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Knauth, D. R. et al.

A perspectiva de que haveria um ideal de um trabalho tão completo e instigante quanto


masculinidade ou de feminilidade é correlata este que tive o prazer de comentar. Parabéns aos
com a de gênero como uma estrutura de poder, autores!
que atua indistintamente, mesmo que de mo-
dos diversos, sobre homens e mulheres. E, se é Referências bibliográficas
impossível alguém participar da cultura fora
dos limites do gênero, parece também que este Butler 2002. Como os corpos se tornam matérias. Entre-
aponta para uma idealização de homens e mu- vista a Prins, Baukie e Meijer. Revista de Estudos Fe-
ministas 10(1).
lheres que, sendo difícil de ser cumprida na prá- Connell R 1995. Masculinities. University of California,
tica, pode se transformar em sintoma ou agravo Berkeley.
à saúde. Parker R 1991. Corpos, prazeres, paixões. Best Seller, São
O artigo de Schraiber, Gomes e Couto, bem Paulo.
como parte significativa dos textos que lhe ser-
vem de referência partem da teorização elabo-
rada pelo feminismo sobre gênero para refletir
sobre a questão homens e saúde. Há que se re-
conhecer que a migração (ou expansão) da ca-
tegoria gênero do espaço da luta política femi-
nista para a academia e, nesta, para a reflexão/ Os autores respondem
ação no campo da saúde não se fez de modo The authors reply
simples ou linear, sendo até hoje objeto de dis-
puta e debate pelos diferentes atores envolvidos. Saúde do homem:
Uns apontam para a crescente despolitização da uma abordagem em construção
categoria ao ser apropriada pela academia. Ou- Health’s man:
tros ponderam que, tendo sido gênero cunhado an approach in construction
para dar conta da opressão das mulheres, sua
aplicabilidade na reflexão sobre homens e mas- O nosso debate e as opiniões dos nossos deba-
culinidades deveria ser feita com cautela sob pe- tedores apontam para uma abordagem em
na de reduzir a potencialidade explicativa da ca- construção acerca da saúde do homem. Ao tra-
tegoria ou, o que seria pior, falsear – por simpli- tarmos de tal temática, objetivávamos trazer
ficação – as complexas relações e jogos de po- um panorama de questões. Tal intenção, de iní-
der que os humanos estabelecem entre si, quan- cio, nos impunha um limite: lidar com questões
do da vida em sociedade. Nesta polaridade co- tão complexas que cada uma em si poderia ser
locam-se aqueles que postulam que a discussão objeto de uma discussão. No entanto, também
de gênero e saúde atinge os homens quando do tínhamos a certeza de que, com a participação
reconhecimento que, sem a sua participação e de estudiosos no assunto, esse limite poderia ser
envolvimento, não seriam atingidas as metas atenuado. Os textos de Daniela Riva Knaut/
demográficas estabelecidas para os países mais Paula Sandrine Machado, Estela Maria Leão de
pobres nas Conferências Internacionais de Po- Aquino, Maria Cecília de Souza Minayo, Pedro
pulação. Outros dizem que aventar o gênero pa- Nascimento, Sérgio Carrara e Wilza Vilella, in-
ra pensar as questões de violência é um modo do na direção do que havíamos pensado, não só
de eludir um conjunto de outros fatores – polí- ampliaram a nossa discussão como também
ticos, econômicos e sociais – envolvidos na pro- trouxeram novas perspectivas sobre o assunto.
dução da violência, como o tráfico de armas, de A rica contribuição desses debatedores também
drogas, a indústria da guerra e outros. nos possibilitou refletir sobre posicionamentos,
É evidente que o modo como os homens conceitos e, sobretudo, incorporar idéias para
constroem e vivenciam as suas masculinidades melhor situar a discussão.
está relacionado aos seus modos particulares de Uma importante questão é trazida por Este-
adoecer e morrer. No entanto, como tentamos la Aquino e que se manifesta como preocupa-
apontar, este modo de construir e vivenciar a ção de muitos pesquisadores que estudam a
masculinidade é múltiplo e variável, bem como saúde da mulher no referencial de gênero: a vi-
suas mediações com o processo saúde doença. são essencialista de homens e mulheres em que
O necessário aprofundamento da aborda- podemos incorrer desde a tomada do objeto de
gem das conexões entre gênero e saúde ganha estudo. Ao tomarmos a saúde da mulher e a saú-
um importante estímulo com a publicação de de do homem em separado, tal abordagem pode,
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Ciência & Saúde Coletiva, 10(1):18-34, 2005


