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FREDERICO GALHARDO

O VAGABUNDO
poesia

ficina
FREDERICO GALHARDO

O vagabundo

ficina
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http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/br/

Texto de: Frederico Galhardo


Capa e design: Henry Alfred Bugalho
Foto: http://www.flickr.com/photos/bramloosveld/333117462/

Oficina Editora
www.oficinaeditora.org
Apresentação

Invejo Frederico, pelo simples fato de ele conseguir ser um poeta.


No entanto, poucos ofícios literários são tão subestimados quanto
o do poeta. Todos admiram a persistência do romancista, ou a concisão
do contista, mas a poesia está aberta para todo e qualquer ser huma-
no alfabetizado, desde a menininha que rabisca alguns versos em seu
caderninho até o senhor grisalho à procura por um passatempo em sua
velhice.
Qualquer pode ser um poeta, as pessoas crêem, basta apenas rimar
“ama” com “chama”. E este é um dos méritos de Frederico Galhardo:
ele é um poeta sem querer sê-lo.
Para este jovem curitibano, a poesia é um duelo entre o poeta e as
palavras; duelo que sempre termina com a derrota do primeiro. Esta
frustração, este desânimo diante duma tarefa muito superior a si está
presente na obra de Frederico, mas até mais do que isto, na vida deste
escritor.
Mesmo após conhecê-lo por anos, só fui descobrir que ele escrevia
após encontrar acidentalmente alguns manuscritos em seu apartamen-
to? uma coleção de poemas. Relutante, Frederico concordou em me
deixar lê-los e, ainda mais relutante, autorizou-me organizá-los nesta
antologia.
“Eles merecem a fogueira”, ele sempre insistia, mas, como eu costu-
mava replicar, “não existe pior fogueira do que certos leitores”.

Henry Alfred Bugalho


Nova York
18/10/2008
O Vagabundo

I
Folhas de Papel

As folhas em branco me assustam.


São todas um universo a ser escrito.
Todas um destino a ser traçado.

Vagueio em meio a brumas que eu mesmo criei.


Os caminhos mais tortuosos escolhi, e
Se me perco, é porque isso mais me agrada.
Onde estão meus amigos, que me juraram fidelidade?
E meus amores, cheios de promessas apaixonadas?

Cão sem dono, farejo cada esquina


E sonho com um lar.
Porém, só tenho palavras.
Palavras e folhas em branco.

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Frederico Galhardo

II
Velho amigo

Reencontrei hoje um sujeito há muito esquecido.


Fugiu-me seu nome,
Falhou-me quem era.

Tratou-me como se nunca nos houvéssemos distanciado;


Relembrou eventos que me eram vagos,
Citou nomes ignorados por mim,
Perguntou-me de minha família e, educado, eu da dele.

Demos um abraço, apertos de mãos e nos apartamos.


Ele, satisfeito por ter-me visto.
Eu, ainda sem sabê-lo quem era.

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O Vagabundo

III
Utopia

Flanei pelas ruas, buscando sei lá o quê.


Nas vitrinas, consumo e cores.
Nas calçadas, panfletos e bitucas de cigarro.
Seres anônimos passaram por mim, semblantes sérios, passos apressados.
Escravos das horas, servos do trabalho.
Eu, um vagabundo nauseabundo os invejei,
Sempre tão ocupados, sempre em cima da hora, sempre indo para
algum lugar.
Meu ócio me envergonhou e, num banco de praça, ocioso me envergonhei.
Depois, em casa, deite-me, ronquei, babei, sonhei.
Com um mundo desocupado sonhei, todos poetas e filósofos
Contempladores do universo, sem relógios nem rugas de preocupação.
Apenas o tempo a passar sem que ninguém se preocupe com ele
E a vida a ser vivida sem que por ela dessem conta.

Vagabundo vaguei pelas vielas do sonho,


E lá encontrei sei lá o quê.

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Frederico Galhardo

IV
A lei do mercado

Tudo etiquetado com seu preço.


