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Spinoza e a Alegria1
Com esta comunicação desejo apresentar os temas centrais de uma pesquisa que tenho em curso sobre a
imaginação e a alegria na filosofia de Spinoza. Estes temas demandam uma individuação em sua tensão
dilemática e dinâmica: cada questão representa mais de uma face (normalmente, duas faces e duas direções
de desenvolvimento e solução). Trata-se, logo, de trabalhar sobre dicotomias, e de não se deixar, nem mesmo
por um instante, afastar da imagem do espinosismo como hortus conclusus2: imagem que ainda se manifesta
como um dos perigos ocultos mais freqüentes, sobretudo para os interpretes que encaram os temas da
beatitudo, da acquiescentia, e do amor Dei intelectuais.
1. Questões Terminológicas
Afetos. No tratamento dos três principais affectus (cupiditas, laetitia e tristitia3) o latim de Spinoza foge
constantemente de qualquer expressão que possa sugerir referência a uma vida emocional e sentimental.
Esses são, para Spinoza, três dinamismos peculiares do homem. O primeiro, constitutivo da essência
humana em si mesma, os outros dois, constitutivos do aperfeiçoamento ou da degradação de tal essência.
São considerados, parece-nos, dissonantes e não aceitáveis, uma série de traduções da palavra affectus,
reafirmada por intérpretes muitos autorizados, que levam naquela direção v.g.: “sentimento” (Guzzo),
“sentiment” (Alquié), “Gefühl” (Höffding), “feeling” (Joachim). Embora com os problemas que geram as
traduções que, simplesmente, reproduzem o termo affectus, permanecem sendo as mais corretas
tecnicamente.
Alegria. O par dos opostos laetitia-tristitia reproduz, em termos idênticos, na Ética, aquela contida nas
Passions cartesiana traduzidas para o latim, como já fora demonstrado por Wolfson. Em francês, Descartes
havia escrito “joye”, mas para passar para o latim, a mudança de étimo era inevitável. A língua italiana pode,
neste caso, gabar-se de uma riqueza lexical superior à do latim e do francês, dispondo seja do fraco “laetizia”
(letícia), seja do forte “gioia” (alegria). Podendo escolher, nós nos distanciaremos daqueles tradutores e
intérpretes que preferem copiar os termos latinos, e por dois motivos traduziremos laetitia por “gioia”
(alegria). Primeiro: porque assim fazendo nos parece ficar melhor amarrada a continuidade com a
problemática cartesiana; segundo: porque aquela de que se trata é uma paixão dominante, a qual bem se
adequa uma expressão forte.
1
Tradução de Bernardo Bianchi. Paulo Cristofolini é professor da Scuola Normale Superiore di Pisa. Nota do tradutor:
O termo original “gioia” é correlato aos termos “joye” (do francês) e “joy” (do inglês).
2
N. t.: É bastante difícil, para mim, traduzir esta expressão latina. Contudo, vale lembrar que tal expressão
significaria, literalmente, jardim secreto, recluso, ou fechado. Ocorre, todavia, que no Oxford latin dictionary, editado
por P. G. W. Glare em 1996, consta que o termo hortus serve também para designar sistema filosófico – isto porque
Epicuro realizava seus encontros educativos num jardim (hortus). Há ainda aqueles que entendem esta expressão
como algo que, sendo hermeticamente fechado, isola-se da realidade. De fato, tal termo era freqüentemente utilizado,
especialmente no medievo, para designar o jardim no qual a virgem Maria teria recebido a anunciação. Isto, segundo
o site “www.assisinc.ch/articlesarchives.html”.
3
N.T.: É possível traduzir estes termos de forma literal para: cupidez, letícia e tristeza.
no fundamento daquele importante desenvolvimento deve-se atentar, em antítese seja a respeito da tradição
estóica, seja a respeito da cartesiana, a superação da separação entre auto-aperfeiçoamento e satisfação.
