leite. Quá, quá,
quá... Causava uma estranheza que custaram muito tempo para
entender. Ainda não alcançavam o significado daquela coisa.
Viam no chapéu, qualquer maluquice de sua dona. Como a
dona era avantajada na idade, pensavam logo em caduquice - “ela
é caduca”.
Hoje, o chapéu reciclado que gerava farras e risos, faz até
o luxo e recomenda-se a sadia maluquice para conservação do
planeta.

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HELENA DO SUL

Os panos dos vestidos das matronas obesas, da freguesia


dos turcos, dos coletes dos grã-finos que faziam roupas sob medi-
da, deixavam recordações pelo assoalho da casa: fiapos de linha e
as sobras dos cortes e recortes que à noite eram expulsos da sala,
com a vassoura artesanal de carqueja do mato.
E a artesã, costureira e dona de casa, milagreira dos pou-
cos trocados que ganhava, usava uma capa de pano forte, uma
veste original que parecia simbolizar seus dias de mulher negra,
com filhos e filhas para criar. Sua capa era tecida com retalhos
coloridos de esperança, costurados com fios de crença em dias
melhores. Destes detalhes especiais, nunca descuidava, em sua
moda cotidiana.

Salve as costureiras, protegidas de Obalufã!

 Obalufã – Orixá masculino , filho de Odudua, o inventor da tecelagem e das roupas.

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ROTA EXISTENCIAL

POUCO MAIS QUE UM GURI

Era pouco mais que um guri quando fincou o pé no freio


e carregou o seu doutor no carro particular. Usava um uniforme
que o deixava com jeito de militar.
As crianças, depois de mais crescidas, quando viram a foto
do pai, até pensaram que ele fazia parte do Exército de Salvação.
Já acostumadas com outros padrões de motoristas, nem o conce-
biam com aquela ordem no visual: terno, gravata e quepe.
Ele carregou o seu doutor, cliente exclusivo, até que seu
doutor morreu. Carregou muita gente no carro de praça. Com o
maior orgulho citava os famosos da época que havia conduzido.
Elizete Cardoso, a Divina, a mais lembrada por ele. Era madame
pra lá, doutor pra cá, Senhora, Senhorita, um invejável tratamen-
to de respeito, para lidar com os usuários e usuárias que conduzia
em seu “pé de borracha”.
Carregou passageiros operários e estudantes no ônibus
mais veloz de um bairro da cidade. Em minutinhos chegava à
praça central, correndo. Fazia a alegria dos trabalhadores que se
atrasavam para o serviço. Parecia que estava fugindo e, na corre-
ria da fuga, afugentava das paradas quem detestava a velocidade
dos coletivos. Os tempos já não eram os mesmos. Conduzia as
individualidades no coletivo.
Mas chegava em casa são e salvo, contando novidades.
Chamava as crianças para comer as frutas que ganhava pelos
trajetos percorridos. Depois ia dormir um pouquinho, tão pou-
quinho... Era escravo do horário da Companhia de Transportes.
Acordava na madrugada e acendia o fogão a lenha para
esquentar a casa, antes de tomar café com pão torrado, o que po-
dia ter na casa do motorista. Sua velocidade não alcançava certas
coisas.

20
HELENA DO SUL

Depois foi puxar fretes no caminhão, cruzando estados,


pontes e balsas de rios.
Caiu de pontes, foi náufrago sem barco, lutando com a la-
taria do carro para poder sobreviver.
Rodou, rodou pela vida, até que parou.
Ficou sentado na cadeira de balanço que não rodava. Ba-
lançou anos e anos as recordações de suas viagens: naquela es-
trada andou de jipe, mais além fez pausa e caçou capivara, na
outra deu carona que se transformou em guarida na própria casa.
Ih! Quantas histórias. Teve que dividir os cômodos com os caro-
neiros, por mais de trinta dias, até que apontou o facão para os
indivíduos e fez da porta da rua, a serventia da casa, expulsando
os parasitas.
Ainda estava lúcido e muito respeitoso, assim como trata-
va os passageiros, quando era pouco mais que um guri. Mas foi
diminuindo a velocidade. Começou a andar devagarinho, muito
devagarinho para que ninguém percebesse qualquer arranque na
sua partida. Puxou seu carro da vida para a última viagem.
As crianças não eram mais crianças e quando chegaram ao
cemitério, para dizer-lhe até à vista, iam sendo cumprimentadas:
bom dia doutora, meus pêsames doutor.

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ROTA EXISTENCIAL

A MENINA DO CARTAZ

Jovens e crianças dos colégios passavam entre eretos e


bamboleantes na frente do coreto da praça que não era a praça
principal, mas ganhava ares de destaque por beirar extensa aveni-
da propícia à passagem dos pelotões da juventude... E de crianças,
também.
Era no ano de 1990. Dia de passeata na cidade, aquelas pas-
seatas cívicas, desfile da juventude em honra da Pátria.
Uma banda tocava afinada, repleta de negros músicos.
Banda de quartel.
Na cadência do Hino da Marinha, “qual cisne branco que
em noite de lua”, a menina movimentava os pezinhos sambados,
cheia de garbo, pescocinho em pé. Era toda bonita, com os ca-
belos amarrados no alto da cabeça, voando com a ventania de
setembro. Os pezinhos sambados sustentavam seu corpo levinho
que se exibia na saia vermelha de pregas e na blusa branca en-
gomada de estalar os punhos das mangas, quando levantava o
cartaz que carregava.
Será que a menina sabia o que dizia no cartaz? Que nada!
Ainda não lia, e talvez ninguém tivesse lhe contado sobre a men-
sagem que levava. Estava desfilando com a Escolinha do Jardim
de Infância, uma escola de brincar, de cantar, de pular, de correr
e de viver os primeiros tempos que antecedem e preparam para
a descoberta das leituras do mundo. Por enquanto, desfilava, so-
cializando para o público, a mensagem do cartaz.
Flash! Flash! Que linda a menininha. Fotografias e mais
fotografias. A mídia estava presente.
E a mãe da guria, mandou uma fotografia para a vovó que
morava longe.

22
HELENA DO SUL

A foto deixava aparecer algumas palavras da mensagem do


cartaz: homenagem aos cem anos do Diário Popular.
Vovó ficou cismando: como é que este cartaz veio parar nas
mãos desta guria? Capaz! Não deve ter sido por acaso.
Alô, alô, telefonou, queria extravasar: este povo aí do colé-
gio sabe que minha neta faz parte da família?
– Que família?
– Do jornal. Nossas histórias de família, também têm a ver
com este Diário Popular...
– O que eu sei é que sua neta adorou o cartaz bem colorido.
Desfilou meio passista de Escola de Samba, meio Porta-estandar-
te, mostrando o cartaz. Adorou o desfile. E os flashs, todos.
– Não te deste conta que colocaram nas mãos dela um
cartaz que também homenageia o bisavô? O acaso não existe. O
bisavô Armando .Lembra das histórias? Procura aí a Edição Cen-
tenária do Diário Popular. Ele era o negro gráfico que apelou para
não fechar o jornal que está fazendo 100 anos.
Já estamos em 2007.
A menina que desfilou, dançando com o cartaz que veio
parar por acaso em suas mãos, guarda junto com a fotografia do
desfile, uma reportagem de jornal que é auto-estima para o povo
negro. Trata-se do trabalho do bisavô, no Diário Popular, da ci-
dade de Pelotas, no Rio Grande do Sul.

23
ROTA EXISTENCIAL

REPORTAGEM DE JORNAL

Por muitos anos , che- Fernando Luiz),


fiou a oficina tipográfica agora ela atingira
do Diário Popular o profis- às raias da calami-
sional gráfico (ou artista dade.
gráfico, como preferiam ser Foi então que
nomeados alguns) Arman- Armando Vargas,
do Vargas. em conversa com
Aposentou-se ainda no seu ex-compan-
desempenho dessa função , heiro de trabalho,
no mesmo jornal. que fora revisor
Já exercia o cargo em de provas tipográ-
1937, quando o Diário ficas, Maximiano Pombo paginador Armando Var-
Popular interrompeu sua Cirne (atualmente diretor gas, este me fez um apelo,
circulação, pressionado por geral da Associação Co- no sentido de levar ao con-
ato do Estado Novo. Como mercial), lhe fez um apelo hecimento da Associação
consta, em pormenores,em para que intercedesse junto Comercial de Pelotas o mo-
matéria deste Caderno, que à entidade, sugerindo-lhe mento por que passavam, a
conta a história do órgão providencias para tentar a fim de ver se ela se sensibili-
centenário, a paralisação foi reativação do Diário. Logo zava e, quem sabe, tomava a
de dois meses e 20 dias. A o apelo foi transmitido, en- iniciativa de adquirir o jor-
crise financeira em que foi controu eco e veio a dese- nal e fazer com que voltasse
mergulhado, gerada pela jada solução. a circular, isso porque, em
interferência da ditadura Cirne conta o episó- 1935, Mário Moura, dire-
em seus quadros diretivos dio, com estas palavras, em tor de “A Opinião Pública”,
e sua linha política, não de- depoimento dado a este solicitara seu apoio e quase
ixava esperanças de breve jornal, Edição-Documento, o conseguira.
retorno. comemorativa dos 90 anos, “Logo no dia seguinte.
Era total a indefinição. que circulou a 15-16 de no- na Secretaria da Associa-
Diante desse quadro, vembro de 1980. ção Comercial de Pelotas, à
o pessoal da redação to- “Os funcionários da hora do cafezinho, transmi-
mou seu rumo, reposicio- redação – escreve – logo ti ao presidente Victorino
nando-se em atividades tomaram outro rumo, mas Menegotto o apelo, quase
diversas. Grandes dificul- os tipógrafos estavam a pas- dramático, que me fizera
dades, porém, enfrentavam sar dificuldades financeiras o Armando Vargas e, de
os gráficos. Se já era difícil por falta de mercado de imediato, tanto o presidente
a situação do jornal, con- trabalho. como Carlos Gotuzzo Gia-
stantemente mantida por Em encontro casual, coboni, tradutor publico e
seus principais acionistas na rua 15 de novembro, nas representante comercial,
João Py Crespo e os irmãos proximidades do jornal, com escritório e residência
Osório (Joaquim Luiz, e com o chefe das Oficinas e num sobrado quase ao lado

24
HELENA DO SUL

do Diário, bem como José nomear uma comissão para bem o problema do Diário,
Faustini, Aires Adures, dr. estudar a possibilidade de do qual havia sido revisor,
Sylvio da Cunha Echenique, fazer com que o Diário revisor, noticiarista e in-
Balbino Mascarenhas e não voltasse a circular. Dessa terpretador de telegramas,
recordo se presente se acha- comissão, em seguida des- estabelecesse os primeiros
va mais alguém, se manife- ignada, faziam parte o sr. contatos com os propri-
staram simpáticos à idéia e Victorino Menegotto, como etários e, ao mesmo tempo,
que o assunto deveria ser seu presidente, e mais di- elaborasse um trabalho, no
abordado e discutido na retores dr. Sylvio da cunha qual deveria focalizar os
próxima reunião da Dire- Echenique, Balbino Mas- meios indispensáveis e ne-
toria. carenhas, Carlos Gotuzzo cessários ao ressurgimento
“E assim, na reunião Giacobono, José Faustini e do jornal”.
da Diretoria daí a poucos Aires Noronha Adures. Seguiram-se, então, as
dias realizada, fazendo-se “Como medida pre- providencias, que iriam cul-
eco das aspirações general- liminar, a comissão, ainda minar com o reaparecimen-
izadas, após ser o assunto nessa reunião, pediu-me to do jornal, a 20 de julho,
amplamente discutido pe- que, na qualidade de dire- portanto, dois meses e 20
los diretores presentes, deli- tor geral da Associação, dias após a paralisação.
berou-se, por unanimidade, e, ainda, porque conhecia

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ROTA EXISTENCIAL

MOVIMENTOS DE UM OPERÁRIO DA PALAVRA

Ele chegava cedinho. Com ele, também chegava o carro-


ceiro, anunciando “olha a lenha”. Os paus de lenha, uns em cima
dos outros, quietinhos, estáticos formavam um bloco matizado
de diferenças de cores e espessuras.
Ele, chegando junto com a lenha, trazia a sensação de
aconchego, de carinho com quentura, principalmente no inver-
no gelado. Era sinal de fogo no fogão e de colo, onde sobrava
um cantinho para a prole madrugadeira que, mais tarde,acordava
para fazer-lhe companhia.
Então, quando vinha a lenha e quando a madeira não era
tão uniforme no tamanho como parecia na arrumação da carro-
ça, é que entrava em ação o machadinho nas mãos do negro velho
para deixar as achas do tamanho das possibilidades de entrarem
na fornalha do fogão. E ele cortava os paus, recomendando para
as crianças não ficarem por perto por causa das lascas que saiam
para todos os lados. Não era um exímio cortador de lenha, o que
o fazia preferir o trabalho solitário, para evitar acidentes com a
proximidade das crianças.
Trabalhava pela noite inteira. E ao chegar em casa, ainda
cortava lenha. Queria, urgente, desfrutar do ambiente morninho
e acolhedor que o braseiro do fogão espalhava pela cozinha cinza
e engordurada, nas primeiras horas da manhã.
Na casa, as crianças que amanheciam mais cedo para rece-
bê-lo, vinham chegando, pedindo leite, pedindo pão.
Em suas mãos já estava a cuia, o mate. A vida começava ali
na volta do fogão. Não ficava tão só.
Nem bem dormia e já estava de pé. Sobrevivia do trabalho
noturno como gráfico e revisor de jornal.

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HELENA DO SUL

Antes de dormir à luz do sol, comia feijão mexido com


farinha e muita pimenta. Pimenta braba de fazer chorar o olho.
Depois ficava em silêncio, olhando para o prato. Parecia que so-
nhava um sonho muito bom.
Fazia sempre o ritual da manhã: cortar lenha, acender o
fogão, receber e atender as crianças, tomar mate, comer feijão,
sonhar e dormir.
Dormia pouco, pois quando os meninos voltavam da esco-
la, logo depois do meio dia, já estava acordado.
Então o menino pedia leite, o menino pedia pão, o vizi-
nho queria o jornal, a moça queria um texto para a sua redação.
A cachorrada latia, os gatos miavam. As mulheres nos tanques
batiam roupas e cantavam, o rádio tocava, os bebês choravam, as
carroças passavam rangendo, os vendeiros gritavam olha a laran-
ja, a banana caturra. A rua estava todinha vivendo e entrava a
vida pela casa.
Ele fugia para um recôndito secreto e se juntava a uma le-
gião de folhas amareladas, de segunda categoria. Era ele e as fo-
lhas em branco, que não eram brancas.
As crianças custaram muito a entender o que ele fazia. Até
pensavam que era um jogo que jogava.
Depois perceberam, muito depois... Perceberam que ele
escrevia, quando começaram a ler o jornal dos negros e encon-
traram o nome dele.
Como? Como veio parar o nome dele nesta folha de jornal,
indagavam-se.
Depois... Muito, muito tempo depois, além do nome dele,
descobriram que ele escrevia o sonho bom que sonhava, diante
do prato de feijão com farinha. Foi num dia em que falava duran-
te os seus sonhos. Falava contra a discriminação e os preconcei-
tos, exigia direitos iguais, embravecia com os maus governantes,
reclamava do custo de vida, de miséria, divulgava o Carnaval, a
beleza negra, estimulava a educação, homenageava os operários.
Falava sobre o povo que amava. Incentivava o desenvolvimento

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ROTA EXISTENCIAL

do povo, dizia suas verdades e fazia poemas. Trabalhava muito,


colocando a ideologia dos seus sonhos no papel, naquele tempo
em que as crianças pensavam que estivesse fazendo um jogo, es-
condido de todos.
E foram descobrindo em suas palavras que ele era um he-
rói, que não guardava para ele o sonho bom. Era um operário da
palavra do jornal A ALVORADA.
Naquele tempo, escrevia suas idéias no jornal do povo ne-
gro, mesmo que sonhasse em frente ao prato de feijão com fari-
nha e estivesse cansado de trabalhar à noite, de tipógrafo e revi-
sor de outro jornal.

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HELENA DO SUL

DE BILAC AO NEGRO DRAMA

Na escola da vila de um bairro pobre, onde faltava água,


onde faltava luz e sobrava barro, sobrava mosquito e muito toque
de gaita e violão, os alunos e alunas do quarto ano primário sa-
biam uma, pelo menos uma das poesias de Olavo Bilac, de cor e
salteado: “O Trabalho”.
As professoras insistiam nos versos “feliz quem pode or-
gulhoso, dizer nunca fui vadio e se hoje sou venturoso devo ao
trabalho o que sou”.
Influenciadas pela poesia de Bilac, as crianças não ficavam
paradas. Ao chegarem em casa, queriam ser venturosas a qual-
quer custo e o jeito mais próximo estava no exercício do trabalho
que havia entrado nas cabecinhas de cada uma - “Não nasce à
fruta perfeita, não nasce o fruto maduro. Para semear a vida, o
trabalho se inventou”.
Em casa, ajudavam a estender roupas nos varais, a varrer o
assoalho, o chão batido, a dar milho prás galinhas, regar as plan-
tas. Pareciam tão felizes.
Alguns meninos iam mais longe para trabalhar de jorna-
leiros, engraxates, vendedores de frutas, entregadores de lavados
que as mães ou as vizinhas faziam, arrumadores de túmulos no
cemitério, capinando as catacumbas e jogando água nas flores
que as enfeitavam. A ventura de suas primeiras aventuras traba-
lhistas vinha tinindo com as moedas nos bolsos das calças curtas
de riscado. Pareciam tão felizes. Esticavam a parca renda familiar,
antes que a renda encolhesse de todo até chegar ao final do mês.
A meninada parecia mais venturosa do que a própria ven-
tura apregoada por Bilac.
Ficavam donos de uma viva satisfação pela compra de um
lápis novo, de um pão sovado, da dúzia de bananas.

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ROTA EXISTENCIAL

Com a euforia dos versos de Bilac, as crianças do coleginho


da vila entravam no mercado de trabalho, muito cedo, transfor-
madas em operários, artesãos ou vendedores de qualquer coisa
nobre. Somente não trabalhavam os ricos, estes não moravam ali
na vila e nem estudavam no coleginho. Então, somente não tra-
balhavam os preguiçosos, os doentes ou aqueles a quem faltava
algum sentido que o impedia de trabalhar. Estes ficavam em casa,
vigiando o portão de entrada, jogando Cinco Marias, fazendo
barquinhos de papel, bolinhos de areia. Recebiam o carinho dos
irmãos que vinham da rua, quase sempre com um brinde: o piru-
lito mais recente da bodega.
Os meninos e meninas seguidores de Bilac faziam parte de
uma escola privilegiada que ensaiava versos para que eles e elas
ficassem bem acostumados com o trabalho.
Contam que agora, lá na escola da vila do tal bairro pobre,
onde faltava água, onde faltava luz e sobrava barro, sobrava mos-
quito e muito toque de gaita e violão... Lá onde os versos de Bilac
podiam fazer a ventura das crianças, agora os versos são outros.
De vez em quando as professoras mais ousadas fazem com
que os meninos e as meninas aprendam de cor e salteado a poesia
do Rap “Negro Drama”, dos Racionais MC’s.
Dizem que os meninos e meninas desta escola de ousadas
professoras, continuam privilegiados, pois ensaiam versos para fi-
carem de olhos bem abertos para não caírem em ciladas, para po-
derem viver, para lutarem pelos seus direitos, para se valorizarem.
Na vila já tem água, já tem luz, tem asfalto e não sobra qua-
se nada, a não ser a coragem de viver.

Negro Drama (fragmentos)

Negro drama entre o sucesso e a lama/dinheiro, problemas,


inveja, luxo fama
negro drama/ cabelo crespo e a pele escura/a ferida, a chaga,
a procura da cura/

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HELENA DO SUL

negro drama/ tenta ver, e não vê nada/ a não ser uma estre-
la, longe meio ofuscada/ sente o drama, o preço, a cobrança/
no amor, no ódio a insana vingança/
negro drama/ eu sei quem trama e quem tá comigo /o trau-
ma que eu carrego/ prá não ser mais um preto .../...passagei-
ro do Brasil...
...periferia, vielas, cortiços/ você deve tá pensando o que você
tem a ver com isso/ desde o início, por ouro e prata/ olha
quem morre então/ veja você quem mata/
...me ver pobre, preso ou morto já é cultural
...histórias, registros escritos /não é conto nem fábula, len-
da ou mito/ não foi sempre dito que, preto não tem vez/
(então)...

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ROTA EXISTENCIAL

PERFORMANCE ALIADA

Quando a noite estava chegando, as luzes acendendo nas


casas e nos palcos, entrava em cena uma atriz negra para fazer
sua performance artística, tomando a realidade cruel e anônima
de um poema de mulher, para transformá-la em beleza. A atriz
brincava com os poemas. Brinquedo tem que ter boniteza.
Bailava um monólogo, fazendo trajetos de voltas e saltos
com quedas bruscas no solo, ensaiadas quedas, diferentes da vida
que não tem ensaio prévio.
Dançava com o poema, agitando-se graciosamente nos
poucos panos coloridos que lhe cobriam o corpo lépido e jo-
vem.
Em sua performance, os versos simples de vidas simples
tornavam-se bases construtivas para os seus pés, enquanto li-
berava gritos com ecos de sonoridade útil aos movimentos que
fazia.
Na linguagem cênica exibia o pensamento do que já es-
tava pronto para dizer: Memórias Na Cabeça –“A tina escorreu
sua água derradeira /e lavou o chão, onde nasceu uma flor/ que
subiu seus galhos no redondo adorno/ multiplicando-se coroa/ para
a lavadeira da tina de madeira. A humilde Senhora agradeceu o
mimo/ e de mãos calejadas/ lavou a cabeça com as pétalas das flo-
res. E eram tantas flores/ que caíram todas, no fundo da tina/ E
subiram à tona, eternizando um florido vaso/ com as memórias da
cabeça/ da lavadeira da tina de madeira/ dos tanques e dos tonéis/
dos córregos, das sangas/ das fontes, dos rios e das cachoeiras/ das
divinas águas do Brasil.”
Na metamorfose da apropriação libertária das palavras
enclausuradas nos contextos das mulheres, aproximava-se de

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HELENA DO SUL

uma velha senhora, abraçando-a, acarinhando-a num repente de


aconchego. Descobria as memórias de mulheres negras, sobrevi-
ventes das angústias e dos pesadelos.
Com seu potencial de artista conseguia revelar no gesto, o
mistério do poema que dava vida à vida dessas mulheres.
Contam que a artista negra vai chamando a atenção dos
desatentos, apropriando-se da realidade do abstracionismo po-
ético para transformar em beleza, qualquer realidade, por mais
feia que seja.

33
ROTA EXISTENCIAL

SENHORA DO AVESSO

Diziam que aquela senhora era do avesso. Contrariava


muitos princípios da boa apresentação e aparência das mulheres
da época.
Chamava a atenção pelo acervo de roupas que vestia.
Muitas saias em cima de outras saias, um monte de panos de-
pendurados, da cabeça às pernas. Parecia uma colcha de retalhos
de exposição de artesanato. Era cabide humano de um ambulante
guarda-roupa.
A estranha criatura despertava os olhares de desaprovação
das senhoras direitinhas, sem avessos por fora. Recebia, na frente
da cara, os insultos de gente ordinária, que pensa que vale mais que
os outros, só porque os outros deixam seus avessos expostos.
Mas a mulher não ligava para o alheio e seguia pelas ruas,
centrada nela mesmo.
Andarilhava até a hora de tomar café da tarde. Parecia hora
sagrada de voltar para casa. O importante era voltar para casa, na
hora do café.
Quem a observava de mais perto, conseguia perceber o seu
cansaço, as mãos calosas onde pendurava um rosário de pérolas
no dedo indicador o qual, de vez em quando, apontava para o
céu. Quando apontava o indicador para o céu, ela gritava: Papai
é o maior.
Os torcedores de um clube de futebol da aldeia, batiam
palmas; dizendo que ela era da torcida, pois estaria dando início
ao hino do clube: “papai é o maior, papai é que é o tal, que coisa
louca, que coisa rara, papai não respeita a cara.”
Mas as beatas da igreja rejeitavam a euforia esportiva. Ca-
paz! Diziam que ela saudava o Pai do Céu. Este sim, era o Maior.

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HELENA DO SUL

Ninguém decifrava a chamada que aquela senhora do aves-


so fazia ao pai. Capaz! Ninguém decifrava. Papai é um nome tão
comum que cada um pensa o que quer a seu respeito. Nada de
especial revelava a procedência do pai aclamado pela senhora
maltrapilha.
Mas bah! Ainda tinha a turma que chamava a mulher de
louca. Era uma gangue que não entendia de gente e muito menos
de gente que andava do avesso.
Mas não era uma pedinte. Tinha casa com cama e colchão.
Estava fora da linha de miséria das estatísticas da aldeia. Recebia
visitas que não resistiam aos seus bolinhos de milho. E o café que
preparava com açúcar queimado, era delicioso.
Quando voltava para casa, sempre à hora do café da tarde,
fazia uma fumaceira no estreito pátio dos barracos onde também
era proprietária. Deitava na panela o açúcar para queimar. Pre-
parava suas balas de açúcar queimado, para a alegria das poucas
crianças dos arredores.
Chamava outras pessoas que não andavam do avesso e
lhes oferecia café com pão. Contava casos, muitos casos de negras
como ela.
De memória lúcida e sanidade total, terminava o assunto
com uma pregação sociológica e religiosa: Papai é o Maior. Ele é
que sabe quem sou eu. Ando do avesso por opção. Tenho casa, te-
nho café, tenho milho e tenho pão. As aparências enganam.

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ROTA EXISTENCIAL

AS IRMÃS LIMEIRA E O SAMBA DE RODA

As irmãs Limeira eram remanescentes de africanos que


foram escravizados e trazidos para trabalhar nos engenhos e la-
vouras de cana-de-açúcar do Recôncavo Baiano. Moravam em
Cachoeira, na Bahia.
Seguindo a maioria das mulheres negras de tempos passa-
dos, eram lavadeiras de exímios dotes que ficavam escondidos,
enquanto estavam nas beiras das tinas.
Durante a semana, de segunda a sexta-feira, não davam
trégua ao trabalho. Gastavam as mãos nos lavados das patroas.
Mas quando o sábado chegava, viravam as costas para a lavação
de roupas. Faziam coisas sempre iguais, porém muito diferentes
de esfregar sabão em pano sujo. Revelavam um tanto dos dotes
invisíveis.
No sábado, o ritual era somente de prazer especial, só para
elas. E o prazer começava na sala do barraco que deixavam bem
limpinha; vinha da cozinha que deixavam com aquele brilho de
sábado. Até recortavam guardanapos de papel para enfeitar os ar-
mários das louças, das panelas e caçarolas de barro. Tiravam o pó
das molduras dos quadros que mantinham na parede, exibindo as
entidades de devoção. O trabalho tornava-se demorado, mas ale-
gre, pois a limpeza dos quadros era acompanhada por um demo-
crático recital de cantorias religiosas. As irmãs Limeira cantavam
pontos e rezas, afinando a garganta para o sábado à noite.
Depois da faxina caseira e devoção às entidades, as irmãs
apoderavam-se de uma nova estrutura energética.
Tranqüilas, preparavam enroladinhos nos cabelos para que
ficassem crespinhos e bonitos na hora de pentear. Passavam uma
lixa grossa nos pés para tirar a grossura dos vincos deixados pe-
los tamancos. Massageavam as mãos com gordura de Galinha de

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HELENA DO SUL

Angola para amenizar as rachaduras do sabão de soda. Davam


um banho no sexo, um banho de assento com malva cheirosa.
Ficavam novinhas e perfumadas. Cada uma fazia a reparação
afirmativa de si mesma.
Pronto! Começavam a expandir muitos dotes da boniteza
que ficava escondida na beira das tinas.
Nos encostos das cadeiras, já lhes aguardavam as saias de
chita colorida, de babado grande nas extremidades; as batas mara-
vilhosas de renda branca e os colares de contas, de pedras, de fios
dourados e prateados. As sandálias, em cima da esteira, espiavam a
arrumação das moças. Estavam prestes a botar o pé na rua.
Um baton vermelho, a água de cheiro e... Um sorriso no
rosto. As irmãs Limeira ficavam feitinhas da cabeça aos pés, para
pegar o rumo do samba de roda.
Sábado era dia do samba de roda das lavadeiras, no quintal
de tia Gonçala.
No quintal se reuniam as lavadeiras das bandas da Pingue-
la, da Ladeira do Rosarinho, da Ladeira da Cadeia, as lavadeiras
do terreiro de Ogum da Lei e as que vinham das vielas próximas
da Irmandade da Boa Morte.
O samba de roda era uma beleza de reunião dançante. Lá
estavam as meninas, em todos os sábados.
O seu Júlio cantava um samba bom, que as lavadeiras co-
nheciam. Toda gente batia palmas, na marcação do ritmo. Com
a marcação dos tambores e pandeiro, o samba de roda ia ficando
melhor do que já estava, na palma da mão. Começava o toque
das violas, que estas não podiam faltar, no quintal de Tia Gonça-
la: - Ai que samba bom. “Xô, xuá cada macaco no seu galho, xô,
xuá, eu não me canso de falar”.
O samba ficava cada vez melhor, mais animado, mais sam-
bado ao som dos cavaquinhos, dos violões, dos bandolins, no
quintal de Tia Gonçala. Êta samba divino. Tirando as festas reli-
giosas, era o único lazer das lavadeiras do lugar.

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ROTA EXISTENCIAL

Tia Gonçala, distante da roda, sorria de contente. Ficava es-


cutando o samba na cozinha, na volta do panelão onde aprontava o
Caruru para servir com feijão e rapadura, no intervalo do samba.
As irmãs Limeira eram as primeiras sambadoras a chegar
e as últimas a deixar o quintal, onde revelavam muitos outros do-
tes que ficavam invisíveis na beira das tinas. No domingo, ainda
tinham fôlego para subir a ladeira do Rosarinho para ir à igreja.
Pediam forças para aprontar os lavados e muita alegria e saúde
para tia Gonçala perpetuar o samba de roda. Afinal, era a única
diversão das moças de Cachoeira.
Durante a semana, a mesma vidinha, lava roupa todo dia.
Menos no sábado.
Até que veio aquela semana de abril, com chuva o tempo
inteirinho. Nenhuma roupa secava no varal. Foi um inferno de
molhação. O sábado chegaria e as irmãs, com certeza, não teriam
terminada a lavação. Andavam de um lado para outro, tentando
solução para o caso da natureza que conspirava contra elas.
Procuraram até o seu Maurício Rezador para que benzesse
o tempo. O bondoso rezador disse que era fácil, que elas atiras-
sem sabão virgem no telhado e pedissem para Santa Clara clarear,
que repetissem sete vezes o pedido.
Confiavam muito nas rezas e benzeduras do ancião. Então,
mãos à obra, sabão virgem nas mãos e o pedido para Santa Clara,
sete vezes. Mas acharam que sete pedacinhos de sabão, somente
sete pedacinhos seria pouco para dar a uma Santa que poderia
fazer o milagre tão grandioso de parar a chuva.
Resolveram jogar sete vezes sete pedaços de sabão virgem
em cima do telhado, quarenta e nove pedaços... Bastante sabão,
todo estoque da casa, à espera do milagre.
Era sexta-feira quando a chuva parou. Foi quando se de-
ram conta que não tinham mais sabão. E agora? Nem dinheiro
para comprar.
Recebiam o pagamento por semana, na sexta-feira, quando
entregavam as roupas para as patroas. E agora? Como lavariam a
trouxa acumulada por conta do aguaceiro?

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HELENA DO SUL

O sol brilhava, convidando para secar todas as roupas que fos-


sem lavadas e penduradas nas arvores, nas farpas dos galinheiros,
nas cercas de taquara. O sol estava forte. As meninas, sem sabão.
Foi quando uma delas resolveu subir no telhado para apa-
nhar todo o sabão que haviam dado para Santa Clara.
Não tinham escada. Armaram uma “arapuca” de cadei-
ras velhas para subir nas telhas. Sobe uma delas, vai, vai subindo,
vai... Escorregou e...Puft, plaft, foi devolvida para o chão. Caiu de
mau jeito, de pernas para o ar, com a bunda grande, bem bundada
na areia. Ficou toda quebrada.
A outra irmã gritava, chorava. Maldizia o rezador. Lembra-
va do samba de roda.
Naquela semana, o sábado não teve graça para as irmãs
Limeira.
No quintal de tia Gonçala, o samba de roda corria solto.
Cadê as meninas, cadê?
Estavam em casa, comentando: “antes de consultar o reza-
dor, a gente nem lembrou do conselho que ‘mãinha’ nos dava
com versos:” Tanta roupa prá secar/ e esta água a escorrer. /Vou
pedir a Santa Clara/ para cessar de chover./ Meu pedaço de sabão/
vou no telhado atirar/ e repetir por três vezes/ Santa Clara, clarear/
Mas mamãe dizia sempre/ não se da tudo que tem/ nem mesmo se
for pro Santo/ porque depois vem o pranto./ Conselho de lavadeira
/ não pode ser desprezado./para não correr o risco/ de cair lá do
telhado/ prá tomar o que foi dado.”

39
ROTA EXISTENCIAL

CONTADORA DE HISTÓRIAS

Utilizava-se de todas as técnicas para prender a atenção


das pessoas, mas sua maior estratégia, a mais genial era a palavra
colocada na hora certa de rir ou de chorar. Dava vida ao sussur-
ro, ao grito, aos mistérios. Contava as histórias, fazendo gestos,
caras estranhas, alegres e tristes. Fazia mímicas exóticas. Tirava
sons, tudo na boca, de toque de instrumentos, vozes de animais,
barulhos de coisa quebrando, de chuva chovendo, de portas ba-
tendo, de pedras rolando, de água escorrendo, escorrendo nas en-
costas dos morros. Encantava os ouvintes.
Entre dezenas de histórias, havia uma preferida que recon-
tava para um grupo de senhoras.
Lembro que andava de um lado para outro, de olho no
olho de quem estivesse ao seu redor. Começava com aquele co-
meço que nem precisava do tradicional era uma vez. Afinal, se-
riam muitas vezes o mesmo conto. Entrava direto no tempo,
lá pelos anos de quando ainda eram crianças, as suas ouvintes.
Tinha repertório para todas as idades.
Falava pausadamente para que pudessem apreender o que di-
zia e para que tivessem tempo de colocar no imaginário, a cidade do
Rio de Janeiro, de muitos anos atrás. Quando julgava que todas as
pessoas já estivessem com o Rio de Janeiro na cabeça, fazia um con-
vite para que subissem o Morro do Boreo, na década de cinqüenta.
Cada uma criava o morro, nos pensamentos, e pendurava-o na cida-
de que já havia imaginado com a imaginação de cada uma.
Então, ela começava a descrever o Morro do Boreo com
fábricas de tecido, com muitos homens pretos e mulheres pretas
que trabalhavam nas fábricas. Falava muito bem da negrada ope-
rária da tecelagem. Explicava que as fábricas também tingiam os
tecidos.

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HELENA DO SUL

No momento em que falava, surpreendia a platéia, enfeitan-


do o galpão onde contava histórias, com dezenas de lenços colo-
ridos que jogava para o alto. Dizia que os lenços de todas as cores
lembravam os panos que os negos e negras tingiam nas fábricas.
Contava que o tingimento dos tecidos sujava as águas de
um córrego do Boreo, onde as lavadeiras costumavam fazer os
seus lavados. Falava com tristeza que as águas fluíam coloridas
para dentro do córrego, impedindo que as lavadeiras do Boreo
lavassem as roupas das patroas, pois ficariam manchadas. As la-
vadeiras ficavam esperando muito, muito tempo até que a água
ficasse limpa.
Não tinham condição de saber o dia e muito menos a hora
em que as fábricas soltariam as águas tingidas. Nenhum aviso
prévio era dado. Se ficassem tingindo os panos por longo perí-
odo, as mulheres não podiam trabalhar, nem ganhar dinheiro,
enfatizava, indignada.
A partir daí, parecia que a história iria se transformar em
narrativa de queixa trabalhista. Mas... Pausadamente, voltava à
geografia do morro. Contava que a maioria das lavadeiras morava
na parte bem alta do Boreo e que para chegarem às margens do
córrego, tinham que descer uma escadaria, carregando enorme
bacia de alumínio, cheinha de roupas sujas. Chamava a atenção
para o longo trajeto acidentado que as mulheres faziam, equili-
brando na cabeça o bacião das roupas, assentado na rodilha.
Para amenizar o conto de trabalho, convidava a platéia
para imitar as lavadeiras, descendo o morro do Boreo. Surgia
uma, mais uma, uma porção de mulheres para o voluntariado.
Improvisava trançados afro-brasileiros com os lenços que
havia jogado para o alto e aprontava as rodilhas que ia colocan-
do nas cabeças das voluntárias. As mulheres faziam de conta que
desciam o morro imaginário, acariciando a bacia na cabeça. Os
gestos, os trejeitos, os bamboleios femininos tornavam o ambien-
te mais alegre e a história ganhava muita animação.
Passada a hora da divertida performance, continuava o
conto.

41
ROTA EXISTENCIAL

Narrava que na volta da lavação, o caminho se tornava mais


difícil para as mulheres. As lavadeiras teriam que fazer o trajeto
inverso e subir... Subir as escadarias do Boreo com crianças pela
mão, bacias na cabeça. Era um exercício nada agradável no coti-
diano das lavadeiras. Subida íngreme, degraus desordenados, de
espaço muito curto entre um e outro.
Apressava a fala e antes que as ouvintes imaginassem a
subida do morro, com tombos e tropeços das lavadeiras, revelava
um mistério, um grande mistério de proteção que rondava as es-
cadarias. Era uma força vinda do céu que fazia com que ninguém
caísse ou tropeçasse na escadaria. Ninguém tombava na subida
do morro, nenhuma lavadeira, mesmo cansada, carregando fi-
lhos e bacias, mesmo assim, com fome e cambaleantes, depois
de tanto esperar que as águas do córrego ficassem limpas para
que pudessem fazer a lavação. Ganhavam forças misteriosas que
amparavam suas canelas.
Tudo era mistério até que começou a correr o boato que na
escadaria do Boreo morava o espírito de uma dona que se tornara
guardiã de todas as lavadeiras que subiam pela encosta. As mais
videntes engrossavam a boataria, jurando que viam a dona se
aproximar e dar a mão para as mulheres. As mais sabidas e arro-
jadas até descreviam o mistério, dizendo ser uma antiga lavadeira
do Boreo que cantava e trabalhava sem parar. Até mesmo quando
as águas fluíam coloridas, trabalhava tanto. No córrego, Paraí­so
das Lavadeiras, enquanto trabalhava, também cantava Jamelão,
Dolores Duran, A Noite do Meu Bem, Ave Maria! Esquecia das
dificuldades da vida, enquanto a água corria aguaceiro, força vital
que ia molhando as roupas, as sujeiras, suas vestes, seu sexo, seu
eu, todinha ela que transparecia mulher, límpida, independente
da correnteza.
O boato corria: o espírito da antiga lavadeira rondava a es-
cadaria. Ela havia feito uma passagem misteriosa para o além e
estaria voltando em forma de mistério.
Contavam que, em vida, era esquecida dela própria, sub-
missa a um marido castrador de seus desejos femininos e que
carregava um grande desgosto conjugal. Corria boca a boca que

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HELENA DO SUL

ela cantava na beira do córrego e confidenciava com suas águas


coloridas, as coisas íntimas que a atormentavam. Prosseguiam
dizendo que em certa manhã, depois de lavar muita roupa, a mu-
lher entrou nas águas e cantou um canto triste sem fim, enquanto
ia despindo suas vestes. Ficou nua, nuinha, bem no momento em
que a fábrica de tecido tingiu as águas de preto, colorindo a mu-
lher negra com sua própria cor. Olhando o corpo nu, suas formas,
os seios e o sexo negros rejeitados, entregou-se ao córrego e foi
desaparecendo nas águas, devagarinho, submissa à correnteza.
O povo inventa boato em cima de boato e até falavam as
Mães de Santo, que a doce Oxum, com lástima da mulher, to-
mou-a nos braços, envolvendo-a em seu manto, poupando-lhe da
exposição da intimidade. Levou-a para que sentasse na escadaria
do Boreo, onde descansou dos pensamentos, com dignidade, ro-
deada de anjos negros.
Assim, de boato em boato, as lavadeiras foram sabendo de
onde vinha o mistério que as protegia na subida do Boreo. E as
mais irreverentes fizeram uma homenagem coletiva para a dona
que morreu de baixa-estima. Juraram, ajoelhadas na escadaria do
Boreo, que iriam trabalhar, cuidar dos filhos e exigir o respeito
dos maridos nas camas ou nas redes, nos tapetes ou nas esteiras,
nos catres, nos beliches, no chão batido ou no assoalho... Antes só
do que não valorizadas.
No final, a contadora de histórias dava um fechamento
apoteótico ao que contava. Viva as mulheres! Viva a mulher que,
vence a morte para viver na vida de outras mulheres, protegendo-
as dos perigos.
A contadora de histórias sabia contar histórias de fadas,
de príncipes, histórias inventadas mesmo... E histórias reais, com
muita propriedade.

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ROTA EXISTENCIAL

CAMBITUS

Pois é... Aqui em Brasília me deparei com uma loja chama-


da Cambitus. E para mim, não foi surpresa que exibisse um painel
luminoso com varas finas de madeira em formato de forquilha.
Cresci, ouvindo minha família chamar de cambitus, as canelas
dos meninos e meninas. E era comum dizerem que as crianças
tinham uns cambitinhos, tão bonitinhos. Como nossas canelas
eram finas, logicamente, fui concluindo que cambitus tinha a ver
com qualquer coisa muito sem volume, do tipo vara de pau.
Mais tarde, passei a observar que um certo grupo de negras
de minha cidade possuía cambitus, as canelas finas como eu. Não
sabia de qual nação africana procedíamos. E até hoje o que sei é
que as canelas finas são resistentes e que sustentam, não raramen-
te, uma bela e enorme bunda.
Mas voltando à loja Cambitus... A loja. Suas vitrines com
cristais e louças, utensílios de couro e adornos femininos, sempre
despertavam o meu olhar de passageira de rotina pela frente do
estabelecimento. Houve um dia em que adentrei pela loja, quan-
do o olho espiou mais ao fundo e enxergou bonecas negras e uma
variada coleção de porta- retratos de todos os tamanhos, expon-
do rostos negros, masculinos e femininos.
Claro que falei comigo mesma: será efeito negreiro da Lei
10.639/2003 ou a dona é negra assumida, de bem com ela própria?
Ou é a história dos cambitus que tem a ver com as canelas dos
negros?
Entrei na loja para bisbilhotar as tralhas. Foi quando me
tornei uma freguesa assídua da vizinha Cambitus, politicamen-
te correta na exposição das bonecas negras, nas maravilhosas
estampas de negros e negras nos porta-retratos, com oportunida-
de igual de visibilidade entre as bonecas e pessoas brancas.

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HELENA DO SUL

Comprei uma boneca negra para minha netinha. Enquanto


comprava, ia lembrando da professora Vera Triumpho que incen-
tivava o brinquedo com bonecas negras, em suas palestras de ati-
vista do Movimento Negro, no Rio Grande do Sul. Ia lembrando
do Projeto Bonecas Negras - Referencial de Beleza e Valorização
das Origens, das professoras Franquilina Cardoso e Maria Mar-
ques, com educativas atividades de auto-estima que, por muitos
eventos e escolas do Brasil, vão cumprindo missão de valorizar a
beleza das crianças negras, de estimular a identificação delas com
as bonecas lindas, feitas com o cuidado de quem sabe o que faz
e porque o faz. Ia lembrando... Lembrando... A gente lembra de
tudo, embora longe do que se pensa ser tudo.
Passei a comprar na Cambitus e com o tempo, além de fre-
guesa e vizinha, fiquei mais próxima de Ivete, a dona da loja. Co-
mecei a manter conversas interessantes com Ivete que é mulher
branca, nordestina, plena de uma filosofia de vida muito especial,
centrada em ditas e benditas palavras de seus pais. São ditados
que lhe movem a mente e os atos no dia-a-dia.
Eu já estava acostumada com suas bonecas negras na vitri-
ne, com a luminosidade dos Cambitus no painel, com os rostos
de cor, lábios e cabelos que me davam a sensação de pertencer à
família deles, nos porta-retratos. Mas teve um dia em que entre os
sessenta porta-retratos, havia cinqüenta por cento de caras negras
expostas. Ah! Contei um por um. O fato chamou, positivamente,
a minha atenção.
Elogiei Ivete, meio no galope, correndo, ainda que fosse
um sábado de folga no trabalho. Mas driblando a estupidez da
corrida, resolvi ficar conversando, indagando, conferindo deta-
lhes dos detalhes que faziam o diferencial da loja, no Plano Piloto
branco de Brasília.
Ainda lembro de nosso diálogo.
– Ivete, sei que você é nordestina, mas de onde mesmo?
– Sou lá do fim do mundo do Ceará, de uma cidade cha-
mada Iracema que cresce todo dia, prá baixo, que nem rabo de
cavalo. Eu posso dizer isto porque sou de lá e amo minha cidade.

45
ROTA EXISTENCIAL

Mas sei por informações, que não sai do mesmo lugar, não tem
progresso.
– E este nome da loja, tem a ver com o quê?
– Os cambitus são muito utilizados no nordeste. São apro-
veitados para armação de banquinhos com assento de couro de
bode. E ainda, podem ser usados na lateral dos jegues, como su-
porte para carregar madeiras. Com os cambitus no painel, mos-
tramos de onde somos. Não negamos nossas origens. Fincamos
nossa bandeira e quem quiser que venha. Muitos idiotas não gos-
tam de nordestino, mas meu pai me ensinou que gente é gente.
– E estes porta-retratos, cheios de caras negras?
– Precisei colocar, coisa minha. Se mais tivesse retratos de
negros, mais botaria. Entra muita gente aqui, mas algumas pes-
soas têm atitudes que me marcam e me levam a pensar e a fazer
alguma coisa pela valorização delas, para educar. Elas precisam
se respeitar.
– O que elas têm a ver com os porta-retratos?
– Veio aqui uma família de negros com uma menina de
oito anos e o pai mostrou para a menina uma boneca negra, elo-
giando a boneca. Tomei o maior susto, quando a criança falou
para o pai: já te disse que negro não entra no meu carro.
Olha que problema. Uma criança de oito anos. Não leva-
ram a boneca.
– E o pai , falou alguma coisa?
– Falou nada. Ela deve ter repetido as palavras do pai.
– Mais um caso destes?
– Com certeza. Entraram na loja quatro senhoras negras
com uma menina negra de seis anos, bonita, muito bonita. Era
tão bonita que chamei a criança de princesinha linda. Então a
criança, de seis anos, me olhou e disse: Eu, não. Eu não sou bonita
porque sou negra.
– E a mãe, falou alguma coisa?

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HELENA DO SUL

–Falou nada. As quatro mulheres riram muito e eu precisei


interferir. Pedi que não rissem , que não era motivo para rir e
que tinham que cuidar daquela criança, pois se as pessoas não se
aceitam, não poderão ser felizes. A partir daí, tive o cuidado de
“caçar” mais fotos de negros e expor na loja.
– Tem mais história?
– Esta é de cravar. Entrou aqui um senhor negro, meia ida-
de, cabelos grisalhos. Enquanto eu atendia o senhor, passaram
uns jovens negros em frente da loja, rindo alto, coisa de garotada.
Pois não é que este senhor me disse: isto é uma gentalha, esta raça
é uma gentalha.
– E o que você falou?
– Não falei nada. Tenho feito. Eu faço. Encho a loja cada
vez mais de porta-retratos com negros e negras. Faço o mesmo
com as bonecas negras.
– Então é proposital a grande quantidade de negros nos
porta-retratos da Cambitus?
– Sou lá do fim do mundo do Ceará mas papai sempre me
dizia que gente é gente, não importa a cor, nem de onde vem.
Quem, por ventura, se achar melhor que o outro, vai ter dois tra-
balhos: um é de se achar e outro é de não ser.

