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rodas de leitura
Pedro Garcia
Paul Ricoeur
Primeiro os pés
estou vivo
você também:
silêncio!
silêncio:
apenas as mãos
assim
devagar
lentamente
e o corpo todo
lentamente
não fale:
primeiro os pés
depois as mãos
o corpo
todo
lentamente
e aos poucos
novamente
e não se canse
- não fale -
os pés primeiro
assim:
aos poucos
lentamente
(não fale)
os pés primeiro
e neste curso
nesta reeducação
quem sabe?
a sabedoria
não fale!
os pés primeiro
É sobre isto que vou escrever a partir de uma experiência de um ano e meio em um curso
supletivo noturno no Rio de Janeiro.
Primeiro os pés: não é o discurso que ajuíza a prática, mas a prática que ajuíza o discurso.
Primeiro o fazer, que abre o campo do possível. Possível e fazer que estão atrelados ao
poder, ao poder de cercear e ao poder de criar. Nós educadores, que usamos a palavra como
instrumento de trabalho, somos submetidos ao desafio de dividi-la, de forma criativa, com o
outro. Para que o outro, afiando este instrumento, possa potencializá-lo na reconstrução de
si mesmo.
No primeiro encontro pergunto a cada um acerca da origem do seu nome. Depois, espaço e
tempo: onde e quando nasceu? Finalmente, a viagem: por que veio para o Rio de Janeiro?
O que vem a seguir decorre, em grande medida, destas histórias iniciais que cada um narra.
Parto do princípio de que todo aquele que se apropria da sua própria experiência é capaz de
se apropriar de si mesmo e começar a ler o mundo e a sociedade em torno e além.
O poder se manifesta quando se pode nomear. No mito bíblico Deus concede este privilégio
ao homem E ao homem de baixa auto-estima, que a si mesmo se nega, é necessário
conceder espaço e dar instrumentos para que possa reverter a postura do “eu não sei”, “eu
não posso”, nomeando as coisas e delas se apropriando .
Em todo este processo, não se pode perder de vista o lugar onde se passam estas relações: a
escola. Local do instituído, do mesmo que se reproduz através de um saber instrumental:
quem sabe e quem não sabe. Como quebrar este circuito?
Sendo assim todos opinam sem o fantasma do erro. O que não significa que toda e qualquer
opinião seja válida, já que o sentido é negociado entre todos. Ocorre, muitas vezes, que
mais de uma versão seja possível. Em alguns casos, a ambigüidade do texto permite
posições discrepantes acerca do seu significado. E, além disso - o que não é raro ocorrer -
alguém descobre uma linha de interpretação que o professor não previa. É que na leitura
compartilhada de um texto literário a possibilidade da invenção, da criação, está sempre
aberta. Este talvez seja o aspecto mais fascinante de toda esta experiência, abrir espaço para
a criação. E a criação é o caminho para a autonomia, para a auto-afirmação.
Na escola é um desafio propor um saber que não seja o instrumental, já que este permite um
suposto acesso ao mundo do trabalho, enquanto a ficção seria inútil.
No caso específico do curso supletivo que estamos falando, a experiência do lúdico serviu -
para a maioria que dela participou - como desenvolvimento pessoal. Quem falava pouco se
desinibiu, alguns se tornaram leitores e quase todos se sentiram gratificados com a
sociabilidade que se criou na roda de leitura.
Não caímos no equívoco de utilizar este espaço como trampolim para o conhecimento
escolar, embora esta tensão tenha existido, seja por parte dos alunos, seja por parte dos
professores, que esperavam esta ligação. Achávamos desde o início, e a experiência nos
confirmou, que o processo de crescimento do aluno indiretamente contribuiria para sua
performance na escola. Por outro lado, se quiséssemos fazer esta ligação direta (roda de
leitura/escola), certamente teríamos comprometido a experiência sem uma contrapartida
significativa para a escolaridade do aluno.
Concluindo. Em termos políticos, buscamos dar ênfase à luta cultural por uma nova
subjetividade, campo por excelência da educação popular. Hoje não se trata de atingir um
ponto de chegada pré-determinado. Trata-se de formar sujeitos que possam navegar sem
bússola para o desconhecido, buscando um conhecimento que, a cada passo, é necessário
rever e reavaliar. Humor, ironia, solidariedade e a esperança de aportar em um porto seguro
é o que desejo a t GARCIA, Pedro – Escadas Improváveis, Editora Seis, Rio de Janeiro,
1993, págs. 50/1.
(...) Iahweh Deus modelou então, do solo, todas as feras selvagens e todas as aves do céu e
as conduziu ao homem para ver como ele as chamaria: cada qual devia levar o nome que o
homem lhe desse.
Gênesis 2-3, in Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas, SP, 1981, pág. 35.