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“No meio das armas, calam-se as leis.


Cícero
O Atirador
Por

SAMUEL PEREGRINO

2008

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Número 4

Ele havia deixado rastros no quarto 32, a hora clara alumiava impressões,
abalaústres e um livro mórbido esquecido num criado-mudo que não o delatava por
nada nesse mundo. Fiquei horas a fio sentada no leito calmoso, O assassino havia
descido há poucos minutos, as garrafas espalhadas num canto emboscado denunciava
um elipse que me atrevo impor. Moscas comedoras de luz num calor tártaro que ardia
os olhos, tudo é quente nessa moderna Tenochtitlán num fim do mundo próximo. O
corpo? Sim, sim, está ali abaixo de nossos pés, frio, lúgubre, jazido. Cheguei tarde
demais.

30 minutos antes

“Durante 24 horas os fazendeiros, que se auto-intitulam Frente das Pessoas


em Defesa da Terra, combateram a polícia com facões e bombas incendiárias
caseiras. Eles armaram barricadas de pneus em chamas, bloquearam a
principal estrada e ameaçaram explodir um caminhão tanque de gasolina. No
final a polícia prevaleceu. Quando o gás lacrimejante evaporou, na sexta-feira
pela manha, um jovem de 14 anos foi encontrado morto por um tiro e mais de
uma dúzia de policiais exibiam ferimentos de facão – um deles perdeu a mão
– e pelo menos quatro manifestantes apanharam bastante o suficiente para
serem hospitalizados.”

Madrazo coordenou o tumulto como um surfista experiente em uma boa onda,


usando-o para aumentar seu perfil público e catapultar a si mesmo a um debate
nacional novamente, concordando a ir ao ar com Carlos Loret de Mola, repórter da
Televisa que tenta entrevistá-lo há meses. O repórter da Televisa levantou a
possibilidade de Madrazo ter ajudado a orquestrar o tumulto, lembrando que ele sempre
foi um mestre na manipulação da opinião pública.

Ok, apresentações à parte voltemos à... Espere! Está ouvindo?! Desligo o rádio,
preciso de silêncio, silêncio, psiuuuu...Ouça! São as mariposas batendo no quebra-luz.
Pobrezinhas, o que acham que são? Pantalha apagada, a noite veste um céu rubro,
abafado e calorento em uma cidade cheia de índios e prostitutas que ainda fedem a
primeira menstruação e os policiais? Viciados e corruptos. "Me perco em teus olhos doce
Tristessa, me perco em tua boca, me perco nas linhas de tuas mãos..." Uma cantiga
viajante por uma onda elétrica distante acalma a tempestade. Tudo bem, vamos ao
trabalho, vou lhe ensinar como montar um rifle Cbc 7022-66S, sei que é chato mas
essas coisas fazem parte do serviço.

Para proteção do Rifle, suas partes metálicas encontram-se recobertas por uma
película de óleo protético especial, extremamente aderente na parte interna do cano. A
remoção do óleo existente na parte externa é também aconselhável depois da abertura
da embalagem, pois sendo pegajoso retém facilmente a poeira e outras impurezas
sólidas existentes no ar. Abro a caixa de papelão. Primeiro o ferrolho. Para poder ser
colocado, a conjunto deverá estar armado, condição que pode ser constatada pelo
indicador de arma engatilhada, isto é, a ponta vermelha do embolo da mola do
percussor deve estar visível na parte traseira do ferrolho. Com a alavanca de trava na
posição dianteira, introduza o ferrolho no receptáculo até onde possível pressionar o
gatilho e mantendo-o nessa posição depois complete a introdução do ferrolho; introduza
o carregador no seu alojamento na parte inferior do rifle, pressione o retentor do
carregador até que o entalhe existente no mesmo encontre aquele do próprio carregador.
Agora como carregar:

Antes de carregar a arma é necessário municiar o carregador. Retire-o da arma,


pressionando o retentor e puxando-o para fora. Para municiar o carregador, introduza
um cartucho de cada vez, pressionando a mola e empurrando o referido cartucho para
trás até que fique preso nos lábios laterais do carregador. Repita a operação até o limite
de capacidade do carregador ou daquela desejada. Trave a arma. O ponto vermelho no
receptáculo não deve estar visível. Introduza o carregador devidamente municiado no
seu alojamento. Levante o cabo do ferrolho e puxe-o para trás, empurre o ferrolho para
frente retirando um cartucho do carregador e introduzindo-o na câmara. Abaixe
totalmente o cabo do ferrolho. Destrave a arma empurrando a alavanca e trava para
frente. O ponto vermelho no receptáculo estará visível.