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ROTA EXISTENCIAL

OBITUÁRIO

Nossa coluna que tem protagonistas em todos os dias que


Deus faz amanhecer, informa e lamenta o falecimento de Antô-
nio Vasconcelos Marques, aos 81 anos. Natural de Rio Grande,
não era simplesmente mais um riograndino, mas a representação
de muitos ideais de negros e negras da cidade que amava.
Torna-se, o velho companheiro, um sopro de energia espi-
ritual e nos deixa muitas lembranças que nos cabem perpetuar.
Órfão, ainda menino, conheceu a trajetória da vida, convi-
vendo com alheios que lhe impulsionaram as ações voltadas para
o trabalho, a honestidade e a crença nas suas e nas possibilidades
dos outros, principalmente da população negra riograndina.
Movimentando paralelepípedos, iniciou a trabalhar, cal-
çando várias ruas de Rio Grande por onde a sociedade passava
indiferente, enquanto ele se fazia adulto e guerreiro, pensante,
progressista.
Do calçamento das ruas passou a novos encargos, sempre
idealista e acreditando que é possível construir um futuro me-
lhor, investindo nas oportunidades, ainda que raras, de estudo
e trabalho.
Carregou muito couro nas costas, no Frigorífico Swifft e
depois envolveu-se com as atividades no Correio e na Inspeção
da Alfândega, no porto marítimo de Rio Grande.
Em sua trajetória de negro trabalhador tinha a idéia fixa
de realizar ações para o desenvolvimento dos negros de sua ci-
dade e arredores. Pensava muito sobre isso, pois achava que os
negros estavam sem referenciais que os valorizassem, sem estima
própria, sem orgulho de ser. E a começar por ele mesmo, para
que pudesse se tornar um exemplo vivo e presente, lançou-se

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HELENA DO SUL

aos estudos e conseguiu ingressar na Faculdade de Direito que


funcionava em Pelotas.
Durante quatro anos, andou no trem das cinco da manhã,
de Rio Grande para Pelotas, até formar-se advogado, aos 56 anos.
O dia da missa de suas Bodas de Prata com a Senhora Yvanoska
Corrêa Marques, coincidiu com a data de sua formatura, propor-
cionando-lhe dupla felicidade.
Exerceu advocacia na Assistência Judiciária, onde atendia as
pessoas desprotegidas, sem condições de pagar por qualquer serviço.
Seu primeiro júri foi no município gaúcho de São José do Norte.
Depois de muitas causas atendidas e vitoriosas costumava
receber “vivos presentes”, algumas galinhas carijós, dos galinhei-
ros da agradecida e pobre clientela.
Na época, década de 50, existiam apenas 03 advogados ne-
gros, em Rio Grande.
Antônio Vasconcelos Marques foi professor voluntário,
durante 10 anos, na Escola Marcílio Dias, onde atendia a maioria
negra para alfabetizar. Fazia parte dos Bandeirantes da Alfabeti-
zação, juntamente com amigos que se dedicavam à causa.
Incentivava os estudos dos negros, pois acreditava, acer-
tadamente, que estes possuíam condições intelectuais iguais aos
não negros. Nas décadas de 50 e 60, quando chegava ao final de
ano, fazia uma pesquisa nas escolas de Rio Grande e cidades do
Rio grande do Sul, como Pelotas, Bagé, Jaguarão, Santa Maria e
capital Porto Alegre, para saber quantos alunos negros estavam
terminando cursos. Conseguia o endereço dos estudantes e or-
ganizava uma festa chamada “Baile dos Formandos”, no Clube
Cultural Estrela do oriente. Os formandos e formandas, presentes
no evento, recebiam homenagens em eloqüentes discursos e um
diploma de honra ao mérito.
É possível que muitos doutores, mestres, licenciados, ba-
charéis, técnicos de várias áreas de Escolas Técnicas gaúchas, ao
lerem este obituário, irão voltar as lembranças para o Baile dos
Formandos, do qual tenham participado. Uma festa de valoriza-

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ROTA EXISTENCIAL

ção de seus esforços e pela estima própria dos negros, promovida


por Antônio Vasconcelos Marques.
Antônio foi presidente e fundador do Clube Cultural Es-
trela do Oriente, situado na rua Vice-Almirante Abreu, onde
desenvolvia atividades sócio-culturais para crianças, adolescen-
tes, jovens, senhoras e senhores negros. Participava ativamente
da vida social e cultural da negritude, organizando festas, pro-
movendo palestras. Freqüentava também a Sociedade Floresta
Aurora Riograndina e outras expressivas entidades sociais de Rio
Grande, como “Braço é Braço” e “Recreio Operário”.
Entusiasmado com o futebol, fundou e presidiu o Fortaleza
Futebol Clube, com sede na rua Francisco Marques, na “Noiva
do Mar”, codinome de sua cidade natal.
Referia-se com muito respeito ao Cedro, um bairro que, com
o advento do Porto Novo de Rio Grande, foi sendo formado por
muita gente vinda do interior do Rio Grande do Sul, com grande
quantidade de famílias negras que se integraram aos “papa-areia”,
apelido que costumava ser dado aos moradores de Rio Grande,
quase uma ilha cercada de mar e com muita areia, pela proximi-
dade da praia.
Antônio Vasconcelos Marques, viúvo há poucos meses an-
tes da partida, deixa entre nós a filha Franquilina Maria Marques
Cardoso, os filhos Antonio Carlos Corrêa Marques e Angelo Al-
bertino Corrêa Marques
Representou uma bandeira de luta pela família, pelas opor-
tunidades iguais, pela estima própria da população negra, como
costumava dizer.
A quem não estava acostumado a ler um obituário assim
tão extenso, exponho minhas considerações de que, sendo este
um jornal da negritude; e eu, a dona do editorial, uma negra que
não esquece das origens e nem do Baile dos Formandos, há de
convir que precisam ser destacadas as ações positivas dos cida-
dãos negros que outros jornais não destacam, nem na vida... mui-
to menos, na morte.
Antônio Vasconcelos Marques, descanse em paz, amém!

Porto Alegre, 22 de abril de 1988

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HELENA DO SUL

BAILARINOS ODARA

Diene, Fernanda, Joice,  Priscila e Twanny, realmen-


te estiveram odara, levitando nos pés, com a alma evadida dos
poros, embaladas pela sonoridade contagiante dos tambores do
Mestre Dilermando e seus príncipes da percussão, Luiz Felipe e
Laerte.
Muitos aplausos e aqueles olhares de aprovação às de-
monstrações artísticas do Grupo Odara, marcaram um momento
extraordinário de Arte, no auditório do Salão Nacional dos Terri-
tórios Rurais, no dia 29 de novembro de 2006, em Brasília.
A habilidade artística das meninas cujos gestos cênicos
trouxeram leveza e garra ao cenário afro da dança, foram de dar
inveja aos beija-flores  do planalto.
Oliveira Silveira jamais pensou que sua poesia Quilombos
ganhasse roupagem estética no corpo das mulheres odara que,
na releitura dos versos, transmitiram a emoção de dançar livres,
esculturar cenários de pés, mãos e colorido harmônico para reve-
renciar os ancestrais, de sorriso no rosto.
Com o coral das crianças na canção de Giba-giba, as baila-
rinas presentearam o público com a docilidade da paz nos passos
de silêncio e na expressão das faces, convidando à vida.
Na vibração dos tambores,  veio o convite espontâneo à
marcação das palmas na platéia que não ficou indiferente e ba-
lançou maravilhada com o som e a imagem do bailado das ando-
rinhas negras vindas do sul do Brasil.

 Odara, grupo de dança que faz parte do Centro de Ação Social, Cultural e Educacio-
nal Odara, da cidade de Pelotas-RS. Iniciou suas atividades pela dança e atualmen-
te dedica-se ao teatro do Oprimido, educação, atividades de implementação da Lei
10.639/2003, nas escolas.

51
ROTA EXISTENCIAL

Rolando, aos pés do chão, subindo aos céus, gingando na


metáfora musical prá vencer a adversidade,  no jogo de cintura,
as dançarinas de ébano foram um show à parte de sensibilida-
de artística e muita graça. 
Sem medo, desafiante e integrado com outras culturas po-
pulares da Catira, do Boi Catirina dos Lençóis, do Mar-abaixo
dos quilombolas do  Amapá, das místicas canções indígenas de
nua pureza, dos suaves acordes de violeiros apaixonados, o Gru-
po Odara , de Pelotas, trouxe um recado de disciplina e Arte no
portentoso palco onde as diferenças tiveram vez, com muita dig-
nidade.
Depois, a bailarina negra chorou... Mas conseguiu falar
baixinho:   “tenho a sensação do dever cumprido”.
Mestre Dilermando  sorriu e vieram os abraços, os conta-
tos, os convites daqueles que desejavam viver, em qualquer dia
desses, outros momentos ODARA.
 

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HELENA DO SUL

ATRÁS DESSE MATO MORA UM POVO

Chamar um táxi... Sim, o táxi...


Era uma cliente da cooperativa de seu Mano. A Coopera-
tiva possuia convênio, há muitas décadas com a Fundação Assis-
tencial Das Andantes, carinhosamente chamada de FADA.
A fundação havia sido criada por pessoas vitimadas pelo
transporte coletivo. Aceitava, sem discriminação de gênero, só-
cios e sócias de todos as paradas da aldeia, desde que procurada
sob alegação de prejuízos morais, traumas psicológicos e pro-
blemas de saúde ocasionados pela utilização de ônibus, lotações,
vans, kombis, trens, metrô e assemelhados que circulam pelas
vias, recolhendo e empilhando gente.
A cliente precisava chegar a um local que ficava a uns vinte
e cinco quilômetros de casa. Aconteceria um evento por lá. E
nem pensar em perdê-lo. “Eu heim, nem pensar...” Cantarolava,
como Kleiton e Kledir. Capaz que não estaria presente.
O grande evento “Diferenças Diferentes” prometia inú-
meras atrações educativas, sociológicas, inclusivas-dispersivas e
mais... Teria discurso de muitos, dando conta do mais ou me-
nos que estava sendo feito para atender às diferenças diferentes
dos habitantes da aldeia de Macunaíma. Tudo a ver com o que a
cliente da cooperativa gostava: questões divergentes, convergen-
tes, de todas as cores e feitios, com altos e baixos pontos de vista,
arestas, furos e crateras. Apreciava uma polêmica, mexendo com
estas coisas paradoxais e participativas. Já imaginava a miscelâ-
nea de idéias, ao estilo de um evento democrático respeitável.
Chamou o táxi.
– E aí, seu Mano? Por favor, me busque. Estou em casa.
– Oxe!! Tô chegano.

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ROTA EXISTENCIAL

O taxista, sempre o mesmo, amigo de todas as horas de


correria, apareceu em dez minutos.
– Bom dia! Prá ondi vamo?
–A gente vai prá Academia de Bocha.
– Di que?
– De Bocha, seu Mano. Um jogo muito antigo, em canchas de
chão batido, onde movimentam umas bolas pesadas. Agora, não sei
como está o chão. Mas continuam jogando e tem até Academia.
– É o mudernismo, dona. O chão se mudifica.
Como de hábito, seu Mano vai dirigindo, comentando e
encompridando as notícias da aldeia. Depois ousa perguntar:
– O que tá acuntecendo na Academia di Bocha? É a sétima
currida prá lá. Já levei gaúcha, nordestina, carioca, pessoar do
norte e uma indiada, daqui memo, do Goiás.
– Está acontecendo um eventão: Diferenças Diferentes,
troca de idéias.
– Cum quem? Cum gente puderosa?
– Poderosa sou eu, seu Mano, que tenho a honra de sua
companhia.
– Tá animada, dona, brincano di manhã. A gente qui é po-
bre tem memo qui brincá, sinão morre di tristeza. É um causo tão
véio qui nem pensamentu.
– Somos ricos, seu Mano. Martinho da Vila canta e nos
ensina que sonhar não custa nada.
– Mai na verdade memo, num sumu pobre. Tamo cum saú-
de, tá bão demais. Nem posso mi quexá. Já formei dois minino.
Tão fazendo um Póis agora.
– Que Pós agora que eles fazem?
– Tudo que vinhé dipois: camelô, professor temporário, ven-
dedor de seguro.
– Estou sabendo que Pós agora não é fácil. E aí, estamos
chegando?

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HELENA DO SUL

– Por incuanto tamo chegano pertim do mato.


– Como é que tem esse mato perto da zona nobre da Aca-
demia de Bocha?
– Oxê! E dentro dessi mato mora um povo.
– Fiquei curiosa. Que povo é este?
– Uma tropa di gente e um muntuera de porco, galinha, je-
gue, veado, carcará, surucucu, piranha e até lubisomem, tombém.
– Seu Mano! Como o senhor sabe disso? Que sistema é este
do mato, capaz de tornar invisível uma cambada de povo?
– Oxê! O mato acuberta quem tá dentro, pra quem tá de
fora num vê. Mai só num sabe, quem num qué sabê. Só nun vê,
quem num qué vê.
– Então pare o carro, por favor. Quero saber, quero ver.
– Pida isso, não. Vai chegá atrasada nu seu rumo. Se acun-
tente só cum o chero forte du mato.
– Quero ver este povo de cheiro forte.
–Tá bão, mai vô junto cum a dona.
– Venha mesmo. Se tem povo lá dentro, como é que o
Mano e eu vamos ficar fora da fita?
Entram no mato, como se fossem visitar um grande amigo.
A dona extasiada começa a gritar: pelos claros e escuros
que estou vendo neste mato, o evento é aqui. Já deve estar na hora
do ‘coffe break’.
Apavorado com o tal ‘coffe break’ anunciado por dona, seu
Mano mais que depressa coça a barriga, deixando aparecer o fa-
cão na cintura. Encurta o passo e pergunta:
– Qui é isso, dona?
– Café com mistura, seu Mano.
– E pircisava tê um nome de gringu? Pensei logo numa coffe
break, tipo AR 15.

55
ROTA EXISTENCIAL

– Seu Mano quase acerta. É uma arma, mas para matar a


fome da manhã. O nome é prá complicar e fazer qualquer pão
com mistura ficar mais chique. O importante é que a gente en-
contre café, aqui no mato. E olhe que povo criativo! Repare ao
longe as barraquinhas ornamentadas para o café com mistura.
Que povo criativo! O mato está enfeitadinho... Parece até um
mapa temático com diferenças diferentes. O evento é aqui, seu
Mano, não tenho dúvidas. Devo ter errado o endereço.
Seu Mano, pouco ou quase nada entendia de mato enfei-
tado, de mapa temático, mas entendia muito bem das barraqui-
nhas. Sentiu que a dona estava inventando coisa. O que havia no
mato era uma porção de malocas e barracos cobertos com sacos
de lixo, com folhas de palmeiras, de capim sapé, barracos de ado-
be, moradia de Kit invasão, de cooperativa habitacional, barracos
de caixotes de verdura, de compensado, as lajes de alvenarias, os
puxados. Seriam os enfeites que a dona enxergava? Preocupado,
pergunta:
– Vai memo inveredá matu adrentu? Vai passá pelus bar-
racu, inté chegá na casa grandi?
A dona responde:
– Casa grande a gente enxerga da pista. Quero entrar nos
claro-escuros invisíveis, do mato.
– Tá bão.
– Venha seu Mano. Venha se oferecer para o café com mis-
tura. Deve ser um povo solidário.
E quando foram conferir o café nos barracos, viram que já
conheciam todas as iguarias e que delas ainda guardavam o sabor
na boca: café com farinha, mingau de farinha, ovo na farofa, revi-
rado de feijão, milho cozido, água com açúcar, limonada...
– Este povo do mato está na gente, seu Mano.
– Dona, num diga uma bestage dessa. É muitcha gente.
Num cabe tudo ni nóis.
– Está bem. Então somos nós que cabemos neste povo, na
medida certinha.

56
HELENA DO SUL

Enquanto conversavam e iam correndo barracos para o


café da manhã, eis que a polícia de trânsito encosta na via, des-
confiada do táxi parado na boca do mato, já faz tempo.
Um dos policiais copia a placa do Fiesta grená, procura o
dono, campeia pelo mato, dando tiros para o alto.
Muita gente ainda está na metade do café, outros e outras
em jejum, mas todos e todas correm. Parecem estar com medo.
– Dona, vamu imbora. A polícia intro nu matu.
– Agora, não. Deixa a polícia ir embora.Tenho medo de
bala perdida.
–Dona, vamu imbora. Nu mei dessi povo tombém tem arma
escundida. Bala perdida num vem só di caboco da polícia.
Quando o povo parou de correr da polícia, o contexto do
mato ficou convidativo a um belo passeio. Natureza pródiga, lin-
da. Dava até para esquecer do recente tiroteio.
Seu Mano e a dona caminharam por entre os claro-escuros
com a maior naturalidade. Contaram pelo menos uns duzentos e
vinte agrupamentos de índios, estimaram estar rodeados de mi-
lhões de pardos e pretos e um número menos expressivo de caras
pálidas. De barraco em barraco, de norte a sul do mato, não faltou
a escuta dos sujeitos. A dona perguntadeira provocava o falatório
com toda gente.
Depois da estimativa estatística e das falas, ficou ainda mais
convicta da idéia de que o evento era ali mesmo, no mato, tal a
densidade representativa das diferenças diferentes.
Decidiu que ainda não seguiria caminho para a Academia
de Bocha, pois aceitaria o convite para o almoço com o povo do
mato.
Se o café da manhã estivera original e farto, o almoço pro-
metia um festival de comeragem. Viva a Fome Zero! Já começava
a sentir água na boca, só de imaginar o buffet daquele povo.
–Seu mano, resolvi ficar para o buffet.
–Qui coisa é essa? É católica ou du Candombré?

57
ROTA EXISTENCIAL

– O buffet não é festa religiosa. Qualquer irmão ou irmã


tem direito a ele, se tiver emprego, vale-refeição, dinheiro, crédito
na praça ou participar do Fome Zero, da Bolsa família, do cader-
ninho de fiado do vendeiro. É um ritual de comida com quanti-
dade de pratos feitos, atirados em cima de uma mesa. As pessoas
vão passando em volta e servindo as suas próprias quentinhas. É
o maior luxo. Você faz isso todos os dias no “buteco da Val.”
– E pircisava tê um nome de gringu?
– Mania de falar gringo prá deixar a fala mais chique. Vive-
mos no paraíso das aparências, até na línguagem.
Os barracos mais ao norte do mato colocaram na mesa um
prato quente: “Pombo ao Tucupi”. O pessoal da cozinha explicou
que o prato fazia parte da culinária do desenvolvimento susten-
tável, pois aproveitavam a fauna e flora disponíveis nas proxi-
midades do mato, onde não faltavam pombos para serem abati-
dos à mão. E as folhas de jambu, colhiam um pouco mais longe,
mas valia o sacrifício. Disseram que as folhas eram das boas e
que adormeciam a língua todinha, dando o gostinho especial do
barato que é o prato.
Nas malocas, mais ao centro, expuseram para degustar
uma salada de dueto de frutas, com o aproveitamento de jacas e
mangas. Fizeram questão de dizer que a salada era gostosa, nu-
tritiva e econômica, com frutas recolhidas do chão, ali mesmo.
O chão era um tapete de frutas caídas. Se quisessem, poderiam
até variar: salada de trio a quádrupla, juntando jambos, abacates,
goiabas e congonhas que enfeitam a rasteira do chão.
Nas barraquinhas, mais ao sul do mato, a delícia ficou por
conta do prato de entrada, batizado de “Sopão do Nenê. Explica-
vam que era gentileza dos catadores de lixo que ganhavam verdu-
ras e legumes do Nenê da Ceasa. Mas deixavam bem esclarecido
que em todos os pontos do mato poderiam fazer a mesma sopa,
pois também existiam catadores de lixo, uma Ceasa ou qualquer
coisa parecida e muitos nenês.
Quando sentiram o cheiro de cuscuz, de feijão, de tapioca,
de buxada de bode, de pamonha, de baião de dois, de dobradinha,

58
HELENA DO SUL

de acarajé, de frango, peixe e churrasquinho, já estavam fartos e


enjoados de tanto comer Pombo ao Tucupi, sopão do nenê e sala-
da de dueto. Começaram a recusar a oferta. Viva a Fome Zero!
A dona, muito atenta, percebeu a tamanha organização
daquele mato. Eram visíveis as presenças do Povo Negro Orga-
nizado, da Associação dos Quilombolas, da Confederação Indí-
gena, do Movimento dos Sem Universidade, do Movimento dos
Sem Tudo, da Associação de Mulheres, do Movimento Orgulho
Gay, do Orgulho Lésbico, da Cooperativa dos Catadores de Lixo,
da Agricultura Familiar, da Associação de Mães Adolescentes, da
Fundação Assistencial das Andantes, da Assistencial dos Defi-
cientes, do Movimento Pró Cotas Para Negros na Universidade,
do Sindicato dos Artesãos e mais um montão de sindicatos, mo-
vimentos e associações, principalmente ecológicas, já que preci-
savam defender o meio ambiente do mato e o desenvolvimento
sustentável, muito presente na hora do café com mistura, do ri-
tual da comida.
– E aí seu Mano? Esta paradinha no mato nos deu novos
saberes. De minha parte, estou muito satisfeita com a pesquisa de
campo... Opa, pesquisa de mato.
– A gente num vai agradicê o que aprendeu?
A dona nem chega a dar resposta, quando foi pega pela
cintura pelo povo do mato. Eles e elas lhe colocaram uma carta-
manifesto nas mãos para que fosse lida fora do mato e voltasse
para o mato em forma de ações. Poderia ser lida até na Academia
de Bocha. Já seria um bom começo.
A dona pega a carta com as duas mãos, com a esquerda e
com a direita para garantir que não a perderia.
– E agora, Seu Mano, que responsabilidade!
Vão embora para o mega evento das Diferenças Diferentes.
A cliente do Seu Mano chega meio encabulada com o atra-
so. Mas...
No palco, índios cantavam uma canção em Tupi-guarani;
na rua os negros tocavam tambor e as negras dançavam; na porta

59
ROTA EXISTENCIAL

principal, entre os claros reflexos das luzes do palco, o Bumba


Meu Boi espiava, aguardando a hora de entrar e já entrando.
A cena deixa a dona menos preocupada com a entrega
da carta-manifesto. Afinal, ali estavam alguns representantes do
povo do mato. Procuraria um dos responsáveis pelos grupos que
desenvolviam históricas atividades culturais e, missão cumprida.
Deixaria o documento com os mais falantes, tanto faz homem ou
mulher. Eles tocariam o manifesto adiante, fazendo discursos aos
poderosos.
A dona escuta um padre falar de bom jeito, eloqüente, mui-
to capaz de tudo pela felicidade da juventude do povo do mato.
Nem titubeia. Entregaria para ele a carta-manifesto, esquecida
das diferenças da Igreja com a população negra, com as tribos
indígenas. Ah! Usaria o padre como porta-voz daquela gente.
Discretamente, entrega-lhe o documento. O padre lê, relê
e fala, nada discreto, ao microfone: vou guardar comigo esta car-
ta-manifesto do povo do mato para entregar a Deus, se por ven-
tura conseguir uma cota de entrada no céu, quando eu morrer.
Avisa lá que eu vou entregar ao Poderoso. Avisa lá, avisa lá que eu
vou... Avisa lá.
O padre falou tão alto e tão cantado, que os participantes
do evento começaram a cantar, também: “Avisa lá, avisa lá, avisa
lá ô ô, avisa lá que eu vou” ...
Rolou o maior axé.

60
HELENA DO SUL

INTERROGAÇÃO DE UM SILÊNCIO

Quando senti as dores do parto do primeiro filho, a senho-


ra mais próxima de mim, lembrou-me que naquele momento,
eu estava com um pé na terra e outro na cova, porque um parto
apresentava este risco, de parir e de morrer. Foi dizendo-me que
algumas mulheres nem chegavam a parir e morriam, na agonia
da dor, na hora do grande mistério de botar gente no mundo.
Achei de mau gosto o lembrete macabro que poderia cha-
mar de agouro inoportuno. Mas era uma senhora muito realista
e ao mesmo tempo cheia de superstição. Acreditava até no pio da
coruja, prenunciando azar. Como era gente que fazia parte dos
meus afetos, incorporei muito de suas crenças, com o passar dos
anos.
Ela se despediu deste mundo, há muito tempo atrás, de-
pois de um dia em que todas as corujas resolveram piar. Mas
deixou comigo suas lembranças e entre as mais fortes, as obser-
vações do pé na cova na hora do parto, da coruja piando e anun-
ciando a morte.
A vida prosseguiu.
Enfim, existem tantas lembranças de gente com suas coi-
sas, ensinamentos, situações, sentimentos, criando um mundo
paralelo com o tempo real, em nossas mentes. Não fosse o tempo
que vai se encarregando de colocá-las para dormir em algum
compartimento de nosso inconsciente, ficaríamos congestiona-
dos de tantas recordações.
Acontece que às vezes somos indisciplinados com o tempo
e acordamos as lembranças para viver com elas, a alegria, a tris-
teza, o amor, o sucesso, os fracassos, qualquer coisa de que estiver
necessitando nosso estado de espírito.

61
ROTA EXISTENCIAL

Costumam falar que o tempo consegue adormecer total-


mente as lembranças em nós. Costumam dizer que é o melhor
remédio para matar as lembranças. Deste modo, eis o tempo, Se-
nhor da Eutanásia, remédio absoluto e soberano para fazer pe-
recer muitos fatos e gente de nossas recordações. Mas de outro
modo, é um remédio eficaz para curar seqüelas e feridas provo-
cadas pelas recordações que consegue abater. Tempo...Fica sendo
o responsável por tantos processos vitais e tão desiguais.
Estou delirando com as lembranças. Saindo da linha, logo
hoje? É o meu tempo mental que ainda não processou as ausên-
cias e toma conta de meu controvertido mundinho de revolta e
calma cotidianas, vivendo com aparente naturalidade.
Já deveria ter ido ao mercado para buscar as frutas das ofe-
rendas aos Orixás. Já deveria ter preparado os saquinhos da sorte
com grãos de lentilha, moedas e folhas de louro, para distribuir
aos amigos na virada do ano, desejando-lhes fortuna, amor, saú-
de, estas coisas que alguns acreditam ser a felicidade.
Mas logo hoje, as lembranças me surpreendem e me atra-
palham, imobilizam meus passos para impedir-me de sair à
rua, de estar mais feliz para enfrentar a correria do último dia
do ano.
Não consigo alcançar a soleira da porta. Estou pesada, car-
regando um ano que está indo embora.
As lembranças da senhora que me anunciava os riscos do
parto chegam em mim com uma força descomunal e me arra-
sam. Conseguem deixar-me atormentada, cobrando o quanto
não soube tirar proveito de seus avisos. E tinha razão.
Vou ficando cada vez mais lerda, no último dia do ano.
Faço um balanço geral na mente. Vejo o filme que passa: em mi-
nha sala de trabalho alguém muito especial anunciava, neste ano,
que estava quase na hora de chegar seu bebê e eu nem havia lhe
prevenido dos perigos que corria, que toda criação corre riscos.
Imaginei que via o rosto de meus colegas, todas elas e ele, cada
um a seu jeito, transitando silenciosos pelo ambiente. Mas não
era verdade que via todos. Ele não estava mais.

62
HELENA DO SUL

Lembrei então que ele chegava, depois de percorrer a es-


trada onde as corujas piavam. Beijava cada uma das mulheres,
trazia flores, sorrisos e a luz de suas crenças em um mundo me-
lhor para a população negra, pela qual trabalhava com a maior
dedicação. E recordei que em certa manhã anunciou que estava
quase na hora de nascer o seu bebê. De acordo com a senhora que
prenunciava coisas ruins na hora do parto, estava correndo risco
de vida em tão delicado momento. Mas deixei que se envolvesse
sozinho, com todas as dores, sem alertá-lo dos perigos. E, afinal,
como pensar em desgraça para quem de sorriso lindo, de vida in-
teligente e serena, tinha a juventude de vinte e oito anos a favor?
Deixei... E como pude deixar que ficasse transtornado de
tanta dor, parindo angústias, andando pelas ruas, mutilado e ca-
rente, de olhos vendados? Andou pelas vias onde as corujas pia-
vam. Perambulou absorto e crente em suas possibilidades de pa-
rir. Mais crente ainda nas possibilidades dos aplausos dos negros
e negras para os quais entregaria o seu bebê.
Não decifrei o moço. Ninguém decifrou o moço.
Mas colocaram-no ao colo, em muitos colos diferentes. Re-
tiraram a venda de seus olhos. Limparam as manchas de suas
vestes e o banharam de muito carinho. Não conseguiram encon-
trar a dor que sentia e ficaram todas, doendo, fracassadas.
Na metamorfose da insanidade e depressão, ele ainda teve
forças para sussurrar que o cantor tinha razão de cantar “mais
solitário que um paulistano”.
Ele, o Dragão, era um moço paulista que trabalhava entre
as asas e eixos do Distrito Federal. Sentia-se muito só, embora
estivessem com ele, as amizades que o abraçavam.
Era noite e estava na hora de descansar. Mas não descan-
sou. Soltou-se das amarras de todos os braços que o abraçavam,
ensaiou uns passos de dança que gostava de dançar; anunciou que
podia tudo, até tomar café, fora de seus hábitos costumeiros. Bei-
jou meu rosto como um filho amado, um beijo grande para que
eu pudesse dividir com a Magda, a Renata, a Angélica, a Paula, a
Rosângela, a Luciana, a Andréia, a Daisy, a Marina, a Fernanda,

63
ROTA EXISTENCIAL

a Shaiane, a Neide, a Janete, a Cristina, a Socorro, a Benilda, a


Valdecir, a Silene, a Zélia, a Diony, a Amrith ,a Angelita, a Nilda ,
a Amsha, o Leonardo, o Alexandre, o Renato, o Carlão, o Oscar
Henrique e com as outras pessoas que me escapam da memória e
com aquelas que só ele sabia existir.
Era noite e estava na hora de descansar. Mas se agitou. Pre-
feriu conversar sobre todas as coisas em que ninguém acreditava,
somente ele. Ninguém acreditava, mas respeitava seus delírios.
Disse que havia descoberto o segredo da rosa. Não contou o se-
gredo.
Na madrugada, foi até a janela do sexto andar do prédio
de uma das asas por onde costumava transitar ... E mirou as ro-
sas pequeninas do jardim, lá em baixo, muito lá em baixo. Alçou
um vôo livre, sem asas, levando junto o bebê que paria. Foi ao
encontro das rosas.
O segredo da rosa deveria ser tão sublime que ele não
achou nosso mundo merecedor de sabê-lo.
Acontecia, entre tantos, mais um suicídio no Planalto Cen-
tral.
O bebê que paria, imaginário livro dos seus delírios, com
certeza era um dos remédios para acalmar-lhe as dores.
O corpo nu ainda estava no chão. Meu corpo tremeu e a
alma chorou diante do inexplicável. Escutei piarem todas as co-
rujas da Asa Sul. Piavam... Piavam... barulhando no silêncio dos
sorrisos que ninguém sorria.
Por que? Por que Sérgio Pinheiro?

 Sergio Pinheiro, 28 anos, era paulista, solteiro, geógrafo, intelectual, ativista do Movi-
mento Negro, técnico da equipe dos Projetos Inovadores de Curso, do Programa Di-
versidade na Universidade, do Ministério da Educação, Secretaria de Educação Conti-
nuada , Alfabetização e Diversidade. Lutava pelas causas da negritude, para que negros
e negras tivessem uma vida digna, com direito à educação e cidadania. Seu anunciado
bebê era um livro que idealizara com a transversalidade de conteúdos do Ensino Mé-
dio, com as questões étnico-raciais Seus delírios provinham de doença psíquica que
foi acelerada por muitas angústias que acompanham o cotidiano da população negra,
resultando em um surto psicótico que o levou, inconsciente, a se atirar da janela do
sexto andar de um prédio da Asa Sul, em Brasília - no Distrito Federal, onde estava em
companhia do casal Daisy Cadaval Basso e Max Basso, uns de seus amigos prediletos.

64
HELENA DO SUL

O que vamos dizer ao seu pai?


As lembranças de Sérgio ainda estão muito presentes e me
atropelaram com a tristeza no último dia do ano de 2006. Uma
questão de tempo...Remédio, cura, sei lá.
Precisava cumprimentar as minhas amizades. Não queria
enviar um cartãozinho qualquer com aquelas mensagens impes-
soais e chatas de final de ano. Exercitaria como se fala de coisas
alegres com a mente repleta de lembranças tristes.
A negrada amiga e maravilhosa recebeu, no último dia do
ano de 2006, qualquer coisa a mais, qualquer coisa a mais que
eu, que superasse a tristeza. Enfim, encaminhei pelo correio ele-
trônico um cartão desconvencional e continuamos conversando.
Precisamos conversar sobre todas as coisas, mesmo que seja a
descoberta do segredo da rosa.

65
ROTA EXISTENCIAL

66
HELENA DO SUL

ROTA EXISTENCIAL
PARTE 2

Vinte anos de literatura e a revelação surpreendente das


experiências da escritora, no envolvimento com os outros e ou-
tras, nos bastidores da escrita e dos lançamentos de seus livros.

É FOGO – editado em 1987 - Descobertas e Polêmicas


MEU NOME PESSOA – TRÊ MOMENTOS DE POESIA
– editado em 1989 – Cidadania no Morro
O SOL DE FEVEREIRO – editado em 1991 - Negritude
na Periferia
ODARA – FANTASIA E REALIDADE – editado em 1993
- Mística e Irreverência
NEGRADA- editado em 1995 - Registros Vivenciais do
Universo da População Negra
TIPUANA – editado em 1997 - Realidades da Escola Pú-
blica de Maioria Negra
O ENCONTRO – editado em 2000 - Saudades e Contextos
de Diversidade
AS FILHAS DAS LAVADEIRAS – editado em 2002 - TRI-
BUTO ÀS Mulheres Negras e Mobilização Social
OS CORPOS E OBÁ CONTEMPORÂNEA – editado em
2005 - Transgredindo “Normas Culturais” e Trabalhando o Ima-
ginário Coletivo Sobre os Corpos Afrodescendentes (parceria
com o Professor Nelson Inocêncio)

67
ROTA EXISTENCIAL

É FOGO – ANO 1987


DESCOBERTAS E POLÊMICAS

É Fogo, meu primeiro livro publicado, aconteceu depois de


um conto irreverente que escrevi e com o qual ganhei o primeiro
lugar no concurso literário em comemoração aos 25 anos de um
colégio público que ainda existe no pé do Morro da Cruz, em
Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Deveria ter sido o
único conto inscrito no concurso. Ninguém estava se interessan-
do muito por escrever história de colégio de morro. Também já
havia editado dezenas de “Pacotinho”, jornal de integração e de
valorização dos funcionários de uma multinacional que tinha um
bocado de preto trabalhando de empacotador, caixa-operadora e
na faxina geral.
Pois é... senti vontade de escrever sobre as famílias negras
que acreditam na educação dos filhos e filhas, para o alcance da
liberdade. Desejava fazer uma homenagem pública para a minha
mãe, de modo que também pudesse homenagear a mãe das ou-
tras e outros. Providenciei a homenagem.
Inventei personagens, às vezes confundindo-me com eles.
Organizei o recado em contos, crônicas e deboches. Escrevi para
fora o que estava há muito tempo escrito para dentro. O livro foi
catalogado com a predominância de ensaios. Foi o meu primei-
ro enquadramento literário, pela bibliotecônoma, Doutora Iara
Neves.
Nem imaginava que contar a trajetória de famílias negras
em todos os contextos, principalmente no educacional, pudesse
causar tanta polêmica, pela mexida em assuntos que estavam es-
condidos na nossa sociedade de pseudo democracia racial.
De forma natural, até pela própria vivência no magistério,
não faltou a critica à pedagogia das escolas, na maioria pouco

68
HELENA DO SUL

preocupadas em fazer o aproveitamento das experiências, tradi-


ções, valores e hábitos dos alunos negros e dos pobres. Por conta
destes momentos me detive nas abordagens de racismo institu-
cional e nas questões de preconceito e discriminação racial nas
escolas públicas. Estes fatos estavam muito presentes na minha
consciência e como eram e ainda são fatores impeditivos do de-
senvolvimento da população negra, jamais poderiam ficar au-
sentes, quando o meu desejo era focalizar o esforço, a coragem
e o empenho redobrado das famílias negras que almejavam “dias
melhores”, acreditando na escola.
Muitos textos minaram o Diário Popular, um dos jornais
de Pelotas, falando sobre meu livro, a partir de uma crônica a
favor do seu conteúdo, da escritora Zênia de Leon que escreveu
“Comentando É Fogo” (20/12/87). Mostrou-se muito corajosa
ao compactuar que existiam, sim, preconceitos e discriminação
racial nas escolas, incluindo o Instituto de Educação da cidade,
colégio público para a formação de professores.
A matéria da escritora foi aplaudida por muitos e odiada
por tantos outros que não aceitaram a idéia de que o atual Ins-
tituto de Educação Assis Brasil tivesse sido uma instituição que
primava pelo mau exemplo de atitudes racistas e preconceituosas,
em sua trajetória educacional.
Zênia precisou escrever mais artigos de defesa das idéias
do livro, sendo um deles de título “Comentar Livro Também é
Fogo”, em que também defendia a minha integridade física e mo-
ral, pois estava sendo acusada de ser a possível mentora de um
anunciado lançamento de bomba , no Instituto de Educação, em
dezembro de 1987.
Senti que havia “cutucado” em coisa muito velada e que
a maioria das pessoas não estava preparada para saber ou não
queria saber destas coisas acomodadas e escondidas que prejudi-
cavam o desenvolvimento dos negros.
Na ocasião, pessoa de minha família, um primo caminha-
dor e comunicativo, Cláudio da Silveira Dutra foi procurado para
entregar meu livro a um Delegado de Polícia para que pudesse
tirar conclusões se o seu conteúdo poderia ter incitado a atos

69
ROTA EXISTENCIAL

subversivos, como a anunciada bomba no colégio. Felizmente,


o Delegado absolveu É Fogo, mas eu estava trazendo problemas
para a família, tirando o sossego das pessoas que ficaram bastan-
te angustiadas pelos acontecimentos.
Neste livro movimentei a fauna brasileira, com uma his-
tória de bichos para ilustrar a perseguição aos professores que
“saiam da linha” e começavam a facilitar a crítica e o debate da
realidade social, em suas aulas. Chamados de subversivos, eram
arrancados de suas escolas como pessoas de ideologia comunis-
ta, perturbadoras da ordem. Conheci, pela própria vivência, estas
páginas repressivas. Refleti, na história de bichos, sobre as conse-
qüências que poderiam trazer para uma coletividade que estava
sendo proibida de pensar.
Ainda bastante ingênua, não imaginava que a escrita que
denunciava o preconceito e as discriminações, fosse um exercício
tão cruel.
Preocupada com a submissão da mulher negra aos compa-
nheiros, muito marcante nas famílias, resolvi referendar alguns
avanços a favor das mulheres. Focalizei situações problemáticas
que acompanhavam a liberdade, ainda pouco assimilada pelo
feminino. Não poderia ter deixado de fora os acontecimentos de
um tempo que revolucionou muitos costumes sociais, diretamen-
te relacionados com a mulher, tais como a saída expressiva das
mulheres para o mercado de trabalho, o advento da pílula an-
ticoncepcional, a mobilização das mulheres para trabalhar fora
das cidades de origem, adesão a novos costumes no vestuário, as
possibilidades e provocações mais libertárias dos relacionamen-
tos afetivos.
Outra questão abordada foi o alcoolismo e a impotência
das famílias para superação desta doença, o que levou o livro a
ser socializado entre freqüentadores de grupos do AA (Alcoóli-
cos Anônimos).
É Fogo serviu de subsídio para vários estudos em cursos
de Pedagogia, em Metodologia da Supervisão Educacional, em
Didática, em cursos de formação de professores. Tive notícias.

70
HELENA DO SUL

A produção foi independente. Algumas livrarias de Porto


Alegre, de Pelotas e de São Paulo ficaram com o meu livro para
divulgar e comercializar.
No ano de 1987, a Distribuidora Martins Livreiro, em Por-
to Alegre, organizava a Rua do Livro, evento cultural em prol da
leitura e da aproximação do público leitor com os autores. Re-
cebi convite para tomar parte no evento, o que me oportunizou
contatos inesquecíveis com muitos leitores e a proximidade com
escritores brancos do Rio Grande do Sul.
Quando procurei divulgar meu trabalho, tive algumas frus-
trações. Uma delas aconteceu por conta da atitude de um gerente
de livraria da capital gaúcha que, ao ver uma silhueta de negro na
capa do livro, nem ao menos procurou saber do seu conteúdo e
foi logo dizendo: “não nos interessamos por estas questões, por este
“tipo de literatura”. A partir daí batizei o que escrevia de Litera-
tura Marginal, a que ficava à margem de todas as outras existen-
tes, a que dava medo até de olhar a capa do livro, causando mais
desconforto do que biografia de bandido, pois havia uma delas,
exposta na vitrine da tal livraria.
É Fogo teve seu lançamento no inverno de 1987, na noite
de 18 de agosto, no Partenon Tênis Clube, com o apoio do seu
Departamento Cultural. Providenciei a integração com o progra-
ma musical “O Choro é Nosso”, criado e dirigido por Lúcio Qua-
dros, com a participação de Jessé Silva e apresentado por Roque
Araújo Viana, da radiofonia porto-alegrense. Na mesma noite
aconteceu um painel de discussão sobre o conteúdo do livro, com
a participação de Noemi Bueno e Zeni Vasques, duas educadoras
gaúchas, da socióloga nordestina Eridã Magalhães, de um repre-
sentante do Movimento Negro, Gustavo Paiva e de Wanderlei
dos Santos, apresentador do livro.
Muitas surpresas aconteceram, além das atividades cul-
turais, pois minha irmã, Tereza de Lourdes Cardoso Sampaio,
Boanerges Fagundes, Nélo Fagundes e Juarez Fagundes, todos da
cidade de Bagé, com excelente experiência em coquetéis e recep-
ções, na capital gaúcha, organizaram uma decoração belíssima do
local, onde montaram farta mesa de comes e bebes.

71
ROTA EXISTENCIAL

Fiquei desajeitada, diria até encabulada com aquele cená-


rio de aparente elitismo, pois morava na simplicidade, sem mor-
domias, sem o luxo das toalhas que cobriam as mesas até os pés,
uma das condições que aprendi com eles para deixar qualquer
festa, considerada de primeira linha , como diziam. Surpreende-
ram o povão convidado, com uma festa de elite. Acabei por acei-
tar o banquete, pensando na homenagem que fazia para mamãe,
Maria Yolanda Vargas da Silveira. Ela deveria estar feliz, onde
quer que estivesse.
Não faltou o conjunto musical de um comerciante e amigo
da comunidade que chegou com os gaiteiros, tocadores de violão
e de pandeiro. O seu João Pereira me trouxe um carinho muito
especial dos moradores do Morro da Cruz.
Senti em cada convidado e convidada, uma pessoa ilustre
que era responsável por aqueles momentos que eu estava vivendo.
Tinha muita gente ao meu redor. Sabia que eu era conhecida no
morro onde lecionava e onde, também trabalhava em um super-
mercado do bairro, mas não imaginava como iriam aceitar-me
como projeto de escritora. Era importante que a comunidade me
aceitasse. Não tive decepções.
Além da comunidade, participaram do evento, outras pes-
soas muito interessantes do Movimento Negro. Entre elas estavam
o Dr. Antônio Carlos Cortes e o Dr. Eloy Dias dos Angelos que
colocou-se à disposição para ajudar-me nas futuras publicações,
tão logo soube que toda aquela produção de edição dos livros
havia sido fruto de meu esforço pessoal. Ficou impressionado,
positivamente, ao ver a quantidade expressiva de público e o ex-
celente nível do evento. De posse do conteúdo do livro, tornou-se
admirador de minha escrita.
O Dr. Eloy Dias dos Angelos, um Senhor negro, jornalista
e advogado, passou a acompanhar o meu trabalho, juntamente
com sua esposa Maria Clara.
Veio a ser meu padrinho, quando fui convidada para to-
mar posse na Academia Pelotense de Letras, na gestão de Zênia
de Leon, a professora e escritora que defendeu o livro É Fogo.

72
HELENA DO SUL

Faço parte da Academia desde o ano 2000, cadeira 19, tendo por
patrono o Conselheiro Antônio Ferreira Vianna, ilustre cidadão
de história bonita e filantrópica. Fundou escolas, no Rio de Ja-
neiro, dava assistência a menores abandonados e mendigos. Mas
ajudou a redigir o texto “capenga”, socialmente incorreto, sem re-
parações de perdas para os escravos, enfim, o texto da Lei Áurea
que a Princesa assinou para libertar os negros. Que ironia!

73
ROTA EXISTENCIAL

MEU NOME PESSOA – TRÊS MOMENTOS


DE POESIA – ANO 1989
CIDADANIA NO MORRO

Estava bastante encorajada a escrever, com a certeza de que


continuaria com o trabalho independente, mas já com o aceno
de estratégias para garantia do pagamento das publicações.
Intelectuais negros de Porto Alegre, entre eles Dr. Eloy
Dias dos Angelos, Dr. Wanderlei dos Santos, advogado e diretor
do Departamento Cultural da Escola de Samba Imperadores do
Samba; Dra. Iara Neves, Bibliotecônoma e docente da Faculdade
de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul; amigos e familiares das cidades de Pelotas,
Porto Alegre e Bagé, no Rio Grande do Sul, cotizaram o valor
financeiro da tiragem gráfica de meu segundo livro, recebendo
em troca o que batizaram de “Pacote de Lançamento” , composto
de uma quantidade de exemplares para cobrir o valor da cota fi-
nanceira que cada um dispensou.
Dei uma pausa na prosa e entreguei os originais de 63
poemas, antes engavetados, para o poeta Jorge Alberto Mendes
Ribeiro, do qual muito apreciava as mensagens espiritualistas,
e para o Padre Ângelo Costa que já conhecia e apreciava meu
trabalho, desde a crônica que havia escrito sobre a Rua Santa Ma-
ria, uma das vias de íngreme acesso ao Morro da Cruz, em Porto
Alegre, no Bairro Partenon. Estimularam a publicação do livro
de poesias e assinaram a apresentação. Em suas páginas iniciais,
Padre Ângelo me consagra como “primeira professora” e poeta
do Morro da Cruz. Transcrevo a seguir, o que escreveu.
“O peixe nada, o pássaro voa, o homem reza”.
No Morro da Cruz, milhares de pessoas há anos vem encon-
trando um lugar para morar nas encostas, com muito sacrifício,

74
HELENA DO SUL

mas ao mesmo tempo com esperanças que se expressam no belo


panorama, canções e devoção popular a São José e a Santa Cruz.
Maria Helena veio morar aqui e como professora sempre lu-
tou, vivendo os ideais dentro da escola, junto aos seus alunos, como
libertadora e transformadora para uma nova sociedade.
Aquela poesia que sempre viveu, Maria Helena agora ex-
pressa com singeleza e coragem.
O Morro da Cruz entre esperanças encontra na voz da “pri-
meira professora” a sua canção e poesia.
Tenho a alegria de recomendar o primeiro livro de poesia do
Morro da Cruz.
“O peixe nada, o pássaro voa”. O homem do morro reza, luta
e é poeta, através de Maria Helena.
Os poemas deste livro foram muito bem recebidos pelos
leitores. Vou contar a história de alguns deles.
Contrariada com muitas falas que considerava equivoca-
das e grosseiras, com acentuada posse das questões da negritude,
por uma minoria mais preocupada com bandeiras político-parti-
dárias e pessoais, do que com as ações para o desenvolvimento da
população negra como um todo, escrevi o poema “Quero Mais
que Falas”, meu primeiro protesto poético.
Na escola, convivia com professores minados de precon-
ceitos contra negros , contra pobres, contra as mulheres do morro
que eram tidas como vagabundas, fedorentas, gente incapaz, ir-
responsável. Diante do que ouvia e sentia, veio uma resposta no
poema “Prece do Negro ao Professor de Qualquer Cor”.
Aos poucos, tornei-me cúmplice de outros escritores e po-
etas negros de Porto Alegre, entre eles o notável professor Oli-
veira Silveira e os companheiros João Batista Rodrigues, Ronald
Augusto, Paulo Ricardo de Moraes, Jorge Froes, professor Guara-
ni. Próxima deste grupo senti que fortalecia meus ideais de socie-
dade igualitária, mais justa, menos hipócrita. Foi quando escrevi
“Neguinha na Rede”, “Palavras”, “Verdade”, “Plim...Plim” e muitos
outros poemas.