Pesado, embalado, mensurado, valorado.
Num exercício de divagação morosa,
Etiquetei também cada valor moral:
Um saco de ética pelo mesmo preço que um grama de honra;
Dez quilos de paixão por uma resma de amor;
Uma tonelada de coragem por um metro de auto-sacrifício;
Sete litros de luta por um punhado de liberdade.

Mas minha lista de compras me pareceu ridícula.


Não porque seus preços fossem absurdos
Mas porque tais mercadorias apodreceriam nas prateleiras
E rapidamente seriam substituídas por outras mais atraentes.

Lei de oferta-e-procura.

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O Vagabundo

V
O Si e o Outro

Conheci hoje um fulano que,


Sem mais nem menos, me causou um ódio incontrolável.
A razão desta repulsa não foi sua aparência,
Nem alto nem baixo, em nada se diferenciava de mim.
Também não foi sua voz,
Barítono atenorizado, falava com lentidão e cuidado.
Tampouco suas idéias,
Refletidas e prudentes.
Talvez fossem seus olhos baços,
Fugidios e inexpressivos.
Ou, quem sabe, seus lábios caídos
E hesitantes.
Ou suas mãos inquietas, esqueléticas,
Sorrateiras.
Mais provavelmente seu interior
Que me transpareceu no instante mesmo em que o vi diante de mim.
Sentimentos negros e odiosos,
Um desapego insano à vida e aos outros.

Esse fulano me desafiou.


Piscando comigo, falando comigo, repetindo todos meus gestos.
Queria penetrar em seu âmago e descobrir se pensava o m
­ esmo que eu.
Macabro reflexo no espelho, ódio me causaste!

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Frederico Galhardo

VI
A diferença

Sem medo, ousei cruzar o umbral que me separa dos outros.


Cumprimentei estranhos nas ruas,
Brinquei com crianças em parques,
Acarinhei cachorros sarnentos,
Ouvi histórias dos velhos,
Bebi café com amigos.
Primeiro, senti-me bem.
Percebi que não difiro deles nem um fio de cabelo
E que todos os pensamentos do mundo não passam
De fragmentos dum mosaico do qual o todo nos escapa.
Por momentos, senti-me pleno como se não houvesse o dia de amanhã.

Mas essa impressão me deixou e, sozinho em meu quarto, um vazio


me inundou.
Eu não era igual a nenhum outro, nada a eles me ligava.
A solidão que era minha, minha somente era.
Os sonhos de minhas noites inquietas cérebro algum sonhava.
As tristezas que em meu peito jazem a nenhum outro oprimem.
Não há mosaico, apenas cacos.
Não há unidade, apenas diferença.

No silêncio, meus olhos derramaram lágrimas


E nenhuma outra alma chorava comigo ou por mim.

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O Vagabundo

VII
Réles Poeta

Há mais escritores no mundo que leitores.


Por que rabiscar palavras que não serão nunca lidas?

Esperança estúpida de que seres comunicantes


Creditem a outro ser comunicante a primazia da palavra.
Como se poesia fizesse alguma diferença para as pessoas que vivem,
Amam, sonham, trabalham, riem.
Quem em sã consciência interessar-se-ia por lamúrias
De um poeta pessimista?
Que criatura estranha é essa que desenha signos
Para que eles desapareçam no esquecimento?

Um cansaço existencial me embaciou os olhos


E decido não escrever mais nenhuma linha.
Mesmo sabendo que os versos continuarão a serem escritos em
minha mente,
Privando-me do sono, tirando-me a fome, emocionando-me defronte
de auroras e crepúsculos.
Mais doloroso que poeta de letras é ser poeta de p
­ ensamentos.

Escrevo, então, para exorcizar essa maldição.

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Frederico Galhardo

VIII
Aos Imortais

Sobre mim, há toda uma legião de mestres.


Todos muito superiores a mim; zombando de minha i­ nexperiência.
Seus olhos me lancinam o espírito e me põem a hesitar.

Quão melhor seria se eles não houvessem existido,


Se a História nascesse e morresse instantaneamente
Sempre recomeçando do começo!
Uma frescura primordial que nos permitiria sermos r­ epetitivos sem culpa.
Uma vaziedade de conteúdo que abriria todo e qualquer conteúdo.