Como instalar a luneta: Com chave de fenda "Philips" de tamanho adequado,


solte os parafusos dos anéis de fixação da luneta. Afrouxe os parafusos dos grampos de
fixação da luneta na arma. Posicione os grampos de fixação nas extremidades das
ranhuras do receptáculo e aperte os parafusos. Leve a arma na posição de tiro, mire
através da luneta um objeto entre 15 e 20m de distância e observe se todo o campo da
objetiva está visível, está pronto, entendeu?

Descanso-a no parapeito da janela, ajusto a lente da objetiva e espero...


20 minutos depois

Eis o alvo! Murilio Bertocampos, 42 anos, casado, pai de três filhos, as vezes
sacrifícios se tornam necessários. A polícia estatal sempre foi conhecida pela
brutalidade. O governo federal entra e a as coisas saem do controle e assim se cria essa
atmosfera de repressão. O clima está quente por aqui. A brutalidade da policia em
acabar com fazendeiros revoltados com a corrupção, autoridades estatais e federais que
incitam a violência estupram mulheres e prendem inocentes. Uma revolução sem um
tiro, um viva a Outra Campanha! (...) a bala beija o crânio insípido!

Certo, trabalho feito, desmontemos o rifle (paciência, essa parte é importante).


Retire o carregador. Abra o ferrolho e certifique-se que não há cartucho na câmara.
Retire o conjunto do ferrolho levantando o cabo do mesmo e puxando-o para trás,
coloque a alavanca de trava na posição dianteira (destravada), pressione o gatilho e
mantendo o mesmo pressionado, remova o ferrolho da arma. Caso seja necessário
efetuar limpeza mais completa, a coronha pode ser facilmente removida soltando-se os
parafusos de fixação que se encontram no conjunto do guarda-mato. Ouviu? São as
sirenes já enlouquecidas. Vamos embora, deixe a limpeza e lubrificação para mais tarde,
não quer estar aqui quando chegarem quer?

Murilio Bertocampos, fazendeiro, morto, frio, esquecido e mantenedor da


campanha do subcomandante Madrazo, o líder rebelde zapatista que tenta reviver sua
enfraquecida campanha para um movimento socialista, que espera um dia derrubar o
governo sem um tiro. Madrazo apareceu em rede nacional na terça-feira e se deixou
entrevistar longamente pela primeira vez em anos. Como sempre apareceu vestindo um
capuz preto e trajes militares, fones por cima do capuz gasto e um cachimbo na boca. A
aparição ressaltou a estranha posição de Madrazo na política mexicana enquanto ele
tenta recriar a si mesmo como um líder dos direitos civis, apesar de sua visão marxista
para o país. A revolução a um passo das casas.

O assassino esqueceu uma chave perto da janela, eles sempre esquecem alguma
coisa como se quisessem ser achados, cedo ou tarde.
Juan Salvador Agraz # 44, Hotel Santa Fé

Cidade do México,

Quarto 23 - O hotel tem vista privilegiada para o Centro de Convenções Internacional


Expo Bancomer onde estão reunidos líderes da atual democracia funcional mexicana a
poucos dias da eleição. Madrazo declarou recentemente que não importa quem vença, o
governo será eventualmente derrubado, a administração do presidente Vicente Lopes
ignorou suas afirmações. Luiz Calderon, candidato do Partido da Ação Nacional de
Lopes disse que os tempos ultrapassaram Madrazo, revolucionários armados saíram de
moda. O atirador está aqui para provar o contrário.

“(...) a violência da semana passada teve inicio quando a polícia local, da


cidade de Texcoco, a cerca de 30 quilômetros, tentou despejar um vendedor
de flores do seu local de trabalho habitual no mercado. O vendedor procurou
ajuda na coalizão de fazendeiros militantes aliados dos rebeldes zapatistas e
decidiu ficar e lutar. 211 rebeldes foram presos no tumulto, um jovem morto e
meia dúzia de políciais feridos. Madrazo jurou permanecer na capital até que
as 211 pessoas presas no tumulto fossem liberadas.”