75
ROTA EXISTENCIAL

É interessante como vai acontecendo o encontro com


os outros parceiros da palavra. Fui inventando estratégias para
encontrá-los e dirigi-me, por muitas vezes, ao Naval, um Bar
da “Roda do Mercado Público” de Porto Alegre, bastante fre-
qüentado, na época, por respeitáveis intelectuais e poetas do
universo da negritude, onde deixei um bilhete na parede di-
zendo que iria procurá-los em tal dia e hora. Fui aguardada
e com eles passei a dialogar mais naturalmente. Furei um
bloqueio de gênero, porque a roda era só de homens. Tive
coragem! Somamos forças!
Passei a acreditar que poderia colaborar com a minha es-
crita para a auto-estima e valorização dos negros e negras e, por
extensão, das pessoas do morro onde eu morava.
O Jornalista Eloy Dias dos Angelos elaborou matérias a res-
peito do livro, as quais foram publicadas nos jornais A Opinião
Pública e Diário da Manhã, de Pelotas, e Jornal do Comércio, em
Porto Alegre.
Uma das emoções fortes que este livro provocou, veio da
diretora de Escola Pública. Professora Iacy Luzia Filgueiras Fisher
que declamou publicamente a Prece do Negro, como ficou mais
conhecida a poesia Prece do Negro ao Professor de Qualquer Cor.
Fez análise de cada frase, comprometendo-se, na ocasião, a incluir
no currículo da escola uma série de atividades contra a discrimi-
nação e o preconceito. Cumpriu até onde conseguiu cumprir sua
promessa, em sua passagem breve pela vida.
As poetisas Nina Fola e Vera Lopes me deram a maior ale-
gria, trazendo para suas performances, alguns poemas do livro.
Não sei declamar poesias e quando escutei a diretora do co-
légio do morro, as poetisas e crianças transmitindo as palavras de
meus poemas, na escola, nas casas de famílias negras, na Biblio-
teca Ligia Meurer e na Casa de Cultura Mário Quintana, fiquei
sensibilizada e com uma carga aumentada de responsabilidades,
principalmente por causa das crianças. Elas estavam declamando
Neguinha na Rede...Eu não estava mais conseguindo controlar
por onde andava o que escrevia. Senti medo, também. Medo de
me perder, envolvida com a Literatura Marginal, até admitir que

76
HELENA DO SUL

aquilo não era tudo, mas também não era só um complemento,


fazia parte de mim.
Reparo que usei as expressões meu poema, minha poe-
sia, muitas vezes. Isto me deixa constrangida, pois não gosto de
posses. No entanto, uma reflexão surge como luz repentina e me
deixa mais tranqüila, levando-me a reconhecer que as expressões
meu e minha não estão colocadas no sentido do egoísmo, mas de
referência. Os poemas são nossos, dos protagonistas dos versos
que escrevo: as negras, os negros, as crianças, os militantes ne-
gros, a paisagem humana e geográfica, os lugares... Enfim, tudo e
todos que mexem com o subjetivismo e o arrebentam no verso.
O lançamento do livro foi no dia 27 de abril de 1989, no
Partenon Tênis Clube , por meio do Departamento Cultural, com
o apoio do 39° Núcleo do Centro de Professores Gaúchos. Acon-
teceu muita festa com a animação do conjunto musical do violo-
nista Moisés Machado.
Os amigos Boanerges, Nélo e Juarez, os bageenses que eram
povão e entendiam tudo de festa de primeira linha, novamente
estiveram em ação com os coquetéis e saborosos doces e salgados.
Estavam me deixando mal acostumada com a mordomia. Não
podia detê-los. Acreditavam na minha Literatura Marginal.
Os poemas continuaram sua trajetória. Em outubro do ano
2000, uma agradável surpresa: o jornal Aquarius que circula em
Porto Alegre, no interior do estado do Rio Grande do Sul, em
Florianópolis e Curitiba, trouxe na capa a poesia “Infantil”, de mi-
nha autoria, na edição em que homenageava as crianças. Crianças
são bens maiores e o fato me alegrou, deveras.

77
ROTA EXISTENCIAL

O SOL DE FEVEREIRO – ANO 1991


NEGRITUDE NA PERIFERIA

Escrever o Sol de Fevereiro foi prosseguir com a teimosia


de trabalhar com as questões que não interessavam a patrocina-
dores. Coloquei no papel uma porção de fatos que aconteciam
e ainda acontecem nas comunidades de maioria negra e pobre,
dando continuidade à Literatura Marginal.
Na época, no Museu de Artes do Rio Grande do Sul, en-
contrei um artista plástico negro “Djalma do Alegrete”, autogra-
fando o livro Aspectos da Negritude no Rio Grande do Sul, orga-
nizado pela Professora Vera Triumpho. Ele havia ilustrado todos
os artigos do livro, com muita sensibilidade. Encantei-me pelo
trabalho de Djalma, principalmente pela tela de Xangô que abria
o capítulo sobre religião. Iniciamos uma conversa muito interes-
sante sobre a população negra.
Djalma do Alegrete, intelectual e estudioso das questões
afro-brasileiras leu todos os originais de contos e crônicas de O
Sol de Fevereiro e me ofereceu um presente: ilustrou o livro com
a sua habilidade mágica no bico de pena. Também me deu um
conselho: “continue escrevendo”.
Em troca de seu presente e conselho, fiz muitos bombons
de chocolate, que ele degustava com prazer, enquanto desenhava.
Um de meus hábitos era alternar o exercício da escrita, com algu-
ma atividade artesanal.
Aprendi muito com Djalma do Alegrete. Ele me conduzia
para a valorização de meu trabalho e me estimulava, cotidiana-
mente, a escrever cada vez mais.
Estimulada por Djalma, intensifiquei os estudos sobre a
população negra, analisando livros, jornais, revistas, filmes, as-
sistindo a palestras, participando de seminários e encontros. Não

78
HELENA DO SUL

desprezava os subsídios históricos para imaginar meus contos,


lendas, crônicas e sátiras, com a cabeça posta na observação do
meu próprio contexto ambiental e emocional de mulher negra.
Neste período, troquei muitas idéias com o Deputado Fe-
deral Mendes Ribeiro, do qual, como já citei, admirava e respeita-
va o trabalho poético. Suas correspondências tinham um cunho
espiritualista muito presente e me convidavam a seguir acreditan-
do na tarefa de escrever. Dizia que era admirador de meu traba-
lho, porque projetava na obra, com muita intensidade, os anseios
de justiça para o desenvolvimento dos cidadãos.
O Sol de Fevereiro teve seu lançamento na Casa de Cultura
Mario Quintana, na Biblioteca Érico Veríssimo, com utilização
do espaço Maurício Rosenblat, tendo em vista a necessidade de
espaço amplo para as atividades festivas e artísticas que já faziam
parte da programação de lançamento de meus livros.
Pela perseverança dos amigos Eloy Dias dos Angelos e
Wanderlei dos Santos, na divulgação de meu trabalho, três jor-
nais da capital gaúcha já estavam se pronunciando sobre a obra,
além da coluna informativa de lançamento de livros. No Jornal
Zero Hora (03/01/92) foi veiculada a matéria assinada por Claris-
sa Berry Veiga, a qual se referia ao livro O Sol de Fevereiro, como
“Radiografia Simples da Discriminação Racial”, escrevendo que:
“não existem culpas, revanches ou caça às bruxas no conteúdo de
seus textos. Ela propõe o crescimento humano pleno, sem mesqui-
nharias ou ódios. E, sobretudo não desperta a pena ou compaixão.
Apenas mexe com os sentimentos de humanidade.”
O Sol de Fevereiro também foi lançado na Sala Fernando
Osório, da Biblioteca Pública Pelotense, em 27/09/91.
Após o evento, fui procurada pelo Jornalista Carlos Cogoy,
do Diário da manhã – Pelotas, o qual entrevistou-me e publicou
a matéria “O Sol de Outubro”, em que fez a análise literária e ide-
ológica de meus três livros já publicados. A Literatura Marginal
ganhava um respeitável e poderoso simpatizante.
O Diário Popular – Pelotas (27/09/1991), no seu espaço de
Educação e Cultura, também noticiou e comentou sobre o livro,

79
ROTA EXISTENCIAL

ocasião em que trouxe as palavras do presidente da Biblioteca


Pública Pelotense, Senhor Joaquim Salvador Pinho, destacando
a importância de ceder espaço aos escritores locais, enfatizando
que “a Biblioteca Pública, como qualquer órgão cultural, não pode
ficar parado nunca, precisando crescer e expandir-se.”
O amigo Djalma do Alegrete me acompanhou nas jorna-
das em Pelotas e Porto Alegre. Enquanto eu trabalhava com o
livro, ele realizava a exposição “Cabeças Iluminadas”, mostrando
suas telas de Orixás e outras de personalidades negras que retra-
tou com variadas técnicas pictóricas. Por conta do misticismo e
religiosidade de Djalma, meu livro ganhou as páginas de jornais
de cultos afros e fiquei muito feliz, pela simpática fonte midiática
que se abria.
Enfim, são tantas histórias dentro da história. Contar so-
bre o Sol de Fevereiro gera outro livro.
Dos quatro companheiros bageenses que organizavam a
festa gastronômica, restavam três, pois Boanerges Fagundes,
havia falecido. Mesmo assim, com a saudosa ausência de Nédio,
como ele era mais conhecido, continuaram com as mordomias
que mais tarde vieram a servir de ganho para a minha família.
Aprendi com eles, todos os passos para montagem de me-
sas de festas, cortes de frutas, arranjos de cascatas com cerejas e
ovos de codorna, as exigências das toalhas que cobriam os pés das
mesas, os copos e taças que não podiam ser descartáveis, plissado
de toalhas, maneiras de servir as comidas, as bebidas, distribuição
de guarnições de pratos e talheres, efeitos de luz sobre as mesas,
preparo de coquetéis, enfim...Tudo me foi ensinado e aprendido.
Durante bom tempo aumentei a renda familiar, organizando jun-
to com minha irmã do coração, Tereza de Lourdes, muitas festas
de 15 anos, de casamento e de jantares para os poderosos. Meu
filho Éder, Operador de Áudio, comandava a discoteca Palco Som
e nos acompanhava com a música para as festas. Reparem como
surgem as estratégias que vão dando aquele detalhe a mais para
o enfrentamento das realidades de cada um. Jamais se despreza
uma nova aprendizagem.

80
HELENA DO SUL

Os queridos amigos que entendiam tudo da elite, mesmo


sendo povão, haviam aprendido essas coisas portentosas na As-
sembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, servindo ao
luxo dos políticos, com o dinheiro público. Então ficavam felizes
de servir ao meu público leitor, na maioria negros e negras tra-
balhadores e trabalhadoras. Sorriam de felicidade, pedindo autó-
grafo, para mais tarde.
Meu tributo a eles, nestes 20 nos de Literatura Marginal.

81
ROTA EXISTENCIAL

ODARA, FANTASIA E REALIDADE – ANO 1993


MÍSTICA E IREVERÊNCIA

Em 1993 continuava intenso diálogo com Djalma do Ale-


grete, intelectual, dedicado estudioso das religiões afro-brasilei-
ras. Seus livros, dicionários e seus “papos”, saudáveis e enriquece-
dores tornavam-se envolventes e criavam uma atmosfera mística
com os termos iorubanos que pronunciava.
Na época, fui observando que os compositores letristas
de samba enredo utilizavam muitas expressões iorubanas, geral-
mente no refrão, onde os termos apareciam isolados, mais como
vibrações e nem tanto como continuidade do conteúdo da poesia
dos sambas.
Pensei então em “como seria interessante” utilizar os ter-
mos iorubanos nos contos e crônicas, empregando-os nas com-
parações e citações ou mesmo, utilizando-os nas narrativas com
uma colocação adequada, integrando-os com a Língua Portugue-
sa. Estaria revitalizando palavras que ainda permaneciam da afri-
canidade, porém só na religião e nos sambas de enredo.
Foi quando nasceu o livro Odara- Fantasia e Realidade,
com a inclusão dos termos iorubanos.
O livro valeu-me publicidade nos jornais de cultos afros,
entre eles, Afro Conesul, Jornal dos Orixás e mais um organi-
zado pela Mãe de Santo Dirce da Oxum, que acolheram minhas
idéias, com a presença de vocabulário religioso, nos contos que
não possuíam, essencialmente, fundamentos de religião, embora
a valorização dos Orixás.
As histórias dos Orixás são fascinantes e me estimularam a
possibilidade mágica de inventar novas histórias ligadas ao nosso
próprio cotidiano, onde eles aparecem. Fiz isto em Odara.

82
HELENA DO SUL

Tive dois contos que autorizei para leitura teatral e ence-


nação, sendo eles “Os Negros de Cá” e “Iniciação”, encenados em
Viamão e em Porto Alegre, no Colégio Júlio de Castilhos, no Gló-
ria Tênis Clube e na Sociedade Floresta Aurora, no Encontro de
Mulheres Negras.
O conto que gerou muita reflexão, polêmicas e bons mo-
mentos de discussão foi “Rebelião dos Sambistas”, merecendo pu-
blicação na página de capa do Suplemento de Cultura do Diário
da Manhã , editado pelo jornalista Carlos Cogoy (Pelotas/RS) e
no jornal Ensaio Geral, editado pelo radialista Delmar Barbosa
(Porto Alegre/RS).
O Barro Duro do Laranjal, um dos contos do livro Odara-
Fantasia e Realidade, serviu para subsidiar estudos acadêmicos
na área de Educação e de Gênero.
Odara- Fantasia e Realidade foi um ato concretizado de co-
ragem. Sou apaixonada por todos os seus contos.
Continuava editando os livros, auxiliada por um grupo de
voluntários formado por familiares e amigos que me davam su-
porte moral e financeiro para que eu continuasse escrevendo.
Eram elas e eles: Eloy Dias dos Angelos, João Armando Vargas da
Silveira, Rubens Braz Vargas, Wanderlei Fernandes Santos, An-
tônio Centeno, Adão Centeno Ana Maria da Silveira de Oliveira
(minha irmã, falecida no ano 2000), Tereza de Lourdes Cardo-
so Sampaio, Eunice Carvalho Vargas, Odete Ferreira da Silveira,
Maria Helena Vargas Santos, Iara Neves, Maria Vicentina da Sil-
va, Anete da Silva, Sirlei Mauat, Zeni Vasques e Tânia Porto.
O grupo que inicialmente, nem tinha nome, caracterizava-
se pela união de pessoas que acreditavam em meu trabalho. Mas
de repente precisou ser batizado às pressas. Vou contar o episódio
do batismo.
Buscava e ainda busco espaços públicos que têm a ver com
a Cultura para marcar a presença da população negra nestes es-
paços. Acredito que tenha que ser assim. Não me intimida esta
busca. Tive bons orientadores: Eloy, Djalma, Wanderlei e os ami-
gos de Bagé.

83
ROTA EXISTENCIAL

Em 1993, a dirigente da Biblioteca Erico Veríssimo, mui-


to entusiasmada com a possibilidade da Casa de Cultura Mario
Quintana ter mais um lançamento de meus livros, desta vez
“Odara – Fantasia e Realidade”, não poupou esforços para orien-
tar as providências necessárias para o acontecimento, no meza-
nino da Casa de Cultura. A Biblioteca estava em reparos e não
estaria disponível para o evento.
Providenciei os trâmites necessários para o evento, na
Casa. Mas... Quando faltavam uns 15 dias para o lançamento do
livro e me apresentei para as tais pessoas responsáveis pelo Me-
zanino, elas embargaram até os convites, dizendo que os mesmos
não poderiam sair em nome da Casa. Estranhei, uma vez que ha-
via cumprido todos os expedientes solicitados.
Inutilizamos os convites em nome da Casa. Teríamos que
imprimir novos convites, em nome do grupo de meus apoiado-
res. Mas qual seria o nome do grupo, ainda pagão? Foi quando
Djalma do Alegrete sugeriu : Grupo Cultural Rainha Ginga. Esta-
va feito o democrático batizado.
O lançamento do livro, no Mezanino da Casa de Cultura,
foi um sucesso. Muito público e atividades artísticas. Distribuí-
mos até mercado para os convidados.
Durante e depois do evento, aconteceram os pedidos de des-
culpas, das pessoas responsáveis pelo espaço e que nos levaram a
inutilizar os convites. Vieram com a merda prosaica, com a hipo-
crisia que os negros já conhecem: “houve um mal entendido.”
Mas nós entendemos perfeitamente a mensagem– A Casa
de Cultura Mario Quintana, tendo pessoas não negras e elitis-
tas como responsáveis pelo Mezanino, não poderia correr o risco
de convidar para o lançamento de um livro de escritora negra e
pobre e cuja capa do livro era uma Filha de Santo. Certamente
pensaram em contra-cultura.
Em relação ao nome do Grupo, o poeta afro-brasileiro, es-
critor e historiador gaúcho Oliveira Silveira costuma me pergun-
tar qual Rainha Ginga o grupo representa, porque escrevemos
Ginga, com a letra G e ele diz que é com a letra J. O nosso querido

84
HELENA DO SUL

poeta não conhece a história desta rainha com G. Explico que é


toda aquela mulher negra que gosta de movimento, que tem gin-
gado irreverente. E fica por aí.
Precisamos contar nossas histórias. Pelos fatos, podemos
constatar os avanços ou decadências sociais.

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ROTA EXISTENCIAL

NEGRADA – ANO 1995


REGISTROS VIVENCIAIS DO UNIVERSO DA
POPULAÇÃO NEGRA

Em 1994, estava escrevendo, como colaboradora, no DM


Cultura, suplemento cultural do Diário da Manhã (Pelotas/RS).
Os contos e as crônicas giravam sempre em torno do universo
dos negros. O jornalista Carlos Cogoy, responsável pela edição do
DM Cultura, consolidava-se, na cidade de Pelotas, como notável
aliado para a divulgação dos assuntos da cultura negra, incluindo
minha Literatura Marginal.
Iniciei uma série de matérias sobre a música popular afro-
riograndense, ocasião em que entrevistei vários compositores e
cantores negros do sul, em busca de material para publicação. En-
tre eles, entrevistei Wilson Ney, Carlos Medina, Paulão da Tinga,
Cláudio Barulho e Jorge Moacir da Silva, apelidado de “Bedeu”,
famoso suingueiro cujas músicas haviam sido gravadas por Bebe-
to, Originais do Samba, Wilson Ney, Carlos Medina e outros de
excelência vocal.
Entrevistar Bedeu foi muito difícil, pois ele gostava de an-
dar pelos becos e vielas, muitos dos quais eu ainda não conhecia,
em Porto Alegre. Mas fui adentrando pelos becos para encontrá-
lo, até chegar em um deles, onde faziam samba na rua. Apaixo-
nei-me pelo lugar, cheio de negros e, principalmente, crianças.
Depois da entrevista e da matéria publicada, permaneci visitando
o Beco para colher depoimentos sobre o lugar. Havia encontrado
o Beco da Guaragna e por ali fiquei durante seis anos, realizando
trabalho voluntário de educação. Já não era mais a escritora, mas
a professora negra comprometida com sua gente.
O Beco da Guaragna é hoje reconhecido como Quilombo
Urbano e seus moradores tiveram a regularização das moradias.

86
HELENA DO SUL

Sinto-me feliz de ter colaborado com o meu livro Negrada, para


que os fatos acontecessem. Neste livro, descrevo o beco, no conto
Paisagem Negróide, com passagens históricas que levaram a Pre-
feitura de Porto Alegre a pedir que eu confirmasse os dados para
juntar aos processos de regularização das residências. Isto acon-
teceu, por volta do ano de 2001, quando já residia em Brasília.
Enquanto trabalhava com as crianças, com as senhoras e
com o pessoal da Escola de Samba Integração do Areal da Ba-
ronesa, da Avenida Luiz Guaragna mais conhecida como beco,
aliava meu discurso à prática. Andei por outras histórias da ne-
gritude da capital gaúcha, de Pelotas, de Ijuí, de Santa Maria, de
São Leopoldo e São Lourenço do Sul.
Quando me afastei das atividades do Beco da Guaragna,
não chamavam mais o lugar de Beco do Mijo. Minha primeira
incursão voluntária havia sido pela auto-estima das crianças, ao
solicitar que um jornalista tradicional da cidade, não mais se refe-
risse ao Beco daquela forma pejorativa, pois as crianças estavam
sofrendo com o fato, na escola.
Cada história fazia com que me apaixonasse mais intensa-
mente pela população negra. O livro Negrada é paixão.
Prosseguia, sem volta, com a Literatura Marginal.
Em 1995 me inscrevi no Concurso Literário “Histórias de
Trabalho”, organizado pela Usina do Gasômetro, da Prefeitura de
Porto Alegre. Em homenagem aos 300 anos da morte de Zumbi
dos Palmares, havia sido criada uma categoria especial de pre-
miação para contos e era para histórias de trabalho da população
negra. Fui contemplada com o primeiro lugar na referida catego-
ria, com a narrativa “Conversa de Negro.”
Neste mesmo ano fui Patrona da 16º Feira do Livro de São
Lourenço do Sul, a convite da Prefeitura Municipal, Secretaria
Municipal de Educação e Cultura, na administração do Senhor
Jorge Alberto Duarte Grill. Fiquei feliz pela perspectiva de par-
ticipar do evento e preparei uma fala para a abertura da feira,
destacando o significado social do momento pela integração com
os negros, tendo em vista que o município é uma colônia alemã,

87
ROTA EXISTENCIAL

historicamente discriminadora, cheia de espaços de segregação


racial, tanto dos negros, como dos pomeranos, alemães mais po-
bres.
Mas nem tudo saiu perfeito, em termos pessoais, pois uma
das organizadoras da feira que, talvez nunca tivesse lido meus
livros, tratou de pelo menos conhecer um capítulo de É Fogo.
Justamente no tal capitulo estava a minha tentativa de análise so-
ciológica a respeito do comportamento das mulheres que se au-
sentavam de casa por conta do mercado de trabalho e ainda nem
estavam preparadas para enfrentar diferentes situações libertárias
que transitavam e ainda transitam pelo mundo feminino.
A senhora, pela qual tinha e ainda tenho muita admiração
pelas qualidades que possui, resolveu ficar tapada de ódio com a
minha escrita. Não entendeu que eu retratava uma época e me
insultou publicamente, fazendo juízo de que havia classificado as
mulheres de São Lourenço, ela inclusa, como prostitutas.
O desagradável acontecimento poderia ter sido um “pra-
to cheio” para os jornalistas que ficaram sabendo do ocorrido e
muito a fim de colocarem o fato na imprensa. Consideraram que
o incidente foi de muita grosseria para com a patrona da feira e
que poderia reforçar a idéia de que a cidade não tratava os negros
com dignidade. Mas solicitei que não fizessem alarde e fui aten-
dida. Ressaltaram minha postura ética e permaneci até o final da
feira.
Circulou no jornal A Tribuna, de São Lourenço do Sul, a
matéria “O Amor é Aqui”, assinada pelo jornalista Carlos Cogoy,
relativa ao livro Negrada. Ao final do evento, no jornal O Louren-
ciano, publicaram meu “balanço das atividades da XVI Feira do
Livro de São Lourenço do Sul”, no qual destaquei a importância
do excelente intercâmbio cultural do município, ressaltando as
atividades culturais de alemães, pomeranos e negros, no decor-
rer da feira. “ Você viaja, sonha e conquista o mundo, através da
leitura”, de autoria do estudante afrodescendente Luiz Fernando
Brochado, foi o lema da feira.
Se, em outro momento de minha rota, for convidada para
apadrinhar feira de livros, uma das exigências para aceitar o con-

88
HELENA DO SUL

vite é saber se as organizadoras já leram o que escrevi. Elas preci-


sam entender que com a Literatura ando junto com as senhoras,
com os senhores, com as meninas, com os meninos, com as pros-
titutas, com os gays, com as lésbicas, com os cachorros e cadelas.
Todos e todas se conhecem e se respeitam. Minha imaginação
não tem limites e a cumplicidade é permitida com todos e todas.
Nas páginas do livro Negrada, infelizmente, faço homena-
gem póstuma ao grande amigo Djalma do Alegrete, um homos-
sexual muito amado que para mim é eterno, com sua arte de
traços fortes e cores quentes, com seus conselhos de afirmação e
sua religiosidade que me tomava de encantamento pelos Orixás.
Faleceu em abril de 1994, deixando histórias, muitos registros de
vida, pedindo que organizasse sua biografia.
Djalma suscitava ódios ou muito amor, até depois de mor-
to. Lembro-me que no dia de sua missa de sétimo dia, passei pelo
mercado público para encontrar alguns escritores e poetas negros
que por lá transitavam. Fui convidá-los para homenagear Djalma.
Jamais esquecerei do que falou um dos ativistas do Movimento
Negro, quando ouviu meu convite aos amigos poetas: “prá que
render homenagem a um cara 3 p, preto, pobre e puto...”
Dei um tempo para os meus pensamentos. Eles não con-
seguiam entender tanto ódio de um semelhante pelo outro, pelo
fato de opção sexual.
Vários espaços, junto da comunidade negra, iam se abrin-
do para divulgação de meus trabalhos, fora de Porto Alegre, tam-
bém. Lembro-me quando o Grupo Cultural Herdeiros de Zumbi,
da cidade de Ijuí, interior gaúcho, convidou-me para participar
de suas atividades, na Casa Afro, durante a Expo-feira da Indús-
tria e das Etnias. São vivências que permanecem junto comigo.
Na rodoviária de Ijuí, fui logo achada por quem me aguar-
dava, pois eu era a única negra, descendo do ônibus, naquela re-
gião de imigrantes europeus. Apresentou-se para mim uma alemã
de porte avantajado, simpática, sorridente, vestindo as cores da
bandeira angolana e dizendo-se militante do Movimento Negro.
Trocamos axé. Iniciei a caminhada com Hulânia, meu primeiro

89
ROTA EXISTENCIAL

contato, cara a cara, com os Herdeiros de Zumbi. Depois vieram


os outros herdeiros: negros, alemãs, alemãos e os filhos miscige-
nados, formando uma paisagem humana policromática.
O entusiasmo daquele pessoal era contagiante pela parti-
cipação na feira. Comentavam:”a gente não vai desistir...Tem um
monte de presunçosos, pensando que mais vale mas sempre tem um
pouco de interessados em ajudar... Vamos lutar prá ver nos colégios
um programa que valorize a população negra, a educação é muito
importante... É caminhando que se chega lá. Não é impossível, só
está difícil”.
Recordo-me que ainda não tínhamos chegado ao parque
do evento onde estava a Casa Afro, porém já sabia de muita coisa.
Eles e elas, herdeiros de Zumbi questionavam:”nossa casa é pe-
quena, perdemos um local maior e melhor prá outra etnia, estamos
lá no fundo, quase saindo prá fora, mas estamos; precisamos de
mais espaço porque a casa fica muito lotada. O pessoal vem atrás
do vatapá ,do bobó de camarão, do amalá, da nossa feijoada e da
nossa alegria. A nossa música é alegre. Suspendemos a cachaça.
A casa fica cheinha de branco e de brasileiro. Mas poucos negros
podem vir até a Casa Afro”.
Descobri que os brasileiros eram os não negros sem ori-
gem européia direta. Também descobri que a maioria negra vivia
nas encostas dos barrancos, muito longe do parque.
De fato, a Casa Afro era um pequeno espaço, mas muito
bonito e acolhedor. Era uma tenda de alvenaria, com restaurante,
cozinha, copa e uma área externa com boa cobertura. Nesta casa
autografei muitos livros e conversei com os leitores. Encontrei
Orientadores Educacionais, Professores, brasileiros recém chega-
dos à cidade, pesquisadores de Universidades, estudantes de pri-
meiro e segundo graus, muitos visitantes de Santo Ângelo, Santa
Maria, Erexim, um grupo de alemães idosos que vieram saudar a
Casa Afro, cantando ao som de gaita de boca.
Por volta das dez horas da manhã seguinte, ao de minha
chegada, os Herdeiros de Zumbi foram tomar parte em um pro-
grama de TV. Organizaram-se em um palco ao redor de peque-
nina mesa com as comidas típicas afro-brasileiras, tendo ao lado

90
HELENA DO SUL

a bandeira de Angola, país africano a quem prestariam homena-


gem. O cenário para a gravação do programa estava sendo pre-
parado com a presença de alemães, italianos, árabes, holandeses,
poloneses, letos, suecos, espanhóis, portugueses, afro-brasileiros,
todos juntos, um painel de cultura viva. Mas quando o programa
ao vivo foi para o ar e chegou a vez da fala dos negros, o minuti-
nho aquele de mostrá-los, a repórter foi interrompida para outra
matéria televisiva. Quando retornou, ignorou o Grupo Cultural
Herdeiros de Zumbi. Deixou os negros de fora. A imagem da fei-
ra ficou branquíssima. Negro não existia. O grupo retirou-se do
palco, como forma de protesto.
O programa prosseguiu com um desfile de cachorros que
levou bons minutos.
Amigos e simpatizantes dos Herdeiros de Zumbi, acom-
panhavam em casa a programação de tv e ficaram angustiados
pela invisibilidade da negrada. Alguns dirigiram-se ao parque
para verificar se estávamos vivos. Organizadores da Feira e mui-
tos brasileiros procuraram o grupo para emprestar solidarieda-
de. Por conta das senhoras alemãs, Herdeiras de Zumbi, casadas
com os negros de Ijuí, mães de crianças afrodescendentes, teve
início um protesto tumultuado contra a produção do Programa
e dos seus repórteres. Zelavam pela auto-estima dos parceiros e
dos filhos.
Valdir, o presidente do grupo denunciou o fato para o Con-
selho de Participação e Desenvolvimento da comunidade Negra
do Rio Grande do Sul.
Senti que precisava registrar aquelas ocorrências.Fiz uma
crônica que veio a constar do livro Negrada. Não poderia calar a
revolta que vivenciamos no dia em que os negros perderam espa-
ço até para cachorro, na televisão.
Trago para a rota o lamentável ocorrido, em respeito e ad-
miração aos Herdeiros de Zumbi, em reverência às crianças que
presenciaram aquele absurdo, pelo carinho a todos e pela sur-
presa inusitada das alemãs herdeiras de Zumbi que perderam a
compostura e disseram palavrões aos repórteres, considerando-

91
ROTA EXISTENCIAL

os capachos do sistema. Não queriam escândalo, nem desaven-


ças. Queriam apenas ocupar um espaço na televisão como todos
os outros grupos étnicos participantes da Feira.
Os bastidores da Literatura Marginal representam em mi-
nha vida um palco onde diferentes sujeitos desempenham papéis
que provocam as mais contundentes emoções, da alegria à pro-
funda tristeza, como o caso dos “3 p” e do programa que trocou a
fala dos negros, por latido de cachorros.
Em compensação, jornalista e radialistas negros, como An-
tônio Carlos Cortes, Oscar Henrique Cardoso, Cleber Giró, entre
outros prestigiavam a cultura Afro-brasileira, e oportunizava a
presença de escritores negros em seus programas radiofônicos
para que pudessem divulgar suas idéias. Fiz parte desse processo
nas rádios Princesa, Bandeirantes, 1120, Rádio Pelotense e, mais
recentemente na Rádio Comunitária – RádioCom, de Pelotas,
com Glênio Rissio.
Outra fonte de incentivo veio do Griô, Acervo da Memória
e do Viver Afro-brasileiro, instituição pelotense que organizava
lançamento e divulgação de livros de escritores ligados à temática
da população negra, entre outras atividades de pesquisas, pales-
tras, sessões de estudos e atendimento de jovens.
 

92
HELENA DO SUL

TIPUANA – ANO 1997


ESCOLA PÚBLICA DE MAIORIA NEGRA

Em 1997 comecei a presenciar, diretamente, a mudança de


comportamento das crianças e dos adolescentes nas escolas públi-
cas de periferia de Porto Alegre. Presenciei fatos muito fortes de
desestruturação familiar causada pelo desemprego, com reflexos
na escola; violência de alunos e alunas para com os professores e
destes para com os alunos, inclusive com tratamentos estereoti-
pados de vagabundos, desordeiros, gente do morro, burros. Em
paralelo, muitos professores querendo reverter a situação para
buscar a paz na escola, o respeito aos alunos, o entendimento de
seus problemas, pensando em mudanças para motivar os estu-
dos, a permanência na escola e chamando a comunidade para
participar do processo educacional. Enfim, como a vida lá fora, a
escola com suas diferentes faces.
Mas, cada vez mais violenta, a Escola tornava-se um lugar
perigoso para a integridade física de todos, alunos e professores.
Para enfrentar o caos com dignidade, era preciso redobrar o oti-
mismo e até sorrir, de vez em quando, prá depois chorar.
Diante de tudo que via e acompanhava nos colégios, fui
criando os textos do livro Tipuana. Muito próxima das realidades
da Escola Estadual Santa Rita, no Morro Santa Teresa, em Porto
Alegre, tive oportunidade de avançar na criação, tal a fartura de
situações boas e ruins que se vivenciava dentro e fora dos muros
do colégio.
O Tipuana que, além de nome do livro, é nome de uma
escola pública imaginária à beira do real, resume-se nos antece-
dentes da sua fundação e no seu funcionamento, passando por
várias décadas com características marcantes. Defino-o como um
observatório de onde imploro que não o deixem morrer, pois a

93
ROTA EXISTENCIAL

educação, ainda, é a nossa grande esperança e a escola pública


não pode perecer. Ela é que atende os mais miseráveis.
O Tipuana... Um sofrimento, uma realidade forte, pautan-
do a imaginação. Foi catalogado como a minha primeira novela
social.
Dediquei o livro à diretora Maria Helena Vargas Santos e
às vice-diretoras Naureci La Rocca e Lidia Horta, aos professores,
funcionários, pais, alunos e comunidade da Escola Santa Rita de
Cássia, em Porto Alegre. Também fiz um destaque especial ao
Pernambuco, professor Waldemar de Moura Lima, militante do
Movimento Negro e Secretário de Educação em Sapucaia do Sul,
em 1996.
Durante a criação do Tipuana, inventava e dizia verdades
pois a verdade, tanto como a mentira, pareciam tomar conta das
escolas. Lembrei então de um tio otimista que dizia e ensinava
que é preciso mentir qualquer mentira boa para mexer com a
vida quando ela está muito brava e verdadeira.
Quando lancei o Tipuana, em 1997, estava completando 10
anos de Literatura Marginal. Teve festa e foi das mais bonitas, na
Associação Satélite Prontidão, centenária sociedade de negros de
Porto Alegre. As festividades começaram por volta de meio dia,
com um almoço, avançando até as primeiras horas da noite com
apresentações artísticas, muita dança com o conjunto musical de
Moisés Machado e presenças ilustres.
Poetas, escritores, professores, chefes religiosos, represen-
tações de ONGs da negritude e de brancos aderidos à causa da
população negra, diretorias de Associação de Pais e Mestres de
Escolas Públicas e, também de Escolas de Samba, estiveram no
evento.
Jovens e crianças da Associação Clara Nunes, sob a orien-
tação da professora Yvanilda Belegante, apresentaram coreogra-
fias interessantes com músicas de Clara Nunes.
Outra homenagem significativa veio da Escola de Samba
Integração do Areal da Baronesa que compareceu com mestre-
sala e porta-bandeira juvenis, oferecendo um belo show de sam-

94
HELENA DO SUL

ba de passistas mirins. Uma comissão de mulheres representou a


Diretoria da Escola de Samba, entre elas a Duda, atual presidente
da Associação do Quilombo Urbano da Guaragna, as senhoras
Sônia Xavier, Marta Gonçalves, Lúcia Gonçalves, Teresa Batista,
Rosinha e as jovens Simone e Fabiane Xavier.
Parece que estou fazendo uma crônica social. E estou mes-
mo, de propósito, registrando nossos momentos de valorização
da população negra. Não é presunção, mas a colaboração espon-
tânea para a memória positiva de nossas ações.
Por ocasião do lançamento do livro Tipuana, o Grupo
Cultural Rainha Ginga também organizou o lançamento do livro
“Saldo”, primeiro trabalho do poeta Alexandre Gabriel , estimula-
do pelo grupo e com o apoio do projeto de Informática às Escolas
Carentes, do SERPRO.
O artista plástico Nei Ortiz, solidário com o evento, ofe-
receu-me um documentário surpresa com a minha trajetória de
voluntária em projetos educacionais para a população negra, no
Morro Santa Teresa e na Avenida Luiz Guaragna.
Uma homenagem brilhante foi a presença do Boreo, um
Senhor Batuqueiro, puxador de reza em yorubá, tocador de tam-
bor e contador de casos da negritude. Boreo é uma história viva
de religiosidade afro-brasileira e da Colônia Africana, um bairro
de maioria negra que se formou depois da abolição, em Porto
Alegre.
Vivenciei as falas de discursos que deixam a gente encabu-
lada, mas que faziam parte do que prepararam para comemorar
os 10 anos de minha Literatura Marginal. Vivenciei.
A paisagem humana da festa era de maioria negra: meus
queridos leitores e a presença da família que se fez presente nos
filhos e netos e naqueles que vieram de Pelotas para o evento:
Rubens Braz Vargas, que cantou “Carinhoso”, levando o pessoal a
cantar junto e harmonizar os ruídos festivos.
A diretoria da Associação Satélite Prontidão destacou-se
com as senhoras de seu Departamento Cultural, Iara Neves, Car-
mem Silva e outras ilustres damas negras da sociedade gaúcha.

95
ROTA EXISTENCIAL

O livro também foi doado aos professores e muitos alunos


da Escola Estadual Santa Rita de Cássia que me serviu de inspira-
ção para a maioria dos seus episódios. Recebi em troca, o carinho
dos educadores, o trabalho artístico e de produção de textos que
algumas professoras fizeram com os alunos, a partir das leituras
realizadas.
Por iniciativa da mesma escola, o livro foi citado no rela-
tório estadual de atividades do Projeto Guaíba, conjunto de ações
ecológicas desenvolvidas na escola, uma vez que tais ações me
sensibilizaram para o título do livro, pois Tipuana é uma árvore
que descrevo e exalto, como componente solidária da paisagem
natural do morro Santa Teresa, comunidade do colégio Santa
Rita.
Também trouxe humor: minha irmã Ana, ainda não havia
feito a sua grande viagem. Muito risonha , ao saber do título do
livro Tipuana, logo tratou de me questionar: “Que negócio é este
de Tipuana, o que andaste escrevendo desta vez que é tipo eu?”
Cada lançamento de livro daria origem a outro livro e com
certeza tenho razão, tal a riqueza de experiências proporciona-
das.
Enquanto produzia meus livros, ainda em Porto Alegre,
participei de algumas coletâneas : “Nós, os afro-gaúclos” (1996),
livro organizado pelos professores Euzébio Assumpção e Mário
Maestri, onde colaborei com o capítulo “De banzo”, compondo
os textos “O bacião”, “Jacuba” e “Tia Bernarda do Ogum”. Era
muito difícil compilar os textos de vários escritores, poetas e es-
tudiosos da cultura negra para organizar coletâneas. Com relação
a isto, guardo a lembrança do professor Euzébio, indo de casa em
casa dos autores para buscar os textos datilografados e/ou ma-
nuscritos para que depois fossem digitados na Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Sul.
Fazendo a critica literária da coletânea “Nós, os afro-gaú-
clos”, o jornalista e ex-professor de Literatura da UFRGS, José
Hildebrando Dacanal escreveu a matéria “Cai o último quilom-
bo” (Jornal Zero Hora 01/02/96), onde, elogiando o brilho técni-

96
HELENA DO SUL

co e intelectual de alguns textos destaca o meu trabalho com as


seguintes palavras: “esta autora de uma verdadeira jóia literária
do gênero memorialístico (De banzo)”.
Outra coletânea da qual participei foi “Visões do Mundo
Negro, Ontem e Hoje” (1998), organizada pelo Deputado esta­
dual Ciro Simoni. Colaborei com o texto “O Nó”.
Alguns textos e poemas meus foram compilados para jor-
nais e revistas, tais como “Porto e Vírgula – Arte Anos 90”, Re-
vista do Cecune, ONG presidida por Juarez Ribeiro, militante
do Movimento Negro Ecumênico; folhetim Roda de Poesia, do
poeta Oliveira Silveira; Revista de Cultura Contemporânea; Jor-
nal Sintonia, da Associação dos Radialistas de Porto Alegre, na
década de 90.
O folhetim Roda de Poesia Negra foi uma simpática inicia-
tiva cultural, do companheiro Oliveira Silveira para dar visibili-
dade ao trabalho dos poetas negros, radicados em Porto Alegre.
Participei com o poema “ A Lágrima”.
Já em 2003, o mesmo poema foi impresso em camisetas
para comercialização, durante as atividades da Semana da Cons-
ciência Negra, organizadas pelo Conselho de Defesa dos Direitos
do Negro do Distrito Federal. Mas não foi comércio para a escri-
tora apurar valores. Foi uma forma de colaborar para ajudar nas
despesas do Grupo Multiétnico de Empreendedores Sociais que
participou do evento com atividades culturais afro-brasileiras.
O assunto me remete aos anos de 1987 a 1995, período em
que sempre dispus de um percentual do valor arrecadado na co-
mercialização de meus livros, para investimentos assistenciais e
educacionais, como auxílio financeiro a duas creches, pró-labo-
re de recreacionista para creche, durante oito meses, confecção
de dois tipos de uniformes para grupo de dança afro, compra de
máquina de costura para artesãs negras, aquisição de livros, ca-
dernos, equipamentos de copa e cozinha para os projetos em que
atuava. Divido o processo de ajuda aos semelhantes, com o Gru-
po Cultural Rainha Ginga.

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ROTA EXISTENCIAL

O ENCONTRO – ANO 2000


SAUDADES E CONTEXTOS DE DIVERSIDADE

Em 1999 já estava em Brasília, desde janeiro.


Antes de viajar, recebi um presente muito original do ami-
go Wanderlei Fernandes Santos. Ele me presenteou com o conto
que havia criado e inscrito no Concurso Literário Histórias de
Trabalho, em 1998.
O presente teve um significado especial, pelas experiên-
cias humanas relatadas, muito reais na vida de famílias negras
de trabalhadores. Privilegiada pela oferta criativa de valores, de
afetos, de referências, sentia o privilégio na emoção, no meu es-
tado de espírito que atiçava muita saudade do sul. Assustada com
a diversidade de Brasília, acostumada que estava com os mesmos
sotaques, os mesmos trajetos, as mesmas caras do dia-a-dia, per-
cebi-me saudosa e confusa. E onde estavam os negros e negras?
Cadê a negrada do Distrito Federal?
Senti uma sensação estranha e ruim, porque julguei que
deixava para trás muitos valores, afetos e referenciais. Ficariam
ausentes de mim?
Vou então, afirmando para mim que sou transitória e que
dependeria muito de meus pensamentos e ações, o reencontro
com as minhas crenças e valores, tanto faz se em Porto Alegre
ou em Brasília. Mas a afirmação vinha carregada de saudades...
Saudades das pessoas. Era um fato verdadeiro.
Lancei mão de uma estratégia mental. Segurei a saudade
que estava me consumindo e brinquei com ela, até onde pude
brincar, sem chorar. Criei páginas de vários encontros com dife-
rentes características. Uns equivocados, reflexivos, questionado-
res e até cruéis. Outros humorados, memoralísticos, longínquos.

98
HELENA DO SUL

Revisitei o conto que me foi doado pelo amigo e fingindo o avesso


do que dizia, não tive receio de sair pelo passeio imaginário.
Não esqueci da transitoriedade, abrindo a imaginação
para os encontros imaginários ou reais, porém sempre transitó-
rios. Encontros misteriosos ou reveladores de concepções. Todos
atentos, o quanto consegui dar-lhes atenção.
Enquanto escrevia, fui conhecendo um pouco mais de Bra-
sília e fiquei mais próxima da diversidade humana que por aqui
mora, trabalha e luta pela sobrevivência. Quando me dei conta,
esta diversidade já fazia parte do Encontro.
Neste livro tive duas parceiras, contadoras de histórias com
suas referências ambientais: Ivone Poleto, remanescente de italia-
nos e Aracy da Silveira Dutra, remanescente de escravos. Ambas
enriqueceram O Encontro, com seus registros de vida, de afetos,
de família e os valores, costumes e tradições de suas origens.
O tempo foi passando e aprontei um livro que começa na
terra e termina em uma terceira esquina do desconhecido. Meus
personagens já estavam acostumados com a idéia de transitorie-
dade, com as diversidades de toda ordem, com os mistérios.
Escrevi mais uma novela social. Que coisa é esta? Será que
a Bibliotecônoma está querendo me confundir?
Colegas e familiares, em Brasília, participaram de uma Co-
menda Cultural para propiciar a edição de O Encontro. Já conhe-
ciam minha Literatura Marginal e o sistema de apoio do Grupo
Cultural Rainha Ginga que a mantinha.
O lançamento do livro foi no Espaço Cultural da ANA-
TEL, onde recebi o púbico de pés descalços. Minha apresentação
aos brasilienses foi feita pela professora Marina Laura da Silveira
Dutra. Correu tudo perfeito: show de música popular brasileira
com a cantora carioca Ângela Regina, apresentação de danças do
grupo de jovens do Centro de Tradições Gaúchas Jaime Caetano
Braum, performance da artista Janete Borges Dutra, apresentação
do Coral do Centro Espírita Caminho da Luz, do bairro Cruzeiro,
toques de berimbau do mestre Leonardo, da Capoeira Terreira

99
ROTA EXISTENCIAL

do Brasil. Muita gente! Meu livro estava sendo recepcionado com


tanta dignidade, em uma terra onde ainda há pouco, eu era fo-
rasteira.
A performance de Janete teve um significado especial e foi
preparada com muito carinho. Alguns meses antes do lançamen-
to do livro, Janete concebeu “Caminhadas e Buscas”, cuja poética
fazia referência ao trajeto da diáspora africana. A artista plástica
moldou em gesso os pés e mãos de 11 quilombolas de diferentes
regiões do Brasil que estavam no Distrito Federal. Pés com cica-
trizes e marcas de uma ancestralidade que permeia pelo espaço
da diversidade brasileira, fizeram parte do ato em que Janete re-
alizou uma caminhada, interagindo com o público, ao som de
berimbau.As mãos, simbolizando a busca dos ideais, dos sonhos
e da resistência se configuravam no espaço aéreo da cena.
Para empréstimo do Espaço Cultural da ANATEL deixei
um cheque-caução, para cobrir alguma avaria que ocorresse nas
dependências. Dei um cheque em branco para um colega de tra-
balho que se encarregaria destes trâmites. Nem fiquei sabendo o
valor do tal cheque-caução. Ele também não me deu retorno.
No dia seguinte ao lançamento do livro, foi feita a revi-
são no Espaço Cultural ANATEL. Tudo em ordem. Meu colega e
amigo Milton Marques do Nascimento teve o cheque devolvido
no valor de cinco mil reais, uma importância financeira mais ele-
vada do que tudo que aconteceu na ANATEL, em termos mate-
riais, inclusive somando-se o valor da edição do livro. Havia sido
proposital a atitude de meu amigo em não me revelar as cifras do
cheque-caução, para que eu não desistisse do evento.
Ora, ora, o que fazer? Agradecer aos presentes por não te-
rem deixado avarias no local de Cultura, nenhum copo quebrado,
nenhuma parede riscada, nem o chão arranhado, mas somente a
alegria no ar, para marcar O Encontro.

100
HELENA DO SUL

AS FILHAS DAS LAVADEIRAS – ANO 2003


TRIBUTO ÀS MULHERES NEGRAS
E MOBILIZAÇÃO SOCIAL

Sobre o livro As Filhas das Lavadeiras, transcrevo as pala-


vras do Professor Nelson Inocêncio que vem a ser parceiro com
seus textos acadêmicos, no próximo livro que editei.
“A publicação de registros alusivos às lutas da população
afrodescendente no Brasil para superação das mazelas produzidas
pelo racismo apresentou-se escassa até as últimas décadas do século
passado. Contudo, a determinação do ativismo negro, no sentido
de gerar informação sobre certos processos vivenciados pelas coleti-
vidades negras, deu origem a várias reflexões que culminaram em
textos significativos. Hoje, algumas dessas referências literárias co-
meçam a ser exploradas com maior vigor pelas editoras nacionais.
Vale dizer que, a trajetória de muitos autores, identificados com a
temática, foi marcada pela produção independente, outrora único
meio de divulgação daquelas idéias no âmbito da leitura.
As Filhas das Lavadeiras, obra de Maria Helena Vargas da
Silveira é conseqüência dessa via alternativa e não fica a dever nada
por isso. Tecendo de forma hábil um conjunto de narrativas, a au-
tora busca, na organização das lavadeiras, elementos substanciais
para explicar uma entre tantas maneiras de resistência à violenta
exclusão racial que permeia a sociedade brasileira.
Trata-se de um texto apaixonado e capaz de apaixonar pelo
modo como as falas são construídas, pela vivacidade e veracidade
dos depoimentos e, sobretudo pela postura obstinada dessas traba-
lhadoras e mães no intuito de vislumbrar para as suas descendentes
um futuro melhor.
O texto também evidencia a coerência existente na visão de
mundo dessas mulheres, negras em sua ampla maioria. A obser-

101
ROTA EXISTENCIAL

vação sobre o universo delas transcende o velho estereótipo que


vincula lavadeiras a falatório e alcovitagem. As matriarcas aqui
apresentadas deixaram indubitavelmente importantes lições de
vida para seus herdeiros, em particular para suas filhas pelo fato
dessas necessitarem enfrentar o mundo compreendendo todas as
limitações provenientes do racismo e do sexismo.
Algumas das filhas inclusas neste texto são relativamente
conhecidas do grande público, a exemplo da atriz Ruth de Souza e
da ex-miss Brasil Deise Nunes. Outras mulheres menos conhecidas,
mas não menos importantes, apresentam argumentos ricos de con-
teúdo e que nos auxiliam a caminhar com os olhos desse segmento
específico.
Ao ter contato com o texto de Maria Helena lembrei-me de
uma das músicas de Monsueto que nos remete ao sacrifício dessas
personagens da nossa cultura popular. Uma das estrofes diz:
A roupa um tantão assim
Dinheiro um tiquinho assim
Para lavar a roupa da minha sinhá
O labor excessivo e a baixa remuneração constituem uma
combinação terrível e que, com certeza restringem as possibilidades
e perspectivas de futuro. Contudo, as lavadeiras parecem buscar
uma força sobrenatural para reverter o processo e garantir qualida-
de de vida mínima às gerações vindouras.
Faz bem à saúde de nossas consciências a leitura desse livro.
Ele se consolida como um elemento a mais para entendermos por-
que, como ressalta Gilberto Gil o povo negro continua lavando as
manchas do mundo com água e sabão.”
Nelson Inocêncio
O livro As Filhas das Lavadeiras teve lançamento em Brasí-
lia, primeiramente na Embaixada da Nigéria e uns meses depois,
na Casa Thomas Jefferson, por influência de uma das filhas das
lavadeiras, Maria José de Souza, que transitava mais de perto
pelos dois referidos espaços.