Descartes se impôs o problema de superar a dicotomia virtude-prazer da filosofia clássica e, com olhar
crítico dirigido aos epicuristas, encontrara, segundo o seu costume, um exemplo eloqüente e a caracterizar a
heteronomia daquela moral: quem joga tiro ao alvo mira no escopo pensando no prêmio. O alvo não tem em
si nada de interessante, o prêmio sim; mas é no alvo que se deve prestar atenção caso se queira o prêmio
(Carta a Elizabeth de 10 de agosto de 1645)4. Descartes quer superar a cisão entre virtude como fim e prazer
como meio (ou incentivo), e, de fato, a substitui com uma outra: a virtude, ou sabedoria, vem posta por ele
no governo (maîtrise) das paixões, destinado a determinar a prevalência da alegria sobre a tristeza. Estes são
tratados como mecanismos controláveis.
Do ponto de vista do desenvolvimento que Spinoza dá depois ao problema, interessa, aqui, sublinhar que a
nova dicotomia introduzida por Descartes dá-se entre um momento ativo (a maîtrise), e um passivo (as
passions de l’âme). A alegria, em particular, é concebida por Descartes, mesmo naquele nível superor que é a
“alegria intelectual”, como mera fruição de uma posse. Spinoza parte exatamente da dicotomia ativo-
passivo, por ele posta no início do tratamento dos afetos, e reproduzida ao interno da dinâmica mesma dos
afetos. Daqui ele desenvolve uma série própria de dicotomias.
3. Dicotomia do affectus
Alegria e tristeza são “passagens” (transitiones), não sentimentos da passagem. Um homem que aumenta o
próprio saber é afeto da alegria; mas, além do uso corrente da palavra, este fato é, a rigor, independente do
seu estado emocional. Assim, pode-se chamar, em termos rigorosamente Spinozanos, tristeza, o afeto dos
hebreus de que fala o Tratado Teológico-Político no capítulo V, quando por causa do cativeiro no Egito, devém
corruptos e incapazes de se autogovernarem. Os clássicos atestam5 uma acepção da palavra laetus, que, de
fato, corresponde àquela Spinozana de laetitia como transitio de uma perfeição menor para um maior,
objetiva e não emotivamente vivida.
Em Spinoza, todavia, as coisas são mais complexas, uma vez que latitia e tristitia são conhecidas não como
afetos de todos os indivíduos6 enquanto animados (Ética, II, Pr. 13, escólio), mas unicamente do homem
(Ética, III, af. def. 2-3), cuja essência é dada a partir da cupiditas, e cujo proprium é dado na Ética, II, axiomas, 2:
“Homo cogitat”( o homem pensa). Logo, a laetitia como transitio compõe-se de uma affectio corporis e, com uma
correspondência simultânea rigorosa, de uma idéia de afecção mesma (Ética, III, def. 3).
A dicotomia, então, é esta. De um lado, estamos frente a um processo objetivo, e o abandono do ponto de
vista psico-fisiológico cartesiano se justifica sob esta luz. Do outro, os processos discursivos da mente são
análogos a este processo e dele fazem parte integrante. Justamente em virtude desta integração é possível a
passagem, inteiramente humana, do afeto passivo ao afeto ativo. Mas, para permanecer no nível dos afetos
passivos, a distinção essencial posta por Spinoza, (Ética, III, 57, escólio) entre os afetos humanos e aqueles
dos animais irracionais, está no fato de que, para os indivíduos diferentes do homem a idea seu anima, que
neles constitui a essência, se identifica com o gaudium, ou melhor dizendo, com a sensação de satisfação
própria da sua natureza; enquanto para o homem a idéia está, de qualquer modo, num nível mais complexo
daquele de um mero feeling: também no caso de um homem cujas idéias sejam inteiramente inadequadas,
será a imaginação a juntar-se à transitio, e a imaginação, diferentemente do feeling, é um processo discursivo.
7
N. tr.: tal termo deve referir-se, exclusivamente, à idéia de quitação, solvência de uma obrigação ou saciedade:
satisfação de um dever, e não á idéia de prazer