Mas eles existem e exigem de mim sempre o maior esforço.


Obrigam-me ao sucesso e, por isso, sempre fracasso.

Insuportável fado da Arte é este:


Ter os vultos da tradição para nos assombrar.

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O Vagabundo

IX
Indução

O cheiro do cigarro que não fumei invade minhas narinas.


O gosto da bebida que não tomei rasga minha garganta.
As experiências que não vivi me alfinetam
E bradam:
“Idiota!”

Existo por osmose,


Experimento por extensão,
Aprendo por dedução.

Quando todos mergulham de cara e chocam-se contra o f­ undo da


piscina
Eu observo tudo de braços cruzados desde a beirada.
Não quero molhar-me,
Esqueci-me da toalha para me enxugar.
Tenho frio e a água está gelada.

Prefiro assim, existir sem fazer esforço.


Sem precisar ficar suplicando todo o tempo:
“Olhem para mim, por favor”.

Basto-me.
E as sensações que não sinto me são suficientes.

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Frederico Galhardo

X
Tales

Deito-me.
E no teto branco de meu quarto conto estrelas.
Apesar de todo o esforço para entender o funcionamento do mundo,
Ainda me espanto quando pondero sobre seus mistérios.

Um guardador de rebanhos disse, um dia, que não se deve pensar


sobre as coisas,
Que elas não foram feitas para serem pensadas, mas sentidas.
Mas tudo que tenho são pensamentos e dúvidas;
Aporia e assombro.
O sol que nasce dize-me mais coisas que o simples alvorecer,
Há toda uma mecânica celeste movendo-o-nos,
Arrastando-o-nos através do espaço através dos tempos.
Eu, ser ínfimo, diminuo-me ainda mais quando me entrego
Às divagações por respostas.
Não as encontro; sequer sei se existem,
Mas não me poupo de questionar
E de questionamento em questionamento
Recrio-me a cada instante.

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O Vagabundo

Crendo-me sempre algo diferente do que sou:


Aglomerado de moléculas, ser pensante, animal racional,
Criatura social, Ser para a morte, imagem de Deus,
Tudo e nada num turbilhão de hipóteses fúteis
Que concebo apenas para dar-me algum sentido.
Mais observado que observador.

O Universo, conceito vago, palavra nula,


Serve-me como ideal do infinito.
Mente finita deslumbrada diante do incomensurável.
Rio de mim mesmo, verme filosofante, que me deleito
Com livros e teorias.
Sempre a conjeturar sobre o que não posso tocar,
Enquanto o cotidiano estapeia minha cara entorpecida.

Hipermétrope do intelecto, afundo-me em valas


Sempre contemplando os céus.

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Frederico Galhardo

XI
Das novas gerações

Um bebê chora a ausência da mãe.


Consolo-a, dando-lhe um pirulito envelhecido esquecido em meu bolso.
Descubro então que não fui talhado para isso.

Que mistério horroroso é esse da união de duas minúsculas células


Donde brota um outro ser híbrido!

Moldada pela cultura,


Destruída pelas neuroses familiares,
Esta criatura se agiganta e consome àqueles que lhes deram vida.

Da morte da geração anterior, erguem-se os rebentos do f­ uturo.


Sobre o entulho do passado, constroem um mundo novo
Que nos empurra para as sombras do olvido.

Cada criança que nasce traz-nos uma mensagem:


“O seu tempo passou. Tua lápide te espera”.

Sabendo-me ultrapassado,
Já rabisco meu epitáfio.

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O Vagabundo

XII
O Rato Morto

Hoje acordei com um gosto amargo na boca


E uma dor aguda no peito,
Como se o mundo estivesse contra mim,
Como se todos meus esforços estivessem fadados à ruína
E meu único consolo fossem as mesas de bares (eu que não bebo)
Ou os livros empoeirados da biblioteca.

Caminhei por calçadas ainda molhadas pela chuva de ontem


Esquivando-me de poças, símbolos de minha própria c­ onsciência
angustiada.
Um rato morto, barriga pra cima, figurou-se eu para mim
Na sarjeta da existência, cadáver andante e insepulto.