102
HELENA DO SUL

Recebi a atenção da jornalista Marlene Galeazzi que di-


vulgou o trabalho no Jornal de Brasília, com a matéria “Histórias
Para Contar” (26/01/2002), em que pude relatar como foi escrever
o livro, o contato com as filhas de lavadeiras, das famosas como
a atriz global Ruth de Souza e a miss Brasil Deise Nunes, às anô-
nimas, destacando que o objetivo não foi apenas trabalhar com o
depoimento de nomes estrelados mas sim com mulheres que têm
bagagem de valores, de experiência de vida, de expressões e de
lideranças comunitárias. Todas filhas de lavadeiras.
Para o lançamento do livro, o Embaixador da Nigéria,
senhor Joseph Sookore Egbuson organizou uma recepção na
Embaixada, que naquela noite parecia um paraíso que se esten-
dia por todos os cantos em que havia convidados e convidadas.
Apresentou uma homenagem inesquecível, principalmente para
as filhas das lavadeiras que se fizeram presentes ao evento, vindas
de outros estados do Brasil.
Em seu discurso o Embaixador revelou a emoção que es-
tava sentindo por reunir toda aquela gente brasileira e ressaltou
o valor do livro que estava sendo lançado, pois já havia feito a
leitura de seu conteúdo, um dos procedimentos que antecedia à
confirmação ou a negação do espaço da Embaixada, para a reali-
zação do evento.
No dia seguinte ao lançamento do livro, a esposa do Embai-
xador organizou um almoço para as convidadas forasteiras e filhas
de lavadeiras, depoentes do livro. O almoço contou com a presença
de embaixatrizes de países africanos e outros, as quais me fizeram
uma espécie de sabatina, perguntando sobre minha Literatura e,
mais especialmente sobre o livro As Filhas das Lavadeiras.
Posteriormente, em 2005, a Embaixatriz do Senegal, Se-
nhora Marie Claire Coly, fez a tradução do livro para o idioma
francês, em seu projeto final do Curso de Tradução, do Instituto
de Letras da Universidade de Brasília. Os textos em francês en-
contram-se na Revista Labrys (2005).
Mary Claire coloca que, na qualidade de africana, não po-
deria ficar indiferente à história da diáspora negra, sobretudo
quando se fala da luta de mulheres para sustentar suas famílias,

103
ROTA EXISTENCIAL

para conseguir melhor lugar na sociedade. Sentiu-se muito perto


das lavadeiras e filhas das lavadeiras que lhe trouxeram lembranças
de sua terra. Disse ter ficado um pouco assustada na hora de tradu-
zir os textos, porque a linguagem do livro reflete uma cultura e um
jeito de falar, com uma multiplicidade de referências sócio-cultu-
rais que talvez nem encontrasse tradução no Dicionário Bilíngüe.
O lançamento do livro pelo Conselho Cultural da Casa
Thomaz Jefferson, também em Brasília, teve a coordenação da
Embaixatriz Ana Maria Assunção e equipe, que desde a elabora-
ção dos originais da obra, revelou interesse de organizar o evento.
Tive o privilégio de participar das atividades culturais da Casa
Thomas Jefferson, tradicional instituição acostumada a promover
a cultura nacional e internacional da melhor qualidade.
Minha Literatura Marginal continuava fazendo história.
O Livro teve um outro lançamento interessante na Assem-
bléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, em Florianópolis.
Neste evento, organizado pela Associação de Mulheres Negras An-
tonieta de Barros sob a presidência da Professora Valdeonira dos
Anjos, aconteceram atividades de teatro, dança e música, protago-
nizadas por artistas e estudantes negros e negras de Florianópolis.
Ainda na ocasião, estiveram presentes as filhas de lava-
deiras residentes na capital catarinense e outras, vindas do Rio
Grande do Sul com amigos e amigas, além de autoridades polí-
ticas, educacionais e mulheres ativistas da Associação Antonieta
de Barros. Importante é ressaltar a presença dos estudantes da
periferia que vieram prestigiar o evento, juntamente com a atriz
Lelete, de Florianópolis.
Veicularam importantes matérias nos principais Jornais de
Florianópolis: Diário Catarinense e A Notícia, onde destacaram
que o conteúdo do livro servia para a auto-estima e valorização
da população negra.
A obra foi bem aceita no estado de Santa Catarina e a Se-
cretaria Estadual de Educação adquiriu expressiva quantidade de
exemplares para a distribuição nas escolas.

104
HELENA DO SUL

Em minha terra natal, Pelotas, tive a oportunidade de fazer


com que o livro circulasse, por intermédio da professora Nair Edi
da Silva Pinto e, por ocasião de uma palestra que realizei no Clu-
be Cultural Fica Ahí Prá Ir Dizendo.
Em Porto Alegre, foi muita felicidade lançar o livro As Fi-
lhas das Lavadeiras, na Associação Satélite Prontidão, onde acon-
teceram significativas atividades no decorrer do evento. Estive-
ram presentes filhas de lavadeiras da região, com depoimentos
no livro, entre elas a Ex-Miss Brasil Daisy Nunes, Maria Marques,
Nair Edi da Silva Pinto e Maria Isabel Barbosa Alves; a Senho-
ra Iracema Marley Moraes da Silveira, mãe da depoente Sandra
Beatriz Moraes da Silveira e a Senhora Maria do Carmo da Silva
Machado, mãe da depoente Terezinha Juraci Machado da Silva.
A presença destas mulheres encantou-me pelo carinho que me
dispensaram e pelos momentos de alegria que trouxeram ao pú-
blico.
As atividades culturais do evento foram inesquecíveis,
verdadeiros brindes de valores imateriais, entre os quais destaco:
A performance do poema “Memórias na Cabeça”, ocasião em que
a atriz Eliane Souza coroou a lavadeira Maria do Carmo; a apre-
sentação do Coral Adventus que levou ao público os cânticos da
negritude norte-americana; a dramatização espontânea das ativi-
dades das lavadeiras em prol da educação dos filhos, seguida de
contundente declaração de apreço pelo trabalho apresentado no
livro, pela Senhora Doralice Machado, cuja mãe era lavadeira; a
dinâmica coreografia musical do Grupo de Mulheres da Associa-
ção Clara Nunes; a exaltação do trabalho das lavadeiras, pelo po-
eta Alexandre Gabriel; a saudação da escola de Samba integração
do Areal da Baronesa com muito samba, Porta Bandeira e Mestre
Sala mirins;apresentação do Grupo de Moçambiques do muni-
cípio de Osório, com a Rainha Jinga, o Rei Congo, os brincantes
e tocadores. Esta sim, a rainha com j, aquela citada pelo escritor
Oliveira Silveira.
A presença do Grupo de Moçambiques surpreendeu ao
público que, na maioria, não conhecia esta tradição afro-brasilei-
ra do Rio Grande do Sul. Quando entrou no salão a corte da Rai-

105
ROTA EXISTENCIAL

nha Jinga, carregando a bandeira de Nossa Senhora do Rosário,


observei que muitas pessoas choraram e aplaudiram frenetica-
mente o cortejo. Esta atividade foi proporcionada pelo empenho
da filha de lavadeira Maria Marques, junto ao Prefeito do municí-
pio de Osório, Dr. Alceu Moreira da Silva.
Seguindo a tradição dos meus lançamentos de livros, os
convidados foram agraciados com quitutes, desta vez preparados
pela Auxiliar de Nutrição Delilene Cordeiro que a todos e to-
das encantou pelos seus dotes culinários presentes nos saborosos
doces e salgados. Mas , como diz a canção, “a gente não quer só
comida”. Ressalto a culinária para evidenciar o talento e habilida-
des dos artesãos negros, muito mais centrada na valorização do
que fazem, do que pela especificidade do ato do povo comer.
Sempre tive o privilegio de receber o carinho das pessoas,
tanto faz a faixa etária, a religião, a cor, a condição econômica,
independente de mesas postas, pois em geral nem sabiam o que
estava por acontecer a mais, nos eventos. Nunca divulgamos ne-
nhuma programação prévia, somente o lançamento do livro.
Mesmo residindo fora de Porto Alegre, continuei tendo
respaldo para a organização dos lançamentos de meus livros,
nas admiráveis pessoas que desde o inicio de minhas publicações
acreditaram em meu trabalho.
No Rio Grande do Sul, o livro propiciou a publicação de
muitas matérias jornalísticas, no Diário da Manhã, no Jornal do
Nativismo, na revista Cecune. Foram páginas marcantes que des-
tacaram a valorização do trabalho das mães lavadeiras em prol da
educação dos filhos e filhas.
A edição de As Filhas das Lavadeiras esgotou-se rapida-
mente, sendo eximias divulgadoras da obra, as Senhoras Valdeo-
nira Silva dos Anjos e Dona Nadir, em Santa Catarina: Neide Sil-
va Rafael e o livreiro Papa Léguas, em São Paulo e Rio de Janeiro;
Maria Jose de Souza, no Distrito Federal; Nair Edi da Silva Pinto
e Gilda Machado, em Pelotas; Eloy Dias dos Angelos, Frankili-
na Marques Cardoso e Tereza de Lourdes Cardoso Sampaio, em
Porto Alegre.

106
HELENA DO SUL

OS CORPOS E OBÁ CONTEMPORÂNEA –


ANO 2005
TRANSGREDINDO “NORMAS CULTURAIS” E
TRABALHANDO O IMAGINÁRIO POPULAR SO-
BRE OS CORPOS AFRODESCENDENTES

Por volta de 1987, quando iniciei a publicar meus traba-


lhos, fui induzida a um novo ciclo de leituras, incluindo autoras
negras americanas. Chamava minha atenção que os personagens
eram fogosos, muito quentes no trato com as palavras para ex-
pressar a sexualidade, tanto faz mulheres e homens. O fato me
agradava bastante, mas conservava uma razoável timidez cultu-
ral para colocar no papel certos assuntos, por vezes inquietantes
e passíveis de necessária reflexão. Poderia fazê-la com o público
leitor, algum dia?
As idéias vão germinando. Vamos cuidando delas, até que
amadurecem.
Enquanto as idéias tomam conta da gente, vão acontecen-
do fatos paralelos que se tornam motivos fortes para que elas não
permaneçam ignoradas. Há um tempo que se considera o tempo
certo, às vezes pode até nem ser, mas temos de estar convictos de
que é o tempo certo, propício para revelar o escondido.
Muitas mulheres, sofrendo por causa de relacionamentos
desfeitos com maridos, amantes, ficantes, namorantes... Mulhe-
res, sofrendo demais, mutiladas, envenenadas de baixa-estima.
Muitos homens-causa destes sofrimentos. Seria justo?
Não deveria contar casos, tomando as histórias de cada mu-
lher que eu escutava. Seria panfletário, comum. Também me escuto.
Estava na hora de inventar corpos e jogá-los no fogo da
sensualidade, do sexo, das conquistas, na chama capaz de quei-

107
ROTA EXISTENCIAL

mar minha timidez cultural em relação ao sexo e gozar no prazer


da escrita, a felicidade de poder botar para fora o que estava me
indignando que era o que eu sentia com o relato dolorido das
Obás.
Sem culpas, Obá que me perdoe, por não aceitar que te-
nha cortado a orelha para conquistar Xangô. Mas... As mulheres
ainda continuam se mutilando tanto por causa de seus homens,
em nome do amor. Foi a partir destas reflexões que germinou e
nasceu Os Corpos e Obá Contemporânea.
Aconselho que procurem conhecer a Lenda de Obá.
Enquanto escrevia o livro, aconteciam os primeiros passos
para a criação do Centro de Estudos Brasil-Haiti, no Distrito Fe-
deral, por iniciativa da Doutora Renata Rosa. O referido Centro
deu apoio institucional para a publicação do livro que se destaca
como sua primeira atividade cultural e integradora.
O lançamento do livro Os Corpos e Obá Contemporânea
ocorreu na Embaixada do Haiti no Brasil, com apoio da Adida
Cultural, Senhora Norma Cooper e Conselheiros.
Na ocasião, a produção do evento ficou a cargo da Senhora
Cristina Magalhães e do Senhor Glaudson Pereira Almeida, da
CG Eventos, que proporcionou momentos agradáveis aos con-
vidados com Maximo Mansur e seu conjunto musical de MPB,
performance do conteúdo de Corpo Texto , pela artista plástica
Janete Borges Dutra. Não fugindo à tradição de lançamentos an-
teriores, teve comes e bebes.
O evento contou com a participação do parceiro do livro,
Mestre Nelson Inocêncio que abriu as atividades com interes-
sante discurso em que ressaltou o valor de Obá, como elemento
capaz de doações extremadas por uma paixão, exemplo que não
precisa ser menosprezado e sim analisado sob o ponto de vista da
contemporaneidade.
Também fizeram uso da palavra a Doutora Renata Rosa,
já como Presidente do Centro de Estudos Brasil-Haiti e a Adida
Cultural Norma Cooper.

108
HELENA DO SUL

Os Corpos e Obá Contemporânea fez outras incursões de


lançamento pelo Distrito Federal: no Espaço Cultural Afro Nzin-
ga; no Sarau do Sindicato dos Professores do DF, em Águas Cla-
ras; e em Taguatinga, no espaço cultural da Cantoria, a convite da
Tribo das Artes.
Em Porto Alegre tive o privilégio de autografar o livro no
Museu Antropológico do Rio Grande do Sul, a convite da Jorna-
lista Sátira Machado. Na ocasião, entre os presentes, encontra-
vam-se personalidades representativas da negritude gaúcha, en-
tre elas a senhora Serafina, neta do Príncipe Africano Custodio,
pioneiro da religiosidade africana no sul do Brasil.
Sinto-me gratificada pela recepção que a obra teve pelos
leitores, destacando-se acadêmicos que estimularam grupos de
estudos a partir do seu conteúdo reflexivo para homens e mu-
lheres.

O jornalista Oscar Henrique, fala sobre o livro.


HELENA DO SUL IMAGINA CORPOS E SUBVERTE OBÁ
Autora de novelas sociais, com personagens reais e formas
reais, Maria Helena Vargas da Silveira entra na pele de Helena do
Sul e imagina corpos, para convidar a todas as leitoras e leitores a
embarcar numa viagem pelo íntimo e pelo mistério. Um corpo,
uma forma,uma imagem. Uma imagem que ingressa no introspec-
tivo para descobrir muitas realidades. Um passeio pela alma femi-
nina, pela alma que busca respostas por sua própria existência. A
mulher desnuda-se para dar  passagem à liberdade de sentimentos,
de conclusões, de expressões. O corpo-fêmea corre, anda, sonha,
pensa. Faz uma excursão, onde o ponto de partida começa em si
mesmo e termina na mesma estação, sem que por isto deixe de in-
teragir ou fique alheia ao mundo exterior, com suas mais belas  ou
mais horrendas paisagens corpóreas.Não é uma excursão de fuga 
Quando resolvi embarcar nesta viagem com Azantewaa,
nas páginas que seguem. Deixei-me levar pelo balanço forte de um
corpo que movimentou meus pensamentos e o próprio corpo, que
não ficou indiferente a tantos ritos sociais.

109
ROTA EXISTENCIAL

Maria Helena, ou a Helena do Sul, deu um salto para a intro-


versão. Em seu trabalho anterior, “As Filhas das Lavadeiras”, con-
tou a vida de mulheres reais. Mães que lutaram e lavaram roupas
para construir os seus maiores sonhos: educar e formar seus filhos.
As mulheres também estão em “Obá Contemporânea”. Uma mu-
lher? Um corpo? Uma forma? Não, são muitas, são várias, são as
mais profundas, mais íntimas e mais verdadeiras. São plenas de
sentimentos. Definições. São corpos que andam e nos levam a crer
que o imaginário fala, vira personagem. 
As páginas passam, você não consegue parar de ler. Olhos
vêem o mundo através de uma janela. Metamorfoses são descober-
tas a cada capítulo. Nada é igual na narrativa de Helena do Sul.
Azantewaa vai até a Filosofia, dá um contorno nas Artes e toma
uma reta rumo à História que pode ser antiga, medieval, contem-
porânea, mas é uma história. Eles são elas, ou elas são eles? Eles an-
dam junto com elas, e elas, mais uma vez, não são mais as coadju-
vantes. Os corpos-fêmeas protagonizam as cenas em que indagam e
questionam, até que ponto os processos de envolvimento corpóreo e
somente eles, poderão ser responsáveis pelo conforto ou desconforto
que desenha o espírito.
Azantewaa perambula, mexe, remexe, instiga, ri, chora, bri-
ga, inquieta-se, ama. Vive e projeta suas próprias metáforas. O cor-
po que não cai, o corpo que não morre, renasce, nas situações mais
diversas, curiosas, e não remotas.  
Helena do Sul quer nos instigar a conhecer mais esta mulher,
este corpo- fêmea. Fêmea que comparando a Obá, tem mutilação e
tem gozo, o prazer e a dor advindos dos processos das relações com
os corpos, em qualquer instância da existência. 
A autora, tão popular quanto intelectualizada, construiu
uma narrativa baseada na pesquisa, motivada pelo epistemológico
das palavras em sintonia com a emoção voltada ao raso da vida em
sua vala mais comum e, paradoxalmente, mais profunda.  
Os capítulos apresentados a seguir conotam uma nova etapa
de produção literária desta escritora gaúcha que seduz com a pala-
vra e o seu jeito de ser livre, autêntica e sempre, surpreendente, mo-
vimentando na prosa as coisas do universo de sua afrobrasilidade. 

110
HELENA DO SUL

Com Os Corpos e Obá Contemporânea, um novo momen-


to se inicia. As cenas do real e irreal,no mesmo plano,garantem
ao leitor um embarque sem pressa, nos contornos de um corpo, na
mutação de vários corpos. Todos corroboram para um desfecho. E
quando convergem para o texto do mestre Nelson Inocêncio, par-
ceiro neste livro, enfrentam o perigo que se consolida com o nome
de imaginário social.
OSCAR HENRIQUE CARDOSO
Jornalista da Fundação Cultural Palmares/MinC

Estamos em 2007. Continuo escrevendo.


Identifico na escrita, minha atitude espontânea de resistên-
cia e criatividade. Escrever é coisa de negros e negras, também.
Ainda há poucos meses, a jornalista Cristina Fausta, do
Jornal Hoje Em Dia, na coluna Gente da Cidade, Caderno de
Brasilia esteve me entrevistando e depois surpreendeu-me com a
matéria Negritude Literária.
Pois é... Mas para dar continuidade a esta negritude literá-
ria e editar meus livros, preciso exercitar outros processos ideoló-
gicos, no coletivo. Trabalho muito.
Acredito nas possibilidades da Literatura Afro-brasileira,
na soma de informações, na oportunidade de reflexões que po-
derão mexer, positivamente, na estrutura energética dos leitores e
leitoras. Materialmente, não me seduz.
O trabalho grandioso de artistas negros da palavra, a cujos
pés nem chego, não foi capaz de livrá-los dos porões sociais da
marginalidade. São bons exemplos para que uma escritora negra
continue resistindo, mas sem encantos, na Rota Existencial da
Cultura Brasileira.

111
ROTA EXISTENCIAL

ROTA EXISTENCIAL
PARTE 3

A revisita de nove livros publicados, anteriormente, resul-


ta na reedição de alguns textos, como estratégia-espelho e retros-
pectiva do trabalho da escritora.

Identidade (do livro É Fogo)


A Trova Do Bola (do livro O Sol de Fevereiro)
Simiesca (do livro O Sol de Fevereiro)
Iniciação (do livro Odara , Fantasia e Realidade)
Rezumbindo (do livro Odara , Fantasia e Realidade)
Rebelião Dos Sambistas (do livro Odara , Fantasia e Rea-
lidade)
Conversa De Negro (do livro Negrada)
O Super Evento (do livro Negrada)-
Forasteiros De Muitos Lugares (do livro Tipuana)
Apresentação Do Nome Da Lomba (do livro Tipuana)
Izolda Maria Mais Ou Menos ( do livro Tipuana)
Ata Ordinária (do livro Tipuana)
Capítulo XXVI (do livro O Encontro)
Casarão Das Lavadeiras De Caxambu (do livro As Filhas
das Lavadeiras)
Do Bengo À Paixão Pelas Congadas (do livro As Filhas das
Lavadeiras)
Lavação De Roupas (do livro As Filhas das Lavadeiras)

112
HELENA DO SUL

Corpo-Inquietação (do livro Os Corpos e Obá Contem-


porânea)
Corpo-Texto (do livro Os Corpos e Obá Contemporânea)
Corpo-Ironia (do livro Os Corpos e Obá Contemporâ-
nea)

113
ROTA EXISTENCIAL

IDENTIDADE

Estamos chegando. Naturalmente queremos te cumprimen-


tar. Sei que já me conheces, mas hoje venho acompanhado, braços
dados com Maria. Permanece à vontade. Maria é gente nossa.
Maria lança um oh! Que ecoa na varanda. Seu primeiro si-
nal de comunicação é um monossílabo estridente, saído do fundo
da garganta para ir ao encontro do outro. É evidente que Maria
está querendo chamar atenção.
Não te espantes com o cumprimento de Maria porque ela
sabe também, suavemente, dizer-te oi, muito prazer e todos os
ditos convencionais. Deve ter gostado muito de ti e, espontane-
amente, abriu-se tão depressa no oh! mais bonito que sabe dar,
para marcar presença.
Continua tua leitura de jornal, enquanto preparo um cafezi-
nho. Depois ficarei ao teu lado, conversaremos de tudo um pouqui-
nho, como sempre. Não, não será como sempre. Hoje trouxe Maria.
A mulher virá comigo todas as noites, até que conclua as
estórias que te trago. Ela sabe dos fatos e dará seu testemunho,
acenando a cabeça, tantas vezes forem necessárias para que eu
diga só verdades. Afinal, gostas de minhas estórias e te peço para
que Maria permaneça conosco.
Sem Maria não existem estórias, nem cafezinhos na varan-
da e estarei ausente. Não sou seu dependente, mas um aliado.
Se aqui tenho um lugar, ocuparei com ela.
Quem é Maria, sua identidade?
Maria ficará bem próxima de ti e participarás intimamente
de suas ilusões, seus conflitos, frustrações do ontem e do agora,
da luta, do desejo incontido de falar para alguém, de algo para o
qual não se prepara ninguém – a vida. A vida ou a morte que se

114
HELENA DO SUL

mostra pelas fronteiras das conseqüências do amor e desamor,


nas mutações vitais e sociais. Liberta-se de quatro paredes para
chegar às ruas, exercitando-se mulher, simplicidade nua, mos-
trando-se analfabeta, para depois interpretar o simbolismo da
vida passada a limpo, apontando a podridão que existe por de-
baixo das becas, não sentindo vergonha de sua toga esfarrapada e
suada, ainda sendo e amando.
Maria não vem só de lutas, mas suas alegrias foram extraí-
das das batalhas que enfrentou.
Tenho a certeza de que não te fará segredos, pois costuma
dizer do riso e do pranto, do sagrado, da safadeza, do amor ativo
e da contemplação do nada que é o início da criação, com a fran-
queza necessária para dizer tudo, deixando nada para depois.
Aproxima-te de Maria, sem medo, porque é real. Não se
deve temer a realidade.

........................................

... Não selecionava pessoas pelo que possuíam, vestiam ou


pelo clube em que dançavam. Sua agenda de pessoal era de pro-
fessores ligados aos alunos, sem bajular o sistema, raparigas putas
da rua dos trilhos, jovens questionadores das reuniões da Juventu-
de Estudantil Católica, os bêbados dos botecos que lhe beijavam a
mão porque era filha de um outro bêbado, a classe se respeitava.
Juntava ao seu rol de amizades interessantes, umas quantas
velhas de idade e muito jovens nas ações, cheias de força interior,
alegres contadoras de casos.
Maria criava um estilo próprio de sentir as coisas ao re-
dor, chutando as pedras, caindo e levantando. Não aceitava dis-
se-disse dos outros, pré-julgamentos, espionagem nos barracos,
mesquinharia. Sendo assim, foi descrendo de suas possibilidades
de participar de círculos restritos de luxos, de muito egoísmo,
cada qual querendo ser mais rico, mais inteligente, a mulher mais
virgem, o homem mais macho. Encontraria um jeito de escapar
deste “polvo” que gerava enredos e mutilações.

115
ROTA EXISTENCIAL

A TROVA DO BOLA

Nas noites de sábados, muita seresta, alegres pagodes no


sobrado. A higiene mental se fazia com a música, ao som do vio-
lão de sete cordas, pandeiro, agê, surdão e o cavaquinho do Bola.
Ficava tudo bem certinho pra rapaziada dizer fados.
Quando o Bola cantava, era sempre o mesmo lero-lero, ga-
rota de Ipanema...
E para implicar com as gurias, o Bola abria a bocarra: “as
feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”. Saravá pra be-
leza. E dava risada.
O Bola era um sujeito miudinho, cabecinha de alfinete,
magrela e pouquinho como caroço de butiá. Era só boca. Estava
sempre tirando recalque da feiúra, mexendo com as mulheres de-
sajeitadas do Beco, exaltando a beleza.
Enquanto os outros pagodeiros traziam novidades para
cantar, o Bola não mudava o repertório. Safado e debochado,
olhava prás meninas e lascava o lero-lero: “As feias que me per-
doem, mas a beleza é fundamental”. Nem se tocava diante das
mulheres com os cabelos por fazer, roupas surradas, corpo can-
sado da semana de trabalho, olhos caidinhos de sono. Só queria
machucar, machucar.
Mas naquele sábado as mulheres combinaram pregar-lhe
um corretivo. Serviram feijoada, carne de panela, lingüiça frita e
polenta para os músicos, com exceção do Bola que ficou pigarre-
ando num canto, tirando um sol maior do cavaquinho. Tomou
dois copos d’água, assim mesmo servidos pelas crianças.
Louco de fome, quando iniciou a cantoria, não deu trégua às
meninas: “As feias que me perdoem, mas beleza é fundamental.”
Coitado! Só falava de beleza e as gurias, longe da consciência
estética negra, não sentiam-se belas. Queriam enforcar o Bola.

116
HELENA DO SUL

No pagode seguinte, quando retornou ao sobrado, o Bi-


rolho foi logo lhe abrindo o jogo: hoje não tem papo de beleza
do Vinicius. O negócio é mulher, Bola. Mulher é fundamental. O
amor é fundamental. Não mexe mais com as gurias. São feias e
são bonitas. O Birolho era menos explícito.
O Bola ficou compenetrado, depois cheio de explicações:
– Pô Birolho, tô sabendo. Hoje não vou passar fome. Pedi
pro Bola Júnior botar uma trova no papel pra eu dizer. Passa o
olho no lero-lero do neguinho.
Quando apanhou o cavaquinho, o Bola tomou fôlego e bo-
tou a boca no mundo com o discurso consciente de seu filho Bola
Júnior:
“Olha aqui pessoal: O Bola quer platéia só de beleza, as
mulheres aqui do Beco. Quando vocês aparecem revelam aquela
beleza de dentro, fundamental. O Bola canta pra vocês, cheias de
graça, cheias de balanço. E não esquece de cantar que estão cada
vez mais cheias de tudo , saturadas de não achar graça, de não ver
muita beleza, de balançar todos os dias na condução apertada com
cheiro encardido, O Bola vê tudo isto. Ei-las que passam e passam
muito mal. Não é a caminho do mar, é a caminho do pão. Ei-las que
passam de cara lavada, naturais. O corpo cansado, alma inquieta,
desejando a liberdade dos apertos cotidianos. Correm, quase sem
tempo de expandir o espírito, as emoções. Chegam e saem da roda
viva de ter para ser numa sociedade materializada, consumista.
Passam meninas, jovens, senhoras, velhas, tropeçando em barrei-
ras, corajosas. Maltratadas e lindas mulheres do Beco, Vinicius es-
queceu de cantá-las. A beleza é a estampa do amor. Perdoem o po-
eta. Meninas que não estão a caminho do mar, mas a caminho da
vida, extensa lavoura cheia de insetos, só vocês transformam esta
paisagem árida com a suavidade do carinho. Sempre estão cheias
de graça para os olhos que penetram além da casca, das aparências
de um corpo físico que apodrece. Todas as mulheres são belas, né
Vinicius? Passam sobrecarregadas de responsabilidades sem perde-
rem a ginga. Aqui no Beco, fundamental é mulher. Mulher é bele-
za. Belezas são vocês, gurias. Tenho dito”.

117
ROTA EXISTENCIAL

Depois do discurso do Bola Júnior, o pagodeiro comeu fei-


joada à vontade, muitos nacos de carne de panela e afogou-se no
licor de bergamota das vovós. Dava risadas, contente.
Desajeitado, miudinho e boca grande, pulava de satisfa-
ção.
Mudou o repertório: “Agora chegou a vez vou cantar, mu-
lher brasileira em primeiro lugar...” “A beleza é você menina,
menina”..E para terminar a cantoria, de forma triunfal cantava
um verdadeiro hino às mulheres negras, criado pelo compadre
Bedeu:
“Você é meu paraíso, e é tudo que eu preciso, musa negra vou
te amar. Me entrego no feitiço do seu corpo, no brilho do seu olhar.
O seu bote certeiro me pega por inteiro. Eu tenho que me entregar.
Perco a força na magia de seus braços., morro de tanto amar. Doce
cativeiro é navegar no navio negreiro do seu coração. Deusa da mi-
nha senzala, herdeira de Zumbi. Meu porto seguro de chegar, de
ancorar, de partir. Você é prá mim um axé, ritmo bom do afoxé,
luz do meu viver. Africana do Daomé, palmeiras, Palmares minha
crença, minha fé, minha deusa mulher.”

O sábado, 8 de março, era Dia Internacional da Mulher.

O pagode correu solto. Deu de cara com o sol.

 Bedeu - Jorge Moacir da Silva, compositor gaúcho de Música popular brasileira, de clás­
sicos sambas suingados, tais como Carolina, em parceria com Leleco Teles. Ambos fale-
cidos.

118
HELENA DO SUL

SIMIESCA

A casa de pedra dos Farias ganhava sempre um colorido


especial pela presença de Naná. Adolescente, uma roseira em flor,
graça natural, Naná era um ruído gostoso, luz e som. Transava o
brim desbotado, melenas ao gel, o tênis emaranhado de cadarços,
a mochila pra carregar os livros do colégio.
Na cabeceira da cama, um colar artesanal de poucos bri-
lhos, uma estampa do Garfield, gato estrangeiro da moda, pre-
guiçoso e gozador, as preferências da menina. E na parede, bem à
vista dos olhos, um painelzinho de papel camurça com as meda-
lhas expostas, todas conquistadas nos jogos estudantis.
Naná era do tipo esportista. Todos os anos participava da
Semana de Jogos do Colégio.
Colocava força no arremesso de bola. Caprichava mais ain-
da, esticava pernas e braços no vôlei. Corria pela cancha, rápida
como o tempo.
Em casa, preparava carinhosamente as faixas e cartazes
para ajudar sua torcida. Apostava na união da galera. Confeccio-
nava tudo com arte, embolada nas cartolinas, panos e papéis.
Para gincanas paralelas aos jogos, vestia-se à moda D’arc,
preto com preto.
Acreditava no esforço. Jogava e vencia.
Hoje, lembrei-me tanto de Naná, qualquer coisa misturada
com Simiesca e medalhas.
Foi por volta de 1988 que Naná arrebatou medalhas com
muita garra, na corrida de velocidade, no vôlei, no salto em dis-
tância. Deveria acontecer uma alegria grande, do tamanho do co-

119
ROTA EXISTENCIAL

légio, deveria acontecer. Que nada!


Naná correu do colégio até a casa de pedra, medalhas na
mão, faixas e cartazes despencando pelos ombros, o vestido D’arc
ponta abaixo, ponta acima. Correu até em casa, chorando, espa-
vorida aos gritos de “Simiesca, Macaca, Macaca”, vindos de uma
galera diferente de sua torcida.
No rosto, a angústia, o pavor pela corrida para a qual não
estava preparada.
Dizia nunca mais, nunca mais ao colégio. Nunca mais, me
tirem de lá, por favor.
Aquele nunca mais, pronunciado gritante e decidido, o
choro compulsivo movimentou o pessoal do Beco.
A mãe apanhou a menina no colo, acariciando-lhe a cabe-
ça para desvendar-lhe o pranto. Enquanto recebia afagos, soluça-
va, cansada:- nunca mais, nunca mais. A idéia fixa, não retornar
ao colégio. Estava com as pernas machucadas, coração batendo
forte, lágrimas gotejando no rosto suado, medalhas atiradas no
sofá, cartazes e faixas depenados, destroços.
Naná contou que lhe correram, lhe cercaram, e que ficou
presa no meio deles, enquanto gritavam:”simiesca, simiesca, ma-
caca, macaca”. Naná rolou no chão e cheia de medo correu para
casa com as medalhas ganhas.
A mãe quis saber quem eram eles, da galera diferente.
No dia seguinte, foi ao colégio. Nem direção, nem profes-
sores assistiram ao fato. Fez um relato da ocorrência como se es-
tivesse na Delegacia de Polícia.
Os diferentes foram chamados à ordem. Receberam lições
de direitos humanos, igualdade cristã, leis constitucionais. Os
diferentes precisavam aprender que os negros também recebem
medalhas, que podem vencer.
Nanás... Existem por aí, vencedoras. Devem estar atentas,
alertas para não desertarem aos gritos de simiesca! Macaca! As
formas de expressão variam, quando desejam derrubar alguém.

120
HELENA DO SUL

São preconceitos dos diferentes de uma sociedade cínica, onde a


cor, a raça e a moeda ainda excluem as pessoas de muitas corridas.
Denunciar é preciso, embora não seja tudo.
Calar é consentir o absurdo de ser considerada inferior.
É preciso segurar as medalhas. O esforço de cada um acio-
na as potencialidades para vencer. Em vez de chorar, é hora de
gritar, escandalosamente alto:
– Eu sou gente.
É hora de agir, de chegar em casa com as medalhas a que
tem direito, com dignidade.
As simiescas não devem abandonar a raia.
Quando o silêncio é a conivência com o absurdo, silenciar
é covardia.

121
ROTA EXISTENCIAL

INICIAÇÃO

O negro velho sábio, um ganga, convidou-a para entrar


em sua tenda de palmeiras. Deu-lhe uma esteira de sentar e de
dormir. Sentaram os dois na esteira, um de frente para o outro,
pernas cruzadas rentes no chão. Como o silêncio era grande, es-
cutavam o canto dos pássaros e o sassarico das águas, rolando na
cachoeira. Os dois pertenciam à mesma família, símbolos frater-
nos da ancestralidade que os acompanhava.
O velho sábio, deixando a esteira, dirigiu-se à porta e,
abrindo os braços, saudou a natureza, pedindo axé. Apanhou as
energias dos raios solares que batiam de cheio no vão do dia que
começava.
Retornando à esteira, trazia nas mãos um pano branco
de algodão rústico, algumas conchas do mar e folhas verdinhas,
arranjadas como mimosa coroa natural. Solenemente, curvou-
se para a mulher, descruzando-lhe as pernas, colocando o pano
branco e as conchas em seu colo. O velho continuou segurando as
folhas verdes. Iniciava-se um cerimonial.
Pediu permissão a Oxalá e solicitou à mulher que tomasse
duas conchas nas mãos e que através delas, seriam feitas impor-
tantes revelações. A mulher escolheu duas conchas entre as de-
mais e segurou-as, meio assustada.
O Ganga perguntou-lhe se queria saber sobre o poder do
ouro ou o poder do seu Orixá.

 ganga – equilíbrio entre forças positivas e negativas de todo ser


 Oxalá – Orixá que é a divindade mais importante do Panteão africano, criador dos
seres humanos, o Rei do Pano Branco
 Orixá – divindade do Candomblé associada à corrente energética de uma força da na-
tureza, a um arquétipo de comportamento humano e com freqüência a uma atividade
básica da sociedade

122
HELENA DO SUL

Respondeu-lhe que desejava saber do seu poder de MU-


LHER.
Então, mediante as conchas selecionadas, o velho iniciou
um diálogo de sabedorias.
– Queres saber dos poderes do teu odu, do teu destino?
– Sim. Quais são os meus poderes nesta seita-vida? Onde
aconteceu meu ingresso como membro deste terreiro?
– Tua iniciação, Mulher, começou numa noite em que bri-
lhavam todas as estrelas do firmamento. Tua cabeça recebeu o ba-
nho de sangue da entranha que te envolvia.Vieste ao reencontro
de teu Deus, na hereditariedade do atavismo que tomará cons-
ciência de uma grande família.Tua cabeça está feita para desen-
volver infinitas potencialidades, tendências ocultas e faculdades
secretas. Irás te revelando pela caminhada universal.
– Então, sou um segredo ou um amontoado de coisas ador-
mecidas?
– Calma! És movimento, quando falo nas caminhadas.
Tuas potencialidades não ficarão em vigília.Tua iniciação será
contínua, nas experiências, nos exemplos dos teus ancestrais, nos
princípios de educação, na censura e nas aprovações do meio so-
cial. Passarás por metamorfoses circunstanciais que revelarão a
personalidade escondida do teu ancestral divinizado, a tua perso-
nalidade aparente e uma outra.
– Poderei dirigir estes movimentos?
– Passarás pelos espaços do teu destino nos momentos cer-
tos. Ifá controlará teus movimentos, legando-te elevado poder
de inspiração e intuições mágicas para que dirijas teus passos. Ifá
será teu guia.
– Mas onde está o guia que não vejo?
– Procura-o sempre, dentro de ti mesma. Nesta procura do
guia, estabelecerás uma confusão natural. Mas irás encontrá-lo,
 Odu - destino
 Ifá – Orixá masculino , deus da adivinhação, do conhecimento e da informação do
futuro

123
ROTA EXISTENCIAL

quando entenderes tua natureza. Ficarás possuída de ti mesma e


perderás os sentidos, incorporando a força de Mulher.
– Que medo! Imagino-me tonta, rolando pelo chão. Quem
me segura?
– Não é preciso temer. Teus sonhos, teus ideais, teus obje-
tivos e teu guia interior te segurarão. Bem junto ao peito, põe um
colar de contas coloridas e oferece-o para os Orixás, para todas as
energias positivas da natureza.
– E basta este colar no peito, para realização de meus de-
sejos?
– Vou te ensinar a firmar os desejos. Faz um bori10 de pen-
samentos para reforço de cabeça.
– Saberei arrumá-lo?
– Terás que aprender, porque dependerá dele, a afirmação
dos teus desejos. Não é tão fácil, mas é muito próprio de tua es-
sência forte. Amarra o pensamento e faz com ele um torso com a
trilogia do querer, poder e fazer. Ajeita-o na cabeça, em todos os
momentos de tua existência.
– E se eu não souber o que desejo, nem tiver ideal, nem
sonhos?
– Toma empenho em descobrir-te através dos teus seme-
lhantes. Entra na dança. Torna-te abiã11 do ritual divino que é
Viver.
– Como estarei nos outros?
– Observa-os e sentirás coisas comuns: as lutas, as alegrias,
as lágrimas, as vitórias, as discriminações. Se te integrares a eles,
irás ao teu próprio aprendizado.
– Serão meus cúmplices?
– Sempre terás cúmplices nas buscas. Não tentes ser soli-
dão. Precisarás de muitos companheiros do mesmo barco.

10 Bori – cerimônia importante da iniciação ao Batuque, religião afro-brasileira no RS


11 Abiã – freqüentador assíduo do Batuque

124
HELENA DO SUL

– E quando não estiverem presentes?


– Mesmo assim sentirás uma energia que te impulsionará.
Será o momento de teu Orixá que jamais te abandona e que te
guiará em nome de Oxalá. Será teu direcionador de luz. É preciso
que possuas uma crença para que superes qualquer cansaço, fa-
zendo-te guerreira.
– Quem é meu Orixá?
– Os Orixás são mistérios de força, junto de ti. Aguarda a
revelação.
– Mas eu preciso de gente. Não viverei só destes misté-
rios...
– Sei que precisas de gente que é a concretização de um
consentimento da divindade. O mundo está pleno de consenti-
mentos desta ordem e virão ou irás ao encontro deles. Com eles
poderás encontrar a paz ou o desassossego, as possibilidades, os
desenganos, o sorriso ou a lágrima, o pão ou a fome, a vida ou a
morte. Terás encontros e desencontros, mesmo que Ifá coordene
teus passos. Ele te deixará experimentar o que quiseres e serás
responsável pelos teus atos.
– E quando tiver dúvidas? Será a hora de parar no meio de
qualquer caminho?
– Recolhe-te à camarinha e conversa com a tua consciên-
cia. Estabelece confrontos entre a razão e a emoção.
– Se não encontrar respostas e ficar perdida, descontro­
lada?
– Toma urgente uma água límpida para acalmar-te. Sem
ansiedades, mesmo com passos vacilantes, terás em vista a ob-
tenção de tuas respostas, com as energias renovadas.
– Por que meus passos vacilarão?
– Ainda não conheces todos os caminhos. Terás que ir des-
cobrindo como enfrentar os obstáculos e a renunciar muitas be-
lezas para poder vencer as pedras, o pó, as correntes do universo
que te rodeia, sem te machucar. Irás firmando o passo, enquanto

125
ROTA EXISTENCIAL

persegues o horizonte.
– Se pisarem nos meus pés?
– Cuida para não pisares nos pés dos outros.
– Mas se doer muito?
– Então não guarda o choro. Liberta o pranto, enquanto
ages. Faz alarde. Busca teus espaços e confia em teus atávicos ri-
zomas. Tua vontade ajudará a definir as ações do teu odú. A dor
apressará o passo para buscar lenitivo ou irá esmorecer tua ca-
minhada. Escolhe.
– Meu odú é de fazer alarde, de apressar o passo ou de es-
morecer?
– Teu destino é de viver. Terás muitos compromissos no
terreiro. Teu lugar não é aqui, sentada na esteira.
– É hora de ir?
– Toda hora será hora de ir. Vai em busca do respeito pelo
teu nome de MULHER. Grita-o com voz alta e muito clara para
que todo mundo te ouça, na cidade, no campo, nos quilombos
e nos mercados – MULHER. Quero te ver possuída de fêmea na
gira de todos os toques sociais.
– Mas poderei ficar cansada, ofegante?
– É possível. Proclama então o teu erê12. Brinca. Foge
da percepção de ti mesma e das convenções nas quais foste ini­
ciada.
– Brincarei ou ficarei desencontrada?
– Estarás apenas vivendo a outra, a outra personalidade
que disse possuíres. Podem até te desconhecerem mas não deixa-
rás de ser. Tuas convenções ficarão relaxando, enquanto recupe-
ras as energias.
– Que confusão! O Orixá Mulher é bem complicado!
– Mulher não é um Orixá, mas é relíquia dos deuses, po-
voando o mundo.
12 erê – estado intermediário entre a consciência total e o transe do Orixá

126
HELENA DO SUL

– E mulher negra?
– Achas que a cor irá interferir em teu destino? E já carre-
gas este fardo de preocupação?
– Poderei agüentar pesada carga?
– Mulher negra é poderosa. Acredita nesta revelação e se-
gue teu caminho. Não é mais hora de ficar aqui. Nem há mais
tempo de desvendar os mistérios da outra concha. Deixo-a con-
tigo, para que tua intuição feminina a descubra nos momentos
certos.
– Mas o que houve, meu velho? Estás tremendo? Ficaste
tão frágil de repente.
– Foram tuas mãos que pousaram sobre meus ombros e
me fizeram balançar. Se souberes aproveitar tua energia, farás tre-
mer este mundo. E então, tua mão permanecerá sobre todos que
se renderão aos teus poderes. Estás iniciada nos encantos e nos
mistérios de Oxum13. Teu odu é viver. Teu odu é amar. Teu odu
possui todos os privilégios da criação.
E, ajeitando na cabeça da mulher a coroa de folhas, pro-
clamou-a Rainha, mesmo naquela humilde tenda. Conduzia um
cerimonial de iniciação.
Era um velho sábio, um ganga, o Amor.

13 Oxum – Orixá feminino associado à maternidade, à beleza e ao poder; Divindade da


água doce, como o Amor

127
ROTA EXISTENCIAL

REZUMBINDO

Nem sempre é visível o brilho do luar, mas ele existe na


luminosidade que o sol lhe empresta. Torna-se encantado porque
suas características são reveladas positivamente. É objeto de amor
e poesia, ainda que ás custas do sol que lhe transfere os reflexos.
Tudo é questão de ensinamentos e energia.
O que acontece com o cidadão afro-brasileiro é bem dife-
rente das circunstâncias do luar. Não é comum apresentarem suas
características positivas. Ofuscam-lhe o brilho, mesmo que pos-
sua brilho próprio, pela sua História de lutas.Desta forma é mais
difícil que aprendam a estimá-lo e que ele mesmo se conscientize
de sua força natural.
É necessário que entendam de luar, mas é preciso que sai-
bam de gente, de todas as raças, para realçar a poesia da humani-
dade, no ayé14.
Através da História do negro no Brasil, repassam dados
cujas conclusões apontam o afro-brasileiro carente de valores
que o engrandeçam. Através dos piores atributos impostos, mos-
tram-no marginal. Mas ele é nobre pela própria História que
viveu. Marginalizado, sim. Marginalizado socialmente porque na
negação de seu valor é criado o anti-negro, o desamor do negro
pelo seu próprio eu, capaz de derrotá-lo, pela evidência da cor da
pele.
Existem negros que repetem “negro é lindo”,simplesmente
porque é letra de canção, sem terem a convicção de sua beleza.
Torna-se difícil de entender seu psicologismo e podem apresentar
casos patológicos estranhos que médicos experientes não estão
__________________________
14 Ayé – mundo material

128
HELENA DO SUL

conseguindo resolver. Faltou para estes negros e para a sociedade


em que convivem, aprenderem coisas de negro, desde a beleza de
suas peculiaridades físicas, de seus valores intelectuais, criativos
e, em especial, de grande capacidade de doação, de amor.
Mesmo que o negro possua tanta energia positiva, falta di-
vulgá-la, exemplificá-la para suas pautas de vida, de conduta e
firmeza de conjunto racial, desde a infância.
Precisamos de educadores, historiadores, jornalistas, poe-
tas, escritores, sociólogos, políticos, religiosos bem intencionados
com Deus, muita gente que divulgue o afro-brasileiro, dando-lhe
a merecida atenção.
Forças positivas sepultarão o negro sujo, trapaceiro, bri-
gão, preguiçoso, feio, burro e promíscuo sexual que a informação
subversiva ainda traz, em vésperas do terceiro milênio. O pró-
prio negro precisa ingressar na arte de rezumbir, oriunda do co-
nhecimento e da afirmação que o afro-brasileiro passa a ter de si
próprio, de suas capacidades, dos seus talentos, da resistência de
seus antepassados.
Rezumbir é amar-se negro e acreditar que não é inferior a
nenhuma outra raça. É reagir às adversidades impostas aos negros.
Rezumbir é ladainha antiga, conjugação atual, um grande movi-
mento que envolve cabeça, energia física e, sobretudo a emoção.
Em sua rotina telúrica, o negro só cresce digno e aparece
respeitado, rezumbindo. Rezumbindo na busca de sua real liber-
dade, lutando pela participação como cidadão no âmbito sócio-
cultural e econômico.
Rezumbindo, na sua forma de valorizar-se, sempre mais,
elevando o moral, a auto-estima para gerar orgulho entre as suas
crianças, os adolescentes, os jovens, os adultos, os velhos.
Rezumbindo, no trabalho, na força física e intelectual.
Rezumbindo, na expressão de talentos, exigindo que sejam
reconhecidos.
Rezumbindo, nos movimentos que lutam pelo progresso

129
ROTA EXISTENCIAL

do negro em todas as áreas.


Rezumbindo, para assumir as lutas dignas e necessárias
para o avanço social.
Rezumbindo, nas escolas, em todos espaços culturais.
Rezumbindo, ao mostrar a cara, nas reivindicações que fa-
voreçam a consecução dos objetivos maiores do homem: respeito
humano, igualdade de oportunidades, direitos iguais.
Rezumbindo, ao exigir que passem a limpo a sua História,
com a maior brevidade.
Rezumbindo, nas famílias através da coragem, da perseve-
rança para conduzir-se íntegro.
Rezumbindo, na derrubada dos estereótipos criados para
desculpar a escravidão.
Rezumbir é viver a negritude com dignidade.
Tudo é questão de ensinamentos e energia.
É ladainha que precisa soar forte como zumbido; Zum,
Zumbi, Zumbido, Zumbindo. Rezumbindo.
Rezumbir é ter presente a força de Zumbi dos Palmares.

