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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PIAUÍ

CORPO DE ASSESSORIA JURÍDICA ESTUDANTIL


CORAJE
ENCORAJAMENTO – DIREITOS HUMANOS

Três Teses equivocadas


sobre os Direitos Humanos
Retirado do site: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/oscarvilhena/3teses.html
Oscar Vilhena Vieira

Direitos humanos, direito de bandido?


Direitos humanos dificultam o trabalho das polícias
Direitos humanos ameaçam nossa soberania
Conclusão

Direitos humanos, direito de bandido?

É muito comum encontrar pessoas que associam os direitos humanos com a defesa do crime ou
ao menos dos criminosos. Esta associação não é fundada num simples equívoco, pois como os
criminosos também são humanos, eles têm direitos. Se houve algo de revolucionário trazido pela
Declaração Universal de 1948, foi a idéia de universalidade dos direitos. Por universalidade
entenda-se a proposição de que todas as pessoas. independentemente de sua condição racial.
econômica, social, ou mesmo criminal, são sujeitos aos direitos humanos. Neste sentido bandidos
também têm direitos humanos.

A afirmação. no entanto, é falaciosa, quando busca forjar a idéia de que o movimento de direitos
humanos apenas se preocupa com o direito dos presos e suspeitos, desprezando os direitos dos
demais membros da comunidade.

Esta falácia começou a ser difundida no Brasil, no inicio dos anos oitenta, por intermédio de
programas de rádio e tablóides policiais. Como os novos responsáveis pelo combate à crimina-
lidade no início da transição para a democracia haviam sido fortes críticos da violência e do arbítrio
perpetrado pelo Estado. houve uma forte campanha articulada pelos que haviam patrocinado a
tortura e os desaparecimentos. para deslegitimar os novos governantes que buscavam reformar as
instituições e pôr fim á práticas violentas e arbitrárias por parte dos órgãos de segurança. Era
fundamental para os conservadores demonstrar que as novas lideranças democráticas não tinham
nenhuma condição de conter a criminalidade e que somente eles eram capazes de impor ordem á
sociedade. Mais cio que isso, os conservadores jamais toleraram a idéia de que os direitos
deveriam ser estendidos ás classes populares de que, qualquer pessoa, independentemente de
sua etnia, gênero, condição social ou mesmo condição de suspeito ou condenado, deveria ser
respeitada como sujeitos de direitos.

Outro objetivo desse discurso contrário aos direitos humanos, não apenas no Brasil, foi, e ainda é,
buscar criar um conflito dentro das camadas menos privilegiadas da população, eximindo as elites
de qualquer responsabilidade em relação à criminalidade. Ao vilanizar os que comentem um crime,
como se tosse um ato estritamente voluntário, dissociado de fatores sociais, como desigualdade.
fragilidade das agências de aplicação da lei, desemprego ou falta de estrutura urbana, jogam a
população vítima da violência apenas contra o criminoso, ficando as dites isentas de
responsabilidades, pela exclusão social ou pela omissão do Estado, que impulsiona a
criminalidade. Nesse contexto, associar a luta pelos direitos humanos à defesa de bandidos foi
uma forma de buscar manter os padrões de violência perpetrados pelo Estado contra os negros e
os pobres, criminosos ou não..
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ENCORAJAMENTO – DIREITOS HUMANOS

E evidente que, ao se contrapor a toda a forma de exclusão e (opressão, o movimento de direitos


humanos não poderia deixar de incluir na sua agenda a defesa da dignidade daqueles que se
encontram envolvidos com o sistema de justiça criminal. Isto não significa. porém, que o
movimento de direitos humanos tenha se colocado, a qualquer momento, a favor do crime; aliás a
luta contra a impunidade tem sido uma das principais bandeiras dos militantes de direitos
humanos. No entanto, esta luta deve estar pautada em critérios éticos e jurídicos, estabelecidos
pelos instrumentos de direitos humanos e pela Constituição, pois toda vez que o Estado abandona
os parâmetros da legalidade, ele passa a se confundir com o próprio criminoso, sob o pretexto de
combatê-lo. E não há pior forma de crime do que aquele organizado pelo Estado.