As portas se fecharam em meu focinho


E, eu, rato-humano, guinchei a procura de atenção.
Mas recebi chutes e vassouradas
E me arremessaram no lixo dos inúteis
Que não servem nem nunca servirão para coisa alguma.

Descartado sem haver sido utilizado,


Esta é minha história.

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Frederico Galhardo

XIII
Por entre nuvens

O sol surgiu por entre nuvens


E, naquele instante, uma pontada de esperança me assolou.

Talvez o mundo não fosse essa desdita


Contra a qual a modernidade vocifera.
Talvez até a existência tenha algum sentido,
Não sejamos apenas bifes racionalizando
Nossa própria racionalidade.
Talvez exista felicidade
E a estupidez que atribuo aos outros
Seja a expressão desse fausto.

Porém, logo as nuvens encobriram o sol


E as coisas voltaram a se acinzentarem.

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O Vagabundo

E, como todo influxo de ânimo,


Encontrei-me uma vez mais desamparado.

A esperança só existe enquanto esperança de que ela exista;


Felicidade?
Um estado de espírito causado pela ignorância
Sobre esse mundo que só nos lança pesares.

E nessa dicotomia de sol e sombras,


De claridade e trevas,
Perambulei,
Intercalando momentos de alegria e náusea.

21
Frederico Galhardo

XIV
Telefonema

O telefone gritou.
Taciturno, fitei-o, recusando-me a mover um músculo sequer.
Prestes a desvelar um dos mistérios mais profundos da e­ xistência
Fui arrancado de minha meditação por essa aberração t­ ecnológica.
Agora, mal me recordo de qual era a resposta,
Ainda menos da própria pergunta que me absorvia.

Tocou, tocou, tocou...

Não haveria de ser alguém importante


Já que importância deve-se a importância que damos aos outros
E, para mim, nada mais importante que minhas indagações.
Se fosse a Verdade a me ligar,

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O Vagabundo

Lançaria-me e agarraria o fone


Como um moribundo agarra-se ao fio de sua vida.

Mas a Verdade não nos liga,


Nós é que devemos contatá-la.
E, após muito esperar,
Descobrimos que ela não estava em casa
Ou que nos mentiu seu número
Ou que nunca jamais existiu
Foi apenas um delírio de um desajustado
Irrequieto com o telefone que não se cala.

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Frederico Galhardo

XV
Imperfeições

Relendo o que escrevi,


Vejo que me repito.
Pobre coitado que não possui
Nada a acrescentar às galerias
Da História e da Literatura.

Debato-me
Lutando contra a sensação de que nada possui sentido,
Ao mesmo tempo em que crio o que há de ser sentido aos outros.
Mas não para mim.

As mentiras que conto não me convencem,


As belas palavras, arrancadas de seu nascedouro, caem mortas
Quando minha mão inábil delas se aproxima.

A triste constatação de que a perfeição é um engodo,


Que nós, imperfeitos, jamais sequer a tangenciaremos
Serve-me, paradoxalmente, de consolo.

Imperfeição por imperfeição


Ainda prefiro as minhas.

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O Vagabundo

XVI
Despertar

Espreguiço-me, mas sou vencido pelo cansaço.


O sol atravessa minha janela,
Lá fora, os carros refletem a luz amarela,
As pessoas enxugam o suor do mormaço.

Aquilo que não faço,


Esconde-se debaixo do meu pijama de flanela.
E numa encarniçada querela
Forço-me a dar o primeiro passo.

No chão morno toco meus pés


Trôpego, perambulo pela casa vazia
E dói-me a saudades da amada que nunca tive.

Lanço-me no sofá e, de través,


Penso e sinto azia:
Enjoado sou de tudo aquilo que vive.

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Frederico Galhardo

XVII
O cair da noite

Anoitece e tenho nos olhos uma dor.


Seria vontade de chorar diante do espetáculo crepuscular
Ou apenas a estafa de sempre pensar sobre o impossível e
Buscar o inatingível?

Penso com os olhos,


Interpreto tudo o que vejo.
Em nenhum outro sentido confio mais.
Se fosse cego, como um Borges ou um Homero,
Certamente seria eu estúpido.