Uma revolução sem balas? Nada é o que parece. Número 4, quem o contratou?

Quarto 22 - Calderon vai cair. A arte da espera, o segredo de todo atirador. As luxosas
limusines americanas pretas, blindadas não se envergonham de portar a bandeira
mexicana sobre as hastes metálicas. Elas se movimentam na entrada da Expo
Bancomer. Dali sairão os hipócritas engravatados que se aglutinam sob uma democracia
corrompida. Eu os avisei! A revolução será silenciosa.

Escotilha destravada, limpo a objetiva, há 350 metros o tiro numa precisão


incômoda. O alvo deixa o prédio, dez seguranças armados com lindas Star Z-84, calibre
9, sub-metralhadora espanhola usada por militares cubanos. Sete passos até que
Calderon deixe o prédio e se esconda atrás das blindagens automotivas. Primeiro passo,
objetividade, a mão firme adestra a lente, endireita o cano e se mantém estática.
Segundo passo, apreensividade, olhares desconsertados ao esmo, o suor respingado da
testa escorre pela barba grisalha bem aparada. Terceiro passo, precisão, a imprensa
corre e tapa a visão. Não titubeio, ele desvia dos flashes e microfones, seus olhos como
carvão por detrás da lente monofocal escura.

Quarto 23 - Acaba de chegar ao hotel, quando Calderon sair ele vai agir. Subiu para seu
quarto, espero o momento certo...

Quarto 22 - Quarto passo, paciência, a transitoriedade da vida num relance, a cortina


no final do ato, as flores sobre a lápide, o berro natalício, o dedo engatilhado, Calderon
vai cair! Quinto passo, paciência, executivos adentrando em seus esconderijos móveis, a
turba afastada pelos "cães de chácara", tumulto nas portas dos carros.

Quarto 23 - Parto de minha alcova, corredor escuro, modesto tapiz carmesim. Pé que
levitam sutis, a arma engatilhada, toda calma do mundo. A plaqueta gravada: Quarto
22, não é um bem vindo, é preciso ser rápida.

Quarto 22 - Sexto passo, bala na agulha! A cabeça nua brilha... O dedo que nunca
tremula...

Quarto 22 - A porta se abre, eis o homem!

(...) A bala silenciosa nas costas! O atirador caiu. Mais um que cai, eles sempre caem!

“A polícia local recebeu uma denúncia de um possível homicídio nos arredores


do Centro de Convenções Internacional Expo Bancomer. Fora encontrado o
corpo do fundamentalista libertário Madrazo com um tiro nas costas num
quarto no Hotel Santa Fé. O fato ocorreu simultaneamente durante a última
conferência do partido do presidente Vicente Lopez antes das eleições
presidenciáveis. Madrazo estava sendo investigado como suspeito de
aliciação de revoltas contra o governo, o dito homicídio parece ligá-lo a
tentativas de conspiração contra o estado inspirando uma revolta maior, já
que Madrazo se torna o principal suspeito pelo assassinato de Murilio
Bertocampos na semana passada, provando com isso que uma revolução sem
balas está cada vez mais distante. A polícia local não têm informações sobre
possíveis suspeitos do crime, mas fontes seguras revelam que o caso está
sendo investigado pelo FBI, há boatos que informam sobre um um franco-
atirador contratado, não se sabe nomes. Uma outra fonte extra-oficial
divulgou um codinome, Número 4. Seria um assassino contratado para dar
fim à Madrazo? E quem o contratou? Maiores informações na próxima edição,
boa noite.”

Eles sempre deixam algum tipo de rastro, a fraqueza viciosa, o tombo certeiro.
Não imaginava que seria Madrazo, assassino e traidor de sua própria ideologia, uma
revolução sem balas(?), pura utopia, assassinar um companheiro afim de forjar uma
anti-campanha contra Calderon não me parece nada original, mas pra mim não
importa, não tenho nada com essa revolução fictícia, os homens se tornam senhores de
si quando aprendem a servir, vim de longe atrás dele, concluí o serviço, cheque
embolsado, isso sim importa e nessa cidade fervecida onde balas cortam flores e
blindados ricocheteiam os tiros noturnos sou apenas uma mosca comedora-de-luz.

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