Por fim, é fundamental que se diga que o movimento pelos direitos humanos tem uma agenda
bastante mais ampla do que a questão dos direitos dos presos e dos suspeitos. Não seria Incorreto
dizer que hoje a maior parte das organizações que advogam pelos direitos humanos estão
preocupadas primordialmente com outras questões, como o racismo, a exclusão social, o trabalho
infantil, a educação, o acesso à terra ou à moradia, o direito à saúde, a questão da desigualdade
de gênero etc. O que há de comum corre todas essas demandas é a defesa dos grupos mais
vulneráveis. Embora os direitos humanos sejam direitos de todos, é natural que as organizações
não governamentais se dediquem à proteção daqueles que se encontram em posição de maior
fragilidade dentro de uma sociedade.

Direitos humanos dificultam o trabalho das polícias

Durante muito tempo acreditou-se que havia uma incompatibilidade entre direitos humanos e
segurança pública. E evidente que as diversas garantias atribuídas aos suspeitos e aos réus em
um processo judicial tornam mais onerosos o trabalho daqueles que tem por missão
responsabilizar os criminosos. A investigação tem que ser mais criteriosa, as provas têm que ser
colhidas cuidadosamente, as prisões só devem ser feitas com ordem judicial ou em flagrante delito,
ao réu deve ser garantida a ampla defesa, o policiamento tem que se pautar em regras
determinadas, tendo como limite as diversas liberdades dos cidadãos. Tudo isto sob o escrutínio
judicial. Estas restrições, no entanto, paradoxalmente podem favorecer um sistema de segurança
pública eficiente.

O trabalho da polícia está fundamentalmente estruturado em duas atividades: prevenção e


repressão. Para que ambas as atividades possam ser minimamente eficazes, as polícias
dependem de uma mesma coisa: informação.

Por mais que os meios tecnológicos venham auxiliando o trabalho das polícias, o que
verdadeiramente favorece a antecipação da atividade criminosa é a boa informação. Informação
confiável e rapidamente transmitida àqueles que têm poder para tomar decisões é o instrumento
mais eficaz à prevenção policial da criminalidade.

Da mesma forma, sem informação fidedigna, a policia dificilmente inicia qualquer investigação Sem
que alguém tenha visto uma pessoa rondando uma casa e esteja disposta a dizer isso à polícia, de
nada servem computadores, rádios ou perícia técnica. Esses instrumentos só entram em campo
quando há alguma forma de suspeita, o que se dá por intermédio de informação. Boa informação.
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De que forma as polícias podem ter acesso a esse elemento tão precioso na realização do seu
trabalho? Um primeiro modo é por intermédio da coerção ou da extorsão: tortura, violência,
ameaça, ou dos famosos gansos, que são criminosos que vendem informações para as polícias.
Estas informações, além de imoralmente conseguidas, normalmente são de baixa qualidade, pois
as pessoas sob coerção tendem a falar aquilo que o algoz quer e não necessariamente a verdade.
Por outro lado, a informação vinda de criminosos depende da garantia de que os mesmos
permanecerão impunes.

Uma segunda maneira de se obterem informações é a voluntariedade. Quando a população confia


em sua polícia, esta é procurada por quem tem alguma suspeita, ou por alguém que testemunhou
algo e quer contribuir numa investigação. Quando a população teme ou desconfia da polícia,
especialmente a população mais vulnerável, ocorre uma ruptura no fluxo de informações e
consequentemente uma redução da eficácia policial.

Para que a população confie na polícia é necessário que esta respeite a população, e os termos
desse respeito são dados pelas regras de direitos humanos e pelo padrão de honestidade dos
policiais. Quando se sabe que a polícia viola sistematicamente os direitos de jovens, de negros e
da população mais carente em geral, dificilmente esta irá confiar na policia, quando forem vítimas,
testemunhas e mesmo portadoras de alguma informação relevante para coibir o crime. Quando a
policia é desonesta, também fica a população temerosa de fornecer qualquer informação que pode
lhe colocar em risco no futuro.

A percepção por parte da população de que a policia respeita os direitos humanos, é honesta e
trata as pessoas de forma justa é indispensável na construção de boas relações com a
comunidade, sem o que não há bom fluxo de informações. Destaque-se que não há polícia
eficiente em qualquer lugar do mundo que não seja respeitadora dos direitos humanos. Nesse
sentido os direitos humanos ao invés de constituírem uma barreira á eficiência policial, oferecem a
possibilidade para que o aparato de segurança se legitime face a população e consequentemente
aumente a sua eficiência, seja na prevenção, seja na apuração de responsabilidades por atos
criminosos.