de fato, conduzir a reflexão a privilegiar apenas tos violentos e a morbi-mortalidade, mas tam-
as especificidades de cada pólo, sem nunca che- bém pela busca de medidas preventivas interse-
gar aos aspectos relacionais. Na mesma direção toriais voltadas para a reinvenção das represen-
apontam Daniela Knauth e Paula Machado tações do masculino.
quando sugerem que a inclusão dos homens Os comentários diagonais de Sérgio Carrara
exige um repensar das abordagens das mulhe- nos sugerem vários focos para situarmos a saú-
res, a fim de se evitar o mesmo essencialismo. de do homem adequadamente. Um deles é o
Todavia, lembramos que o contrário pode ocor- cuidado que devemos ter em não reduzir a dis-
rer, isto é, manifestar-se uma intenção de estu- cussão. Por mais que sejam considerados um
do relacional, mas operarem-se evidências em- dominante, todos os homens não têm o mesmo
píricas e interpretações que novamente sepa- poder ou os mesmos privilégios. Eles também
ram estes pólos. É nesta exata direção que a su- se submetem às hierarquias masculinas. Só os
gestão de Estela, quanto à integralidade como grandes homens (...) têm privilégios que se exer-
conceito norteador dos estudos, indica não ape- cem em detrimento das mulheres (como todos os
nas uma profícua saída epistemológica, pois, homens) mas também em detrimento dos ho-
sem apagar as especificidades de homens e mu- mens (Welzer-Lang, 2004). Tanto essas idéias
lheres, articula-as, como também revitaliza, pa- quanto as de Sérgio nos indicam que, mesmo a
ra o campo da Saúde Coletiva, a problemática título de focalizarmos a singularidade do mas-
da integração das ações na formulação de pro- culino na relação intergêneros, não podemos
gramas e políticas de saúde em geral. reduzir a abordagem do homem como se fosse
Maria Cecília Minayo, ao abordar os laços uma categoria homogênea e monolítica.
perigosos entre machismo e violência, aponta- Welzer-Lang (2001, 2004) observa que al-
nos nexos importantes para a promoção da saú- guns modelos do masculino foram historica-
de do homem. Tanto em termos nacional quan- mente sendo construídos, como o androcen-
to internacional, há uma vasta produção de es- trismo, o viriarcado e o heterossexismo. Dialo-
tudos que reforça as relações que são estabeleci- gando tal pensamento com as idéias de Bour-
das entre a violência e o masculino. Citando al- dieu (1999), poderíamos destacar que o poder é
guns desses estudos, poderíamos mencionar os uma das marcas identitárias que atravessa esses
de autoria de Bourdieu (1999), Cecchetto (2004), modelos. E, como nos lembra Bourdieu (1999),
Machado (2004) e Welzer-Lang (2001, 2004). no cenário da dominação masculina, os homens
Nesse conjunto de trabalhos, destacamos o também são vítimas. Para serem congruentes
de Welzer-Lang (2001) que defende a idéia de com essa representação dominante, eles vivem
que, para ser homem ou para ser mulher, a edu- tensões e contenções permanentes, sendo insta-
cação ocorre a partir de mimetismos. Ora, o mi- dos a atestarem sua virilidade, deixando de des-
metismo dos homens é um mimetismo de violên- frutar as “ternuras” e os “enternecimentos des-
cias. De violência inicialmente contra si mesmo. virilizantes do amor”. Nesse processo de testa-
A guerra que os homens empreendem em seus gem ao qual o homem é submetido, ainda se-
próprios corpos é inicialmente uma guerra contra gundo o autor citado, destaca-se o fato de que o
eles mesmos. Depois, numa segunda etapa, é uma que é tido como “coragem” pode ser enraizado
guerra contra os outros (Welzer-Lang, 2001). Os numa covardia, ou seja, pode se basear no me-
laços perigosos que Maria Cecília nos traz entre do “viril” de ser excluído do mundo dos “ho-
machismo e violência podem ser vistos como mens” sem fraqueza.
um acirramento desses mimetismos. Evidente- Acreditamos que tanto os modelos hegemô-
mente que para se chegar ou não a tal acirra- nicos do ser masculino quanto o poder como
mento inúmeras mediações ocorrem, como pro- eixo estruturante desse ser fazem parte de um
duto das experiências intersexuais; das influên- amplo espectro de idéias sobre o qual podem
cias interclasses sociais, das visões etno-raciais e ser ancoradas as construções das marcas identi-
dos processos de subjetivação pelos homens vi- tárias do ser masculino. Mas também somos
venciados. partidários do princípio de que a saúde coletiva
Não duvidamos que, para caminharmos em atua com homens concretos que podem se apro-
direção a uma nova abordagem para a saúde do ximar ou se distanciar dos modelos presentes
homem, necessitamos, dentre outros imperati- na cultura. Saber trabalhar com a pluralidade
vos, lidar com a violência. Esse enfrentamento, de modelos, a reinvenção deles e com as singu-
por sua vez, deve ocorrer não só através das aná- laridades, sem dúvida é o desafio para se abor-
lises que focalizam as correlações entre os even- dar a saúde do homem.
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Knauth, D. R. et al.