130
HELENA DO SUL

REBELIÃO DOS SAMBISTAS

O desfile dos sambistas está atrasado, o que pode levá-los à


desclassificação no torneio de samba, luxo e criatividade, no terrei-
ro do palco da Ópera Popular. É Carnaval, na Avenida de asfalto.
O cenário de luzes e formas cintilantes dá brilho especial e
mágico à noite. Tudo está pronto; até o céu, pano de fundo ilumi-
nado do grande teatro.
No magnífico terreiro do palco, a televisão mostra cama-
rotes dourados onde nascem entrevistas de pouco conteúdo e a
evidência de muitas cifras, enquanto estranhos elementos impor-
tados e lucrativos aguardam o espetáculo.
Rodeando o palco, cambistas decoram textos para arreca-
dar valores. Falam repetidas palavras, transformando-as em ban-
go15, em seguida.
As rádios, num afã de saudosismo, transmitem o Zé Perei-
ra, enquanto não despontam as baterias.
Representantes de todas as mídias encontram-se no terrei-
ro, ensaiando a garganta para os comentários, ajeitando microfo-
nes, câmeras, gravadores, filmadoras e outros aparatos sonoros e
visuais.
Os jurados do desfile estão posicionados em frente a um
simbólico gongá16 do terreiro do samba , onde irão consagrar as
cabeças dos melhores do Carnaval.
Nas arquibancadas, calvário de concreto, a platéia empi-
lhada aceita o sacrifício para assistir ao “Monumental Espetáculo
do Povo”. A platéia parece acostumada com as dificuldades para a
realização de seus desejos.
15 bango - dinheiro
16 gongá - altar

131
ROTA EXISTENCIAL

Autoridades, preocupadas com o início do evento, reúnem-


se com alguns presidentes das Escolas de Samba, exibindo-os na
vitrine de inédito carro, em suntuosa “Fanfarra”. Estão trajados a
rigor e representam Ogãs17, no terreiro.
Da passarela do samba, ainda está ausente o tiquitum...Ti-
quitum...Tiquitum... que faz aquele fervo ambiental, aquela ener-
gia dos sambistas, na exaltação apoteótica da cadência de uma
raça.
Sem os sambistas, súditos da Corte Carnavalesca, a rainha
do Carnaval recusa-se a entrar em cena. É então convidada pelo
Rei Momo para mostrar-se ao público.
Relutante em obedecer às ordens do Rei, gentilmente é
conduzida por atlético Capitão do Mato, fantasiado de Segurança,
até seu posto real. Mesmo assim vai insegura, sentindo a falta dos
sambistas, entre os quais exerce a liderança da Ópera. Fazem-na
exibir sua beleza exuberante e o gingado sensual. Coitada da Rai-
nha! Indefesa, longe dos seus sambistas, “Rainha de Ninguém”.
Contrariada e triste, segue sua representação, honrando as tradi-
ções. No palco deslumbrante, senta-se em belíssimo trono. Mas a
contrariedade da Rainha, tão grande e tão pesada, afunda o trono
da falsa nobreza negra carnavalesca.
Iluanda, a Rainha do Carnaval, sofre queda violenta. Ador-
mece. Tem um súbito desmaio, pleno de fantasias. De imediato é
socorrida por estranhas criaturas sobrenaturais. Perde a consci-
ência, mesmo sem toques do tambor. Fica possuída por Nzinga,
Rainha africana, audaciosa e soberana em sua africanidade imor-
tal.
Iluanda, a Rainha do Carnaval, ao ser socorrida, passa a
viver momentos de um “transe-sonho”.
Nzinga, mulher enigmática e consumada nas lutas pela so-
brevivência do seu Reino e do seu povo africano, incorporada em
Iluanda, toma iniciativas de funcionalidade societal. Transporta-
a até os sambistas, em lépidas nuvens, auxiliada por suas duzentas
17 Ogã- guardião da casa de Candomblé, sem obrigação de culto, escolhido pelas suas
posses ou prestígio cultural ou político

132
HELENA DO SUL

mucamas do Irunmalé18. Os caminhos para chegar aos sambistas


não são difíceis, mas só os familiarizados com eles têm acesso ao
esconderijo, o longínquo e escuro Bosque da Concentração. Ali
está o apogeu das atividades dos barracões, de muitos paraísos de
ilusão do solo brasileiro.
A rainha Nzinga inspira Iluanda a prestar muita atenção
em todo o cenário, pois sabe, através de suas mucamas, o que está
se passando no bosque.
Iluanda, a Rainha do Carnaval, ao encontrar-se com seus
sambistas, sente-se Rainha de Verdade e começa a rodopiar de con-
tente, perdendo a pose real. Em seguida, cessa o rodopio ao ver que
seus súditos aproximam-se em silêncio, enchendo a atmosfera de
um ar tristonho, bem diferente dos ares carnavalescos.
Os súditos fazem-lhe reverências de cabeça, respeitosa-
mente. Os tambores estão mudos. Não há canto. Não há toques.
O samba não ecoa.
Nzinga sopra-lhe intuições para que aceite tudo que vê
no Bosque e interprete aquele carnaval de silêncio, como forma
de fortes protestos sociais. A Rainha do Carnaval, ocupada por
Nzinga, obedece as ordens, sob pena de ser destituída do cargo,
se agir ao contrário.
As mucamas do Irunmalé iniciam intensa movimentação.
Cambonas19 prestativas, militantes de esquerda do além, correm
pelo bosque para saber se todas as Escolas de Samba estão ali
presentes. Anotam, nas planilhas do invisível, a presença das co-
res verde e rosa, amarelo, vermelho e branco, azul, prata, ouro,
todas as cores de várias tonalidades e combinações. Informam à
Rainha do Carnaval, a presença dos estandartes com suas cores
tradicionais.
Iluanda, ao saber da notícia, adquire uma postura de maior
realeza e fica apta a acompanhar aquele estranho Carnaval em seus
mínimos detalhes, conforme sua possessora lhe havia ordenado.

18 irunmalé – grupo de Orixás de esquerda que administram determinadas áreas da cria-


ção, não criam
19 cambonas – auxiliares do Chefe de Umbanda; assessoras

133
ROTA EXISTENCIAL

As Comissões de Frente das Escolas de Samba reverenciam


a Rainha, todas ao mesmo tempo, sem individualidades. Trajam
batas de saco desbotado e estão iguais, representando a ideologia
unificadora da massa carnavalesca. Abrem caminho para os ato-
res de enigmático cenário que irá aos poucos desvendar-se.
As Porta-estandartes, juntas, carregam pesada cruz que
Iluanda identifica como a aglomeração de todos os estandartes
que estão na concentração. Nzinga sopra-lhe ao ouvido que a
cruz representa a união das bases organizacionais.
A seguir, acontece o desfile de carros e muito povo. Parece
uma carreata. A Rainha do Carnaval fica muito irritada e pre-
cisa ser adoçada pelas mucamas do Irunmalé que lhe explicam
que a carreata não é política, mas o resultado da criatividade de
carnavalescos e figurinistas talentosos, protegidos de Obalufã, a
serviço do povo.
Surge o Carro Abre Alas, um caminhão coberto de folhas
de bananeiras, representando imensa Catedral. Conduz centenas
de negros seminus com milhares de dentes maravilhosos. Empu-
nham tochas para iluminar a Ala das Crianças que estão fanta-
siadas de povo, com esfarrapadas camisetas de campanhas polí-
ticas. As crianças rolam, lutam e brincam e caem no terreiro de
cafofos20 do portentoso templo que em focos letreiros se anuncia
como a “Catedral dos Massacrados”.
Nzinga, incorporada na Rainha do Carnaval, está fascina-
da. Agitadora e cheia de intentos reivindicatórios congratula-se
com os sambistas, pela forma original de contestação.
O Mestre-sala e a Porta-bandeira refugiam-se em mil plu-
mas, salientando apenas o sorriso. Reverenciam a Rainha Iluanda
e comportam-se como recepcionistas de porta de templo, perfei-
tos aliciadores para fazê-la entrar em seus rituais. Fazem chama-
das com as plumas para que a Rainha se posicione em bom lugar
para vislumbrar a Catedral dos Massacrados em seu todo.
Aparece um carro elevadíssimo com “Destaques” cada qual
mais destacado e principal que o outro. Numa cúpula de castelo
20 cafofos - túmulos

134
HELENA DO SUL

gigantesco de areia, está a Divina Luta, vestindo um abadá ener-


gético, com vigorosos adereços, as ferramentas de Ogum. É um
destaque tão grande e tão presente que seus pés rompem a cúpu-
la do castelo e sustentam-se no chão, amparados por fortes mãos
calejadas de operários, fantasiados de Paladinos da Esperança.
A Rainha, extasiada diante daquela criação, grita: “Saravá!
Gratia Plena! Dominus Tecum!” Está possuída pelo sincretismo
de Nzinga que em seu reinado africano, lá pelo século XVI, em
Angola, já sabia do poder da Religião para obter penetração no
mundo ocidental e deixara se batizar pelos padres, assimilando o
vocabulário do terreiro e da Igreja, ao mesmo tempo.
Os Coordenadores de Alas, conduzidos pelas mucamas,
apresentam-se para Iluanda com estranhas reverências de vai lá
e vem cá. Parecem inquietos e preocupados com o desenvolvi-
mento da carreata, com a coreografia das Alas que começam a
desfilar.
A Ala Show é a primeira que surge com seus milhares de
homens e mulheres desempregados, travestidos de alvas carteiras
de trabalho. Usam luvas de classificados de jornais e chapéus com
labaredas de papel crepom vermelho, queimando-lhes o cére-
bro. Mostram-se dignos de muitos aplausos pela movimentação
da dança, pois curvam-se até o solo, fazendo incríveis evoluções
com o ventre. Como exímios bailarinos da Catedral dos Massa-
crados, estão deslumbrantes.
A Rainha Nzinga, quando vê aquela gente com cabeças
prendendo fogo, pede à líder dos sambistas que tome providên-
cias urgentes para aliviá-los. Iluanda solicita às mucamas que
dêem um bom banho de descarrego na Ala Show dos Desempre-
gados.
Aproxima-se o carro alegórico “Onde Moras”, com uma
extensão sem fim de terras de ninguém, bem ao lado de malo-
cas e maloquinhas, subindo um morro a dentro, comendo um
morro. Junto ao carro vem a Ala dos Invasores. Todos os compo-
nentes usam minúsculas fantasias só para cobrir-lhes o sexo. Seus
chapéus são de palha com enormes carcarás enfurecidos, como

135
ROTA EXISTENCIAL

detalhes. Os pés descalços estão pintados de barro e sapateiam,


sem parar, uma chiba desenfreada, sem tamancos.
Nzinga, indignada com aquele cenário, pede no transe-so-
nho para que Iluanda liberte seus súditos sambistas daquele ritual
de pés no chão. Necessita tirá-los daquela catedral pagã e primiti-
va, de quarto mundo: a Calunga21.
A Rainha do Carnaval chora, quando começa a passar o
Carro alegórico” Acidente de Percurso”, com a Ala dos Aposenta-
dos, comendo pedras de dama numa miniatura de panela, rode-
ados de pivetes que carregam gigongos22, furtados de um Palácio
Encantado.
Iluanda pede socorro:
Por Nanã23, por Oxalufã24, dêem um paxorô25 e um amalá26
para estes velhos, pobres velhos!
Nas mãos, os aposentados levam transparentes alegorias,
sacolas vazias da cesta básica. Estão fantasiados com uma capa de
receitas médicas não aviadas e pesados adês27 imobilizam-lhes o
pescoço.
O desfile envolvente e sátiro agrada a Nzinga pelo teor da
reivindicação, pela forma de protesto. Nzinga gostaria de saltar
para fora da Rainha do Carnaval e abraçar aquelas alas que re-
presentam os quadros vivos da carreata cotidiana dos sambistas.
As vibrações de Nzinga passam para Iluanda, em impulsos emo-
tivos.
Um carro alegórico destaca-se dos demais: o faladíssimo e
prometidíssimo “ Na Catedral, as 7 Promessas Capitais”. No car-
ro, um gigante adormecido está deitado sob enorme gameleira
21 Calunga - cemitério
22 gigongos – instrumentos de ferro fundido em forma de ferradura ,era tocado durante
as lautas refeições da rainha africana N’Zinga, século XVI
23 Nana – Orixá feminino, a mais velha das divindades das águas (paradas e lamacentas)
sincretizada como Sant’Ana
24 Oxalufá – Oxalá velho
25 Paxorô – o cajado de Oxalá
26 amalá – comida ritual de santo em especial de Xangô, no Rio Grande do Sul; pirão de
farinha de mandioca acompanhado de mostarda e carne de peito de gado
27 adês – adornos de metal ou seda com bordados e franjas de vidrilhospresos à nuca por
um laço

136
HELENA DO SUL

esplêndida. Tem, ao lado, sete destaques: as Promessas Capitais:


Habitação, Saúde, Educação, Trabalho, Alimentação, Transpor-
te e Segurança. Os destaques, junto da gameleira, estão arriados.
Dormem profundo sono, roncando e gerando muito barulho.
Atrás deste carro, a Ala do Eleitorado, com milhões de compo-
nentes fantasiados de beijinhos xôxos. Carregam balaios furados
de onde caem muitas esperanças. Desenvolvem uma dança-cor-
reria que dá muito trabalho ao Coordenador para colocá-los em
ordem. Parecem correr atrás do que não existe.
Nzinga, guerrilheira e batalhadora pelas suas aspirações,
pelos seus ideais de tranqüilidade para o povo afro, reconhece o
elevado potencial criativo dos protestos carnavalescos. Está orgu-
lhosa com a irreverência dos sambistas, a maioria negra. Que es-
tupendas criações! Que sincretismo! Terreiro e Catedral Calunga
e Carnaval.
Iluanda concorda: - Aleluia!
A carreata fica cada vez mais significativa, com o desfile da
Ala dos Analfabetos. Na frente da Ala, o carro “ Projeto Minerva”,
uma sala de aula mofada, já utilizada em outros calendários do
Carnaval. Apresenta curiosa atração: a sala de aula numa casa de
Batuque onde até a Mãe de Santo de Xangô faz obrigação com um
pacote confuso de letras. Os componentes desta ala apresentam
suas digitais em pisca-piscas eletrônicos pendurados nos dedos.
Uma venda nos olhos deixa-os cegos para seguirem o desfile com
naturalidade.
Nzinga, outrora mulher de muita cultura, faz verter as lá-
grimas de Iluanda diante daquelas frágeis criaturas que denun-
ciam o estado de ansiedade pelo obscurantismo dos seus hori-
zontes.
Logo depois, fica um silêncio grande, surgindo tétrico car-
ro alegórico: “Fantasma da Ópera”, onde o destaque é terrível,
dançando em volumosa maca que voa para fora de um hospital,
em tapete mágico. O horrendo fantasma vem acompanhado de
silhuetas indefinidas. Os componentes desta ala são milhares de
homens, mulheres e crianças que desfilam descompassados, de-
bilitados, massificados.

137
ROTA EXISTENCIAL

Alguma coisa muito grave acontece na ala do fantasma,


parece prenúncio de morte . A Rainha do Carnaval, intuída por
Nzinga, ordena a presença dos Coordenadores de Alas para que
cuidem do renascimento daquela gente. Exige-lhes que providen-
ciem um savô28, com muita urgência. Seus súditos não podem
ficar entregues às forças do mal.
Enquanto os coordenadores, ajudados pelas mucamas do
Irunmalé, preparam as estratégias para reabilitar a ala dos doen-
tes, surge mais um carro de protesto: “A Arca de Noé”, na frente da
Ala dos Passageiros. O Transcendental carro alegórico, bem no
centro da Catedral, carrega sambistas amarrotados uns por cima
dos outros, não se movem. Seu destaque, uma catraca- monstro,
com grande buraco nas costas, engole dinheiro. Os componentes
da Ala dos Passageiros estão fantasiados de moedas. Não conse-
guem desfilar com desenvoltura. Cada vez que passam perto do
entupido carro, são engolidos pelo seu destaque, a catraca feroz e
desvairada do coletivo carro.
Iluanda, aterrorizada com os acontecimentos, chama os
membros de todos os Conselhos das Escolas de Samba e muito
positiva, conduzida pela Rainha Nzinga, ordena-lhes que destru-
am o sistema subversivo, discriminador e terrorista de transporte
dos sambistas como se fossem passageiros para o inferno.
Acontece uma explosão, rompendo pelo menos, o silêncio
da Catedral.
A carreata começa a pegar fogo, quando aparece a Ala In-
dígena, fantasiada de jeans e uma pena na cabeça, uma grande
pena, representando a extinção da raça, o apoderamento de suas
terras, a destruição ecológica. Os índios tomam parte, lentamen-
te, nos rituais da Catedral dos Massacrados. A Ala Indígena traz
melancólico carro alegórico “Índio Também Come” onde o des-
taque é um pajé mostrando enorme peixe de papelão, escorrendo
viscoso liquido que envenena os insetos do terreiro da Catedral.
28 Savô- trabalho especial para afastar epidemias, catástrofes naturais ou para qualquer
emergência de repercussão social

138
HELENA DO SUL

Nzinga, possuidora de muita sabedoria e conhecedora de


todas as culturas, dá um grito de guerra através de Iluanda:
– Tupã! Tenha dó de índio. Retira esta pena da cabeça dele.
É uma pena miserável.
As mucamas, muito prestativas, dão um banho de marafo
no peixe envenenado.
A Rainha do Carnaval parece meio tonta com o cheiro do
marafo. Começa a rodopiar. Mas são os rodopios da Ala das baia-
nas que a fazem girar num magnetismo cósmico. Exclama:
– Lindo! Lindo! É o céu de Olorum29.
Na frente da Ala das Baianas, o carro “Lavagem de Terrei-
ro”, onde mulheres lavam portais de malocas, pequeninos templos
das favelas. Conjugam arte e protesto. As baianas, de saias bran-
cas e cheias de babados, representam todos os cultos das nações.
Também usam torsos de jornais onde aprecem pesadas manche-
tes, deturpando os cultos afros. Nas mãos, leques gigantescos são
aproveitados para refrescar a cabeça dos Mestres de Baterias que
estão imobilizados em troncos, devido ao adiantado da hora. Ob-
servam estranha Lei do Silêncio para que uns monges, logo ali,
em faraônica mansão, possam dormir de barriga cheia.
Os batuqueiros, almas palpitantes da Ópera Popular, estão
recolhidos num casulo bem distante do fervo da carreata. Baixam
os olhos e ajoelham-se em cima dos instrumentos, saudando a rai-
nha com acenos de colheres de pau de uma cozinha encantada.
A maioria das madrinhas das baterias, deusas padroeiras
dos tocadores, olha para o alto. Sentem-se glorificadas e ignoram
a tristeza dos afilhados e a própria Rainha do Carnaval.
Passistas fazem malabarismos com marmitas vazias. Gin-
gam até o chão e depois, como mágicos, ficam de pé novamente.
Nzinga admira-se com aquele equilíbrio dos artistas do samba.
No bosque, as mucamas do Irunmalé fazem defumação
de enxofre para afastar as forças negativas. Sobe uma fumaceira
quando o carro do som reproduz toques de sinetas.
29 Olorum- O criador do Universo

139
ROTA EXISTENCIAL

Os Puxadores de samba, todos juntos, invocam: “Olha a


Catedral dos Massacrados, aí gente! Vamos puxar a reza-enredo,
o Pai Nosso Nacional!! Pibá, Pibá!
O Pão Nosso de cada dia nos daí hoje
Se subiu, ninguém sabe, ninguém viu
Me dá um dinheiro aí
Mande água prá Ioiô
Eu não tenho onde morar
É por isto que eu moro na areia
O meu boi morreu
Que será de mim
Vou me embora prenda minha
Abre alas que eu quero passar
E gritava a-e-i-o-u-y
A cor desta cidade sou eu
A vergonha é a herança maior que meu pai me deixou
Alalupagema30!
Amém.
Sabadabadá!
Axé!
A rainha Iluanda, tomada de sensibilidade, ajoelha-se aos
pés dos Compositores e dos Puxadores de Samba, inebriada pelo
alto teor de inspiração daquele Pai Nosso e pela força das men-
sagens cantadas por muitas gerações de sambistas. Entusiasmada
por Nzinga, com a magnitude da Carreata Carnavalesca, sente
vontade de mostrar na Avenida da ópera Popular, aquela fan-
tasia-realidade que os sambistas vivenciam. Conspira liderar
centenas de exércitos de forças afro-brasileiras, conclamando-os
à luta, fora daquele bosque, para a derrubada da Catedral dos
Massacrados.
30 Alalupagema- parte de uma reza de Batuque

140
HELENA DO SUL

Absorve-se nestes pensamentos, quando chegam os Dire-


tores de Carnaval para explicar-lhe as estratégias da Rebelião dos
Sambistas. Pedem-lhe perdão, mas dizem que não podem desis-
tir de repensar o Carnaval, longe da avenida. Em coro, iniciam o
discurso: “Vossa Alteza tem conhecimento de que seus súditos,
milhões de negros, têm força e talento para desenvolver ativida-
des relevantes além do Carnaval. Desejamos um trono de verdade
para Vossa Alteza onde possa ser cortejada todos os dias e que os
seus valores sejam reconhecidos não somente nas passarelas do
samba. Decidimos, em conjunto, aderir à ideologia unificadora
de nossas bases organizacionais, somando forças para exigir o
cumprimento de cláusulas sociais que garantam nosso desem-
penho de cidadãos. Somente voltaremos a batucar para o siste-
ma, quando tivermos um nível decente de moradia, alimentação,
educação, saúde, vestuário, transporte e segurança. Vossa Alteza
não merece um trono somente de três dias. Precisamos organizar
a nossa Corte para dar segurança ao seu Reinado”.
A rainha comovida, aliando-se aos súditos, exalta-se com
o discurso. Grita-lhes:
– “Povo meu! Explode coração!” É uma causa muito justa
que abraçam e a nobreza da ação justifica a ausência do samba na
avenida.
A velha-guarda, saúda a Rainha, acenando chapéus ilumi-
nados. Iluanda, tomada por forte irradiação de luz, fala alto e com
muita propriedade:
– É brilho demais para um só olhar! Quero que todos sin-
tam a claridade de nossos ancestrais, dos nossos antepassados,
das gerações de sambistas que durante anos e anos passam pela
avenida, sem que observem o seu clarão interior.
Nzinga, a intrépida rainha do Ndongo, amante de tudo que
favorecesse o seu poder e do seu povo africano, possui Iluanda
integralmente naquele transe-sonho. Não quer mais desocupar o
“cavalo”, de tão realizada pelas reivindicações dos sambistas. De-
seja a continuidade da rebelião, mas as mucamas do Irunmalé
borrifam água no rosto da Rainha do Carnaval e, soprando-lhe

141
ROTA EXISTENCIAL

os ouvidos, fazem-na desocupar-se. Nzinga é transportada no


colo para o Céu de Olorum, consciente do socorro que prestara
a Iluanda, fazendo-na acompanhar a realidade existente por trás
das fantasias dos sambistas, enquanto serviu-lhe de “Cavalo-En-
cantado”.
No Terreiro do palco da Ópera Popular, estouram foguetes.
A repórter global anuncia: - Já está aqui na “largada” a Es-
cola de Samba...
Os sambistas contam sonhos no samba, tiquitum, tiqui-
tum, tiquitum...”Esta maravilha é de tirar o chapéu. Festa igual
ao meu carnaval, só uma festa no céu...” (Nilo Feijó). “Gbalá é
resgatar, salvar. A criança é a esperança de Oxalá!...” (Martinho
da Vila).
Esta narração-fantasia é uma resposta a muitos cidadãos,
que se perguntam, ingênuos: por que a maioria negra não se une
para conseguir coisas tão belas e fortes como o Carnaval, além do
Carnaval, em beneficio de sua etnia? Por que não canaliza todo
potencial criativo para reverter sua representatividade no quadro
sócio-econômico-cultural brasileiro, derrubando com as Catedrais
dos Massacrados? Por que deixar que tudo acabe na quarta-feira?
E acaba?
Existem históricas estratégias para esconder a carreata po-
sitiva do negro, no dia a dia. Uma delas é fazer acreditar que ele
só entende de Carnaval.

142
HELENA DO SUL

CONVERSA DE NEGRO

Quem nos conta esta história é o senhor Adão Centeno.


Como era muito observador, desde criança, prestava aten-
ção na conversa do pai com os meus tios, nos finais de semana,
quando se juntavam para jogar cartas. Assim consegui alguns re-
ferenciais de meus antepassados. Mais tarde, depois de adulto,
completei os dados através de uma tia velha chamada Violande.
A tia gostava de contar os casos de nossa família.
Minha bisavó, mãe da avó paterna, chamava-se Joana Feijó.
Nasceu em 1833 e foi escrava numa fazenda, em Viamão. Traba-
lhava na lida doméstica, fazia partos e indicava chás caseiros. Era
concubina de um ex-escravo cujo nome me é ignorado. Sempre
falavam no marido de Joana, sem citar o nome. Soube que era
batuqueiro e que possuía várias mulheres, o que levava a desen-
tender-se com Joana, freqüentemente. Tiveram três filhos: Julião,
Leonor e Paulina, entre os anos de 1872 a 1877.
Contavam que o ex-escravo iniciava seus filhos no Batuque
e que a Paulina não estava indicada para a iniciação. Nunca sou-
beram se foi por motivos religiosos ou por causa dos desenten-
dimentos com Joana, que o ex-escravo roubou da mãe, a menina
Paulina. Ele deu-a para uma família branca e rica de Porto Alegre
que freqüentava a Paróquia de Viamão.
Joana criou os outros dois filhos os quais depois de adultos
e casados, repararam pelo pai, que morava com eles, alternada-
mente. Ela gostava de fazer visitas e de passear com os netos, em
Porto Alegre. Quando passava pelo Mercado Público ensinava as
crianças a pedirem a bênção para as pretas velhas que ali vendiam
rapaduras e cocadas. Em troca, as negras velhas ofereciam um
doce para os pequeninos, por volta de 1929.

143
ROTA EXISTENCIAL

Joana veio a falecer com mais de 90 anos.


A minha bisavó, mãe do avô paterno, chamava-se Violan-
de. Não se sabe precisamente o ano em que nasceu, perto de 1823.
Também foi escrava, porém numa fazenda de Camaquã. Nunca
ouvi falar no nome de seu companheiro. Teve quatro filhos, entre
os quais o Florêncio Centeno que veio a ser o meu avô.
No caso das bisavós, veja que as mulheres ficaram na linha
de frente, tomando conta dos filhos. É mais ou menos o que acon-
tece hoje com as mães solteiras.
Geralmente começaram assim as famílias de negros, com a
marcante presença da mulher e com sobrenomes que não se sabe
de onde saíram. Seria a Joana dos “Feijó de Viamão”? Ou Violan-
de dos “Centenos de Camaquã”, a julgar pelo sobrenome de meu
avô? Era comum os escravos serem chamados pelo sobrenome
dos seus donos e mais tarde, o perpetuarem. O Instituto Estadual
de Genealogia, em Porto Alegre, talvez possa esclarecer algumas
descendências. Mas ainda não fui procurá-lo.
Recebi, com relação ao sobrenome Centeno, uma carta
do Dr. José Francisco Centeno Roxo, em 1979. Este Dr. desco-
briu o meu sobrenome Centeno através da lista telefônica. Nos
documentos que dirigiu-me, coloca que só existe um ramo dos
Centenos. Resume-se no seguinte: 1ª geração – Capitão Vitoriano
José Centeno, da freguesia de São Julião, na cidade de Lisboa e ca-
sou-se em Triunfo, em 11/7/1767, com Faustina Maria Pureza de
Jesus. Era colega de farda e na Câmara de Vereadores do Capitão
Joaquim Gonçalves da Silva, este pai do General Bento Gonçal-
ves da Silva. Ambos casados com netas de Jerônimo de Orne-
las Menezes e Vasconcelos que faleceu em Camaquâ, 1909; 2ª
Geração – Sargento Mor Ventura José Centeno, filho mais velho
dos 4 Vitorianos, nasceu em Camaquâ a 20/7/1769, casou-se com
Antonia Joaquina da Silva, irmã do General Bento Gonçalves, na
Fazenda Charqueadas; 3ª geração – Antonio José Centeno com
Maria Angélica da Silva que recebe a Sesmaria de Santo Antonio
da Boa Vista do Paraíso.
No conteúdo existe certa relação com os locais onde nasce-
ram a minha bisavó e meu avô. Também vários fatos da história

144
HELENA DO SUL

deles vão levantar algumas ligações com certos nomes citados na


carta. Ao enviar a correspondência, o doutor não sabia se eu era
negro ou branco. Continuo pensando que a Violande era escrava
dos Centenos, de Camaguã.
As uniões conjugais não eram oficializadas e havia o siste-
ma de concubinato ente os próprios escravos ou entre escravas
e senhores brancos. Em geral os homens possuíam mais de uma
mulher, como era o caso do companheiro de Joana.
Minha avó paterna chamava-se Paulina, a filha que foi rou-
bada pelo pai aos 6 anos. Ela foi doada para o casal José Vicente
da Silva Teles e a professora Joaquina Cota da Silva Teles. Eles não
tinham filhos e criavam várias meninas pretas, mulatas e brancas.
Moravam na rua da Igreja, hoje rua Duque de Caxias. Possuíam
muitos empregados e cocheiros. A Senhora Joaquina Cota alfabe-
tizava as meninas e as iniciava nas atividades artesanais de corte,
costura, bordado e formação católica. Quando casavam, recebiam
dote, conforme o costume das famílias brancas e ricas.
Na juventude de Paulina, pouco antes de seu casamento,
o ex-escravo contou para Joana onde estava a filha. Joana passou
a visitá-la, depois de casada. Viajava de vapor, de Porto Alegre
para Guaíba, onde Paulina foi residir. A filha recebia a mãe com
respeito e mais tarde ensinou os filhos a respeitá-la como vovó.
Não houve aproximação com Leonor e Julião, pois embora não os
renegasse como irmãos, não os aceitava como batuqueiros.
O dote de Paulina constou de uma casa com 14 hectares
de terreno, dividido em 5 pequenos lotes, na antiga Estrada da
Rapadura, atual avenida Breno Guimarães, em Guaíba.
O casamento de Paulina foi com Florêncio Centeno, filho
de Violande. Ele nasceu em Camaquã. Ainda menino foi para a
fazenda de Aquim ou Quim como era também chamado. O Quim
havia sido criado numa fazenda de familIares de Bento Gonçal-
ves. Trabalhava de tropeiro, inicialmente, e era de gênio muito
ruim, enérgico e rude. Meu avô serviu a este senhor e foi prote-
gido pela filha dele de nome Caetana que chamava Florêncio de
irmão. Talvez fosse mesmo. Aquim era mulato.

145
ROTA EXISTENCIAL

Ainda muito jovem, meu avô foi capataz da fazenda do Dr.


Benito Couto Silva. Contava os bois que levava para o matadou-
ro, usando conjunto de pauzinhos, através dos quais estabelecia
a comparação de quantidade entre os bois da tropa, na hora da
contagem. Se algum gado morresse pelo caminho, tirava o couro
para apresentá-lo ao senhor, como prova de que não havia sido
perdido, nem roubado.
Ao casar-se com Paulina foi morar na Estrada da Rapa-
dura e continuou a trabalhar de capataz, porém na fazenda do
Franklin de Souza, em Guaíba.
Em casa, cultivava as terras, o que também ensinou para os
filhos, inclusive a feitura de enxertos. Havia uma parte do terreno
que chamavam de Potreiro Velho, onde plantavam milho, man-
dioca, batata doce e árvores frutíferas. Em outra parte, na frente
da casa, era o Potreiro novo, com pastagens para o gado.
Sempre manteve a amizade com a Caetana que passou
também a ser amiga dos seus filhos e netos, chamando-os de so-
brinhos.
Florêncio e Paulina tiveram 11 filhos: Algemiro,(1898),
Waldemar, Violande, Maria, Arcênio, Otília, Luiz, Paulina, Sebas-
tiana, Sophia e Júlio. Todos os filhos foram alfabetizados e recebe-
ram formação católica por causa da vó Paulina.
Um dos seus filhos, Algemiro Centeno, casou-se com Si-
meana Marques, procedente de Taquari e filha de Clara de Jesus
e Geraldo Firmino.
Algemiro, ainda criança, ajudava o pai nos serviços de ca-
patazia em Guaíba, trazendo o gado das invernadas para o mata-
douro. Com 14 anos foi trabalhar na Fazenda do seu Marcinho.
Com 18 anos mudou-se para Porto Alegre, em busca de trabalho.
Foi morar junto com tia Leonor e seu marido Fábio Santos, ambos
batuqueiros não aceitos pela vó Paulina. Eles moravam nas obras
da Alfândega onde o tio Fábio trabalhava. Nessa época, depois
da guerra de 14, havia uma epidemia de gripe que chamavam de
Espanhola. Argemiro “pegou a Espanhola” e precisou retornar a
Guaíba para tratar da saúde.

146
HELENA DO SUL

Restabelecido, voltou para Porto Alegre porque soube que


estavam precisando de trabalhadores para o término das obras
do Porto. Era na administração do Dr. Borges de Medeiros, quan-
do ele iniciou a trabalhar na construção do Porto, começando do
portão geral até o novo Frigorífico que hoje seria perto da Rodo-
viária da capital gaúcha.
Contava que no governo do Dr. Borges cessou a adminis-
tração das obras pelos franceses, cujas máquinas eram sucatea-
mento já utilizado em outros lugares. Falava que o Dr. Borges,
muito dinâmico e inteligente, não quis mais aquele material. Vie-
ram máquinas novas.
Algemiro era então servidor público e orgulhava-se dis-
to. Lidava com serviços pesados. Para trabalhar usava tamancos,
culotes, casacão de brigadiano. Mas para ir até o serviço, usava
traje completo com gravata. Dizia que quem trabalhava para o
governo tinha a obrigação de andar bem apresentável. Mesmo
nas épocas mais difíceis, ele andou assim. Exigia dos filhos uma
boa apresentação e capricho.
Procurou aprender todo o serviço e especializou-se na
construção de plataformas.
Em 1945, durante a II Guerra foi cedido por dois anos para
Florianópolis, Santa Catarina, para construir rampas para hidro-
aviões, na Base Aérea do Ministério da Aeronáutica, pois falavam
que os alemães atacariam o Brasil. Foi indicado pelo Governo
para a obra e levava uma carta de apresentação da Companhia
de Indústrias Gerais Obras e Terras, antiga Dahne Conceição. O
conteúdo principal da carta: “É com a maior satisfação que dese-
jamos ressaltar a Vossa Senhoria os ótimos, dedicados e eficientes
serviços que nos foram prestados pelo senhor Algemiro Centeno que
recomendo como um profissional competente e capaz para esta es-
pécie de trabalho”. Assinava Ildo Meneghethi, presidente da em-
presa.
Enquanto esteve afastado, pediu para que um dos irmãos
que já estavam todos trabalhando no Porto, fosse buscar o salário
dele com o pagador. O dinheiro vinha num envelope. O pagador

147
ROTA EXISTENCIAL

ia fazendo a chamada dos operários e entregando os valores. O


irmão encarregado foi o Luiz que deixou de beber e conversar
com os amigos como era de costume, no dia de seu pagamento,
porque precisava levar o dinheiro do irmão para a cunhada. Esta
passagem me emociona, pois a família não acreditava muito no
tio Luiz devido a sua vida de farrista gastador. Mas ele fazia a coi-
sa certa para o irmão. O ser humano surpreende.
Quando a obra da Alfândega ficou pronta, os operários ti-
veram que abandonar a moradia no local e então a Leonor e o
Fábio foram para a rua Dona Teresa, atual Jacinto Gomes.
Algemiro, já casado com Simeana, foi morar no Mont’serrat.
Deste bairro eles guardaram momentos bons e recordações boni-
tas. Diziam que encontraram a raça no salão do Licurgo. Possuí-
am apenas tristeza por não terem filhos.
Quando saíram do Mont’serrat, vieram para a rua São Ma-
noel nº 2086, era por volta de 1932.
Mesmo depois de aposentado, Algemiro ainda trabalhou
no Edifício Professor Alberto de Souza, na rua Marechal Floria-
no, 167. Ele se envolveu na construção e na conferência de ma-
terial. Depois ficou como administrador do Edifício, responsabi-
lizando-se por colocar empregados na limpeza, nos elevadores,
tirar notas de pagamento. Era um edifício só de escritórios.
Em 15 de outubro de 1955, faleceu no serviço. Este exem-
plo de vida dedicada à família e ao trabalho me comove muito,
principalmente, quando vejo o negro ser taxado de vagabundo
e da forma como esquecem da sua colaboração, no Rio Grande
do Sul.
Assim como a escrava Joana, o capataz Florêncio e o fun-
cionário público dos serviços pesados Algemiro Centeno, existi-
ram e existem muitos negros que merecem o maior respeito na
sociedade.
Algemiro e Simeana foram os meus pais. Eles tiveram cinco
filhos: Adroaldo, Antônio, as gêmeas Maria Teresa e Teresa Maria
e eu, nascido em 1925. Mozart é meu nome, Adão Mozart Cente-
no. Ele tem origem a partir de um futurólogo que andava em Por-

148
HELENA DO SUL

to Alegre por esta época, pregando que todos os nascidos naquele


período deveriam ter o nome Mozart para serem bem sucedidos,
felizes. Minha mãe já havia perdido três filhos, todos antes de um
ano de vida. Na ansiedade de poder criar um filho, seguiu as ins-
truções do futurólogo. Quando nasci, me batizaram Mozart. Esta
história pode ser confirmada por dois amigos que também são
Mozart e inclusive os pais pleitearam judicialmente para que ado-
tassem o Mozart como sobrenome: Baiar Mozart Guedes e Paulo
Mozart Guedes, funcionários públicos do DAER.
Por um bom tempo escondi o nome Mozart, pois meu pa-
drinho contava que o padre que me batizou disse que haviam me
botado este nome por causa de um cafajeste, o futurólogo.
De fato fui e sou muito feliz porque convivi com uma fa-
mília especial. Meu pai não batia nos filhos, dava poucos conse-
lhos, porém conversava muito. Jamais vi meu pai bêbado, apesar
de gostar de vinho e repartir com todos à mesa, não admitindo
que se colocasse água ou açúcar, preservando o sabor natural da
bebida.
Sempre recebi tarefas para serem feitas em casa. Aos domin-
gos acompanhava o pai na plantação. O terreno, com 8mx60m já
era propriedade da família, na Rua São Manoel.
Sabia que a compra daquele terreno fora muito sacrifício
de meus pais. Algemiro, no cais do porto e Simeana, lavando rou-
pa para fora.
A mãe aguardava pela chegada do pai para fazer a janta,
pois ele trazia a carne. Enquanto esperávamos o jantar, ele nos
contava histórias do seu tempo de menino ou de serviço. Tam-
bém costumava contar para minha mãe os acontecimentos do
seu trabalho. Nunca ouvi o papai falar em voz alta ou ríspida com
a minha mãe. De vez em quando, a gente até sabia que eles esta-
vam brigando, mas no quarto, nunca na nossa frente.
Em 1938, quando já tínhamos rádio, o pai tirava a mãe
para dançar quando tocavam as músicas. Chamávamos o pai
de senhor e a mãe de senhora e eles tratavam-se pelo nome. Os
meninos possuíam apelidos, como Dei que era eu, Tila, o Anto-

149
ROTA EXISTENCIAL

nio, Iado, o Adroaldo. Quase sempre os apelidos nasciam de uma


briga, por troça, e depois ficavam carinhosos. Tratávamo-nos de
“maninhos”.
Aos 6 anos meu pai fez com que eu aprendesse a ler pelo
método João de Deus, posterior ao soletrado. Em 1935 fui para
a Escola Paroquial da Rua Larga, atual Domingos Crescêncio.
Estudei 4 anos lá e em 1939 parei de estudar. Depois dos filhos
alfabetizados, meu pai não se importava que parassem de estudar,
desde que fossem trabalhar. Meu pai era homem de trabalho. Mi-
nha mãe, disciplinadora, possuía medo da fome e não esbanjava
o que possuía.
Meus irmãos e eu tínhamos muito respeito pelos mais ve-
lhos e, principalmente pelos batuqueiros da Rua São Manoel por-
que nos assustavam muito com o Batuque, no Colégio.
Lembro da Dona Zacarias, uma negra alta, simpática e que
ao mesmo tempo dava medo porque se identificava como batu-
queira. Havia também o Alfredo Barbosa e dona Justina. Ela usa-
va um pano trançado na cabeça e todas as tardes, quando chegava
do trabalho que era na casa dos Mazeron, ia para um quarto,
acendia diversas velas na frente de um altar. As crianças espia-
vam, de longe. A dona Justina vinha a ser parente da dona Andre-
za, batuqueira da rua Silva Só, muito amiga dos estivadores.
Na Rua São Manoel, perto de nossa casa, ficava o campo
de futebol da Estiva e a dona Andreza estava sempre por lá com
o marido chamado Justo. Os estivadores mais velhos iam torcer
pelo time e os meninos ficavam dançando, divertindo-se. Havia
um espaço que possibilitava que dançassem uns 40 pares, fora da
área de jogo. Nesta época eu estava com 12 anos e recordo que fa-
lavam na Mãe Ritinha de Xangô que também morava na rua São
Manoel, onde tinha bastante negro e batuqueiros. Antigamente
os Pais de Santo eram negros, quase todos.
A presença do Batuque naquela zona não criava problema
para a nossa família. Os batuqueiros eram muito bons para as
crianças e eram respeitados. Se estávamos brincando no meio da
rua, jogando futebol ou rouxinol, cuidávamos para não bater a

150
HELENA DO SUL

bola na dona Zacarias ou na dona Justina e até parávamos o jogo,


se elas vinham por perto.
Também aparecia na Rua São Manoel, a dona Jacinta, que
era de Nação, na Rua Taquari, pelas redondezas.
Apesar de freqüentarmos a Igreja, meu pai ia em festa de
batuque junto com os cunhados e irmãos e inclusive tinha um
primo chamado Antoninho que era batuqueiro, no Mont’serrat.
O Antoninho era muito conceituado nas festas brasileiras,
as quais não são festas religiosas. O pai contava que os filhos de
santo arrumavam uma mesa especial para Antoninho, nos caba-
rés ou nos clubes.
Outro fato que recordo é o da presença de imigrantes ita-
lianos na Rua São Manoel, próximos da nossa casa. As crianças
brancas dos italianos riam do nosso colégio que era de madeira,
o São Francisco, na rua Larga. Pegavam o bonde pra freqüentar o
colégio Dante Alighieri e achavam graça porque íamos a pé para
estudar. Consideravam a escola deles melhor que a nossa. Naque-
le tempo Mussolini havia invadido a Abissínia e então ocorria
certa gozação entre as crianças. Mas na hora de torcer no futebol,
o pessoal da zona se juntava. Dava muita negrada no time da Es-
tiva, muito polaco e português.
Quando estava mais adulto percebi que havia time de fute-
bol só de brancos, mesmo nos times varzeanos. O Partenon e o 20
de Setembro não botavam jogadores negros. Em compensação,
não havia esta discriminação no Geral das Industrias, no Estiva-
dor e no São Paulo, da vila Santa Luzia.
Os divertimentos eram torcer no futebol e dançar nos sa-
lõezinhos do bairro, e depois no São Jorge, na Rua Dona Tereza;
no Fica Aí Na Capital, perto da rua Laurindo; nos Prediletos, na
avenida Protásio Alves. Mais tarde nos tornamos freqüentadores
da Sociedade Floresta Aurora.
Nos salõezinhos do bairro deixavam entrar a gurizada
branca, menos mulheres brancas.
Lembro que ia na rua Barão do Amazonas, no Salão da
Mãe Geralda. A Mãe Geralda era Mãe de Santo, uma pessoa pela

151
ROTA EXISTENCIAL

qual tive muito respeito e dificilmente a esquecerei. Essa mulher


abrigava em sua casa muitas moças que “davam mau passo” e fi-
cavam grávidas ou eram corridas de casa pelos pais. As meninas
ficavam trabalhando, saiam dali casadas.
A Mãe Geralda organizava uns bailes beneficentes para aju-
dar no sustento das moças. Os bailes eram familiares. O fiscal de
salão proibia certas danças de cabaré. Os homens de mais idade
ficavam na copa, dançavam pouco. As orquestras eram muito boas,
pois o mestre Leopoldo, Filho de Santo da casa escolhia excelentes
músicos da Banda da brigada que geralmente também eram filhos
de santo, para tocarem de graça, instrumentos de sopro.
Uma das características do salão da Mãe Geralda era a fiti-
nha azul que colocavam no casaco dos jovens para identificá-los
como freqüentadores do baile.
No dia do aniversário da Mãe Geralda, ela fazia festa para
as crianças e para os adultos, separadamente. Convidava as filhas
daquelas mulheres que iam em sua casa e que dançavam na So-
ciedade Floresta Aurora. Os rapazes deveriam ir das 3 às 6 horas
da tarde para comer uns docinhos e eram avisados que encontra-
riam moças da Floresta Aurora. Eram doutrinados para não faltar
com o respeito com aquelas meninas de tão nobre sociedade. A
mãe Geralda deixava bem claro que aquelas moças não eram do
mesmo nível social das que freqüentavam seus bailes.
Sabíamos que ela possuía um quarto de Santo num deter-
minado lugar. Ali não se passava, nem se olhava. Era o medo. O
salão era separado do lugar da religião e tinha um coreto pequeno
onde ficava a banda. Também havia a copa mas nem sempre ia até
lá. Era uma casa de alvenaria, antes da Maria Degolada, atual Vila
Maria da Conceição.
Mãe Geralda faleceu no final dos anos quarenta. Eu estava
em Taquari, na ocasião. Mas me contaram que o enterro foi muito
bonito, sempre a pé. Em cada encruzilhada colocavam o caixão
em cima de umas cadeiras e faziam um ritual em volta.
Conforme o que me recordo, nosso lazer era também reu-
nir-se com os familiares para as festas de aniversario, batizado,

152
HELENA DO SUL

casamento, primeira comunhão. Ao Carnaval íamos com o pai e a


mãe para ver o Corso, quando crianças. Da época dos Corsos não
tenho boas lembranças porque vimos pegar fogo num carro. Isto
ocorreu perto da Avenida Venâncio Aires com a Avenida João
Pessoa. O pai, muito afoito, queria acudir as pessoas e ficamos
agitados. Nunca mais houve Corso das grandes sociedades. Não
me recordo o ano.
Em minha juventude já éramos 12 pessoas em casa, pois
além dos 5 filhos, meus pais ficaram cuidando de 6 sobrinhos
órfãos. Passei a refletir sobre aquela situação. Não concebia que
todos nós pudéssemos viver, desfrutando do mesmo espaço fí-
sico, no mesmo pátio. Pensei em casar-me e fui tentando buscar
equilíbrio. Lembro-me que comecei a ler muito e alguns livros
me deram ótimas diretrizes como “Aventuras de uma Negrinha
que Procurava Deus”, de G. Bernard Shaw, “ O Caminho da So-
brevivência”, de William Vogt, “ A Importância de Viver”, de Lin
Iutang, antes de converter-se ao Catolicismo. Também li sobre a
vida de Karver, um ex-escravo americano e muitos exemplos de
vida relatados nas Seleções Redears Digest e na revista Atalaia.
Estas leituras me faziam questionar a nossa situação, de forma
que desejei fazer a minha independência, iniciando pelo espaço
físico.
Gostava de todos os meus irmãos, dos parentes, mas pen-
sava que a casa precisaria ter um terreno, separado deles. Para isto
trabalhei muito numa mecânica elétrica e fui estudar. Completei
o Ginásio no colégio Inácio Montanha depois de 1955, com o pai
já falecido. Entrei para a Escola Parobé onde mais tarde fui pro-
fessor de Eletrotécnica. Conheci a hipocrisia social no mercado
de trabalho, embora numa entidade pública, como o colégio. Mas
consegui realizar meu sonho de família independente. Agradeço
aos exemplos de trabalho do pai que nos jogou esta semente e ao
medo da fome que a mãe nos incutiu.
Contavam e vivenciaram casos de trabalho, de solidarieda-
de, de coragem e respeito para com o ser humano.
A convivência com a família foi muito importante. Cresci
vendo meu pai trabalhar para os filhos poderem comer, vestir e

153
ROTA EXISTENCIAL

morar, sem deixar de conversar com a gente, embora não desse


sermão. Aprendi a relacionar-me com amigos e parentes ou vizi-
nhos, através da mãe que era capaz de receber a todos e dar gua-
rida na doença, nas desavenças e colocar um basta na hora exata
em que não mais precisavam de ajuda. Assim, vi minhas irmãs e a
mãe cuidando de uma prima tuberculosa; escutei a mãe contando
que acolheu um irmão do pai, mais moço, que havia casado sem
consentimento de meus avós; acompanhei o apoio que davam
para a tia Violande cuidar do marido leproso que ficou muito
tempo no isolamento da Colônia de Itapuã até ficar curado.
Sei que hoje as famílias sofreram transformações. Nem
sempre há um núcleo completo de pai e mãe biológicos e muito
menos aquela macro família, envolvendo avós e tios. Mas sempre
haverá alguém na liderança destes núcleos modernos e é preciso
que passem exemplos positivos de honestidade, de trabalho, de
educação e principalmente de auto-estima para os filhos.
Meus irmãos Adroaldo, Antonio e as gêmeas Maria Teresa
e Teresa Maria fazem parte da minha história de vida porque
nunca nos separamos na alegria e nas tristezas. E conquistaram
seus espaços através do trabalho.
Minha esposa Erli dividiu comigo o esforço para educar os
filhos, trabalhando também fora do lar. Não estamos contempla-
tivos, pois a vida continua nas crianças.
Nossa família não é de prole numerosa como a de vó Pau-
lina, mas temos 3 filhos: Zaida Regina, Doutora em Assistência
Social, Paulo Roberto, Eletrotécnico, Luiz Fernando, Inspetor de
Policia.
Esta conversa foi muito importante porque os negros não
têm oportunidades de revelar e registrar suas trajetórias e insis-
tem em apontá-los como gente sem condições. E mesmo porque
conseguimos resgatar coisas adormecidas e que podem ser ques-
tionadas, podem servir para análise do passado e comparação
com o presente.
Apenas foi a história de uma família que, com certeza, tem
pontos comuns com tantas outras famílias negras trabalhadoras.