As trevas são meu maior medo.


Sozinho, quando as luzes estão apagadas
E só se ouve na rua o cantarolar dos bêbados,

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O Vagabundo

Encolho-me em minha cama e imagino fantasmas.


Ouço passos na sala e mãos movimentando o trinco da porta.

Torno-me então novamente um crente


Rezando pai-nosso e dez ave-marias.
Quando me recomponho, gargalho comigo mesmo
Por minha covardia.
Adormeço sorridente, pois meus fantasmas sou eu.

Penso com os olhos,


A dor neles é uma dor no pensamento.
O crepúsculo não tem nada a haver com isso —
É apenas o sol sumindo no horizonte, não é milagre,
Não me causa comoção;
Somente uma melancolia,
Pois com a noite vêm os passos na sala
As mãos no trinco
O medo e as rezas
A gargalhada libertadora
E o sono sem sonhos.

27
Frederico Galhardo

XVIII
Antropocentrismo

Estou entediado.
E nesse tédio que torna tudo opaco
Passo a ver tudo com mais claridade.

Vivemos todos numa ilusão de que somos importantes


Cada qual com seu destino traçado
Cada qual com sua missão intransferível.

Mas os bilhões que viveram e se foram


Sem história, sem destino cumprido, sem missão salvadora,
São a prova de que nada há por detrás da vida.
Nenhuns planos divinos, nenhumas realizações i­ mprescindíveis.

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O Vagabundo

De tudo que há, bem que poderia ter sido diferente.


Não houvessem existido os heróis, ditadores, chefes-de-­estado,
Poetas, sábios, cortesãs,
Ainda assim o mundo seria o mesmo:
Girando ao redor de seu próprio eixo,
Girando ao redor do sol,
Provando que nossa existência é contingente,
Mostrando-nos que todos são substituíveis,
E que para o Todo, a ausência ou alteração das partes nada significa.

Ó bicho prepotente chamado homem!


Que coragem é esta de relacionar tudo a ti mesmo?
Que ousadia a de calcular o Universo a partir de teus p
­ arâmetros?
Onde estão esta coragem e ousadia diante do ceifador de vidas
Que com sua foice te tocará a fronte
E porá fim à tua insignificância?

És finitude...
Nada mais.

29
Frederico Galhardo

XIX
Baile das idéias

As pessoas entretêm-se da maneira que sabem


Ou que podem.
Para mim, a maior diversão é acompanhar o correr do meu pensamento.
Os desvios que ele realiza,
Seus saltos conjeturais,
Seu encadeamento alógico logicizado pelas psicologias,
Suas conclusões supostamente originais
Mas que não passam de ruminação de tudo que vimos ou ouvimos.

Recortes do mundo colados à parede da alma


Nossos pensamentos tanto nos velam quanto revelam.

Se algo de novo surgisse em meio a este caos


Então o divertimento se tornaria em fardo,
Pois eu não seria apenas mais um colecionador de idéias
Mas teria de responder por elas.

Para repetir, basta ter ouvidos, olhos e boca,


Mas para criar, é preciso imponência!

30
O Vagabundo

XX
Do lembrar e esquecer

Dizem que viver é aprender.


Máxima que talvez valha para uma ou outra pessoa.
Mas, na maioria das vezes, viver é esquecer.

Nas catacumbas de nossa mente


Enterramos os traumas de criança.
Na indiferença, guardamos as mágoas de adulto.
Na senilidade, as lembranças nos escapam.

Para lembrar, é preciso esforço,


Cavoucar o entulho pretérito
E, se tivermos sorte, encontramos as recordações empoeiradas
Debaixo de algum sentimento embolorado
Ou ao lado do esqueleto de sonhos mortos de inanição.

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Frederico Galhardo

Esquecemos, assim como respiramos ou piscamos os olhos.


Na ampulheta da vida, as memórias escorrem por entre nossos
dedos
Perdendo-se no deserto do que já foi ou do que era pra ser
Mas nunca se realizou.