Outro desafio apontado pelos debatedores, para o fato de que se o campo da Saúde Coleti-
em especial Pedro Nascimento e Wilza Villela, va deseja participar de uma abordagem em
diz respeito à crucial questão do cuidado em construção sobre a saúde do homem, deve, an-
saúde e, mais que isso, quem será o(a) cuida- tes de tudo, focalizar o masculino no plural, con-
dor(a). Wilza incita-nos a pensar se seremos ca- templando os múltiplos desdobramentos, a di-
pazes de uma crítica radical ao cuidado e se re- versidade de contextos, a singularidade dos ato-
petiremos, na trajetória das responsabilizações res e a polissemia das abordagens, além de rela-
masculinas no sentido de eqüidade relacional cioná-los com a diversidade de femininos tam-
com as femininas, os mesmos desvios medicali- bém presente na vida social, promovendo uma
zantes impostos às mulheres, agora, impondo- forma integrada de abordar a saúde.
os aos homens. Sua relevante questão deve a
nosso ver conformar a pergunta: como criar Referências bibliográficas
uma outra imagem de cuidador(a)? Ou caire-
mos na armadilha cultural, apontada por Pe- Arendt H 2000. Sobre a violência. Editora Relume-Duma-
dro, reproduzindo o lugar dos homens como rá, Rio de Janeiro.
Bourdieu P 1999. A dominação masculina. Editora Ber-
vítimas ou culpados pelo (não) cuidado? Como trand Brasil, Rio de Janeiro.
articular direitos e eqüidades, de um lado, res- Cecchetto FR 2004. Violência e estilos de masculinidade.
ponsabilizações e culpas, de outro, quando se Ed. FGV, Rio de Janeiro.
estuda os poderosos? A distinção entre as esfe- Machado LZ 2004. Masculinidade e violências: gênero e
ras jurídica e civil, relativamente à ética e mo- mal-estar na sociedade contemporânea, pp. 35-78. In
MR Schpun (org.). Masculinidades. Boitempo Edito-
ral, proposta por Hanna Arendt em seu exame rial-Edunisc, São Paulo-Santa Cruz.
sobre a responsabilidade e a culpa coletiva, po- Welzer-Lang D 2001. A construção do masculino: domi-
de, aqui, nos socorrer: toda a questão não se es- nação das mulheres e homofobia. Estudos Feministas,
gota apenas na dimensão jurídica dos direitos e 9: 460-482.
deve ser remetida para sua face ético-moral. Welzer-Lang D 2004. Os homens e o masculino numa
perspectiva de relações sociais de sexo, pp. 107-128.
Por último, retomando as nossas idéias e as In MR Schpun (org.). Masculinidades. Boitempo Edi-
dos nossos debatedores, chamamos a atenção torial-Edunisc, São Paulo-Santa Cruz.

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