154
HELENA DO SUL

O SUPER EVENTO

Desde manhã, os testes na aparelhagem de som deixaram a


atmosfera, eletronicamente musical.
A potência sonora indicava que o evento, ao ar livre, seria
daqueles de arrebentar o cortiço. Os fãs do “Raça Negra” estavam
de parabéns, principalmente os do Partenon, bairro onde acon-
teceria o grande show de sambanejo em que o conjunto se apre-
sentaria. Era dia de festa popular num super estacionamento de
carros. A costumeira paisagem metálica, os roncos dos motores
e a poluição dos combustíveis seriam substituídos por cheiro de
povo, pela explosão de gente, buscando espaço.
Já no inicio da tarde podia observar, da janela, o formiguei-
ro humano, transitando pela Avenida Bento Gonçalves. Vinham
pessoas aos montes, em grupos, isoladas, coloridas, bem vestidas,
mal vestidas. Vinham fazendo barulho, cantando, brincando. Os
mais silenciosos trocavam beijos, namorando. Acontecia um des-
file civil e espontâneo.Cidadãos de todas as categorias, voluntários
do prazer, engrossavam as fileiras em direção aos seus ídolos.
Os ônibus no corredor passavam lotados como nos horá-
rios de pico semanal. Nas calçadas, o movimento das pessoas en-
chia de vitalidade a presença estática e fria dos muros divisórios
dos quartéis, dos hospitais, dos colégios e da universidade, aos
domingos. Era transito de povo, vindo de todas as direções de
Porto alegre.
Desci ao jardim para sentir-me mais próxima daquela
energia, Identifiquei-me com os transeuntes. Mas tive certeza que
não iria ver o conjunto musical Raça Negra. Era muito povo.
Ensaiei uma porção de vezes para sair de casa e acabei op-
tando por aguardar as novidades do evento.

155
ROTA EXISTENCIAL

Areta já estava de saída. Depois perdeu-se naquela multi-


dão de bonés multicores, de jaquetas emboladas na cintura, de
cabeças cacheadas, de pés de chinelo, de tênis, de sapato com-
portado, de pés descalços, pisando no chão ilusoriamente igual,
visto à distância. Areta perdeu-se naquela multidão e tornou-se
um pontinho minúsculo que escapou-me de vista.
Retornei à sala para conversar com o amigo recém-chega-
do. Ele também não iria ao show. Já fazia um bom tempo que sua
homossexualidade visível não lhe aconselhava o enfrentamento
com a massa popular. Um velho gay, nem sempre respeitado pe-
los desconhecidos, preferia evitar constrangimentos de ser hosti-
lizado por quem tanto amava, o povão, como dizia.
Ficamos em casa, formando dupla no papo de sempre, fa-
lando de negritude, tomando café, comentando as ultimas leitu-
ras. Discutimos algumas idéias sobre a linguagem reprimida dos
negros e suas diferentes formas de manifestação, assunto aborda-
do por Clóvis Moura no livro A Dialética Radical do Brasil Ne-
gro. Comentar livros era um prazer a mais.
Analisamos alguns aspectos da imprensa negra paulista,
tema acentuado nas memórias de José Correia Leite, escritas pelo
Cuti. Fomos unânimes em observar que o jornal A Alvorada,
fundado em 1907, no Rio Grande do Sul, era anterior ao Clarim
da Alvorada e mais tarde Alvorada, de São Paulo. Não consegui-
mos aprofundar o assunto, porque o som sambado da rua distraia
nossa atenção.
Cumprimos o ritual do cafezinho e fizemos uma apologia
ao café, chamando-o de preto gostoso e admitindo que era o auge
da pobreza, quando faltava pó de café na latinha. Nos proclama-
mos escravos da cafeína.
Depois, foram tantos disparates sobre a vida! Enuncia-
mos frases soltas com dramas existenciais. Lembro-me do amigo
fazendo comparações entre vida e teatro, aplausos e conquista,
vaias e decadências. E nos atribuímos diversos papéis como se
estivéssemos num palquinho mambembe, nossa casa de pobre.
Intitulei-me guardiã das estrelas e ele achou o máximo,
pois captou os meus filhos nestas estrelas. Ao contrário de mim,

156
HELENA DO SUL

ele trouxe as reflexões sobre a vida-teatro, dizendo-me que na


maioria das vezes não selecionamos os papéis, que nem sempre
chegam as oportunidades do desempenho daquilo que desejamos
e precisamos figurar até conseguir nossos empenhos. E, ainda
continuou, sussurrando... Marginal glorificado, marginal feliz.
Perguntei-lhe qual era o seu papel definitivo. Respondeu-
me que nem a morte é definitiva. Acrescentou que há sempre que
buscar novos papéis, enfrentando as impostorias, mesmo com
difíceis estratégias. A conversa parecia ingênua, mas não era hi-
pócrita, pois estávamos botando para fora muitas coisas às vezes
tão caladas.
Naturalmente, sutilmente dirigimos o assunto para a ne-
gritude e observamos que apesar de tantos papéis sujos impostos
ao negro, assim mesmo ele figura, atua esperançado. E embora a
sua representação quase definitiva de marginal esteja custando
muito a sair de cartaz, ele vem resistindo para assumir melhores
encenações.
Para compensar, sonhamos uma cena apoteótica com no-
vos Zumbis, abrindo as portas do terceiro milênio onde negros
vivenciavam igualmente com os brancos, os frutos da liberdade,
com dignidade humana.
Nem bem concluíamos aquela confraria mental, quando
Areta retornou do show. Parecia nervosa e chorava. Respeitamos
suas lágrimas, oferecendo-lhe um chá.
Alguns vizinhos também retornavam do show. Contaram
que o muro do quartel ficou pequeno para tanto negro encostado
para a polícia fazer revista e bater neles. Apavorados, despejavam
as noticias: o Julio frentista apanhou, o Neco da padaria apanhou,
o Jorge da madeireira também, o Rubinho da imobiliária, a Dja-
van, aquele veado que nem fala, o Tadeu da gráfica, o “Cabeça
Feita” do Colégio Parobé, o Bira da Prefeitura, o Canarinho do
Correio, um monte de negro bom de jeito apanhou. Não é justo,
não é. Todos trabalhadores, gente boa.
Areta, derramando chá pelo assoalho, tal o nervosismo,
gritava: eles não, eles não podiam ter apanhado, eles são bons, não
foram os desordeiros. Eles não.

157
ROTA EXISTENCIAL

Meu amigo sussurrava: massificados, os negros... são gene-


ralizados, negativamente, pela cor. Até provar ao contrário, se é
que dá tempo de provar que o negro é do bem, já está encostado no
muro e apanhando... e morrendo.
Areta chorava. Respeitamos suas lágrimas.

158
HELENA DO SUL

FORASTEIROS DE MUITOS LUGARES

As famílias vinham recomendadas para procurar uma tal


de Sociedade Operária que precisava de muitos sócios, das mais
variadas cidades e lugarejos do Rio Grande do Sul, de acordo com
um estatuto elaborado pelo Inocêncio Gondo de Mendonça, o
Nenê.
Protetor dos operários, homem de bandeira política e
social, contava com a ajuda dos trabalhadores que desejassem
engrossar as fileiras de sua ideologia. Sem poupar esforços no
discurso, chamava todos para a capital, onde prometia-lhes me-
lhores condições de emprego e moradia.
Quanto à comida, teriam menos problemas, pois o gover-
no estava se dedicando à tarefa de atenuar a vertiginosa ascensão
do custo das utilidades essenciais à alimentação do povo, crian-
do a CAMPAL, órgão regulador do comércio e preços, conforme
anunciavam os jornais.
Era por volta de 1952, quando sessenta famílias negras,
atendendo aos apelos do Nenê, deram com os costados em Porto
Alegre. Até da serra gaúcha, onde muitos pensam que negro não
existe, também vieram algumas famílias. Viajaram conforme a
conveniência de custo ou de acomodação. Chegaram de navio,
pequenos Itas daquela época, de carona nos caminhões carguei-
ros de arroz e trigo. De ônibus, veio pouca gente, pois a maioria
preferiu viajar de trem.
Os primeiro passos na capital foram em direção à Socieda-
de Operária, guiados pelo Dêga, vendedor ambulante de pinhão,
balas de mel e rapaduras, exímio conhecedor da cidade. Um ne-
gro caminhador e corajoso, qualidades que herdara do bisavô
Juca Centeno, remanescente dos melanodermas do Quilombo do
Manoel Padeiro.

159
ROTA EXISTENCIAL

As famílias chegaram, ao mesmo tempo, na frente da casa


do Nenê, do Inocêncio Gondo de Mendonça, onde funcionava
a sede provisória da Sociedade Operária. No prédio, de facha-
da verde-bandeira, estavam colados os retratos do Governador,
Dr.Otaviano de Ribeiro e Fraga, ex-Fraguinha da Gaita, muito
popular pelas suas fandangadas, com todo seu secretariado, do
partido político preferido do Nenê.
Entreveraram-se na porta da Sociedade Operária, satisfei-
tos com o achado. Mas as horas foram passando e o Inocêncio
não aparecia.
O sol fraquinho começava a se esconder, quando recebe-
ram a triste notícia de que o protetor dos operários estava no ma-
nicômio, que levaram o Nenê de camisa de força, dado como lou-
co varrido e visionário. Tão lamentável fato causou um alarido na
ruazinha calma, barulho que deu medo até no guarda-noturno
que já iniciava a ronda, quando o sol ia se pondo.
O tumulto provocado pelas famílias chamou a atenção do
padre da Paróquia Nossa Senhora do Perdão, na mesma rua. O
padre celebraria uma novena naquele horário e encontrava-se
com a igreja quase vazia.
Desconfiando que a ausência dos fiéis tivesse como causa
o receio de esbarrarem com a caravana desconhecida, resolveu
verificar, de perto, o que se passava com aquela gente. E nunca se
soube se foi por caridade ou para se ver livre de toda comandita
que o padre César, depois da novena, conduziu as famílias, em
procissão luminosa, até um certo lugar, longe dali. Muito longe
da rua de prédios neoclássicos e coloniais, onde a meia-água da
Sociedade Operária destoava do conjunto arquitetônico.
As famílias seguiram com o padre por uma longa estrada,
pisoteando forte nos paralelepípedos e depois, levantando uma
densa polvadeira, subindo, subindo, sempre subindo até o pico
de uma forte lomba.
Homens, mulheres e crianças, cansados por demais e rijos
de frio, só pararam de caminhar quando ouviram o padre dizer
que o lugar perfeito para o término da peregrinação estava ali,

160
HELENA DO SUL

na lomba. Pediu-lhes que reparassem, tão logo amanhecesse, a


beleza do rio lá embaixo e que agradecessem a Deus por enca-
minhá-los para um lugar de exuberante natureza que se mostra-
va no matagal virgem, no arvoredo, nas flores, nos passarinhos.
Convenceu-os de que recebiam o paraíso. E sumiu.
Sem recusarem a oferta, ainda que desencantados pela falta
do Nenê, quase vencidos pelo sono, mesmo assim, tiveram forças
para improvisarem barracas de cobertores, os quais ataram nos
troncos de Tipuanas. Dormiram a primeira noite na capital.
Quando despertaram, até as crianças estavam tristes, pi-
cadas e embolotadas pela ação da grande quantidade de vespas
noturnas. A tristeza tinha causa dolorosa.
Um trabalhador jamais poderia enlouquecer, comentavam
os forasteiros. Logo ele, o Nenê, um dos cabeças das lutas tra-
balhistas, guerreiro pela justiça social. Infelizmente precisavam
enfrentar a realidade que não era das melhores. Reunidos em
torno do mesmo falatório, foram se organizando para sobrevi-
ver à inesperada situação. Aproveitaram os recursos disponíveis:
malas, baús, paus de lenha, cobertores e outras tralhas com o que
ergueram as primeiras malocas para abrigar, principalmente as
crianças, enquanto aguardavam que Inocêncio Gondo de Men-
donça deixasse o hospício, para ajudá-los no que havia prometi-
do: melhor moradia, melhor emprego. Promessa é promessa. Ti-
nham esperança que o companheiro Nenê não fosse demenciar,
pela vida inteira.

161
ROTA EXISTENCIAL

APRESENTAÇÃO DO NOME DA LOMBA

Seu Inocêncio Gondo de Mendonça, embora sem o juízo


perfeito, sempre encontrava quem nele acreditasse e acabava lhe
providenciando as cartas para chamar as famílias que estavam
quietas, lá longe. Atendendo ao seu amável convite, as pessoas
não paravam de chegar na lomba. O padre as conduzia. Sempre
terminava com a mesma conversa: a beleza do rio, correndo lá
embaixo, a exuberância da natureza...
A lomba forte ficou cheinha de malocas umas por cima
das outras, com as corajosas famílias da diáspora africana gaúcha,
por conta da loucura de um visionário.
Quando o padre César retornou ao pico da ladeira ainda
conduzindo muito mais famílias, o lugar já possuía nome. Apre-
sentara-lhe o Morro do Nenê.
Assim a vovó Moça que veio lá das bandas da panela do
Candal, de Bagé, protegendo duas pretinhas, uma no colo e outra
pela mão, conta a origem e as histórias do morro do Nenê.

162
HELENA DO SUL

IZOLDA MARIA MAIS OU MENOS

O piso de concreto que servira de base para o primeiro


pavilhão do coleginho ainda não fora destruído. Como a ribal-
ta solitária de um velho palco, continuava assistindo a dramas e
comédias. Passarinhos voavam, procurando os galhos das Painei-
ras, dos Ibiscus, dos Guapuruvus e das Tipuanas.
A campainha disparava um som- sirene de alerta. Come-
çavam as aulas.
Assumia a direção, a professora Izolda Maria da Silva Cor-
rêa, neta da primeira faxineira do colégio, Geraldina Silva da Sil-
va, famosa pelas suas habilidades.
Izolda Maria, respeitada professora de matemática já co-
nhecia o Morro do Nenê através dos casos da vovó e, depois, por
sua própria vivência, quando iniciou a lecionar, subindo pelo bar-
ro das ladeiras. Já sabia muita coisa do passado e do presente do
Nenê. Preocupava-se com o futuro, entrando pelos portões do
Colégio Tipuana.
Os professores que já haviam perdido até os sapatos, cor-
rendo atrás da Gessi Coreto, substituta ideológica do Inocêncio,
estavam cansados, insatisfeitos. Os alunos mostravam-se revolta-
dos, com sentimento de rejeição e acompanhavam, todos os dias,
as características do Morro do Nenê serem exploradas nos meios
de comunicação, como estigma e destino dos deserdados.
A rejeição social e os problemas das famílias entravam no
Tipuana, o único lugar que os acolhia, por lei.
Nos momento de fraqueza, Izolda Maria chegava a ter
dúvidas quanto à sobrevivência do coleginho, atendendo tantas
demandas. Mas logo reagia aos maus presságios e envolvia o Ti-

163
ROTA EXISTENCIAL

puana com um grande abraço, de mãos dadas com os professores


e os alunos. Por conta do afeto seguia caminhos não tão exatos
como a Matemática que lecionava, mas escolhendo com os com-
panheiros, os caminhos mais ou menos corretos.
As confusões ambientais e sociais, aceleradas desde o tem-
po do Inocêncio Gondo de Mendonça, deixavam incertezas e um
elevado grau de relatividade para a exatidão, em todo o mundo.
As dúvidas eram muitas e tudo andava mais ou menos: as
pessoas, os fatos e até a tabuada. Izolda Maria assumia o Tipuana
com todas as possibilidades de erros e acertos, num tempo do
mais ou menos.
No Tipuana do Morro do Nenê e, em qualquer lugar, al-
guém poderia ser mais ou menos homem ou mais ou menos
mulher e até mais ou menos gente ou qualquer coisa. Para lidar
com estas situações mais ou menos complexas, era necessário ser
gigante, de preferência acordado. O Tipuana era apenas, mais ou
menos um pedacinho da sociedade.
Izolda Maria tratou de fazer mais ou menos uma parceria
com os professores que passaram a trabalhar mais ou menos com
uma terceira visão da realidade dos alunos, chamando suas famí-
lias para o colégio; mais ou menos com o sexto sentido, para pres-
sentir quando as brigas no pátio seriam de canivete ou de “trinta
e oito”; mais ou menos com um oitavo fôlego para reforçarem
as lições e, sobretudo, mais ou menos com vontade de colaborar
para a realização do sonho de Inocêncio Gondo de Mendonça,
patrono do Morro do Nenê.
Assustados com a terceira visão, com o sexto sentido, o oi-
tavo fôlego e, ainda, descrentes do sonho do Inocêncio, alguns
professores perderam as forças e ficaram menos ágeis, interferin-
do, negativamente, nas parcelas energéticas do colégio. Assim,
enquanto uns trabalhavam menos e outros mais, mesmo assim,
o Tipuana encontrava o equilíbrio, pois de acordo com a filosofia
de Izolda, tudo acontecia mais ou menos.
Era a ultima década do Século XX, cheia de incertezas.

164
HELENA DO SUL

ATA ORDINÁRIA

Aos trinta e um dias do mês de outubro de mil novecentos


e noventa e sete, quando as Tipuanas começavam a florescer, rea-
lizou-se a eleição para diretora do colégio. Foi eleita, novamente,
a professora Izolda Maria da Silva Corrêa que alguns conhecem
por Izolda, Maria, Izolda Mais ou Menos ou “Negona”. Em sua
plataforma constava apenas uma observação; não iremos deixar o
Tipuana desaparecer do Morro do Nenê Dirigia-se à comunidade
no plural: direção, vice-direção, professores, pais, alunos, comu-
nidade do Morro, amigos e simpatizantes do Tipuana. E parava
por ai, pois o resto era mais ou menos suspeito. Sem mais a decla-
rar, observava, ainda em tempo, que Izolda Maria, colocando um
galho de arruda atrás da orelha, ajoelhando-se, pedia clemência:
meu Jesus, misericórdia. Agora sim, terminava a ata que depois de
lida e entendida, poderia ser assinada por todos aqueles que con-
cordavam com os fatos registrados e com os outros que ficaram
omissos, em virtude do adiantado do tempo, mais ou menos 24
horas, exato momento em que Izolda declarava sua filosofia exis-
tencial, mais ou menos parecida com as dos moradores do Morro
do Nenê: quanto mais refaço o percurso em busca dos meus cas-
telos, sinto aumentar a coragem porque vou ficando intima das
pedras do caminho.
No morro do Nenê, as novidades corriam lépidas como
os passarinhos que desfrutavam da exuberância da natureza, de
galho em galho do arvoredo, pertinho do céu. Assim, tão logo
aconteciam os fatos, espalhavam-se pela vizinhança.
Contam que, no mesmo instante em que terminavam
os registros na ata ordinária, o Inocência Gondo de Mendonça
conseguia permissão para que o conduzissem até o colégio. De
chegada, apresentou-se para Izolda Maria e recomendou-lhe que,
apesar de sua intimidade com as pedras, seria bom caminhar com

165
ROTA EXISTENCIAL

os amigos, gritando bem alto pelas ruas para acordar os indife-


rentes ao que se passava na Escola, a fim de juntarem-se ao grupo
para tornar a caminhada mais alegre e segura, naquela meia-noite
envolta pelas trevas.
Foi improvisado um alarido descomunal, por conta da
aparição do Nenê, incorporado na secretária do Tipuana, uma
solidária senhora, sempre disposta a acolher irmãozinhos, até
mesmo do além. O Inocêncio há muito tempo, era um sopro es-
piritual.
Restava apelar para uma reza forte. E Izolda rezou, de for-
ma mais ou menos divina, mais ou menos profana.
Livrai-nos, nem que seja mais ou menos, de poderoso ou
poderosa indiferente às nossas causas. Poderão ser deuses masca-
rados, concebidos na terra, criadores e adeptos do mandamento
capitalista, burguês e discriminador de nossa gente, do morro do
Nenê.
Livrai-nos, por favor, desta gente que amordaça as bocas
quando quer silêncio, carnavaliza as massas, quando quer gozar,
rouba a paz das cabeças, levando-as à convulsão. E estão deitados
à mão direita, no centro, à esquerda, tanto faz a posição, de cos-
tas para nós, numa cama real, com o controle remoto do sistema
social, do salário mínimo, da miséria máxima, do barracão que
continua pendurado na lomba.
Cremos sim no espírito santo do Operário, na remissão da
fome, no churrasco, no feijão, na esperança eterna, da salvação
das Crianças, na força do amor.
Amém!

166
HELENA DO SUL

CAPÍTULO XXVI

No dormitório há um grande movimento das pessoas que


retornam às origens. Carregam muitas bagagens diferentes: sacos,
malas, bolsas, sacolas, mochilas, tralhas de passageiros. Parece
que organizaram uma excursão de regresso. Irão juntos enfrentar
os caminhos e tudo que oferecem ou negam aos viajantes.
Não fosse por Deusuita, as crianças, os cachorros, os pás-
saros e as borboletas, eu estaria sozinha numa casa de imensos
cômodos, espaçosa demais e até assustadora para a solidão.
Ainda não devo regressar. Prometi esperar por Amina e
Giovana. Persisto em minhas intenções. Embora ás vezes me can-
se e me transforme em desesperança, sei que ainda permanecem
coisas maravilhosas ao meu alcance: a natureza de Cândida, as
crianças.
Mas hoje estou um tanto diferente. O perfume das flores
e o azul marinho do céu não entram com facilidade pelos meus
sentidos. Absorvo uma cinza idéia de torpes intuições. É um mo-
mento difícil para o meu interior.
Sinto vontade de jogar-me no chão para descansar na areia,
rolando de um lado para o outro como um pêndulo na horizon-
tal. Meus cabelos estão despenteados, minha bata anda surrada
demais e os chinelos largados num canto. Vivo um tempo em que
todas minha vaidades sucumbiram. O ímpeto de atirar-me no
chão continua como uma força primitiva que quer juntar-me à
terra num ato de submissão à poeira que sou. Meu silêncio é um
dialogo triste com minhas lembranças. Estou com saudades.
Se os olhos de Nona Rina sorriam, os meus choram. Trans-
cendo às coisas, os fatos, às pessoas de Cândida e percorro o ca-
minho para dentro de mim. Meu rosto recebe um vento inter-
mitente e leve. Giro a cabeça, acompanhando o ar, talvez para

167
ROTA EXISTENCIAL

dissipar na brisa, as interrogações, as dúvidas, as recordações, a


espera e o estado de saudade. Chamo por Amina e Giovana. A-
mi-na! Gi-gi!
A-mi-na! Gi-o-va-na! Por que me deixaram divagando no
dormitório? Se ao menos tivessem me avisado que não viriam,
teria partido junto com os outros passageiros para amenizar a ca-
minhada, trocando idéias.
Deusuita percebe minha metamoforse e como quem de-
seja fazer um carinho, aproxima-se, bem próxima de mim e ajeita
minhas tranças destrançadas. Carinhosamente me refaz o pente-
ado e insinua-me, devagarinho, bem de mansinho, saber o lugar
onde estão minhas amigas.
Fazendo pausas como um cansado griô, inicia a falar so-
bre as esquinas de Cândida. Conta-me que as pessoas podem
vir de vários lugares. O espaço é muito grande, mas que todas
desembarcam na terceira esquina, o turbilhão da vida. Revela-
me que as outras esquinas são misteriosas e não pertencem aos
vivos. Numa delas enxerga as minhas amigas, Amina e Giovana,
aguardando-me.
Estremeço com a revelação de Deusuita. Fico contrariada
e revido-lhe: meus amigos não morrem, permanecem em mim
com suas referências.
Mas ela continua falando sem surpreender-se com o meu
revide e comenta que, em outra esquina dos mistérios de Cândi-
da, estão os mensageiros espirituais, responsáveis pelos encon-
tros por meio do pensamento, ente os vivos e os mortos, movi-
mentando as nossas lembranças. Assim, jamais são esquecidos
os seus legados do bem, os ensinamentos e alegrias de viver que
nos deixaram postulados. E suavemente, como quem canta uma
canção de ninar, prossegue dizendo que a terceira esquina é uma
passagem em direção aos nossos encontros para os quais haverá
sempre um tempo determinado em lugar qualquer. Afirma que
seus hóspedes são passageiros com muitas histórias, as deles e dos
seus antepassados. Desde que cheguei, diz enxergar junto de mim
um ancestral africano.

168
HELENA DO SUL

Deusuita não deve estar falando sério. Fica inventando vi-


sões para me enganar. Conta-me que vê, perto de mim, um negro
muito alto e magro, com uma túnica bem clara, radiante de luz,
apresentando-se como Akidudu de Antares. O príncipe negro
carrega um cristal onde transparece a união de mãos femininas
brancas e negras, estando ente elas, as de minhas amigas.
Alex, a Deusuita também delira. Akidudu de Antares ja-
mais existiu. Deve estar equivocada, pois em Antares, uma cidade
ficção do famoso incidente em que mortos ressurgiram, não ha-
via lugar para nobreza negra, nem viva e nem morta. Não aceito
sua vidência. Ainda espero por Amina e Giovana. Prestarei mais
atenção nos sinais, principalmente, em mim.
Passo algumas horas com muitas dúvidas e acabo admi-
tindo que não registrei corretamente os dados para o encontro
marcado. Amina e Giovana é que esperariam por mim, depois da
terceira esquina em direção a uma bucólica paz.
E afinal, um detalhe muito importante me faz aceitar a
visão de Deusuita: Amina falava que seus antepassados eram
nobres. Akidudu de Antares, um príncipe negro, deve ter vin-
do buscá-la com dignidade. E Giovana foi junto. Não perderia a
oportunidade de entrar no céu em boa companhia.
Em meus pensamentos brindo à vida, o único brinde que
se faz também à morte. Concretizo o brinde na gargalhada estú-
pida e terrivelmente lúcida. Depois, tudo é silêncio.
Arrumo o meu saco verde de viagem. Peço a Deusuita o
antigo candeeiro, como lembrança. Ela alcança-me o traste e vai
atender a quem chega.
Entra no dormitório uma mulher com nenê no colo, um
recém-chegado. Novamente brindo à vida.
Deusuita reforça sua ciranda espiritual, sussurrando ao
meu ouvido que não perdi a viagem, pois Amina e Giovana vie-
ram ao meu encontro, nas pessoas que encontrei e que fizeram
recordá-las, até mesmo o recém-nascido que acaba de chegar-
gente com todas as possibilidades.

169
ROTA EXISTENCIAL

Na sala, junto ao painel das chaves, ainda está o pergami-


nho com o poema de Davila. Quando cheguei ao dormitório, pre-
cisava relaxar a mente e minha fantasia transcendental fez com
que eu lesse os seus versos às avessas. Menti.

Mas estou de regresso.

REALmente
Rua era para carro
Calçada era pra gente
“Van”, lembrança da arte.

Economia global,
Primado neo-liberal.
No reino Do Faz de Conta
Ninguém pergunta pela rua

Que estava aqui,


Pela calçada de acolá,
Pelo homem de mais ali.

Sucumbiram todos
Sufocados.
Pelos radinhos, cigarros
Pilhas, badulaques
E até bichinhos.

Rua, calçadas, agora,


Prateleiras da ilusão
Meio de ganha-pão.

E os homens?
Ora, oram... Numa luta em vão
“Van...”

Davila (assim mesmo, da vila)

170
HELENA DO SUL

CASARÃO DAS LAVADEIRAS EM CAXAMBU

Meu nome é Maria Aparecida Gonçalves da Silva. Nasci


no dia 19 de fevereiro de 1923, em Caxambu.
A cidade de Caxambu fica no sul do estado de Minas Ge-
rais. Até o final do século XVII, as imediações do Morro do Ca-
xambum, conhecido assim na época, eram habitadas pelos índios
Cataguases. Aos índios nativos, segundo o historiador Antônio
Maurício Ferreira, deve-se a origem do nome Caxambu, que na
língua Tupi, falada por eles, significa “bolhas a ferver” ou “água
que borbulha” (Cata-mbu).
Meu pai chamava-se Antonio Bartolomeu Gonçalves e mi-
nha mãe, Alice Maria Bruno Gonçalves, a lavadeira responsável
pela formação que recebi, por meio de suas lições de vida, de tra-
balho e amizade com as pessoas.
Minha mãe teve quatro filhos, sendo três homens já faleci-
dos e eu, a única mulher. Estou com setenta e oito anos e quando
volto aos anos atrás, nem acredito que consegui realizar alguns
dos sonhos, pelo sacrifício que passamos. Lembro muito de mi-
nha mãe, Alice Maria, assim como lembro de minha avó materna,
Liduína da Silva Bruno. Elas eram lavadeiras muito conhecidas
e estimadas na cidade. Minha avó também era parteira e ajudou
muitas mulheres ricas e pobres, para que dessem a luz aos seus
filhos, com sucesso.
Mariana, minha avó paterna, também lavava roupa. Ela
lavava sobre as pedras, às margens do Bengo, o rio que corta a
praça, no centro da cidade.
E por falar no rio Bengo, quero destacar que Caxambu
possui grande diversidade de recursos naturais e a sua área hi-
drográfica é considerada uma das mais importantes do mundo,

171
ROTA EXISTENCIAL

altamente apreciada desde o tempo do Império no Brasil, pela


qualidade de suas águas medicinais. Contam que a Princesa Isa-
bel, com uma suposta infertilidade, teve o seu herdeiro, em virtu-
de do tratamento feito nas águas ferruginosas das fontes de Ca-
xambu. E eu, como boa caxambuense, fazendo uso dessas águas,
tive nada mais do que treze filhos.
Por volta do ano de 1933, os hotéis da cidade, eram em nú-
mero reduzido mas deixavam a cargo das lavadeiras, toda roupa
da casa para ser lavada, o que garantia a essas mulheres, serviço e
dinheiro. Mais tarde, a cidade passou a ter grande movimentação,
com a proliferação de cassinos de jogos e construção de mais ho-
téis. A quantidade de pessoas que chegava para os cassinos trouxe
um certo romantismo à cidade que ficava cheia de gente muito
chique e famosa. Aumentou o número de pessoas que vinham
usufruir das águas e jogar nos cassinos, aumentando também o
trabalho das lavadeiras.
Aos 10 anos comecei a conviver com a movimentação no
casarão de minha avó, com minha mãe e cinco lavadeiras. Ali fun-
cionava uma lavanderia com dois tanques grandes de cimento e
várias bacias de latão, muito usadas naquele tempo. Minha avó e
minha mãe não tinham noção de que o trabalho delas era desem-
penhado como se fosse em uma cooperativa ao redor daqueles
tanques. Eram as administradoras da cooperativa, cuja oferta de
serviço era a lavagem de roupa e onde a entrada de dinheiro, toda
renda que conseguiam com esse trabalho, era dividida entre elas.
Assim, sustentavam a casa, ajudando seus maridos e filhos.
Convivi, desde menina, com todas as dificuldades impos-
tas pela profissão de lavadeira, a qual passou por todas as gera-
ções de minha família. Continuei na mesma trajetória de minha
mãe, até por volta de meus dezoito anos, no casarão das Lava-
deiras de Caxambu. Ajudava a carregar tabuleiros de roupas, na
cabeça. Também entregava muitas roupas nos cabides. Eram as
roupas lavadas e passadas, de fregueses dos hotéis, na época dos
cassinos abertos.
As roupas de cama, as toalhas de mesa e as camisas eram
engomadas e sempre lavadas, artesanalmente, sem química, a não

172
HELENA DO SUL

ser o sabão em barra, o anil e muito sol para quarar. Depois eram
passadas com o ferro de brasa. Ajudei a lavar muitos ternos de
linho branco, chiques naquele tempo. A calça tinha que ter o friso
bem marcado com o ferro de passar.
Minha mãe lavou para pessoas ilustres, como o Dr. Bene-
dito Valadares, Governador de Minas Gerais, como o Presiden-
te Getúlio Vargas e sua esposa, que costumavam vir a Caxambu
para veranear.
Aos quinze anos eu já namorava e o namorado me ajudava
a entregar as roupas. Ao mesmo tempo, era cortejada pelo segu-
rança do presidente Getulio Vargas, chamado Gregório e apelida-
do de Anjo Negro.
Mais tarde, com o fechamento dos cassinos, Caxambu e
todas as outras estâncias hidrominerais sofreram uma baixa na
economia que era movimentada pelas pessoas que vinham vera-
near e jogar nessas cidades.
A queda financeira da cidade atingiu os ganhos das lava-
deiras que atendiam os fregueses dos hotéis. Minha mãe não teve
mais condições de manter o trabalho com as cinco lavadeiras que
eram encarregadas das roupas de cama, mesa e banho. Com a
diminuição da oferta de trabalho, o dinheiro diminuiu muito e
não dava mais para ser dividido.
Mas também não foi só de sacrifícios que a gente viveu.
Tivemos momentos bem alegres dos quais me lembro da minha
família toda, tanto do lado materno, como paterno, escutando
música e cantando. Meu pai, Antonio Bartolomeu Gonçalves era
maestro da primeira Banda de Música da cidade e participava
de um conjunto musical, juntamente com meus irmãos e uma
tia paterna que cantava em coral de igreja. No dia dos ensaios da
Banda ou do conjunto musical, a casa era uma festa com música
de todo gênero. Dançavam em um clube onde havia concurso de
dança. O clube carrega até hoje o mesmo nome que é bastante
discutido: “Grêmio Recreativo Prazer das Morenas”. Minha mãe
levava todos os filhos para o clube, pois era uma agremiação fa-
miliar. Quando a criançada sentia sono, dormia lá mesmo, en-

173
ROTA EXISTENCIAL

quanto os pais dançavam ao som das marchas, ranchos, samba de


roda e jazz, influenciados pelos americanos. De vez em quando
minha mãe ia até o pequeno quarto improvisado, para amamen-
tar um dos pequenos.
Casei aos dezenove anos, tive treze filhos, como já falei.
Deus me deu a graça de criar oito filhos, sendo quatro homens e
quatro mulheres. Herdei dezoito netos, dos quais três são faleci-
dos. Tenho quinze bisnetos, com mais dois a caminho para o ano
de 2002.
A minha vida foi idêntica a da minha mãe. Depois de acom-
panhá-la no Casarão, ainda lavei muita roupa.para ajudar meu
marido a construir nossa casa, a educar os oito filhos, na medida
do possível, pois mesmo estando na quarta geração, minhas filhas
Ana Maria e Alice Maria, também lavaram roupa para me ajudar
a manter os estudos delas, até se formarem no segundo grau.
Não tive oportunidade de estudar além dos primeiros anos,
porém foram anos de estudos muito bem feitos. Gosto muito de
ler, de assistir aos noticiários para estar informada do que vai pelo
mundo e poder conversar com os meus netos, bisnetos e filha
Ana Maria, dando-lhe incentivo para os seus ideais e projetos no
Movimento Negro de Caxambu, junto de todos os seus amigos e
amigas que tentam mudar o rumo desta história de discrimina-
ção racial.
Meu marido era mestre de cozinha de um famoso hotel
de Caxambu. Ele se vestia com toda a indumentária dos mestres
franceses porque o hotel assim exigia, naquele tempo. Mantinha-
se empregado no hotel por causa do talento que tinha para co-
zinhar.
Aos quarenta anos, fiquei viúva.
Quando me vi obrigada a deixar a cidade de Caxambu,
pela falta de emprego, fui trabalhar no Rio de Janeiro. Fiz contato
com uma família para a qual lavava, quando vinha em Caxambu e
houve interesse de me levar para o Rio de Janeiro. Lá, esta família
me encaminhou para a profissão de doméstica que eu exerceria
pela primeira vez, deixando para trás minha família, meus ami-

174
HELENA DO SUL

gos, minha terra, para entrar em outro sistema de vida até então
desconhecido para mim.
Depois de vinte anos, voltei para Caxambu, aposentada.
Hoje em dia, não lavo mais roupas, profissionalmente. Mas
foi lavando roupas que minha mãe me educou e eu, mais tarde,
eduquei os filhos, não deixando faltar o que comer, o que vestir, o
que calçar e, sobretudo, ajudando para que pudessem estudar.
Na época em que minha mãe me criou, ainda estava muito
difícil um estudo mais avançado para os filhos pobres e negros,
pois existia em primeiro lugar uma luta muito grande para so-
breviver, para suprir as necessidades básicas. Mas havia bastante
preocupação das famílias negras para passarem valores de bem
para as futuras gerações.
Lavei roupas, como minha mãe, porém já pude contribuir
para o estudo dos meus filhos. Bom seria que houvesse sempre
este crescimento em nossa sociedade, através das gerações.
Tenho orgulho de ser honesta, amiga, solidária e informada.
Aprendi a viver assim, junto com minha mãe, Alice Maria Bru-
no Gonçalves, uma especial lavadeira, com a qual compartilhei de
muitos momentos, no Casarão das Lavadeiras de Caxambu.

175
ROTA EXISTENCIAL

DO BENGO À PAIXÃO PELAS CONGADAS

As filhas de lavadeiras, Maria Aparecida e Ana Maria, fi-


zeram muitas referências ao Senhor Benedito Henriques e suas
filhas, Vera Regina e Amália Helena. Procurei as filhas deste Se-
nhor para ouvir o que tinham a acrescentar, a partir das histórias
das caxambuenses.
A Senhora Amália Helena Portella prontificou-se a com-
plementar o relato das duas senhoras e foi uma agradável surpre-
sa com sua fala vagarosa e bem explicada, quando prestou seu
depoimento gentil e inteligente, muito atenta aos fatos narrados
por Maria Aparecida e Ana Maria. Esclareceu algumas questões,
detalhou outras e revelou mais fatos, principalmente aqueles que
dizem respeito à participação do Senhor Benedito Henriques, na
Corporação Musical e no Movimento Negro de Caxambu.
Como se estivesse dando uma aula, falou com propriedade
e entusiasmo, de assuntos que vão de História, Geografia e Socio-
logia, até composição de águas, logicamente, de águas termas de
Caxambu, cidade pela qual revela extraordinário carinho.
Transcrevo de uma gravação, as palavras que ouvi da Se-
nhora Amália, interferindo, positivamente, nas narrativas de Ma-
ria Aparecida e Ana Maria.
“Conforme Maria Aparecida se referiu, sua avó Mariana
lavava às margens do Bengo e o que se ouvia dizer é que o rio
Bengo muito serviu às lavadeiras de Caxambu. Ele passa, hoje
canalizado, pelo centro da cidade e tem uma adutora que solta
as suas águas no rio Baependi, que também é o nome de outra
cidade mais antiga, da qual Caxambu fazia parte. Caxambu foi
chamada, inicialmente, de Águas Virtuosas de Baependi e depois
passou a chamar-se Cidade Nossa Senhora dos Remédios de Ca-
xambu, por causa do valor medicinal das suas águas que são alca-

176
HELENA DO SUL

linas, gasosas, alcalinas-ferrogasosas, sulfurosas e magnesianas,


de acordo com as propriedades do terreno por onde elas correm.
A referência quanto à princesa Isabel e às águas de Caxam-
bu é porque a princesa Isabel não tinha herdeiro e veio a Caxam-
bu fazer um tratamento em suas águas porque ela estava com
anemia ferropriva e as águas ferruginosas de Caxambu foram
excelente remédio. Depois desse tratamento, a princesa ganhou
filho. Naturalmente, criou-se uma lenda, com certeza em favor
das propriedades medicinais e miraculosas das águas de Caxam-
bu, envolvendo personagem real, como a princesa Isabel, a qual
mais tarde mandou construir uma Igreja Católica na cidade, em
ação de graças ou promessa, como costuma o povo contar.
Na entrada do Balneário Parque das Águas a que se refe-
rem Maria Aparecida e Ana Maria, tem uma placa com os dizeres
de Rui Barbosa: “Caxambu é a medicina entre as flores”.
O romantismo da cidade, também citado, vem desde os
tempos do Império no Brasil, porque a cidade sempre foi muito
procurada por pessoas da Corte, autoridades famosas que davam
ao ambiente um destaque especial, não só pela presença, senão
pela maneira de vestir, de andar. A cidade tem passeios românti-
cos de charretes, realmente, ainda tem um certo romantismo em
suas ruas com muitas flores.
As pessoas que freqüentavam os cassinos eram de muito
dinheiro, de belos trajes, o que dava à cidade um estilo de luxo,
com a freqüência dessas pessoas nos cassinos de jogos, com mú-
sica ao vivo, a cargo de excelentes músicos e cantores. As ativida-
des dos cassinos terminaram, quando o Dr. Eurico Gaspar Dutra
determinou o fechamento do jogo no Brasil, na década de 40.
Ana Maria cantava na boate de um cassino e a sua família
era de cantores. Sua tia Mariinha, na Semana Santa, cantava e
regia o coral da Igreja. Mariinha era contralto de voz belíssima e
potente, que deixava admirados os veranistas do Rio de Janeiro,
pela firmeza e beleza da voz. Regia um coral na rua e ali cantava,
sem microfones, ao natural.

177
ROTA EXISTENCIAL

Quando os cassinos fecharam, a Ana Maria deixou de can-


tar na boate, logo casou-se e foi ser dona de casa, deixando de
lado a carreira artística.
Em relação aos tabuleiros de carregar roupas, posso acres-
centar que eram de madeira, com 80cm de comprimento, com
50cm de largo e 10cm de altura. As lavadeiras forravam os tabu-
leiros com alvas toalhas e ali colocavam as peças de roupas limpas
e passadas. Para as roupas não apanharem poeira, elas cobriam o
tabuleiro com outra toalha.
Caxambu sempre foi visitada por gente famosa e algu-
mas pessoas deixaram as suas visitas bem marcadas, como o Dr.
Getúlio Vargas que, além de veranear, veio inaugurar a rodovia
Areias-Caxambu. Ele veio com toda a sua comitiva política, toda
sua equipe de trabalho e inaugurou essa estrada, essa rodovia, a
primeira da cidade. Caxambu possuía somente estrada de ferro.
Os veranistas chegavam de São Paulo ou do Rio de Janeiro, de
trem, pela ferrovia. A inauguração da rodovia foi um marco de
progresso e de sucesso.
O Dr. Getúlio Vargas comparecia ao veraneio acompanha-
do pelo seu segurança Gregório, apelidado de Anjo Negro o qual
cortejava as moças da cidade, entre elas, a Maria Aparecida, que
era uma negra muito bonita e, ainda estava solteira.
O pai de Maria Aparecida era maestro da Corporação Mu-
sical Sagrado Coração de Jesus, que foi fundada em 04 de setem-
bro de 1908 e tem, ainda, uma sede própria na rua Marechal De-
odoro. Era, na época, uma Corporação Musical composta quase
que totalmente de negros. Essa Corporação tem hoje uma sede
que foi reconstruída por papai, o Senhor Benedito Henriques de
que fala Ana Maria. Ele buscou muito auxílio entre políticos da
capital do Brasil, para que a Corporação tivesse um lugar digno
para fazer seus ensaios e reuniões.
Quanto ao Grêmio Recreativo Prazer das Morenas que eu
não concordo com o nome, porque são negros e não morenos
os seus fundadores e freqüentadores, surgiu de um grupo que se
organizou para se divertir, porque não podia freqüentar os bailes
da cidade que aconteciam em seus hotéis de luxo. Os negros fi-

178
HELENA DO SUL

cavam somente olhando as pessoas se divertirem nos salões, até


que decidiram fundar o Prazer das Morenas, um lugar para se
distraírem com as famílias, um clube. O nome do clube não é
dos melhores, porém comprova como as pessoas tinham medo
de assumir a negritude.
Quanto à ajuda que as duas amigas falam que receberam
de meu pai, Benedito Henriques, prende-se ao fato de que o papai
foi um homem de visão extraordinária e orientava muito elas. Ele
saiu de Caxambu com 18 anos de idade, depois de ter trabalhado
nas obras do Balneário Parque das Águas. Um construtor italiano
que foi a Caxambu viu o trabalho dele e o levou para trabalhar no
Rio de Janeiro, onde ele trabalhou na construção do Palácio Tira-
dentes, em que passou a funcionar a Câmara dos Deputados, até
o ano de 1960, ano em que foi transferida para Brasília.
No Rio de Janeiro, meu pai trabalhou como pedreiro e de-
pois passou a ser o administrador da Câmara, com o nome de
Zelador do Palácio Tiradentes. Transferido para Brasília, foi in-
dicado pela mesa da Câmara para trabalhar com os engenheiros
que iam construir a cidade de Brasília. Foi o homem responsável
pela orientação do funcionamento da Câmara dos Deputados,
em Brasília, onde trabalhou até o ano de 1966, ao aposentar-se.
Então voltou para Caxambu.
Como era um homem muito estudioso, entusiasmado com
as questões sociais, e, ainda, porque gostava muito da Maria Apa-
recida e da Ana Maria, integrou-se com elas para realizar algumas
ações, como a criação do Centro Caxambuense Afro-brasileiro,
em 1988.
Ana Maria teve todo o apoio de papai para conduzir o
Movimento Negro, em Caxambu. Ela sempre se colocou muito
envolvida com esse movimento e conseguiu fazer com que ele so-
brevivesse e aparecesse. Uma das propostas do Movimento Ne-
gro de Caxambu é resgatar a cultura negra através das Congadas,
uma dança do tempo dos negros escravos, muito característica
em cidades mineiras.
Caxambu tem um grupo de Congada em que o mestre é
o Senhor Ismael. Então o Centro Caxambuense Afro-brasileiro

179
ROTA EXISTENCIAL

juntou-se ao seu Ismael e com a ajuda de papai, passaram a reali-


zar atividades, no mês de novembro, na Semana da Consciência
Negra, onde se faz uma apresentação das Congadas de Caxambu
e dos municípios circunvizinhos, do Sul de Minas Gerais. Além
dos congadeiros de Caxambu, apresentam-se os de Guapé, So-
ledade de Minas, de São Gonçalo do Sapucaí, Conceição do Rio
Verde, Jesuânia, Lorena, Lambari e Cambuquira que estão ten-
tando conservar a tradição.Isto está sendo possível porque o seu
Ismael entrou em contato com todas as cidades onde existem,
ainda, as Congadas e que ficam mais próximas de Caxambu.
Nas Congadas, a evolução da dança é com passos marca-
dos, acompanhados de cânticos, invocando a devoção religiosa.
Fazem parte da Congada, homens, mulheres e crianças. Levam
um estandarte com o nome da cidade e outro com o nome do
grupo de Congada, no caso de Caxambu, com o nome de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito.
Meu pai trabalhou muito com a Ana Maria, procurando
estudar com ela os fatos e causas que originaram a baixa auto-
estima e pobreza da população negra, bem como o valor das tra-
dições dos negros e, principalmente, o movimento das Congadas,
uma tradição popular que resistiu à escravidão e oportunizou a
reunião dos negros, não somente para dançar e cantar, mas para
tratar de assuntos de liberdade.
Aproveitando a citação de Ana Maria de “querer juntar
os jovens e despertar o interesse deles para o movimento negro,
através da dança”, eu gostaria de lembrar o seguinte: uma das for-
mas dos jovens valorizarem a sua terra natal é quando guardam
alguma lembrança boa e sabemos que para gravar os momentos
alegres da vida, nada melhor do que a música e a própria dança.
Minha irmã Vera Regina e eu, as quais Maria Aparecida e
sua filha Ana Maria fazem referência, estamos sempre junto de-
las, tentando fazer progredir esse trabalho com as Congadas.
Nossos congadeiros são pessoas que se ocupam muito das
lidas nas lavouras e não têm tempo e nem condições de estudar

180
HELENA DO SUL

e nem sabem a força que têm, que através dessa dança que eles
apresentam, que já estava em extinção, poderão melhorar a pró-
pria vida.
Então começamos a distribuir umas fichas para que cada
um respondesse, oralmente, ou por escrito, de acordo com a esco-
laridade, as perguntas relacionadas com questões que eles vivem
no mundo do trabalho e em geral. Os resultados nos apontaram
rumos a tomar para trabalhar a justiça social que tanto se apre-
goa. Temos um documento denominado A Carta dos Congadei-
ros, em que fazem reivindicações para o desenvolvimento deles,
das suas famílias.
Pretendemos começar a ajudar o pessoal das Congadas
com a implantação de um curso de alfabetização para os par-
ticipantes de Caxambu e suas famílias. Também já estamos com
uma proposta elaborada, da criação de uma Escola de Congada
onde todos devem aprender a dançar e estudar. Teremos perío-
dos de apoio escolar para os alunos das comunidades carentes de
maioria negra, artesanato, teatro e até um pré-vestibular. A Esco-
la de Congada Nossa Senhora do Rosário e São Benedito estará
funcionando na Escola Wenceslau Braz, cedida pela Prefeitura
de Caxambu.Para que isto aconteça temos poucas pessoas que
ajudam. Apesar de sabermos que existem recursos destinados ao
desenvolvimento da população negra, a gente fica muito longe
destes recursos.
Então, o nosso compromisso é com o resgate, o aprofunda-
mento, a valorização e difusão da história e cultura negras, con-
siderando como legítima a comunidade afro-descendente para
atuar em sua defesa e seus direitos.
O Movimento Negro de Caxambu trabalha a parte cultural
e social e resolvemos, junto com os dirigentes do Centro Caxam-
buense Afro-brasileiro, trabalhar em conjunto com a Pastoral do
Negro, na parte religiosa, porque temos o trabalho do seu Ismael,
mestre da Congada.O seu Ismael sai com os congadeiros, fazendo
novena nas casas, rezando o terço, dando explicações religiosas
durante os meses de maio e no mês de outubro. Justamente essa

181
ROTA EXISTENCIAL

era uma forma de devoção religiosa do negro, no tempo da escra-


vidão, aqui no sul de Minas Gerais.
Quando a mãe de Ana Maria relata que foi obrigada a dei-
xar Caxambu para ir trabalhar no Rio de Janeiro, não foi um acon-
tecimento casual. Na época, pelo seu grau de politização, pela sua
irreverência e esclarecimento, foram negadas todas as oportuni-
dades de trabalho para ela e sua família, por perseguição política,
nos pequenos municípios brasileiros, quando não escaparam as
lavadeiras. Infelizmente, fatos como este, de perseguição política,
ainda continuam acontecendo, no Brasil.
Talvez, porque precisassem do talento do marido dela,
conservaram somente ele no emprego de mestre de cozinha, mas
assim que ele faleceu, os figurões da época que poderiam empre-
gar as pessoas, negaram todas as possibilidades de sobrevivência
para dona Maria Aparecida. Não lhe deram a oportunidade nem
de exercer a profissão de lavar roupas. Essa foi a causa de uma
mulher trabalhadora ser forçada a sair de sua terra natal, deixan-
do para trás os seus filhos, sua família, suas amizades, suas histó-
rias, conforme relata.
A luta de Maria Aparecida, atualmente com setenta e oito
anos, tem sido incentivar e ajudar a filha nas atividades em prol
das Congadas e pelo desenvolvimento da população negra. Neste
sentido, ambas vêm recebendo o apoio de minha irmã e o meu
apoio, bem como de outras pessoas interessadas pela causa social
e da discriminação. Recebem apoio de algumas entidades da so-
ciedade civil, religiosa, da Universidade, mais recentemente, e de
alguns políticos da região.
Com certeza, pela amizade que temos com essas duas
pessoas maravilhosas e pelo envolvimento de meu pai Benedito
Henriques, com os seus ideais, é que aparecemos em seus depoi-
mentos de filhas de lavadeiras.”

