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Se o fogo da Geena é corporal poderá ele, por seu

contato, queimar
os espíritos malignos, isto é, os demônios
incorpóreos?
por

Santo Agostinho

Aqui ocorre-nos perguntar: se o fogo não for incorpóreo, como o é a dor


da alma, mas corpóreo, molesto ao contato, de modo a poder torturar os
corpos — como é que nele se verificará o castigo dos espíritos malignos?
Realmente, conforme disse Cristo, o mesmo fogo será destinado ao
suplício tanto dos homens como dos demônios:

Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno que já está preparado


para o Diabo e os seus anjos. [1]

A não ser que os demônios tenham também um certo tipo de corpos,


como julgam alguns homens doutos, corpos esses constituídos por esse
ar espesso e úmido de que sentimos o movimento quando o vento
sopra. Esse gênero de elemento, se nada pudesse sofrer no fogo, posto
em ebulição nos banhos não queimaria. De fato, para queimar deve
antes ser queimado e atua ao mesmo tempo que é afetado. Mas se se
pretende que os demônios não têm corpos, não há que trabalhar mais
numa afanosa pesquisa nem que trabalhar em teimosas discussões.
Porque é que, realmente, não dizemos que os espíritos incorpóreos
podem ser atormentados com a pena de um fogo corpóreo, de forma
real, embora maravilhosa, se os espíritos dos homens, sem dúvida
incorpóreos eles também, puderam ser agora encerrados em membros
corpóreos e poderão depois ficar ligados aos seus próprios corpos por
vínculos indissolúveis? Se não têm corpos, aderirão, estes espíritos dos
demônios, ou melhor, estes espíritos-demônios incorpóreos, a fogos
corpóreos para por estes serem torturados: não é que estes fogos, a que
eles se hão-de ligar, nesta união recebam um sopro de vida (inspirentur)
e se tornem em seres animados, compostos de espírito e de corpo, mas,
como já disse, nesta forma maravilhosa e inexprimível de vida; porque
também este outro modo, em conformidade com o qual os espíritos se
unem aos corpos e os tornam vivos, é a tal ponto maravilhoso que nem
pelo próprio homem pode ser compreendido — e, no entanto, isso é o
próprio homem.

O que eu diria é que esses espíritos sem qualquer espécie de corpo


arderão, como ardia nos infernos aquele rico quando dizia:
Sou atormentado nesta chama [2],

se eu não notasse que me poderiam propositadamente responder que


tal chama era da mesma natureza que os olhos que ele levantou e lhe
fizeram ver Lázaro, da mesma natureza que a língua para a qual
desejou que lhe derramassem um pouco de líquido, da mesma natureza
que o dedo de Lázaro ao qual pediu que isto lhe fosse feito — e, todavia,
as almas estavam lá sem corpo. Se, portanto, é incorpórea esta chama
que queima e esta gotinha que ele suplica, são então como as visões dos
que dormem ou dos que, em êxtase, vêem coisas incorpóreas
apresentando, porém, as aparências dos corpos. É que o próprio
homem, quando está em tais visões em espírito e não com o corpo, vê-
se então tão semelhante ao seu corpo que não é capaz de dele se
distinguir. Mas essa geena que também se chama lago de fogo e de
enxofre (stagnum ignis et sulphuris) será um fogo corpóreo e
atormentará os corpos dos condenados, quer dos homens quer dos
demônios — sólidos os dos homens, aéreos os dos demônios — ou
apenas os corpos dos homens com os seus espíritos e os dos demônios-
espíritos sem corpos, unindo-se ao fogo corpóreo para dele absorverem
a pena sem com ele partilharem a vida. Um só, realmente, será o fogo
para uns e outros, como o afirmou a Verdade.

NOTAS:

[1] - Discedite a me, maledicti, in ignem aeternum, qui paratus est diabolo
et angelis ejus. Mateus, XXV, 41.

[2] - Crucior in hac flamma. Lucas, XV, 24.

Fonte: A Cidade de Deus, Volume III, Fundação Calouste Gulbenkian,


páginas 2163-2165.

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