E se nossa memória sobre nós mesmos é desse modo fugidia,


Que se dirá da memória de nós tida por outros?
Quão rápido não devemos dela desaparecer após termos este mundo
deixado!
Descansando com nossos ancestrais,
Desfrutando da única tranqüilidade existente
No cemitério do que foi esquecido.

32
O Vagabundo

XXI
Teologia

Fiz uma pergunta secreta a Deus...


Por anos esperei uma resposta
Da leitura de fábulas por minha mãe sentada na beira da cama,
Dos lábios do padre no sermão de domingo,
Do giz poeirento arranhando o quadro-negro,
Dos telejornais que só mostram desgraças,
Das mãos da namorada trabalhando dentro de minhas calças
E de mim mesmo, encolhido como um feto sobre o tapete.

Mas só recebi silêncio.


Maldisse então ao Todo-Poderoso
E enterrei minha dúvida na terra fofa de meu coração
E de lá brotou a única certeza que possuo:
Do nada, nada provém.

33
Frederico Galhardo

XXII
Avestruzes

Adoraria ser como aqueles poetas que cantam


O belo, o agradável, o colorido.
Mas não canto, uma rouquidão da voz não me permite (será gripe?)
Nem vejo beleza, agradabilidade ou cores.
Só penso o que vejo e
Só falo o que penso.
Por isso, falo das tristezas que se proliferam em cada esquina
Da cidade cinzenta e feia.

Beleza?
Até poderia mentir e falar de ovelhas,
Pradarias, amores eternos, sentimentos inspirados.
Mas deixo isso com os pastores, eles bem conhecem tais t­ emas.
Pois meus olhos são obrigados a ver o que outros vêem mas fingem
que não.
Se o que escrevo te desagrada, então o real te desagrada.
Melhor será para ti cavares um buraco
E nele enterrares tua cabeça.

Nas trevas, não há belo nem feio


Apenas o vazio.

34
O Vagabundo

XXIII
Decadência

Nada é tão ruim que não possa piorar.


Qualquer situação insustentável pode ficar ainda mais insustentável.

Estamos descendo a rampa, meu filho,


Segura-te em minha mão que o barranco ainda vai longe!
Cíclica decadência do Homem, atingir o vale
Para poder, um dia, quem sabe?, escalar novamente os altos cimos.

Não lutes contra a gravidade, o nosso caminho é para baixo!


Não se debatas, assim perderás o equilíbrio e rolarás morro abaixo
E aí, que Deus te ajude!
Meus ossos são duros, quantas vezes já não caí neste declive?
Arranhões? Por todo meu corpo.
As cicatrizes carrego como medalhas.

35
Frederico Galhardo

Mesmo descendo, mantenho os olhos fixos para o alto.


Não quero perder de vista o que há de melhor
Não quero esquecer-me que, quando descermos, teremos novamente
De escalar essas altas montanhas.

Perdes o fôlego?
Eu também. É mais fácil descer.
Mas tudo que desce um dia há novamente de subir.
As coisas piorarão muito antes de melhorar.

Pois não há nada ruim que não possa piorar.


Tropeçar numa pedra morro abaixo,
Verias que isso sim é doloroso!

36
O Vagabundo

XXIV
Arrependimento

Traí meus antigos camaradas.


De seus projetos de juventude
Esqueci-me. Nada faço que os ajude
A reviver suas metas passadas.

Em folhas rotas e amassadas


Uma canção que compus para alaúde
Brindando a vida e a saúde
Mas as letras estão apagadas.

Não pousem sobre mim seus olhos furiosos


Sei que falhei. Meus gestos pressurosos
Afastaram-me ainda mais de vocês.

Relembrando, quedo-me cansado


Não gosto quando bate à porta o passado
Portando esse ramalhete de mortas flores.

37
Frederico Galhardo

XXV
Gotículas

Tremem meus dedos gélidos.


Quero mais, quero escrever mais,
Mas as idéias me fogem
As palavras se escondem
E ficou eu a caçá-las como se fossem borboletas
Num pequeno jardim em meio ao concreto.