182
HELENA DO SUL

LAVAÇÃO DE ROUPAS

Lavação de Roupas, ato 2 deste livro, é uma forma simbó-


lica de expressar os comentários em relação aos referenciais his-
tóricos das filhas das lavadeiras e de suas mães, sem as quais seria
impossível mergulhar nas diferentes abordagens que suscitaram
suas histórias e depoimentos.
Os fatos reunidos, vão sendo retirados da trouxa, como
peças de roupas que ao serem visualizadas, darão margem aos co-
mentários para serem trabalhados, mesmo com um sabãozinho
pouco de possibilidades. Irão, naturalmente, provocando uma
conversa, em frente dos lençóis, das cortinas, das toalhas, das ca-
misas, das roupas das crianças, entre outras surpresas cabíveis em
uma encomenda de lavados.
Talvez escapem algumas peças importantes, porque exis-
tem limites que impõem o silêncio ou a fala, em se tratando de
assuntos de tanta significância. As inúmeras releituras de várias
cabeças é que poderão culminar em novas percepções que tam-
bém definirão a direção dos comentários, dentro da relatividade
das verdades. Pretende-se que muitos pensadores venham, du-
rante a lavação, dar uma consistência mais forte, a colaboração
amadurecida, com o especial cuidado, em relação à história dos
outros, protagonizadas com tanto heroísmo e emoção. Com cer-
teza, nas entrelinhas surgirão teorias, conceitos, opiniões e mui-
tas controvérsias. Espera-se tudo isto, porque a percepção tem
diferentes momentos.
Por enquanto, a trouxa vem a caminho. A caminho tam-
bém estão os meus botões. Iremos conversar, os botões e eu. Se-
remos parceiros de prosa e para desatar o nó da trouxa. Teremos
resistência, com certeza, aquela força de botões de osso, unida
à força das lavadeiras, das suas performances físicas e mentais,
capazes de se superar.

183
ROTA EXISTENCIAL

Iremos conversando, sem muito alarde, para que interfe-


rências negativas não nos atrapalhem. Desfazer o nó da trouxa,
missão inicial, de resistência.
As histórias das filhas das lavadeiras têm muito a ver com
as questões de resistência da população negra, têm íntima relação
com as histórias de um passado, em termos de almejar a liber-
dade. Atualmente, estão divulgando as heróicas estratégias dos
Quilombos, no Brasil, justamente para afirmar a organização e
resistência dos negros para se defenderem do submundo a eles
imposto. E muitas organizações, muitos conflitos seguiram-se
pela mesma causa, nem sempre contados. Mas nossa conversa é
franca, bem natural e nos dá o direito de recontar histórias.
Aconteceram inúmeras intervenções forjadas por negros
inteligentes, contra os poderosos que exploravam as suas forças
físicas e emocionais, levando-os ao esgotamento e à morte, pelos
maus tratos e torturas.Trata-se de uma história muito compli-
cada e que trouxe conseqüências desastrosas para a mobilização
social dos negros, até os dias atuais, no Brasil.
A impotência moral frente ao desespero gerado pela fal-
ta de ganhos, pela ausência de qualquer tipo de motivação eco-
nômica causou danos ferozes que levaram muitos negros ao al-
coolismo, à insanidade mental e até ao suicídio. Mas ao mesmo
tempo, fatos antagônicos aconteciam, uns de desânimo e outros,
de alento e esperanças, marcando os episódios da transição, da
diáspora negra, no território brasileiro.
A força das mulheres foi a grande salvação e expressão
maior da sobrevivência das famílias negras. Das mulheres é o
grande mérito.
Meus botões, lavar o lençol deve ser a tarefa seguinte. Olha
o tamanho do lençol, é enorme. Mas é a maior peça, a mais evi-
dente e é por aí que a conversa continuará, pelas evidências.
Evidente que as famílias negras estavam passando por
momentos de muita angústia, culminando com fortes aconteci-
mentos de desagregação familiar, pela negação de trabalho para a
sobrevivência, com a falsa liberdade. Restava-lhes nada.

184
HELENA DO SUL

E o assunto dirige-se para os fatos que ficaram bastante vi-


síveis, com certeza sob a ótica feminina e, porque não, masculina
também. Os que mais chamaram a atenção, no âmbito das vivên-
cias sociais e de humanidades foram as relações do mundo do
trabalho das mulheres e suas aspirações de sobrevivência , com a
garantia do acesso à escola, para filhos e filhas.
As mulheres negras começaram a trabalhar de cozinheiras,
quituteiras, lavadeiras, amas de leite, tornando-se o alicerce da
mobilidade social, econômica e educacional das famílias negras
deste país. Investiram todas as forças no trabalho, esquecidas
de seu próprio corpo. Investiram todas as esperanças no sonho
de sobreviver e de educar os filhos. Subtraíram-se. Tornaram-se
soma, divisão e multiplicação de trabalho, de valores de vida.
As filhas das lavadeiras deixaram nítido que as famílias ne-
gras envolveram-se em um processo estratégico e calado nos la-
res, onde as façanhas de altruísmo centraram-se em movimentar-
se e tirar proveito das lidas que lhes restaram como opção para
trabalhar, aqueles afazeres que rendiam poucos ganhos e davam
continuidade à exploração da força bruta, do desempenho braçal,
considerado de menor valia em relação aos papéis desempenha-
dos pela burguesia letrada.
Acreditando na educação das filhas e dos filhos, as mulhe-
res iniciam um processo dentro das casas, no exercício de respei-
to humano uns para com os outros, especialmente para com os
mais velhos, no cultivo de tradições religiosas, nos ensinamentos
de moral e conduta, ora através de provérbios, ora por meio de li-
ções sábias que foram repassadas pela oralidade, de geração para
geração e, ainda, pelo exemplo. O que mais desejavam era que os
filhos e filhas complementassem essas lições recebidas em casa,
com os ensinamentos livrescos, da escola: aprender a ler, apren-
der a escrever, fazer parte da sociedade, apropriando-se de valores
que lhes foram negados. Costumavam dizer que a escola faria de
seus filhos e filhas, alguém na vida, isto é, capazes de enfrentar as
situações de uma forma que elas não tiveram as possibilidades.
O ensino empírico, a iniciação introduzida nos lares, pela
maioria analfabeta de negras cozinheiras, quituteiras, lavadeiras,

185
ROTA EXISTENCIAL

engomadeiras, foi sendo acrescido do ensino formal e sistemático


para os filhos e filhas. A manutenção dos estudos da prole foi o
grande motivo, além da sobrevivência, para que se dedicassem ao
trabalho, com tanto afinco.
Geralmente, convivendo com companheiros de baixos sa-
lários de biscates, ou sozinhas, as mulheres foram à luta, em prol
dos seus objetivos. Optaram pela escola, como uma oportunida-
de dos filhos vencerem na vida, de obterem sucesso.
A maioria talvez ignorasse que teria de se defrontar com
forças impeditivas do sucesso imediato de seus filhos e filhas. O
fato de não terem as condições financeiras necessárias para o ma-
terial escolar e, ainda, o preconceito, a discriminação pela cor das
crianças, acabaram criando dificuldades, mais do que as espera-
das. Esses alunos e alunas negras carregavam dois fatores impedi-
tivos para o desenvolvimento: ser pobre e ser negro, mesmo nas
escolas públicas, muito burguesas e preconceituosas na trajetória
das décadas de trinta, quarenta, cincoenta, e vai por aí, até que
consigam que ela valorize o ser humano, antes de tudo, muito
mais do que a raiz quadrada, ou as datas dos triunviratos dos ba-
bacas. Meus botões, essas coisas são muito antigas, do tempo em
que o Braz foi tesoureiro. Será que continuam assim? Até pode
ser que continuem porque até agora ninguém conseguiu achar a
tal raiz quadrada, sempre surge uma cenoura, derrubando o con-
ceito.
Os pré-julgamentos negativos atribuídos aos negros e ne-
gras, estendiam-se também às mini-sociedades escolares, onde
as filhas das lavadeiras ficavam à mercê da boa ou má aceitação
pelos professores. Mas a crença nessa possibilidade de acertar
para um bom futuro, foi o que perdurou, tornando-se mais forte
do que as adversidades e os preconceitos.
Não é casual que em todos os depoimentos e histórias, te-
nha surgido o componente estudo, entrada na escola, em relação
às filhas das lavadeiras, como foco principal e direcionador do
esforço de suas mães. Desta crença não ficam excluídas as cozi-
nheiras, as quituteiras, as costureiras e outras mulheres negras
resistentes e trabalhadoras. Também alimentavam os mesmos so-

186
HELENA DO SUL

nhos de sobrevivência e de dar estudo para os filhos e filhas, ao


que se lhe atribui o reconhecimento pelas lutas que enfrentaram.
O lençol é imenso, sem dúvida, sustenta uma longa con-
versa. Confesso aos meus botões que quem nele se enrola deve
ser o dono da rua e ter a cama do tamanho de uma quadra.
Este lençol enorme me lembra o máximo, o super, o hi-
per, a materialidade dos panos, das terras, de prédios gigantescos,
templos de ouro, as mesas cobertas de tantas coisas que nem co-
mem, e os sem lençóis. Que frio nas mãos, só de pensar nas pes-
soas que têm apenas trapos. E aquelas meninas, tão preocupadas
com as pessoas, com o desconforto, com a justiça social. Foram
criadas nas casas de poucos cômodos, casaquinhos costurados
à mão, pão com pão, poucos panos, tudo abaixo do máximo e
bem próximo do mínimo necessário para manterem a vida. Mas
foram muito felizes com suas mães, mais felizes do que muitas
mulheres sem coragem de trabalhar, de pensar nos filhos, de fazer
força para que as crianças encontrem, pelo menos, o caminho de
uma escola.
As lavadeiras foram as donas de lençóis imensos de inteli-
gência, porque, mesmo enfrentando uma atividade braçal e des-
considerada, coisa de pouca valia, insistiriam em trabalhar para
melhoria das opções de futuro aos seus filhos e filhas. Meus bo-
tões, eu te segredei que o lençol era imenso, que ao mesmo tempo
lembrava do ser e do ter, coisas complicadas.
Também as lavadeiras pensaram muito no ser mas busca-
ram o desenvolvimento direcionado para o mundo letrado, para
as atividades de ensino nas escolas, as atividades intelectuais, cog-
nitivas, às quais eram atribuídos os poderes de pensar, de “puxar
pela cabeça”. Enfim, era o que costumavam dizer do conhecimen-
to que apelava para o intelecto, tomando por base os moldes de
vida da época. A Educação que as filhas recebiam na escola era
tida como investimento perene e nobre, que jamais poderia ser
furtado, porque estaria presente no elemento cabeça, cérebro, o
mais longe, quanto mais longe fosse possível, da força bruta. Ser
alguém na vida também implicava em ter, pelo menos, mais len-
çóis no enxoval.

187
ROTA EXISTENCIAL

Vamos conversar, um pouco mais baixinho, cá pra nós,


meus botões... Essas mulheres lavadeiras bem que poderiam re-
encarnar para fazer parte de uma legião de guerreiras, de guardi-
ãs das crianças com fome, sem escola, sem rumo. Elas ditariam
as normas do progresso e não somente criariam, como também
executariam as ações solidárias para a mobilização e desenvolvi-
mento das comunidades, da sociedade. Mas que descansem em
paz, porque este desejo, se concretizado, seria para elas um pre-
sente de inimigo.
Não gosto de pensar no pior, mas com certeza ao saberem
da presença dessas negras lavadeiras, novamente, aqui na Terra,
seriam todas elas perseguidas por carrascos, não mais por seus
maridos infiéis, mas por capitães do mato poderosos e secretos
que as decapitariam, cortando pela cabeça todos os seus planos
de Educação e de Ensino e de Escola, para um futuro melhor
para as crianças, todas negras. Acabariam com a revivência das
criativas lavadeiras.
Somente escapariam da morte imediata, as mascaradas,
porque estariam pintadas de branco, negando as suas origens e
armando algum golpe somente para tirar vantagens do quilombo
solidário das negras lavadeiras, intrometendo-se na reencarnação
delas. Mas depois morreriam, lentamente, ao deixar cair a más-
cara da face.
Meus botões, vamos passar um sabãozinho de leve nestes
comentários por respeito às lavadeiras e suas filhas, porque se
continuarmos resmungando, estaremos correndo o risco de ser-
mos chamados pela Polícia Federal para prestar esclarecimentos
sobre o caso da decapitação das lavadeiras reencarnadas. Elas não
merecem este vexame. Acreditavam tanto no futuro, confiavam
em Nosso Senhor com fé, esperança e amor.
Em vez de ficar ranzinzando, temos é que pensar num jeito
da escola tornar-se maravilhosa para todos, negros e não negros,
filhos de lavadeiras, de papeleiras, de margaridas, porque já an-
dam falando que muitas crianças vão lá no colégio só para comer
e que comem, às vezes, todos os farelos de biscoitos recheados.

188
HELENA DO SUL

E os professores ficam olhando a cena, nem providenciam um


teatro, uma animação, o forró do biscoito, Conformistas ou ata-
cados pela Síndrome dos Desanimados? Uns falam que andam
carentes, sem café da manhã, com todas as síndromes: de pânico,
de fome, de enfrentar o transporte coletivo, de faltas, até em crise
vocacional. As filhas das lavadeiras, a maioria acabou tornando-
se professora, mas na época em que eram dispostas, criativas, sa-
biam das necessidades sofridas no próprio couro. Trabalharam
até se aposentar e ainda deram continuidade nas atividades edu-
cacionais, nas comunidades em que moram, em ONGS, com um
entusiasmo, uma garra.
As filhas das lavadeiras sabiam e sabem do poder da Escola
e, cá para nós, meus botões, eram mais valorizadas, nem sempre
em questões financeiras, mas em relação ao respeito, apesar de
muitos casos de rejeição por serem negras. Mas o trabalho que
desempenhavam, acabava em terem de render-lhes homenagens.
Uma normalista tinha tratamento de doutora e, em certos
casos, até de salvadora da Pátria, né mesmo? Havia um percentual
muito grande de professoras negras, porque o Magistério remetia
ao ganho mais imediato e elas começavam a ajudar em casa. Hoje
nem todas pensam assim, querem logo é ingressar na Faculdade,
ainda sem condições de manterem as próprias calcinhas.
Ah! Pensar, como se pensa... Ora veja, não somente por
ser negra mas sobretudo pelo privilégio de conviver com familia-
res que também acreditaram muito nos caminhos da educação,
isto possibilitou-me que, além do necessário básico de aprender
a ler, escrever e fazer contas no curso primário, eu fosse viven-
ciando uma série de situações que despertaram valiosos questio-
namentos, principalmente sobre discriminação racial e de classe,
oportunizando um novo olhar sobre a tal escola que parecia estar
no lugar e que nunca estivera, em relação à população negra. O
fato tem relação com as histórias e depoimentos das filhas das
lavadeiras, pois a maioria tornou-se muito atenta para a questão
da presença dos negros na escola, nesta escola em que as mães
lavadeiras desejavam com tanta ansiedade e esperança colocar
a sua prole.

189
ROTA EXISTENCIAL

Os próprios equívocos da realidade vivida na escola, a re-


jeição e adversidades, é que vão oportunizando, não dentro da es-
cola, mas fora dela, o surgimento de outros assuntos, novas idéias
e atitudes que irão cooperar, mais tarde, para reivindicar algo
mais do colégio, em termos de melhor tratamento dos alunos ne-
gros. A escola provocou este despertar, a constatação de que nem
todos eram tratados da mesma forma, com os mesmos direitos e
oportunidades. As negras são inteligentes e não ficaram alheias
aos fatos.
Nos referenciais históricos aparece essa marca do dar-se
conta dos preconceitos, do pouco caso que faziam das meninas
negras, tendo alguém se referido que foi se firmando mais na es-
cola porque possuía um talento, o qual a escola explorava, porque
se assim não o fosse, nem saberia dizer como seria a sua trajetória
escolar.
Então, mesmo com seus equívocos, a escola vem servir
para o despertar da consciência de igualdade, para o exercício
da cidadania, futuramente. Não que estivesse se importando com
isso, mas provocou questionamentos, inicialmente acanhados,
isolados, mas que não deixaram de ser formas de dizer um bas-
ta a certas práticas, principalmente discriminatórias de etnia e
classe.Então a própria escola acaba provocando uma posição dos
negros, pelas oportunidades iguais, pela superação da discrimi-
nação, mesmo que ela não tenha iniciado a provocação de forma
intencional.
Em decorrência começam algumas discussões sobre a prá-
tica docente, algumas incursões de atividades para a valorização
dos trabalhadores, o que de certa forma vai cooperando para a
auto-estima das famílias e dos alunos negros, das filhas das lava-
deiras.
Os objetivos elitistas da escola, seu currículo distante da
realidade das casas das mulheres negras, o modo de tratar as pes-
soas mais humildes, foram enfrentamentos e causas de muitos
fracassos para as alunas negras, filhas das lavadeiras, ainda que
não desistissem de ir à escola. A exigência de materiais, como
livros caros, compassos de última geração, resmas de papel ofício,

190
HELENA DO SUL

dezenas de cartolina, papel fantasia, folhas de desenho, tudo isto


era uma barra pesada para as lavadeiras atenderem, no mesmo
nível em que solicitavam as mesmas coisas para a classe média.
Às custas do sofrimento que tiveram essas alunas das déca-
das de quarenta e cincoenta, é que de alguma forma, a escola vai
redirecionando o seu destino com mais humanidade e respeito,
por exigências humanas desta clientela, do banco dos fundos.
Mas foram essas mulheres que as lavadeiras colocaram na
escola, foram elas que tiveram o alcance necessário para come-
çar a questionar os seus direitos, ainda dentro das escolas e mui-
to mais quando deixaram os bancos escolares, para a felicidade
de suas mães que apostaram no desenvolvimento, por meio dos
estudos. Nada foi magia, foram as vivências, as leituras, o senso
crítico, as trocas de experiências que fazem a revolução. E até his-
tórias de movimento negro.
Aconteceram questionamentos sim, graças a essas pionei-
ras, verdadeiras cobaias das escolas que não estavam acostuma-
das a terem os negros e negras sentados em suas classes, tanto no
ensino Primário da época, como no Ginásio, Normal e Universi-
dade.
Mesmo que nenhum pintor tivesse, ainda, a sensibilidade
e inspiração para pintar um anjo negro e se todos eram conce-
bidos branquinhos pelos homens de Deus, teve quem quisesse
saber o porquê. Elas foram filósofas de muitas causas e chegaram
a derrubar premissas prontinhas, encomendadas para exercício
no tempo de servidão.
Mas a grande esperança de todas as épocas sempre foi a es-
cola, o sonho de nossos antepassados, de maioria analfabeta, sem
instrução livresca, somente com a experiência empírica e sábia.
Há que deixar sempre firmado o grande ideal das mães lavadeiras
para as suas filhas.
As lavadeiras lutaram para que seus filhos e filhas fossem
educados na escola, ainda que a educação começasse nas próprias
casas, onde a escala de valores era ditada pelas mulheres, olho
no olho das crianças chamando a atenção para o respeito, para a

191
ROTA EXISTENCIAL

disciplina, para o trabalho, a honestidade, a solidariedade. Foram


fatos apontados em todos os depoimentos, mesmo que vissem
a escola como um lugar sagrado para a escalada ao poder, prin-
cipalmente com possibilidades de abertura para o poder econô-
mico que gera respeito, lá fora das casas, dentro das casas, em
qualquer lugar, era o que consideravam, a partir da história dos
antepassados miseráveis.
Terminei de ensaboar o lençol mas enquanto ele fica qua-
rando nas pedras , vamos lavar a toalha de mesa lilás que parece
uma mortalha bordada e respingada de sangue. Não vai dar mui-
to trabalho, nem precisará de anil, somente um pouco de sal e
suco de limão. Que bom! ...
Como é bonitinho o anil, dá vontade de comer aquela pe-
drinha ignorada, parece uma cocadinha azul, embrulhadinha no
capricho. Mas, meus botões, nunca soube direitinho o que é o
anil, porque na caixinha revela apenas que são pigmentos e coad-
juvantes. Que coadjuvantes são estes? Eram inseparáveis das la-
vadeiras e ainda permanecem nos supermercados. Custam mais
caro do que lavar uma trouxa naquela época dos anos cincoenta.
Sabe o preço? Dois reais e trinta centavos, uma caixinha com qua-
tro trouxinhas. Não digo o nome do supermercado porque não
quero ser garota propaganda e, ainda mais assim, de graça, em
cima do sucesso das gurias, das filhas das lavadeiras.
As meninas não contam muitos fatos acontecidos dentro
das escolas, procurando dar mais destaque ao trabalho vivencia-
do com as mães. As poucas referências à escola ficaram por conta
de tratamentos carinhosos recebidos por parte de professores, os
quais julgam ter contribuído para a auto-estima delas. Com cer-
teza, ser visto e tratado como gente, faz muito bem à auto-estima,
seja de quem for. Referem-se mais ao ir e vir, às distâncias, ao
sapato furado, forrado com papelão, à saia desbotada, às dificul-
dades de comprar cadernos, de passar papel a ferro para escrever
nele, essas coisas de pobre.
As referências fortes que devem ser consideradas como de-
terminantes da história que fizeram, como sujeitos que viveram
as situações do processo de mobilização social, encontram-se na

192
HELENA DO SUL

vontade das lavadeiras de que as filhas não fossem analfabetas;


que não fossem lavadeiras. Este desejo foi o foco predominante
das histórias.
Além das atividades de lavar, passar, engomar, para ma-
nutenção da sobrevivência e dos estudos das filhas, as lavadeiras
criaram muitas estratégias para superar dificuldades provocadas
e aumentadas pela convivência com situações desagradáveis,
tais como: a solidão a dois, com a ausência dos maridos que não
acompanhavam as questões da casa, dos filhos e das filhas ; a pre-
sença de maridos com problemas de alcoolismo; de companhei-
ros viciados em jogo de azar, que subtraiam os ganhos da mulher;
enfrentamento da infidelidade conjugal que em nada favorecia a
auto-estima dessas mulheres; complicações e conseqüências de
ideologias políticas dos seus homens. A viuvez, com a morte mui-
to prematura do homem negro, também foi apontada como causa
geradora de desequilíbrios para a melhor garantia do sustento das
casas.
As situações de acolhimento de agregados nas casas e mo-
radias de parentes no mesmo pátio, uns próximos dos outros para
melhor se ajudarem, foram fatos evidenciados pela necessidade
que possuíam desta proximidade, para a ajuda financeira, cuida-
do das crianças, para conjugar esforços pela sobrevivência. Essas
situações demonstram o exercício da solidariedade, bastante de-
senvolvido entre os negros pobres daquela época.
A toalha não está fácil de lavar, como eu havia pensado. A
mancha espalhou-se e ela parece sangrar. Talvez pelo momento
em que estou lembrando das referências das perdas familiares,
dos agregados e parentes que as lavadeiras juntavam em suas ca-
sas para direcionar-lhes a vida. Geralmente sobrinhos, órfãos,
tios, tias, gente desprotegida para as quais abriam as portas. E as
lavadeiras, tiveram uma quantidade de filhos e morreram muitos
filhos, ainda jovens. Que dor. Esta toalha bem que havia lembra-
do uma mortalha.
Quanto aos poderosos patrões, destacam-se alguns depoi-
mentos em que as mães desejavam estar mais próximas deles, no
sentido de agilizar estratégias de ganho para os filhos, pois o sa-

193
ROTA EXISTENCIAL

lário pouco poderia ser complementado com certas necessida-


des, como roupas, calçados, sobras de comida; outras citaram
que havia uma grande distância entre as patroas e as crianças e
que mantinham a melhor postura de higiene e visual, se houvesse
algum tipo de encontro das crianças com a patroa, no momento
da entrega das roupas; teve, ainda , quem estabelecesse um outro
padrão de comportamento com os patrões, aproximando-se de-
les até o grau de compadres, de padrinhos e madrinhas de seus
filhos ou netos. Ainda, em alguma história surge a patroa se be-
neficiando de uma das filhas das lavadeiras, pela sua capacidade
intelectiva, o que de certa forma lhe garantiu a segurança e maior
tranqüilidade material para o prosseguimento dos estudos
Contam as filhas das lavadeiras que o grau estabelecido
de fidelidade entre lavadeira e patroa, quer em termos de salário,
montante de serviço e o que ficava determinado para ser feito, era
sem carteira assinada, tudo somente pela palavra, às vezes selada
com um atestado de idoneidade moral. Mas o rol de roupas que
listava as peças da trouxa para serem conferidas, configurava-se
como um momento da desconfiança de que as lavadeiras pudes-
sem ter furtado alguma cueca ou lençol. Então, como se elas fos-
sem tropeiras que levassem a tropa de gado para o pasto, teriam
que devolver, na mesma quantidade, toda a tropa, ao entrar na
porteira, de volta para o curral. Tanto assim, que há citação do
caso de uma lavadeira cujo lençol da patroa perdeu-se na cor-
renteza do rio e ela teve que devolver um outro para a patroa,
a qual sabia que a trabalhadora nem tinha as necessárias posses
para envolver-se em dívida daquele montante , de compra de um
lençol muito caro.
O sabãozinho está ficando pouco, sumindo...
Isto me leva ao material de trabalho das mães lavadeiras,
pois as suas filhas citam o sabão em barra, de soda, meia bar-
ra, o ferro a carvão, geralmente mais de um, a mesa de passar,
o anil, o polvilho, a maizena, a araruta, usados para engomar; a
pedra onde esfregavam as roupas; algumas lembram das tinas,
dos tanques, dos tonéis, dos tabuleiros, das bacias, dos baldes,
cestas; outras falam da interação com o meio ambiente, da lava-

194
HELENA DO SUL

ção nos córregos, nos rios, nas fontes, nas cachoeiras, utilizan-
do gravetos para o fogo onde ferviam as roupas, aproveitando o
pasto para botar as roupas a quarar borrifadas com sal e suco
de limão. Enfrentaram o calor, o sol muito forte, ou as geadas do
inverno que endureciam a água e as mãos. Fazem alusão às longas
caminhadas, por trabalharem longe de casa, às subidas de morros
e higiene do local das fontes, em solidariedade às companheiras
que viriam lavar no mesmo local, no dia seguinte. Faziam a Hora
do Gari, com a maior alegria.
E essas interações com o meio ambiente que as filhas das
lavadeiras faziam com suas mães, têm um sentido relevante.
Assim como as interações que os elementos da flora e da fauna
provocam na natureza, quando cada ser vivo busca harmonica-
mente a sobrevivência, contribuindo involuntariamente para o
estabelecimento do equilíbrio, as lavadeiras, talvez nem sequer
imaginavam, mas foram fundamentais para que as comunidades
em que viviam funcionassem, assim como as flores, as árvores, os
animais e os diversos recursos ambientais que formam as flores-
tas, compõem os biomas e são além de tudo, o mundo em que
vivemos.
Os depoimentos das filhas das lavadeiras também apontam
alguns aspectos históricos e detalhes geográficos de suas regiões
de origem, comprovando o grande carinho que as pessoas têm,
geralmente, pela sua terra natal. São riquezas de detalhes que
fazem de cada história uma verdadeira jóia , um memorial que
surpreende pela quantidade de informações de várias naturezas,
de usos e costumes de época, descrição de paisagens, de transpor-
te, entre outros hábitos, principalmente religiosos.
Mas o maior entusiasmo frente a esses memoriais, é a ale-
gria, a satisfação de sentir que aquelas lavadeiras foram capazes,
que foi possível para aquelas lavadeiras, impulsionarem a mobi-
lidade social do país.
As filhas das lavadeiras demonstraram que têm diferentes
componentes étnicos em suas origens e não somente o africano,
constituindo a demanda das afrobrasileiras, uma mistura de ne-
gro com índio, com português, com italiano, com alemão, com

195
ROTA EXISTENCIAL

paraguaio, frutos da orgia forçada a que foram submetidas as suas


avós e bisavós africanas com os senhores brancos com os quais se
deitavam. Este fato impede que elas organizem a sua árvore ge-
nealógica, porque os antepassados escondiam esses detalhes, uns
por vergonha e outros por medo, pois na maioria das vezes fica-
vam criando os seus filhos nas senzalas das fazendas dos brancos
que as deixavam prenhas. No momento de falar sobre as origens
de cada uma, foi complicado.Será que começou com o Silveira?
Será que foi com o Ferreira? Será? Fizeram questionamentos alia-
dos à procedência das fazendas onde moravam os ditos donos das
suas matriarcas. E pararam por aí. Admitem que são uma mistu-
rinha e que a mistura prossegue, de forma consentida, o que, de
certo modo já deverá facilitar a elaboração da árvore genealógica
de seus netos. Que bom, né meus botões de osso?
Está na hora de ensaboar uma cortina vermelha de veludo.
O romantismo que me inspira esta cortina dentro de uma tina
merece até uma poesia. O sonho, as aventuras do pensamento.
Livre é o ar que entra pelas janelas com qualquer cortina, de chi-
ta, de veludo, de canudinho de jornal e descobre os ambientes,
as pessoas, as camas, as mesas, o que tem dentro das casas, o que
se passa. O ar, entrando pelas janelas, perpassando as cortinas é
um grande maroto. Mas com meus botões quase não tenho estas
conversas líricas. É melhor desconversar porque de cortina de ve-
ludo vermelha, nem todo mundo entende, pensa logo que é da
Zona. Mas o que as filhas das lavadeiras me lembram em relação
à Zona? Lembram do respeito às prostitutas, dos maridos fujões,
da infidelidade conjugal. Mas será somente isto? Faltou sexo. Mas
as meninas falaram de sexo também, mais nas frustrações das
mães do que no namoro dos pares. Mesmo assim, com tantas
queixas e desencantos, as lavadeiras tiveram muitos filhos. Esta
análise bem se prestaria a um outro ato, um ato sexual.
A relação com os pais não aparece muito amistosa, mas
todas reconhecem alguns atributos especiais que possuíam e até
se identificaram com eles, na idade adulta, principalmente com
os que lutaram por justiça social, os que tinham medo da fome e
tratavam a mulher e os filhos como as apoteoses da comida e até
mesmo para os alcoólatras foram citadas as qualidades da fran-

196
HELENA DO SUL

queza e de um caso de coragem de abdicar do álcool., a pedido da


mulher grávida; muitos pais foram reconhecidos pelos compo-
nentes alegria, gosto pela música, pela dança, pelas festas. Muito
exaltados foram os trabalhos de alguns pais que, como pedreiros
e artistas da construção tiveram inteligência que as deixou orgu-
lhosas de suas obras. Apesar dos relacionamentos pouco amisto-
sos, a sensibilidade de algum pai foi lembrada, ao induzir, com
um presente de Arte e Cultura, a carreira da filha, futuramente, a
qual naquela época nem pensava que o valioso presente oferecido
pelo pai fosse ser tão útil para o seu Curso de Artes Plásticas.
Os pais calados não foram poupados, aparecem criticados
quanto à alienação do homem na resolução dos problemas do-
mésticos; resolviam o que tinham que resolver na rua e ficavam
calados, no lar. A mulher que se virasse, era dela o reduto, sozi-
nha, forte, um comando seguro que lhe acarretaria, mais tarde,
muitas doenças, principalmente ocasionadas pela tensão do dia
a dia, além daquelas adquiridas pelo desempenho da profissão.
Houve relatos de doenças localizadas em pés, mãos, joelhos, per-
nas, câncer, hipertensão.
Mas a maioria das filhas das lavadeiras deixa transparecer
que o pai era secundário, frente ao que a mãe fazia, que era dela o
comando da casa, que a mãe desempenhava o papel de propulso-
ra do desenvolvimento da família.
Em geral, os pais não representaram o elemento que trouxe
muito prazer às suas vidas, porque muitos foram causadores de
algum tipo de violência contra aquelas mulheres as quais eram
consideradas as santas, as provedoras de tudo.
Foram feitas alusões à infidelidade conjugal e à submis-
são da mulher aos caprichos dos companheiros negros que se
comportavam como carrascos de suas mulheres. Os comentários
quanto à questão ficaram por conta do pode ser. Pode ser de ori-
gem histórica, pode fazer parte de um processo ainda mal resol-
vido, ou pode ser uma questão de afirmação pessoal e pode ser
desrespeito mesmo, desrespeito humano. Houve alguma alusão
ao fato como sendo um ranço da senzala. O adultério já é um

197
ROTA EXISTENCIAL

fato muito complicado e em relação ao homem negro, teve certa


presença acentuada, nas histórias reveladas.
Pela apreciação dos depoimentos, o homem arrumava
sempre uma forma de negar a sua presença, havia sempre um ato
que camuflava a vontade de não estar por perto; ou ia para a ga-
fieira, ou derrubava a trouxa de roupa limpa no chão, porque na
trouxa tinha uma cortina vermelha que desconfiava ser de cabaré.
Como desconfiava? Então saia para a rua, deixando a mulher tra-
balhando, entre outros casos; ou agredia com palavras grotescas
os gostos mais refinados da mulher.Elas silenciavam. Choravam
para dentro, baixando a auto-estima e acarretando doenças de
cunho emocional.
Pelas colocações, todo o acompanhamento da escola era
feito pelas mães.
Interessante é o fato como se referem à escola particular,
mais elogiada pela tradição e pelos lindos uniformes do que pela
qualidade do ensino. Não desponta este aspecto de competência
entre a escola pública e a particular. A evidência é que uma era
dos ricos e a outra era dos pobres. A maioria das filhas das lava-
deiras estudou em escola pública, ainda que, em algum momento,
poucas tivessem relatado uma passagem pela escola particular.
Ainda tem a capa de violino para lavar, com este sabão
pouquinho...Vou lavar com o pensamento, em homenagem às la-
vadeiras e suas filhas que gostavam e gostam das Artes.
Um fato importante que derruba com muitos preconceitos
negativos e estereótipos em relação ao negro e às pessoas anal-
fabetas ou semi-alfabetizadas, tem relação com as artes nobres,
pois as suas mães gostavam de Literatura, música clássica, óperas,
operetas, teatro, cinema, ballet e canto lírico. Freqüentavam esses
espetáculos, sempre que podiam ou ganhavam ingressos. Faziam
teatrinhos em casa para as crianças, contavam histórias, eram ar-
tistas do lar. Passaram o gosto por esses encantos para as filhas,
inclusive influenciando em suas carreiras, uma das quais tornou-
se atriz, outra, professora de Artes Plásticas e Mestranda em Artes
Visuais, teve a que estudou Canto Lírico, e a que formou-se em

198
HELENA DO SUL

Literatura, de tanto escutar histórias e todas, com certeza, artistas


do cotidiano.
Essas peças pequenas, essas roupas de crianças, entranha-
das de areia. Em cada dobrinha tem uma sujeira e os bolsos re-
cheados de papel. Com meus botões, esta trouxa veio carregada
demais. Vai sobrar conversa e vai faltar sabão.Mas conforme con-
versamos, inicialmente, vamos lavando até onde der.
As situações de Cultura e de Lazer que as filhas das lava-
deiras compartilhavam foram bastante diversificadas, dependen-
do da região em que moravam e da influência materna, Os com-
ponentes mais comuns foram escutar música na adolescência, ir
no baile das sociedades de negros, umas desde crianças em baile
infantil ou junto com os adultos, à noite, no Prazer das Morenas,
brincar de pegar peixinhos no córrego, brincar de esconde-es-
conde, andar de patinete, pentear caroço de manga, jogar Cinco
Marias, subir nas árvores para apanhar frutinhas, fazer bolhas de
sabão, fazer panelinha com chapinhas de garrafas, usufruir das
diversões das praças: do balanço, da gangorra e do escorregador.
Não fizeram referência a brincar de bonecas. Inclusive existem al-
guns estudos acadêmicos que tratam deste assunto, da relação das
meninas negras com as bonecas, alguns deles são de Rachel de
Oliveira, de Vera Triunfo, Ivone Poleto e de Franquilina Marques
Cardoso, entre outros..
Também em relação ao Lazer foi citada uma praça, a Praça
Xavier de Brito, no Rio de janeiro. A praça, no depoimento, con-
figurava-se como espaço de reunir as lavadeiras para construção
da cidadania. No vai e vem das pessoas, no lá e cá das palavras, as
mulheres interagiam com sua cidadania, unindo o lazer à demo-
cracia. O espaço ficava liberado às idéias reveladas. Então, adul-
tos, crianças e idosos compartilhavam o tempo, o lugar, os olha-
res e os sentimentos. Naquela época, a praça era das lavadeiras,
das mães com seus filhos, dos namorados, dos apreciadores das
belezas das flores, do cantar dos passarinhos. A praça era nossa,
do povo trabalhador.
Veio até um axó de Xangô para a lavação. Justiça meu Pai,
Justiça. Com os meus botões, Caô! Caô! Firma o meu cavalo e

199
ROTA EXISTENCIAL

respeita a maioria das lavadeiras. Elas só cantavam hinos de Igre-


ja. Meus botões, canto é canto. Cada qual com seu cada canto.
A religiosidade apareceu forte nos cantos das lavadeiras
do Sul e Sudeste. São cantos, meio rezas, representativos do hi-
nário da Igreja Católica, dos quais aparecem algumas letras nos
depoimentos. O questionamento mais forte ficou por conta do
medo, na Semana Santa, quando incutiam nas crianças que com
a morte de Jesus, ficava o demônio comandando o mundo, o que
assustava muito as meninas que se acostumaram a ver os quadros
horrendos do demônio, fazendo maldades, espetando as pessoas
com enorme garfo, colocando gente na fogueira.
Houve queixas sobre o catecismo católico muito severo,
com um Deus que era respeitado somente pelo medo. Realmen-
te era coisa muito complicada para as crianças, ainda mais quan-
do diziam para as negras que todos os anjos eram branquinhos.
Elas esperariam o quê? Ir para o inferno.
Em todos os casos, no aspecto religioso, surgiu o momen-
to de questionar sobre os anjos. Por que somente anjos brancos?
Atualmente, já aparecem anjinhos negrinhos e com certeza as
perguntas foram sendo respondidas pela análise dos homens com
maior discernimento para o assunto.
Pelos relatos, a maioria deixou de freqüentar a Igreja Cató-
lica onde realizava todas as práticas e até algumas pertenciam às
Irmandades de Filhas de Maria , as mais novas e, as mais velhas,
às Irmandades do Sagrado Coração de Jesus e de Maria, ou de
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.
Algumas continuam indo à missa todos os domingos e
dias santos e outras não revelaram a religião. Mas cantam os hi-
nos da Igreja católica e até vão à Igreja, por ocasião de casamento,
batizado, em missas de aniversário, sétimo dia, no Natal e na Se-
mana Santa, quando a liturgia já modificou bastante e possuem o
necessário entendimento sobre essas coisas simbólicas.
O fato mais contundente de citação religiosa ficou por con-
ta da filha de lavadeira cuja família era Evangélica, o que obrigou-
a a optar entre seguir as atividades da Igreja ou envolver-se no

200
HELENA DO SUL

mundo, como cidadã política, inclusive militante do Movimento


Negro Unificado, coisas não permitidas pela Igreja Evangélica,
além dos seus dogmas. Mas admite, com muita alegria, que den-
tro dos preceitos desta religião, os seus familiares se mobilizam de
forma muito saudável, vivenciando com os filhos as mais bonitas
e dignas lições de amor ao próximo, solidariedade, fé e harmonia,
valores cristãos que adquiriu com sua mãe Evangélica. Cantava
no coral da Igreja e muito apreciava seus hinos, alguns dos quais
ainda lembra.
Existe referência à religião afro e Mãe de Santo, porém
não há, por parte das filhas, a evidência explícita desta prática
religiosa. Geralmente as pessoas optam por não comentar aspec-
tos religiosos de suas vidas, como bater cabeça para o santo, to-
mar passe, participar de sessão de Preto Velho. Só se estiverem
na Bahia, então não escondem porque é um caso cultural, como
dizem, não é mesmo?
Como as mulheres depoentes são negras, procuraram fa-
zer alguns registros sobre o Movimento Negro, ocasião em que
houve muitas controvérsias. Para umas, o Movimento Negro é o
que se pode fazer nas bases, nas famílias; para outras ele tem re-
lação com o poder que precisa urgente ficar mais direcionado nas
mãos dos negros. Também aparecem desencantos e decepções
por conta de mudanças que ocorreram no modo de atuação do
Movimento Negro, dos anos oitenta até agora. Existem referên-
cias ao individualismo, vaidades, egoísmo e falta de organização
por parte de falsas lideranças que assumem a causa e até certos
cargos políticos, por interesses pessoais e excluem os companhei-
ros. Mas exaltaram o trabalho das mulheres que iniciaram as lu-
tas no movimento negro e acreditam que essas mulheres abriram
caminhos para que as pessoas se assumam com suas responsabi-
lidades, fazendo sua parte, porque não é mais o movimento ne-
gro que irá resolver os problemas da população negra. As frentes
foram abertas.
Pelos depoimentos, as filhas de lavadeiras de Caxambu es-
tão caminhando com o Movimento Negro junto com a Pastoral
do Negro e o movimento das Congadas e estão cheias de ideais,

201
ROTA EXISTENCIAL

parecem ainda viver os momentos mais solidários e conscientes


do Movimento Negro, mesmo com todas as dificuldades das pes-
soas se assumirem negras naquele município. É um dado para ser
registrado e comentado, pois enquanto uns desanimam, outros
tocam para a frente as ações. São as fases dos caminhos, dos mo-
vimentos.
Mas meus botões, essas desconfianças, as dúvidas. Nem
precisa de tanto dilema. Tudo pode ser resolvido sob a proteção
de Santa Bakita. Ela vem ajudar. Tenho certeza de que negro, ain-
da pode ajudar a outro negro., ainda mais se ele estiver em mo-
vimento, fica mais fácil para dar um empurrãozinho. Mas Bah!
Barbaridade! (esqueci de contar que meus botões são gaúchos e
que de vez em quando me exigem certas expressões gaudérias),
tem que ter cuidado, gurias e guris, com o tal de empurrão. Va-
mos conversando, devagarinho, pedindo uma força para Santa
Bakita, uma Santa negra assumida. Ela ajuda nessas pendengas.
Recebida a graça, a Poderosa Santa cobra apenas um pequeno ato
perpétuo, em ação de graças: repete-se, na hora grande, enquanto
tivermos vida, em frente ao espelho, para valorizar a nossa auto-
imagem, a seguinte reza:
Santa Bakita, agradeço a ajuda
que recebi do meu negro irmão.
Peço perdão, se algum dia deixei
De acreditar em nossa histórica união.
Em frente ao espelho, dada a oportunidade, você já apro-
veita para exercícios de valorização da auto-imagem, pois sur-
gem as lembranças das histórias infantis, de miss negra, de musas
negras populares e a reza é completada com a maior animação,
quando a gente pergunta e a gente mesmo já responde, pelo es-
pelho mágico: espelho, espelho meu, existe alguém mais linda do
que eu? Não, não, não...Negra é linda.
Meus botões são galhofeiros natos. Eles me ajudam a viver,
sorrindo.
Para entender melhor o Movimento Negro citado nos de-
poimentos, há necessidade do conteúdo ser estudado por espe-

202
HELENA DO SUL

cialistas no assunto, por militantes que reflitam politicamente


sobre o que as filhas das lavadeiras estão querendo dizer, porque
o tema é bem complicado, exige a necessária competência para
uma análise apurada. Apesar de termos uma literatura muito
boa sobre o assunto, em nenhum momento encontra-se qualquer
coisa semelhante, com esta espontaneidade com que as mulheres
estão falando sobre o Movimento Negro, movimento de negro,
uma revelia pessoal. É uma conversa que merece atenção maior,
porque deu para sentir muitas controvérsias, ressentimentos e di-
ferentes opiniões.
Sempre insistindo, as mães lavadeiras acreditaram que po-
diam fazer das filhas, mulheres que não precisassem lavar roupas,
assim como elas, para ganhar o pão. E conseguiram.
O centro principal dos referenciais foi a escola, o estudo,
o trabalho, a correria para usufruir do pão e do ensino. A escola
foi o sonho. A honestidade e o trabalho longe dos tanques, com-
pletavam o recado das lavadeiras para as suas filhas. Todas con-
seguiram, dentro de suas possibilidades, atingir seus objetivos,
e este fato serve para a auto-estima da nossa sociedade. Muitas
das filhas das lavadeiras não são pessoas ricas de coisas materiais,
porém o que possuem é inalienável, são bens interiores.
Sem a pretensão de biografar as filhas das lavadeiras, de-
seja-se colocar em evidência que elas estão contribuindo para o
desenvolvimento do país, da forma como cada uma se posicio-
nou em sua profissão e, mesmo algumas, depois de aposentadas,
ainda continuam suas carreiras em pleno convívio social. Não são
a personificação das vagabundas, malcriadas, briguentas e escan-
dalosas, estereótipos mais comuns com que certas pessoas des-
qualificadas, ainda costumam chamar as filhas de lavadeiras.
Muitas coisas preocupam no mundo atual. Preocupa a vio-
lência contra as mulheres, a violência do mundo, contra tudo e
todos. Mas nada é mais preocupante do que saber que as crianças
estão nascendo nos guetos marginalizados ou em outros lugares
onde as mães não se animam, não têm um objetivo de fazer des-
sas crianças umas pessoas, gente, como as lavadeiras trabalharam
pelas suas filhas. Se elas não acreditam mais na escola, se a escola,

203
ROTA EXISTENCIAL

o estudo, não é mais a esperança da sociedade, o que será então?