Direitos humanos ameaçam nossa soberania

Não é incomum ouvirmos por parte de autoridades e de segmentos mais nacionalistas da


população a queixa de que, a ação do movimento de direitos humanos é parte de uma conspiração
internacional voltada a limitar nossa soberania; de que a Anistia Internacional, ou outras entidades
internacionais de defesa dos direitos humanos, não dispõem de qualquer legitimidade para
monitorar a atuação de nossas autoridades em relação as suas práticas no que se refere aos
nossos cidadãos; de que essa é uma questão que só diz respeito ao Brasil, não devendo o Brasil
ficar exposto internacionalmente.

Não é impróprio lembrar que o movimento de direitos humanos surge a partir da Segunda Guerra
Mundial, que teve como produto a morte de mais de 45 milhões de pessoas. Um dos aspectos
mais perversos dessa catástrofe humanitária é que a maioria das vítimas foi morta pelos seus
próprios Estados. Foram alemães mortos pela Alemanha, Russos mortos pela Rússia. Evidente
que esses nacionais exterminados pelo aparato bélico e de segurança de seus Estados eram
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discriminados, em face de suas religiões, etnias ou posições políticas. O fato é que isso demons-
trou que os Estados não poderiam ser os únicos fiadores da segurança e da dignidade de seus
cidadãos. A violação dos direitos de um brasileiro ou de um alemão não deve ser apenas um pro-
blema para os seus compatriotas. Se partimos do pressuposto de que temos direitos pelo simples
fato de sermos humanos, a violação dos direitos de qualquer pessoa deve ser um problema de
todos. Trata-se de uma agressão à toda a humanidade, e, portanto, é legítimo que pessoas de
outras partes do mundo se preocupem com o que ocorre no Brasil ou na Alemanha.

Por outro lado, é necessário refletir um pouco sobre o significado de soberania e da sua
abrangência. A soberania surge como uma doutrina de justificação do poder absoluto do Estado,
não só face à comunidade internacional, mas também em relação a outros poderes domésticos.
No inicio do século XVI era importante afirmar a autoridade do Estado face ao poder da igreja ou
dos impérios, assim como dos senhores feudais. Com o tempo percebeu-se que a concentração
do poder absoluta nas mãos do Estado havia se transformado numa ameaça constante aos seus
próprios súditos, tanto que com as revoluções americana e francesa a soberania passa por um
processo de domesticação, ou seja, busca-se a sua limitação por intermédio de constituições e
declarações de direitos. Desta forma o exercício da soberania só será legítimo se capaz de
respeitar os direitos das pessoas. A soberania passa então a estar a serviço das pessoas e não
dos Estados. Com a democracia, completa-se a inversão do sentido da soberania, pois ela não
mais é concebida como um atributo do príncipe mas do cidadão. É o cidadão que detém o poder
sobre sua própria vida e que deve determinar ao Estado de que forma se comportar. li nesse
momento que deixamos de ser súditos e passamos a cidadãos.

Nesse sentido, quando o nosso Estado viola o direito de um cidadão, é ele que está agindo contra
a soberania popular. Se para buscar evitar essas práticas a comunidade internacional se mobiliza
e denuncia um Estado, na realidade, a sua ação busca favorecer os cidadãos daquele Estado, ou
seja, a soberania popular em detrimento da soberania absoluta. Assim, reagir à solidariedade
internacional em nome da soberania só favorece aqueles que querem um ambiente de impunidade
para que possam tranquilamente violar direitos humanos.

Conclusão

A gramática dos direitos humanos está fundada no pressuposto moral de que todas as pessoas
merecem igual respeito umas das outras. Somente a partir do momento em que formos capazes de
agir em relação ao outro da mesma forma que gostaríamos de que agissem em relação a nós é
que estaremos conjugando essa gramática corretamente. Os argumentos de que direitos humanos
são direitos de bandidos, de que atrapalham a atuação das polícias ou de que minam a soberania
do Estado buscam destruir essa lógica. Aderir a qualquer desses argumentos significa assumir a
proposição de que algumas pessoas tem mais valor, outras menos, e de que ao Estado e seus
funcionários cabe fazer a escolha de quais deverão ser respeitadas e quais poderão ser
submetidas à exclusão, à tortura, à violência e à discriminação.

Oscar Vilhena é professor de Direito da PUC-SP,


Diretor Executivo do ILANUD/BrasiI, Coordenador do Consórcio Universitário pelos Direitos Humanos PUC-SP/Universidade de
Columbia-NY/USP.
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