Um chuvisco toca a janela


E os guarda-chuvas caminham lá embaixo.
Se eu pudesse escrever sobre isso
Assim como a isso se sente
Não precisaria mais então de palavras e idéias.
Bastariam-me as gotículas na pele
E eu chuviscaria gostoso
Por meus trêmulos dedos gélidos e molhados.

38
O Vagabundo

XXVI
Soneco

Esticado sou no sofá da sala


Conjugo em todos os tempos o verbo sonecar
E não me venha com repreensões, pois pensar
Não vou sobre a coisa certa. Não vou pensá-la...

Sepulte o certo e o errado nessa rasa vala.


Esqueça-se do que ensinaram. Casar,
Trabalhar, comprar, sofrer, ter, perder, amar.
Venha comigo, eu faço a sua mala.

Fujamos desse mundo que não nos quer!


Escondamo-nos em alguma ilusão
Flanando às margens de um riacho qualquer.

Dizem-me que não tenho coração,


Mas desconhecem-me, julgam-me injustamente.
Tenho-o, mas sou eu quem controla a direção.

39
Frederico Galhardo

XXVII
Nuances

Por três vezes tentei melhorar


E em todas falhei.
Fatalismo contentar-me com o pouco que sou?
Talvez comodismo.
Tenho preguiça, faltam-me forças para me levantar da cadeira
E dar os poucos passos que me separam da janela.

Lá fora, tão cinza quanto aqui dentro.


Por isso, tanto faz eu mudar quanto permanecer o mesmo.
A opacidade do mundo não se desvanecerá
Com meu aperfeiçoamento.
E nem sei se quero que ela se desfaça
E as cores que somente um Van Gogh via
Apeguem-se a esta realidade com a qual estou acostumado

40
O Vagabundo

E que, de certo modo, aprendi a amar.


Meus olhos não suportariam esse florescer de vida
Em tons carregados e pastosos.

Prefiro a névoa matinal que desaparece as pessoas


Ao gritante colorido que machucaria meus sentidos (disso tenho
certeza).
Prefiro a névoa, pois nela também posso desaparecer,
Tornar-me apenas mais um,
Sem nome, sem rosto,
Vulto esbranquiçado, fantasma entre fantasmas.

A névoa é a garantia de que não prestarão atenção em mim


E, assim, posso permanecer o mesmo sem culpa.

41
Frederico Galhardo

XXVIII
Vã filosofia

Concebo em minha mente vagas teorias


Que explicam o mundano e o que está para além,
Que dão conta da vida e da morte,
Da desgraça e da nossa sorte,
Do que foi e do que ainda vai ser,
Da derrota e do prazer de vencer,
E do que é belo e feio aos nossos olhos.

Mas de tão vagas estas minhas teorias


Acabam por coisas nenhumas esclarecerem.
Não possuem nenhum argumento forte,
Tampouco silogismos ou alicerce que as suporte.
São apenas brotos a florescer,
Mas que morrerão sem nunca chegarem a crescer.
Restando dela somente a dúvida como espólio.

Sepulta bem as minhas conjeturas


Para que ninguém um dia as encontre
E as traga ao mundo como se fossem suas
E meu erro como acerto se mostre.

42
O Vagabundo

XIX
Apocalipse

Um anjo (eu que nunca neles antes acreditei) surgiu na penumbra


da noite.
Numa das mãos uma chave dourada,
Noutra uma epístola lacrada.

“Tens estas duas escolhas.


Ou conquistas as riquezas do mundo
Ou desvela os segredos da alma.”

Qual Salomão prostrado diante de Javé


Pedi ciência e sabedoria
Pois cria que delas uso melhor faria.

Desdenhosa, a criatura celeste


Largou sobre mim o papel amarelecido,
Ao qual descerrei enternecido.

Em branco ele estava.


Nem uma única linha escrita,

43
Frederico Galhardo

Apenas a folha que em minhas mãos tremulava.

“Que brincadeira é essa?”


Perguntei, coração furioso,
Mas logo constatei
Que naquele documento misterioso
Sem palavras nem nada
Havia o de mais valioso:
Que os mistérios da alma
Não passam de promessas de um mentiroso.