Qual a motivação para que essas mulheres lutem novamente por
um objetivo de desenvolvimento, pelo menos por um, pela valo-
rização da vida?
As mulheres lavadeiras, decantadas por suas filhas, foram
as heroínas. Mas o que está acontecendo com as mulheres, agora,
que não conseguem tocar para frente, dar continuidade aos va-
lores de seus antepassados? Faltam cuidados para com a família,
as estratégias de desenvolvimento estão entregues a quem? Sem
culpas ou com culpas? Como vimos as mulheres negras, hoje?
Em vários lugares onde as lavadeiras e suas filhas viviam
tranqüilamente, estão acontecendo violência e dor. Os jornais es-
tão plenos de notícias terríveis, tanto de lugares do Rio de Janeiro,
como de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais,
de São Paulo, do Espírito Santo e tantos outros estados do Brasil.
Locais decantados pelas filhas das lavadeiras aparecem nas pági-
nas policiais. O que as filhas das lavadeiras ainda podem fazer?
Algumas falam em ingressar a fundo na política, para ter
o poder de tocar para frente projetos socioculturais, fazer revolu-
ção no ensino, na Educação. Outras elaboram planos de ação em
favor do desenvolvimento, pela paz, pela igualdade de oportuni-
dades, pelo aproveitamento de talentos para estimular o processo
educacional. Existem as que acreditam no poder da revitalização
cultural, na religiosidade, nos valores éticos e cristãos, todas as
esperanças ainda continuam com as filhas das lavadeiras, para
superação da discriminação, das desigualdades. Mas seus planos,
seus ideais, seus projetos andam empoeirados nas gavetas.
Existem políticas para o desenvolvimento socioeconômi-
co, e educacional direcionado para aqueles lugares de onde pro-
cederam as filhas das lavadeiras, mas infelizmente, essas políticas
não caminham, ficam só no papel. E como dizia minha avó lava-
deira, o papel aceita tudo, transforma-se até em máscara, chapéu
de bruxa, aviãozinho.
A humanidade precisa de um novo tempo, feliz. Você tam-
bém acha assim? Se estamos perdendo valores, perdendo coisas

204
HELENA DO SUL

vitais, básicas, tenho a certeza de que você acha assim, pois só


acha quem perde. Estamos perdendo muitas alegrias, muitas
perspectivas que poderiam ser melhores.
Em todos os depoimentos das filhas das lavadeiras, apesar
das adversidades, nenhuma delas colocou que não era feliz. As
pessoas viviam do modo como podiam viver.
Hoje, como lembrou Ruth de Souza: “se a vizinha compra
uma blusa nova, a outra já quer comprar também. Uma socieda-
de harmônica e desenvolvida não se faz com o consumismo e a
inveja.”
O exemplo das filhas das lavadeiras, de suas mães traba-
lhadoras tem que servir para movimentar de forma brilhante a
auto-estima das mulheres, especialmente das mulheres negras,
dos nossos adolescentes, dos jovens, da sociedade em geral.
Se as lavadeiras puderam educar seus filhos e filhas, lavan-
do na beira das tinas, nos rios, nos córregos, nas cachoeiras, su-
bindo e descendo estrada, com trouxas na cabeça, carregando os
filhos e filhas, com certeza, outras mulheres também podem se
mobilizar para que os filhos e filhas se orientem de forma positi-
va, para que não fiquem na marginalidade, excluídos, negados.
As pessoas, mulheres e homens não têm este direito de co-
locar filhos no mundo para ficarem na vida como peças expostas
aos temporais, nos arames da vida,sem que sejam recolhidas, cui-
dadas, acariciadas e deixadas limpas, bonitas, brilhantes, como as
lavadeiras cuidavam de suas peças. E eram coisas, coisas sujas.
Falar sobre as filhas das lavadeiras trouxe muita paixão,
mas ao mesmo tempo, uma tamanha indignação, no confronto
com fatos tão mesquinhos, como jogarem no rio uma criança no
colchão por ter feito xixi na casa da patroa; homens e mulheres
sem trabalho pela perseguição política; uma professora, a primei-
ra professora negra da cidade, não conseguir dar aulas porque era
preta, como diziam, junto com seu nome próprio Eva Preta. E
por aí vão... Absurdos! Mas foram vitoriosas essas pessoas, essas
famílias.

205
ROTA EXISTENCIAL

As filhas das lavadeiras trouxeram mensagens de otimis-


mo, de felicidade, de recordações de lugares, de coisas vividas
cada uma em seu tempo de criança, de jovem, de adulta, trou-
xeram referenciais de vida. A saudade que expressaram, mesmo
daqueles tempos mais adversos, é bem compreensível, pois a
maioria, ainda tinha a presença da mãe.
Parece que perdi os meus botões, meus pensamentos, mi-
nha herança. Que interferências poderão ter afastado os meus
pensares?
A herança deixada pelas mães lavadeiras resume-se em
valores que incluem o estudo, a alegria de viver, o trabalho, a co-
ragem, a honestidade, a organização, a disciplina, a solidarieda-
de, a amizade, a fé, o carinho, o amor, o bom trato para com os
semelhantes, a resolução dos problemas, sem brigas, a proteção
da figura do pai, mesmo que tenha problemas, a criação, de es-
tratégias para conseguir o desejado. Ainda influenciaram no gos-
to pelas Artes, pela vaidade, pela feminilidade, pela dignidade,
pelas atitudes de silêncio nas horas de precisão e pelo argumento
e poder da fala para orientar, questionar seus direitos, entender
e fazer-se entender em seus pontos de vista, para harmonizar e
criar situações de relacionamento civilizado com os filhos, com
os parentes, com os amigos, no lar, no trabalho.
Nota-se que as crianças tinham uma participação nos tra-
balhos das lavadeiras, entregando as roupas, ajudando a torcer
as peças, assoprando os ferros de brasa, dobrando e contando as
roupas, carregando água. Perguntadas sobre a forma como era
visto este tipo de trabalho, foram unânimes em dizer que foi
muito bom que trabalhassem porque o trabalho desperta o sen-
so de responsabilidade e que não sentem, naquilo que fizeram,
nenhum tipo de exploração do trabalho infantil, mas sim uma es-
tratégia de solidariedade e de envolvimento com as coisas da casa.
As mães estavam trabalhando, eram as protagonistas principais
do trabalho e as crianças ajudavam nas tarefas menos penosas.
Acharam muito natural e acreditam que deve haver uma parcela
de trabalho e responsabilidades das crianças em casa, pois além
de afastar das ruas, estão aprendendo a fazer alguma coisa que
talvez mais tarde seja útil para a sua sobrevivência.

206
HELENA DO SUL

Tem muita roupa para ser lavada, a trouxa está pela meta-
de. Terminou o sabão, um sabãozinho de nada... Perdi os meus
botões...Que vontade de gritar bem alto. Gritar, quando se pode é
cantar? Vamos cantar e é já.
Ogum, olha a sua bandeira,
ela é branca, verde e encarnada.
Ogum, no campo de batalha,
Ele venceu a guerra.
E não perdeu soldado.
– Mamãe! Que negócio é este de sabãozinho de nada? Que
coisa estranha de conversa inacabada? E essa cantoria?
– Homenagens, homenagens para as guerreiras.
– Mas a Senhora conversava com quem?
– Estava falando com os meus botões.
– Botões não falam.
– Mas me escutam. De repente entrou alguma interferên-
cia e eles se perderam.
– Mamãe, existem tantos botões para se ligar nesta casa... E
ainda quero saber da conversa inacabada.
– Era com elas, a conversa. Com elas e com os meus botões.
Mas por momentos roubaram a minha atenção, revirei a cabeça,
perdi os meus botões.
– A Senhora está brincando comigo. Onde estão elas que
não as vejo? E por acaso foram elas que falaram do seu máxi-len-
col, que transformaram uma cortina em poesia, que saudaram
Xangô, com Caô! Caô! E agora, ainda há pouco cantaram para
Ogum? São coisas suas, mamãe, bem suas. .A senhora era elas.
Elas eram a senhora.
– Não sei de nada. Até meus botões desapareceram.
– Compre outros, mamãe. Peça pelo tele-botão, por fax,
pela internet. Não chore os botões perdidos. Temos botões em
casa para apertar e plic, plic, tudo cai em suas mãos.

207
ROTA EXISTENCIAL

– Nem tudo, nem tudo.


– Compreendo, mas sem culpas. Também tenho os meus
botões, a senhora me ensinou a conversar com eles e jamais estão
à venda. Mas por que a conversa ficou inacabada?
– Foram elas que se retiraram.
– Mamãe, suas ligações com o astral ainda vão dar em con-
fusão. Não vejo mais ninguém, além de nós. Ou fui eu que dis-
persei os seus botões? Também estava falando com os meus. Falei
alto demais e você deve ter se ligado.
– Será? Era uma conversa feminina. Ela sabe quem eu sou.
Falava de roupa lavada, geada nas mãos, chá de matinho, sabão-
zinho pouco, cortina no chão, pão com pão, camisa de patrão,
casa e comida, família, parentes, agregados, livro, caneta, sapato,
furado, caderno, uniforme, alguém na vida, ler e ser, ter e haver,
ter e não ser, lavação, passação , exploração, ferro de brasa, água
da bica, da tina, do rio, das cachoeiras, do morro, da ponte dos
negros. e o resto todo de desassossego.
– Agora acredito que eram elas: você e eu. Não deixaremos a
conversa inacabada. Acontece que enquanto a senhora falava com
os seus botões, na frente da máquina de lavar roupa, eu estava com
os meus botões ligados na nossa história. Nossas ligações se cruza-
ram. Mamãe, eu venho falando há tempos, que isso dá confusão, a
senhora ficar interagindo com os botões dos outros. A senhora fica
quietinha, silenciosa, escutando tudo o que se diz. Você vai longe,
com essa invenção de conversar com os seus botões.
– Então, minha filha, você me conhece de verdade. Fico
calada, mas alguém sempre interfere.
– Eu lhe conheço muito bem. A Senhora é a minha mãe,
uma mulher negra trabalhadora com a maior dignidade, A LA-
VADEIRA. E estou organizando os meus botões para contar a sua
história.
– Você? Você vai escandalizar?
– Seus botões voltaram depressa e muito avançados. Será
que ainda me conhecem de verdade?

208
HELENA DO SUL

– Para começar, como eu queria, você é alguém na vida,


uma mulher negra com dignidade, trabalhadora, que freqüentou
o colégio, sabe ler, sabe escrever e que de tanto ler e escrever, desa-
prendeu de lavar roupa e comprou uma máquina de lavar. Você é
A FILHA DA LAVADEIRA. E vamos acabar com esta conversa.
– Ainda não acabamos de conversar. Quero arrumar um
jeito contundente que todo mundo saiba, não apenas eu, que você
é uma Vida.
– Escandalize. Leve-me na faixa de pedestre e deixe que
eu passe sem nenhum sinal, quando vier uma lotação voando.
Saia de perto e veja no que vai dar: mais uma vida que passa para
a eternidade, uma negra, aparentando setenta anos, pelas mãos
calosas e a curvatura da coluna deveria ser lavadeira das redonde-
zas, ainda com cheiro de sabão de soda e presença de pigmentos
azuis e coadjuvantes ignorados, parecendo pó de anil, na perife-
ria do corpo, sem carteira de identificação profissional, aguarda
reconhecimento no Instituto Médico legal para os devidos pro-
cessos de pesquisa e sepultamento. A morte divulga a vida, no
obituário. Tem quem leia, todos os dias, minha filha.
– A Senhora faria uma aventura dessas somente para aten-
der ao meu desejo? E ainda precisamos de tragédias, para ter
visibilidade? Isto não combina com a sua dignidade, nem com o
trabalho que passou para me criar. Nós somos visíveis, gente.
– Mas afinal o que é dignidade? Se é por causa da tal digni-
dade, meus botões estão dizendo que troque de estratégia. Quem
sabe escreva um livro, um livro que irá passando de mão em mão.
Quem sabe? Um livro com dignidade, contando a história das
lavadeiras pelos botões de suas filhas.
– Mamãe, a senhora me surpreende. De vez em quando
anda envolvida com os seus botões. Mas, sabe-se lá o que lhe di-
zem e onde a levam. Depois de tudo que passou na vida, tem
plenos direitos de envolver-se com o que quiser.

209
ROTA EXISTENCIAL

CORPO-INQUIETAÇÃO

Chegaria até aquele corpo, nem que fosse preciso apro-


priar-se da terceira mão, obra de arte de Estelark, para desen-
volver com ela o exercício de revitalização da kuatakuata, uma
espécie de agarra-agarra, de pega-pega, uma batalha muito antiga
do sul da África, da qual tomara conhecimento pelas conversas
com um corpo angolano, contador de histórias.
Azantewaa não queria um corpo perdedor de batalha, para
escravizar, como no tempo da Kuatakuata. Mas a idéia de agar-
ramento de corpos excitava seu corpo de mulher que passou a
investir em mais uma estratégia de conquista: o próprio corpo.
Expondo o corpo para o corpo-mistério, poderia ser que
a visse. Teria mais chances de visibilidade. Um corpo fala mais
do que qualquer palavra. Seria um texto vivo para que lhe des-
cobrisse a forma e poesia. Lembrou que Luara usou o corpo para
que a platéia autografasse nele, quando encerrou a performance
do seu discurso de bailarina. Azantewaa queria ser autografada,
também.
Luara estava nua no palco e aquela gente assinava o nome
na bunda dela, nos pés, nos seios, nos cotovelos. Ela tornou-se
um corpo escrito, assinado e depois fechado, quando a perfor-
mance terminou. Tornou-se um texto para ser lido, futuramente,
quando passado a limpo, retomasse as assinaturas de época.
Na madrugada, falando sozinha, como sempre, sem res-
postas, sem eco, Azantewaa começou um ritual: preparar a mente
para expor o corpo. Não seria, ainda, naquela noite. Antes, preci-
sava queimar algumas convenções, abolir referenciais que não lhe
permitiriam avançar em seus planos.
Conversou com Luara que já entendia dessas coisas de cor-
po. Teve que escutar lições de corporeidade com indicação bi-

210
HELENA DO SUL

bliográfica e citações notáveis, como se fosse um corpo candidato


a calouro, adestrando-se para teste de ingresso na universidade.
Azantewaa esculturou seu corpo-cabeça na oficina do corpo.
Mas faltava algum detalhe, aquele que a intuição feminina pede.
Ah! Era isso: lembrou de falar com Vovó Candinha, esta sim,
poderia completar os detalhes. E completou com receitas de banhos
para o corpo, aconselhando que se estivesse carecendo que outro
corpo a descobrisse, deveria tomar um banho com sete cravos da
índia e pétalas de rosas vermelhas, o que seria fatal.Mas se careces-
se de relaxar o corpo, então seria um banho diferente, de pétalas de
rosas brancas e um tantinho de alecrim verdim e cheirozim, chei-
rozim. E não deixou de recomendar um banho de sal grosso para
limpar o corpo de mau olhado e recuperar as energias.
Vovó Candinha era mineira, do quilombo de Itabira, terra
do poeta Drumond que falava de trem, de cotidiano, temas tam-
bém abordados com muita propriedade por Solano Trindade, um
poeta negro notável, de inesquecíveis poesias do povo : tem gente
com fome, tem gente com fome....
Vovó Candinha falava ligeirim, ligeirim, pois não podia per-
der tempo com muitas palavras ditas até o fim.. Comentava que
não se pode perder tempo com nada, nem com a vida. Será que
Vovó Candinha era adepta da filosofia de corpos suicidas? Que
nada! Vovó queria dizer que não se pode viver, perdendo tempo,
sem projetos de vida, sem coisa nenhuma em que acreditar para
o devir, assim como se encontram muitos corpos jovens e outros
adultos, em Itabira ou em qualquer canto deste lado do mundo.
Ela recomendou Azantewaa para escolher o banho, con-
forme a situação carenciada. Disse-lhe para não esquecer das re-
ceitas dos banhos e a finalidade de cada um, porque depois do
banho tomado, não haveria reversão, durante as vinte e quatro
horas do dia.
Azantewaa resolveu tomar um banho para relaxar, estava
decidida. Os complementos necessários para a conquista já havia
reafirmado com Luara e não tinha precisão de incrementar mais
nada, a não ser a vontade de ficar nua e calma.

211
ROTA EXISTENCIAL

CORPO-TEXTO

A chegada do por do sol começou a movimentar as expec-


tativas de Azantewaa para ver brilhar as suas luzes da madrugada
e realizar seus plano: mostrar-se nuinha para ser atingida e toca-
da pelos raios misteriosos de fulguração daquele ente.
Não corria riscos de enfrentar visitas, e se viessem, esta-
ria a salvo, de banho tomado certinho, somente para relaxar. E
a festa, acontecendo na rua, criava o clima perfeito para muitas
estratégias, principalmente, de descobertas.
Com seu corpo nu, ainda escondido atrás da cortina, con-
tinuava com a linguagem cênica do invisível, ensaiando a visibi-
lidade.Afastou a cortina de sua frente, mais e mais e mais. Apare-
ceu na janela, quando quis aparecer. Estava livre e disposta a fazer
um gerenciamento ostensivo de seu corpo nu.
Os fogos de artifício estouravam no céu e coreografavam
estrelas de prata. Aquele corpo, lá em baixo, voltou a cabeça para
o céu e as luzes que irradiavam, tornaram-se cada vez mais in-
tensas, chegando à direção de Azantewaa. Os fogos explodiam
com o máximo de decibéis e o corpo mistério, erguendo os raios
luminosos que lhe saiam de todos os ângulos, olhou para o alto.
E com o giro de cabeça para acompanhar o espoucar dos fogos,
no delírio da festa, descobriu a mulher nua na janela. Não ficou
indiferente. O cenário era muito especial para os seus sentidos.
Ele era um corpo macho.
O corpo de Azantewaa deixava o subjetivismo de seus de-
vaneios e não havia mais separação entre o cultural, o orgânico, a
mulher e o homem. Passava a ser um amontoado de informações
para o deciframento do imaginário dele. Suas luzes sem tempo e
território definidos, invadiram a seara do seu afecto, mobilizada

212
HELENA DO SUL

pelas convicções anteriores do seu percepto que sincronizaram


com a matéria viva do corpo oposto. .
Azantewaa sofreu o impacto da novidade tão presente. As
luzes cegavam seus olhos. Era luz demais. Refletores intensos de
uma radiação descomunal de cintilâncias: era ele – um corpo
negro, aparentemente macho. Sorriram.
Os dois corpos, monitorados por uma gênesis complexa
e diferenciada, fizeram apenas sorrir. Ele, frente à naturalidade
da nudez e ela, impactada pela naturalidade dele. Estava feita a
descoberta que atormentava as madrugadas de Azantewaa: um
corpo-ânima, fruto da leitura poética de seus devaneios. Era , ain-
da, uma aparência, nada mais. Como se fizesse um grande afeto
para a sua alma, aquela revelação a deixou tonta e irracional. Seus
pensamentos deixaram de existir e concentraram-se no sorriso
dele, que sorria e sorria.
Não sabia a verdadeira causa daquele sorriso e se pergun-
tava, em momentos de lucidez, se ela não seria um corpo-palhaço
que lhe despertava tanto riso, naquela exitosa interlocução cor-
pórea.
Ao descobrir-se para aquele corpo-desejo, entrou em tran-
se entre o terreno e o celeste, debateu-se entre sonhos e realida-
des. E já não eram devaneios. A concretude do corpo ao seu
lado, os toques, os cheiros, eram presença, outras forças em sua
vida. Caminharam sentimentos paralelos, cada um a seu modo,
sem convergências, a não ser dos beijos na boca, das coxas roçan-
do, do sexo. Tudo aconteceu ligeirim, ligeirim, como falava Vovó
Candinha, para não perder tempo na vida.
E em cada tempo, novas descobertas, nunca definitivas.
Os corpos descobriram situações provocadas por estra-
nhos movimentos que desconheciam um do outro. E foram se
conhecendo, cada vez mais, até o tempo em que se esvaziaram na
rotina e não se reinventaram.Tornaram-se corpos-textos lidos e
mal interpretados entre eles.
A ausência de luz, de brilhos, dos olhos nos olhos, a rejei-
ção pela comida, a indiferença pela nudez e as palavras de afeto

213
ROTA EXISTENCIAL

não ditas, tornaram-se gritos de guerra que deram início a um


processo de separação dos corpos, de distanciamento brutal que
arremessou um corpo para fora da janela, e deixou o outro gru-
dado ao seu parapeito, como tronco de salvação.

214
HELENA DO SUL

CORPO-IRONIA
( O ENSAIO )

(fala do apresentador)
A Força Negra TV, o canal onde queremos ver você, está
inaugurando uma série de cem documentários que irão tratar
de assuntos étnico-raciais, dando o devido destaque para a va-
lorização da população negra de nosso país, conhecida também
como afrobrasileira, afrodescendente e negrada urbana ou rural,
quilombola.
O primeiro documentário intitula-se Carussandê. È uma
produção do Coletivo de Mulheres. deste lado do mundo. Traz
assuntos relevantes assinados por doutoras da universidade da
vida de mulheres negras.
Acreditamos que os cinco minutos semanais de documen-
tário sejam bem recebidos pelos telespectadores. e que o progra-
ma não enfraqueça sob o controle remoto de mãos que teimam
em colocar os negros no ar, mas nos devidos lugares concebidos
e julgados sem pecado.
Ao término do documentário, se você desejar a continui-
dade de vídeos como este, entrando em seu terreiro, vá ao ore-
lhão, ou pegue o celular ou seu fone residencial e ligue já para
1695, número que lembra o ano da morte de um guerreiro negro
de Palmares e diga: valeu Zumbi!
Mas se você se sentir incomodado e desejar que o progra-
ma saia de seu barraco, ligue já para 1888, número que lembra o
ano em que a princesa aboliu o tronco e deixou os galhos para os
negros quebrarem. Diga consciente: eu mereço.
Ligue, ligue já. Você decidirá o destino do Carussandê.

215
ROTA EXISTENCIAL

O Carussandê traz uma releitura apimentada do caruru


com samba, dendê e equivocadas orientações que se transformam
em lições de vida e auto-estima, com a mestra zum zum zum, da
colônia africana, também deste lado do planeta.
A mestra é autodidata e vem se revelando cada dia mais
experiente em consultoria para assuntos da comunidade negra,
inclusive em samba de enredo. Ela nos concedeu uma acolhedora
e psicolúdica entrevista.
Você ficará surpreendido pelas intimidades da mestra com
o universo feminino afro-brasileiro.
Sua fala tem oculto sentido traumático que a arremessa
aos saberes mais profundos. E assimilem suas palavras porque a
mestra é otimista. Extrapola Bachelard, quando põe asas em seus
sonhos. Ela consegue colocar asas até na ponta da língua afiada.
(fala do ensaiador)
Tá todo mundo aí? Cada uma “préstenção” em seus refe-
renciais. Vamos começar o Ensaio.
(Aparece a mestra e encontra uma repórter da revista Ogu-
nhê.)
(repórter) – Mestra zumzumzum !!!!! Bom dia!!! Simpáti-
ca! Meu povo, o figurino da mestra é beleza americana, ou me-
lhor dizendo, afro-americana. Quanta dignidade neste terninho
executivo importado. O mundo global tá de olho na senhora. O
que a mestra tem a dizer para essa gente que lhe espia da varanda
e nem tem onde sentar?
(mestra) Sobretudo e especialmente sou um tanto tímida,
mas me solto na frente do meu povo. Bom dia povo meu! Agora
a gente se vê, na TV, além da arquibancada do Carnaval.
(repórter) Hoje o programa é dedicado às mulheres, mais
especialmente e, sobretudo, como diz a mestra. Nada mais inteli-
gente do que trazer o seu depoimento sobre o que anda escutan-
do nos cafés com pausa das reuniões de relações de gênero.
A mestra confirma que entre as mulheres negras está ro-
lando um discurso estatístico de desvio padrão de companheiro,

216
HELENA DO SUL

assistência desassistida, violência, salário baixo, correria? Qual a


inferência que a mestra tira destes boatos, qual o sentido analítico
desta práxis cotidiana?
(mestra) zum zum zum zum zum zum, capoeira mata
um... esquindundum, esquindundum....
(repórter) – Que resposta interessante. A mestra é divina,
consegue ter uma fala direta com alto teor cognitivo. Não está
aqui prá confundir. Ela explica tudo e quer dizer que as mulheres
negras se preocupam muito se alguém vai lhes passar a perna ,
se vão receber uma capoeirada no meio da estrada da vida e que
estão com muito medo de morrerem sozinhas na praia, tocando
berimbau, esquindundum, esquindundum. O alcance sociológi-
co e de gênero da mestra é do contexto e impactante.
(mestra) – Muito obrigada. Agradeço a tudo, a todos e a
todas prá não deixar ninguém de fora da minha alegoria de gê-
nero.
(repórter) - E a mestra considera que o assunto das mulhe-
res é uma questão que pode mexer nas políticas públicas?
(mestra) Zum zum, Zumbi, fofoca: correio nagô.
(repórter) – Espetacular a sapiência da mestra. Falou pou-
co mas rompeu com o silêncio. Seu poder de síntese nos remete
à mensagem que estas questões são antigas, desde o tempo de
Zumbi dos Palmares e Dandara. O problema é de gente, muita
gente no quilombo, homens, mulheres, uns por cima dos ou-
tros, difícil de se acomodar e ficar parado num canto só, então
ocorrem desvios, um para cada lado. Ela confirma que é um caso
prá mexer com as políticas públicas, mas que só vem mexendo
com um público que gosta de fofoca. A resposta da mestra tem
fundamentação no correio nagô: de boca em boca, a palavra vira
texto.
Sua conversa está deliciosa e tem um repertório étnico-
ambiental de dar inveja a qualquer gênero da natureza. Mas sa-
bemos que tá na hora de chegar a sua orientanda. A mestra vai
atender sem ter chegado ao fim da entrevista ou irá descartar a
orientanda? Estamos diante de um problema de agenda.

217
ROTA EXISTENCIAL

(mestra) – Da minha agenda de atendimento de reparação,


jamais descarto alguém, principalmente a Dita. Ela anda confu-
sa, cheia de hipóteses... Terminaremos a entrevista no próximo
ensaio.
Chega a orientanda, cantando.
(orientanda ) - Meu nome é Gal
(mestra) - Seu nome é Gal? Tem certeza? Você é a Dita.
(orientanda) Eu disse Gal? Estou com essa música na cabe-
ça, coisas da mídia. O poder midiático é forte e. nos empurra coi-
sas que parecem verdades. Um dia desses foi com uma amiga. Ela
contou que a mídia agiu tão forte na cabeça dela, que esqueceu de
todas as rezas e cantou o dia inteirinho, até na hora da curimba:
”prá aprender a ler, prá isso não tem hora, pode ser de dia, pode
ser de noite, pode ser agora, pode ser jovem, pode ser adulto ou
aposentado, prá aprender a ler, só não pode ficar parado”.
Mestra, fico feliz que reconheça o meu nome, porque meu
perfil evadiu-se. Quando nos encontramos na caminhada das
lanceiras, eu era negra. A diferença é que agora eu sou branca.
(mestra) – Branca? Com estes cabelos, etnicamente incor-
retos para uma cabeça de corpo branco?
(orientanda) – A mestra tão moderna, ainda não superou
estes conceitos capilares?
(mestra) – Só porque não entrou pelas cotas, na universi-
dade, você vem com esta conversa que é branca?
(orientanda) Mestra, é uma questão de auto-ação afirmati-
va. Tenho minhas razões. “Préstenção”: eu ganho mais de dez sa-
lários mínimos mensais, freqüentei escola, entrei na universidade
pública sem cotas, sai da universidade com diploma do meu aces-
so e permanência, não moro na rua, não tive filhos aos 14 anos,
nunca fui aviãozinho, nem prostituta, só dei quando quis dar, não
tirei pena nem de galinha, trabalho com carteira assinada, vou ao
cinema, ao teatro, danço no lugar aquele nota dez, como e bebo,
sem depender do Fome Zero, tenho plano de saúde, ganhei me-
dalha de honra ao mérito, fui notícia de jornal no caderno de cul-

218
HELENA DO SUL

tura e na coluna social, marco presença em casa de mestra, sem


ser diarista, vê se me entende, eu sou é branca. Está complicado
na minha cabeça esta opção de pele. E tem mais, se eu disser que
sou negra vou bagunçar com a pesquisa de uns e outros..
(mestra) – Já, já eu descomplico sua complicação de pele.
Vou jogar as bolas e irão desfazer o equívoco. Se a bola preta bater
em você, em qualquer parte do corpo, confirmará sua negritude.
Olha a bola, olha à bola preta. Mesmo se esquivando para
outro lado, ela caiu em cima de você. Depois caiu fora, mas caiu
em cima de você. Comprovadamente, você é uma negra. Estas
bolas abençoadas não falham jamais.
(orientanda) Mestra, deu certo, deu certo!!!!!!Eu ando me
inventando branca para ver se atraio um corpo negro. Funcionou
com as bolas...
(mestra) – Bobagens.Tudo é uma questão de conquista e
de contexto. Seja aquilo que você é.
(orientanda) – Sua sabedoria ainda vai dar o que falar.
(mestra) Afinal qual é o objeto de sua pesquisa?
(orientanda) Não é objeto, trata-se de gente: Os afrodes-
cendentes e o enfrentamento do coletivo imaginário no cotidiano
da práxis do carussandê. Como fazer para sair desta trilogia do
caruru, samba e dendê?
(ensaiador) - Chega, chega de ensaio. Já decoraram as fa-
las? Então vamos trabalhar, senão a gente fica por aqui no Ca-
russandê: caruru, samba e dendê, e o resto, ninguém mostra e
ninguém vê.

219
ROTA EXISTENCIAL

Rota Existencial
Parte 4

A poesia, paradoxalmente delírio e consciência, questiona,


ama e resiste, pontuando o final da Rota Existencial, em soleni-
dade álmica.

Do livro Meu Nome Pessoa - Três Momentos De


Poe­sia - 1989

Morro, clave de sol


Quero mais que falas
Prece do negro ao professor de qualquer cor
Neguinha na rede
Palavras
Verdade
Plim!Plim!
Infantil

Do Folheto Roda de Poesia Negra – 1993

A lágrima

220
HELENA DO SUL

INÉDITAS

Retalhos de esperança
Parada cardiáca
Sobrevivência
Alvorada dos negros
Criança cidadã
Rota existencial
Herança dos deserdados
Oficina do Rap
Histórias
Outro êxtase
Insana
Mórbida
Sonho bom
Descoberta afinal

221
ROTA EXISTENCIAL

MORRO, CLAVE DE SOL

Na pauta da estrada,
seio gigante,
jorrando seiva
para o imigrante,
pobre forasteiro
que chegou primeiro.
Na mala, a esperança,
carregando os outros
no colo, nos braços,
descobrindo o morro.

Miragem! Miragem!
Pousar no morro...
Socorro! Socorro!
Morar no morro.
Morrer no morro.
Morro sem dinheiro.
morro da cidade.
Morro de saudade.

Uma curva imensa,


estranho caracol,
espiando louco,
mais perto do céu
brilhar as estrelas,
deitar a lua,
nascer o sol.
E a casa é nua.

222
HELENA DO SUL

Vida se inquieta
no dorso da rua,
na trajetória tua
gente reluz
Morro da Cruz!

Da tua cara alegre


entendem tantos...
tantos quantos,
vivendo a podridão da sociedade,
sorriem e cantam
no disfarce da felicidade.

Da tua cara triste


entendem tantos...
tantos quantos,
como eu já te morei,
tantos quantos,
como eu te amarei.

Do teu painel miséria


entende só Jesus.
Teu cartão de visita
é uma enorme cruz.

Cruz! Morro da Cruz...


Morro da Cruz?
Morro de Cruz!
Morro da Cruz
da minha poesia
de outros poemas
Que sei que compõe.

223
ROTA EXISTENCIAL

Morro da Cruz
de outras realidade,
das nossas verdades de cidadão,
cães consumidos,
homens esquecidos,
nas dores da vida
entre a treva e a luz,
no limite da cruz.

224
HELENA DO SUL

QUERO MAIS QUE FALAS

Um monte de pretos fechados na sala,


Pior que a Senzala, no ano 2000.
Um monte de pretos fechados na sala,
Revivendo a Senzala, nas falas, na fala
Que só eles diziam,
Que só eles ouviam.

Um monte de pretos fechados na sala


Em nome das Artes, fazendo arte,
Sem nenhum aparte.
Senhores absolutos,
Donos radicais
de latifúndios de ideais.

Pretos fechados na sala.


Senzala e falas .
Falas e falas.
Ninguém fala?
E ninguém fala?
Quero mais que falas!

225
ROTA EXISTENCIAL

PRECE DO NEGRO AO PROFESSOR DE


QUALQUER COR

Tenho os sentidos perfeitos, sou vida em ebulição.


Sou humano, tenho defeitos, como qualquer cidadão.
Sinto angústias, tenho medos, sou afeto e emoção.
Deito tarde, acordo cedo, quero ter direito ao pão.
Sou pessoa, estou na luta, no campo e na cidade.
Importante na disputa é não perder a identidade.
Sou mutilado de outrora, sem heranças materiais.
Que posso fazer agora? Seguir igual aos demais?
Seguir? Como é que se anda de forma tão desigual?
Ao perguntar me respondo, pois a coragem me manda
Que na trilha vá me pondo.
É um caminho sufocante, rodeado de rejeição.
Devo estar sempre atuante, apostando na união.
E na nossa Educação.
Só os negros de mãos dadas conseguem atravessar
Os caminhos desta vida com pedras a machucar.
As mãos dadas são efeitos da não alienação,
De gritar pelos direitos, não vivendo a humilhação.
A travessia é jornada, é o nosso cotidiano
De gente discriminada, de momentos sub-humanos.
Os caminhos desta vida são os fatos, são os anos,
As horas mal vividas que a História cobriu com panos.
As pedras que nos machucam saltam de todos os lados
De visíveis e de ocultas direções
Dos bumerangues arcaicos da cegueira nacional
Dos bumerangues “ ingênuos” da Educação
E então?
Por favor, EDUCADOR!
Conscientiza-te!

226
HELENA DO SUL

Conscientiza teus alunos


Que as pedras machucam.
Que são pedras ferinas da discriminação.
E não ignora a pedrada,
Porque ela existe,
Porque ainda persiste.
E precisa...
E necessita
Ser trabalhada.

227
ROTA EXISTENCIAL

NEGUINHA NA REDE

Neguinha do cabelo arrepiado


Deitada na rede,
Dormindo na rede,
No apartamento do bairro pobre
De edifício nobre,
De gente esnobe,
Que nem tem rede pra dormir.
Que nem tem nada,
Quase nada,
Mas tem palavras
Pra te agredir.
Neguinha do cabelo arrepiado
Enrolada no lençol floreado,
Pezinho de fora a se balançar.
O meu poema tem sabor de ti,
Cria que pari,
Minha preta ,
Louca adolescente
Sorri e chora,
Anda e sossega,
Sonha e navega
Na rede do norte,
Num apê do sul.

228
HELENA DO SUL

PALAVRAS

Palavras,
Duplo sentido:
Problema...
Percepção...

Palavras,
Sexto sentido:
Firmeza...
Intuição...

Palavras,
Meias palavras
Ironia...
Falsidade...
Palavras
Soltas,perdidas
Esconderijo,
Inverdade.

Palavras,
Sentido perfeito:
Diálogo,
Compreensão,
Ecos sublimes,
Aproximação.

229
ROTA EXISTENCIAL

VERDADE

Verdade,
Um sólido,
Muitas faces
Com a cara do dono.

Verdade,
Dependência,
Ângulo,
Aresta,
Ponto de vista.

Verdade,
Foco cintilante,
Risca pisca.

Relativa luminosidade
Manipulada pela sociedade.

230
HELENA DO SUL

PLIM! PLIM!

Plim! Plim!
Quem se veste bem,
O mundo trata melhor
Us Top.Stop!Stop!
Ele não quer o pior,
Fresh! Fresh!
Que vergonha!
Não tem Batavo na sua geladeira?
Plim!Plim! Aldeia Brasileira.
Falta café na sua prateleira?
Plim!Plim! Fome nacional...
Tudo pelo social.
Ah! Meu brasileiro,
Que loucura!
Censura!Censura!
Us Stop! Stop!

231
ROTA EXISTENCIAL

INFANTIL

Uma criança,
Mundo fantasia,
Contagio de graça,
Pedido de amor.

Uma criança,
Pluminha leve,
Cantiga de roda,
Roda de viver.

Uma criança,
Rosa,
Sempre-viva,
Sempre!
Sempre!
Viva!
Viva a criança!
Esperança da gente,
Prá cirandar
A roda diferente.

232
HELENA DO SUL

A LÁGRIMA

A lágrima
Mexeu com o olho,
O olho do negro.
Olho não chorou.
A lágrima
Tremeu o olho.
Olho segurou
A lágrima.
Ficou acanhada,
Entrou pra dentro,
Derramou por dentro,
Veias e veias,
Coração,
Ser inteiro do cidadão.
A lágrima
Parou na garganta.
Foi cuspida com a palavra
Num poema de dor,
Dejeto da agonia,
Irreverência,
Expurgo da criação.

233
ROTA EXISTENCIAL

RETALHOS DE ESPERANÇA

Os fios de linha
Bordavam o tapete multicor,
Deixando no assoalho
A recordação
Das pelúcias,
Das sarjas
E das sedas
Dos casacos das meninas,
Dos coletes dos maiorais,
Do uniforme da enfermeira,
Das saias das colegiais,
Dos vestidos das senhoras
Que procuravam a costureira,
Dona de casa, operária
De um tempo que ficou lá atrás,
Com os retalhos de esperança
Que por anos e anos
Encheram os pratos das crianças.
E em cada dia
Garantiram
O pão nosso.
Amém!

234
HELENA DO SUL

PARADA CARDIÁCA

De terno frisado,
Gravata e colarinho,
Quepe amarelinho,
Ia rodando...
Levando fardos e gente.
Ia levando...
Das festas ao cemitério,
Do mercado ao cabaré,
Da escola ao futebol,
Do hospital ao carnaval.
Ia rodando...

Ia levando...
Carregando...
Seu doutor,
Dona e madame,
Senhorita, prostituta,
Mascarado, marginal,
Político, colegial.
Ia levando
Professora, vagabundo,
Toda espécie deste mundo.
Ia rodando...

Ia levando
De auto, rodando
De ônibus,
De caminhão.

235
ROTA EXISTENCIAL

Ia levando
Nas ruas,
Na beira mar,
Na chuva,
Cruzando pontes,
Na serra,
subindo montes.

Ia levando...
Na estrada,
Enfrentando a balsa,
Caindo no rio,
Mas voltando à tona
Para respirar
E espiar a vida,
Com todos os pesos de seu destino
De fardos, de gente que carregou.
Parou...
Uma parada cardíaca.

236
HELENA DO SUL

SOBREVIVÊNCIA
 
Folhas de papel,
Páginas
Molhadas.
Palavras,
Palavras
Impressas,
Dispersas,
Ávidas pela bolinação
Que o negro fazia
Em cada escrito novo,
Com um lápis roxo de revisão
Que escorria a cor,
Tingindo a identidade
Do negro revisor
Das folhas de papel,
Molhadas,
Com as palavras
Impressas,
Na página branca
Do jornal branco
Da cidade.

237
ROTA EXISTENCIAL

ALVORADA DOS NEGROS

Quando fugia
Do barulho das crianças,
Das falas das senhoras,
Dos latidos,
Dos miaus,
Dos gemidos,
Dos pedidos:
Quero leite, quero pão,
A qualquer hora.

Quando fugia...
Aportava outro porto
Na cômoda velha de jacarandá,
Confessionário das ideologias,
Com entalhes de poemas,
Para  receber as crônicas
O despejo das palavras
pela igualdade
Que nas horas caladas
Ensaiavam gritos
Para o jornal Alvorada.

238
HELENA DO SUL

CRIANÇA-CIDADÃ

Carrinho de mão
Com laranjas prá vender.
Capina e areia
Para o jazigo enfeitar.
Hora de trabalhar...

Carrinho de lomba
Com as rodas a girar.
Esconde-esconde
Com neguinho pra encontrar.
Hora de brincar...

Escola da vila
Com o leite prá tomar.
Livro aberto,
Uma nova lição:
La.. le, li, lo, lu.
Hora de estudar...
sa, se, si, so, sonho,
Sonho prá sonhar.

239
ROTA EXISTENCIAL

ROTA EXISTENCIAL 

Quero saber de fruto maduro, de árvores,


de pássaros, de luzes, cravos e rosas.
Quero saber de atalho prá chegar ao mar.
Quero saber de barco na partida, com vento a favor,
navegando a felicidade, capoeirando as ondas,
indo e voltando ao mesmo lugar,
em tempo certo, sem cansar, sem deixar vago
qualquer momento de conspirar tristeza
que me faça deixar de acreditar, de querer
mais além das descobertas de coisas incertas.
Preciso e quero saber do atalho do mar da solidão
Prá navegar EU, comigo...
Em tempo certo, sem cansar, sem deixar vago
qualquer momento de conspirar tristeza
que me faça deixar de acreditar, de querer outra vez
mais além das descobertas de coisas incertas
da rota existencial.
 

240
HELENA DO SUL

HERANÇA DOS DESERDADOS

O barco partiu
Do porto sombrio.
E foram muitos
Que partiram
Com nome de navio,
Com deserdados negros
Dos pensamentos, donos.
Só dos pensamentos,
No mar de negritude.

Cada um a seu tempo


Chegou de viagem.
E como canta o poeta:
Prá trabalhar olê
E morrer,
E renascer
Em milhões de atitudes,
Até no verso negreiro
De minha negritude.

241
ROTA EXISTENCIAL

OFICINA DO RAP

Na oficina do Rap
As cidades do Brasil
De quem não faz “répiaurs”
De quem não tem “répideis”
Só rapidez, rapidez
Na boca do funil
Na correria
Das cidades do Brasil
Que na rota do mapa
Só mudam a posição
Da mesma história nacional
Dos negros, da pobreza a negação
Da mais antiga a de menor idade
Tudo igual, tudo igual
Tem cidade do regae,
Cidade do acarajé
Cidade dos doces da princesa
Como é? Como são?
Cidade do quarteirão
De Jorge Amado de Gabriela
Cidade das favelas
Com sombras e aquarelas
Cidades de lona,
Com os redutos de invasão
Cidades de morro
Cidades de bala sem direção
Cidade do museu da Balaiada
Tem um preto na exposição
só um Cosme sem Damião
E os outros, onde estão?
Cidade do mercado modelo

242
HELENA DO SUL

Da maioria negra na contramão


Das ruas e vielas do pelourinho
Onde tudo vira
Vira tudo apelação
Vira, virou em memória,
Cena de atração
Muitas histórias para a exploração
Cidade do beija-flor,
Cidade do quero-quero
Cidade dos lero-leros
De todas as cidades
Que são sempre iguais
Na oficina do Rap
As Cidades do Brasil
De quem não faz “répiaurs”
De quem não tem “répideis”
Só rapidez, só rapidez
Na boca do funil
Na correria
Cidades do Brasil
Só mudam de nome
Na rota do mapa
Com a natureza que é uma beleza
E a negrada, na maior pobreza
Tanto faz se na pedreira, depois dos Confins,
Ou na terra de Drumond já sentado, calado
Aposentado de sua crônica imortal
Que faria, hoje, com certeza.
Não me leve a mal, um Rap marginal
Na oficina do Rap
As Cidades do Brasil
não existem sem favela
não existem sem novela
não existem sem vielas
não existem sem os negros
sempre na faixa amarela
em estado de tensão

243
ROTA EXISTENCIAL

Cidade, maldade
Cidade, ansiedade
Cidade,  verdade
Na diversidade,
Diversas cidades
Violentadas, massacradas
Estou de olho
Só eu, não
Estamos de olho
Está valendo, vou dizendo
Minha indignação
Eu te vi e ainda te vejo
Na oficina do Rap
De quem não faz “répiaurs”
De quem não tem “répideis”
Só rapidez, rapidez
Na boca do funil
Na correria
Cidades do Brasil
Que amo demais
além das belezas naturais
Até à vista
Estou na pista
Volto em breve
Na oficina do Rap
Dá-lhe Rap, “répiaurs”,
Dá-lhe Rap, “répideis”
Antes que os casarões de São Luís
Tombem as paredes podres
E matem os negros e os pobres do centro histórico
E todos tenham morte natural-acidental,
Naturalmente
Será que a gente mente?..

244
HELENA DO SUL

HISTÓRIAS
 
Era uma vez...
Eram duas...
Eram três.
 
E eram
Como histórias
Que se erram,
Que se contam,
E recontam,
Contadas mal,
Até perderem o final.
 
Era uma vez...
Eram duas ...
Eram três.
Na linha do tempo,
Sem atenção,
Na intersecção
Da mão única
Do silêncio.
 
Era uma vez...
Eram duas...
Eram três,
Premeditadas vezes
Dissimuladas,
Prá esconder os rastros,
Os passos, os cansaços.
E revelar o adeus.
 

245
ROTA EXISTENCIAL

OUTRO ÊXTASE
 
Desejo descansar a cabeça nos seus ombros
E ficar quieta 
Prá que possa perceber minha quietude. 
Desejo descansar a cabeça nos seus ombros
E ficar cismando,
Prá que possa perceber meu pensamento,
Bailando como folha recém voada, 
Antes de cair ao chão.
Desejo descansar a cabeça nos seus ombros
E ficar silêncio...
Desejo tanto essa magia silenciosa nos seus ombros,
Que calo todas as palavras
Sem ser mulher nem homem
Prá entender-me   
Capaz  de silenciar
Prá viver a paz.

246
HELENA DO SUL

INSANA
 
Insanos dias
de insanas lutas
levam a guria
rebelde e fria
a se agitar
dentro de mim...
Subversiva marionete
que não obedece a voz do dono
que dono nem mais tem,
nem se expõe às histórias
que os outros lhe inventam,
pouco importa...
Não quer mais falar,
arremedar, 
imitar passiva
o que já sabe de cor,
perdida nas vias malditas
onde qualquer um pode dizer
coisas comuns,
coisas iguais
que ela não quer mais saber.
 
Nos insanos dias
de insanas lutas
que transformam 
em frieza, indiferença
ausência de crença
a mulher,
silenciosa, quieta
que segura o coração nas mãos,
equilibrando o sim

247
ROTA EXISTENCIAL

prá suportar o não,


aceitando a loucura
sem enlouquecer,
enfrentando as raivas
sem enraivecer,
encobrindo as dores
prá não padecer,
limpando as feridas
para renascer,
pacificando a vida
prá poder viver.
 
Nos insanos dias
de insanas lutas,
tanto faz a guria...
tanto faz a mulher...
Vida boa?
Vida má?
A passagem é curta,
o caminho é longo,
os atalhos secretos
e as curvas tantas,
onde tanto faz
a rebeldia
da guria
no escrete,
ou o silêncio 
da mulher
anti-marionete,
a pressa ou a calma?
Coisas da alma.
 

248
HELENA DO SUL

MÓRBIDA

Quem dera prá ela


E para outras, também,
Que quartinho abafado
Virasse um casarão de bem amados.
Que águas correntes
Lavassem seu sexo
E ela pudesse receber
Só a quentura do chão,
Sem servir ao patrão,
Nas noites de verão
Em que todos os grilos
Aumentam o cantar.
E ela vaga- lume, moribunda,
Sem brilhos no olhar, mórbida,
Nem dona, nem dama da noite
Aguarda uma penetração.

249
ROTA EXISTENCIAL

SONHO BOM

Sonho bom
É o que se faz ,
Que se repassa de cor,
De olhos abertos,
De olhos fechados,
Sonho bom...

Sonho bom
É aquele que vem
Com todas as flores
que se imagina germinar.
Com todos os abraços
que se gosta de abraçar.

Vem com as palavras


Que se gosta de dizer.
É o que faz viver
Enquanto sonho.
É o que faz sonhar
Enquanto vida.

250
HELENA DO SUL

DESCOBERTA AFINAL

A pior mentira
Não é o alheio quem diz.
É aquela que você 
Conta e sustenta verdade
Para poder ser feliz.
 

251
ROTA EXISTENCIAL

Vinte anos de Literatura e Resistência: Tempo de Agradecer


a Oxalá, aos meus Ancestrais, aos Familiares, aos Amigos e
Amigas, aos Leitores e Leitoras;

Aos corajosos apresentadores dos meus livros:

Ângelo Costa (em memória)


Antonio Carlos Cortes
Carlos Alberto Jardim Cogoy
Diony Maria Soares
Djalma do Alegrete (em memória)
Eloy Dias dos Angelos
Iara Neves
Jorge Alberto Mendes Ribeiro (em memória)
Milton Marques do Nascimento
Nelson Inocêncio
Oscar Henrique Cardoso
Terezinha Juraci Machado da Silva
Wanderley Fernandes dos Santos

Aos capistas:
Adão Centeno (foto de família)
Desenhista anônimo dos Serviços Gráficos Ferreira, em 1987 -
RS
Djalma do Alegrete (em memória)
Getulio Santos Vargas
Janete Borges Dutra
Nailê Cordeiro de Oliveira
Nanci Miranda Andrade

Às Bibliotecárias:
Iara Neves

252
HELENA DO SUL

Tatiana Barroso

Ao coletivo:
Academia Pelotense de Letras RS
Assembléia Legislativa de Santa Catarina-SC
Associação Clara Nunes-RS
Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros-SC
Associação Satélite Prontidão-RS
Biblioteca Erico Verissimo-RS
Biblioteca Ligia Meurer-RS
Biblioteca Pública de Pelotas-RS
Biblioteca Pública de Guaíba-RS
Casa Thomaz Jefferson-DF
Centro de Estudos Brasil-Haiti-DF
Centro de Professores do Estado do RS- 39° Núcleo
Congresso Nacional Afro-Brasileiro – CNAB – SP
Comenda Cultural de Brasília
Conselho de Defesa dos Direitos do Negro do DF
Clube Cultural Fica Ahi Prá Ir Dizendo-RS
Departamento Cultural do Partenon Tênis Clube-RS
Embaixada da Nigéria-DF
Embaixada do Haiti-DF
Espaço Cultural Afro Nzinga-DF
Evangraf - RS
Fundação Cultural Palmares - MinC
Griô, Acervo da Memória e do Viver Afro-brasileiro - RS
Grupo Cultural Rainha Ginga-RS
Grupo Multiétnico de Empreendedores Sociais - DF e RS
Museu Antropológico do RS
Quilombo Urbano da Guaragna-RS
Sindicato dos Professores do DF
Tribo das Artes-DF

253
ROTA EXISTENCIAL

Aos Músicos:
João Pereira-RS
Máximo Mansur-DF
Moisés Machado-RS

Aos organizadores do evento:


Boanerges Fagundes (em memória)
Cristina Maria Leite Magalhães
Glaudson Almeida
João Pereira
Juarez Fagundes
Maria da Graça Santos
Maria José de Souza
Nelo Fagundes
Valdeonira dos Anjos

254
HELENA DO SUL

255
ROTA EXISTENCIAL

256

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