44
O Vagabundo

XXX
Ode ao presente

Após vagar por ruas e sonhos


Retorno a mim de mãos vazias
E peito aberto.

Busquei respostas,
Encontrei lacunas
E negativas.

O mundo que eu conhecia


Fechou-me na cara a porta,
Fecharam-se ante mim os ferrolhos.

Lágrimas, se as tivesse choraria.


Dores, tenho-as para compartilhar com qualquer um que as queira.
Mas costas voltam-se para mim.
Por isso, eu mesmo carrego esse fardo.

A noite se fecha e, lá no horizonte,


Por entre os rasgos dos edifícios
A homérica Aurora com dedos rosados

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Frederico Galhardo

Perfaz sua escalada.

Mas não há heróis nesse tempo


Para que ela, com seus cachos dourados, celebre.
Só máquinas, asfalto, concreto e nostalgia.
Homens-máquina, mascotes-máquina, jardins-floridos-máquina.
Tudo delimitado, controlado, calculado,
Minuciosamente gerenciado.

Planejo revoluções imaginárias;


Reúno amotinados fantasmagóricos
E nos encontramos em porões do subconsciente
Onde idéias libertárias podem ser encarceradas
Assim que são concebidas.

Não quero mudar, tampouco quero que as coisas mudem.


Não há um Espírito hegeliano que sempre evolua,
Nem imperativos categóricos kantianos sempre a nos impelir ao bem,
Nem sociedades igualitárias, nem futuro grandioso.

Há sim demônios, sempre a nos arrastar para baixo,


Convencendo-nos de que assim é melhor.
Quando constatamos, já estamos mergulhados na lama,
Atolados até o pescoço, boca cheia de vermes e serpentes.

Acreditas realmente na Humanidade?


Acreditas realmente na bondade humana?
Realmente crês na evolução?

Por que estás, então, sentado diante da TV,

46
O Vagabundo

Enfiando esta mão gordurosa cheia de pipocas na boca?


Até quando serás um espectador da vida?

Eu, que não quero ser grande,


Posso me dar ao luxo de nada fazer,
De zombar dos grandes ideais.
Mas tu, idealista, otimista, romântico,
Vá e cumpra tua missão.

Mas não me culpes quando quebrar os dedos


De tanto bater em portas cerradas,
Ou quando tua garganta secar
De falar a ouvidos surdos,
Ou quando tuas pernas fraquejarem
Após muito ter andado e nada conseguido.

O sol está alto


E agora é hora de eu me deitar.
Boa noite, meu amigo, desejo-te sincero sucesso
Mesmo que eu não creia nele.
Mas, se realmente mudares o mundo,
Volta e me avisa
Para que eu tenha tempo de empacotar minhas coisas
E procurar um outro lugar
Que seja tão cinzento quanto meus sonhos.

47
Sobre o Autor
Frederico Galhardo é um poeta sem querer sê-lo.
Para este jovem curitibano, a poesia é um duelo entre o poeta e as palavras;
duelo que sempre termina com a derrota do primeiro. Esta frustração, este
desânimo diante duma tarefa muito superior a si está presente na obra de
Frederico, mas até mais do que isto, na vida deste escritor.
Henry Alfred Bugalho

UTOPIA

Flanei pelas ruas, buscando sei lá o quê.


Nas vitrinas, consumo e cores.
Nas calçadas, panfletos e bitucas de cigarro.
Seres anônimos passaram por mim, semblantes sérios, passos apressados.
Escravos das horas, servos do trabalho.
Eu, um vagabundo nauseabundo os invejei,
Sempre tão ocupados, sempre em cima da hora, sempre indo para algum lugar.
Meu ócio me envergonhou e, num banco de praça, ocioso me envergonhei.
Depois, em casa, deite-me, ronquei, babei, sonhei.
Com um mundo desocupado sonhei, todos poetas e filósofos
Contempladores do universo, sem relógios nem rugas de preocupação.
Apenas o tempo a passar sem que ninguém se preocupe com ele
E a vida a ser vivida sem que por ela dessem conta.

Vagabundo vaguei pelas vielas do sonho,


E lá encontrei sei lá o quê.

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