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O autor é responsável pela escolha e pela apresentação dos fatos contidos nesta publicação

e pelas opiniões aqui expressas, que não são necessariamente as da UNESCO e não comprometem
a Organização. As designações empregadas e a apresentação do material não implicam a
expressão de qualquer opinião que seja, por parte da UNESCO, no que diz respeito ao status
legal de qualquer país, território, cidade ou área, ou de suas autoridades, ou no que diz respeito
à delimitação de suas fronteiras ou de seus limites.
edições UNESCO BRASIL

Conselho Editorial da UNESCO


Jorge Werthein
Juan Carlos Tedesco
Cecilia Braslavsky
Adama Ouane
Célio da Cunha

Organização e Seleção: Célio da Cunha e Maria Luiza Monteiro


Revisão Técnica: Suely Teixeira
Revisão: DPE Studio
Assistente Editorial: Larissa Vieira Leite
Diagramação: Fernando Brandão
Projeto Gráfico: Edson Fogaça

Copyrigth ©2002, UNESCO

Werthein, Jorge
Construção e identidade: as idéias da UNESCO no Brasil / Jorge Werthein.
– Brasília : UNESCO, 2002.
292p.

ISBN: 85-87853-53-8

1. Cooperação Técnica Internacional 2. Organizações Internacionais


3. UNESCO – Brasil 4. Educação 5. Meio Ambiente 6. AIDS 7. Cultura
8. Desenvolvimento Social 9. Comunicação I. UNESCO II. Título

CDD 337.1

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura


Representação no Brasil
SAS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6,
Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9º andar.
70070-914 – Brasília – DF – Brasil
Tel.: (55 61) 321-3525
Fax: (55 61) 322-4261
E-mail: UHBRZ@unesco.org
SUMÁRIO

Apresentação .....................................................................................................9

Abstract ............................................................................................................11

EDUCAÇÃO EM PERSPECTIVA:
• Educação de Adultos e Democracia ...............................................15
• A Universidade no Século XXI .......................................................18
• Educação, Emprego e Cidadania ..................................................... 21
• Novas Perspectivas para o Magistério ...........................................24
• Educação: o Desafio da Qualidade .................................................27
• Morin e a Educação do Futuro ........................................................30
• Educação e Cultura do Esporte.......................................................33
• Parabéns Goiás ....................................................................................37
• Alfabetismos ou Analfabetismos ...................................................... 39
• A Educação como Fator de Universalização
da Cidadania .......................................................................................42
• Cidades Educadoras como Perspectiva de
Educação Permanente ........................................................................45
• Por uma Concepção Multidimensional da Avaliação
em Educação .......................................................................................50
• A relevância da Educação Infantil ...................................................53
• Plano Nacional de Educação – PNE: uma nova
etapa da Política de Educação para Todos ....................................56
• O SESI e o Sentido dos Novos Tempos........................................ 60
• A Continuidade da Política Educacional .......................................62
• A UNESCO e o Plano Nacional de Educação ............................. 65

5
• A UNESCO e a Educação Superior no Século XXI ...................73
• Educação para Todos – um Imperativo do Nosso Tempo ..........76

MEIO AMBIENTE: RESPONSABILIDADE COMPARTILHADA


• Os parlamentos na Luta Contra a Desertificação .........................81
• Título de Patrimônio Natural pelo Pantanal
e Título de Cidadão Mato-Grossense ............................................88
• Gestão Compartilhada dos Recursos Hídricos ............................91
• O Código do Desmatamento ..........................................................94
• Pantaneiros, Cidadãos do Mundo ...................................................97
• A água para o Desenvolvimento ................................................... 100

AIDS: E STRATÉGIAS DE R EVERSÃO


• Dia Mundial de Combate à AIDS ................................................ 105
• Um novo perfil para a Segurança Internacional
no Século XXI ................................................................................. 109
• AIDS: Fortalecendo Alianças ....................................................... 113
• Resposta Nacional à AIDS ............................................................ 115
• AIDS: uma Estratégia para o Cone Sul ....................................... 117
• AIDS: a Importância da Educação Preventiva ........................... 119
• Política para a AIDS: Avanços e Desafios................................... 122
• Vitórias do Brasil ............................................................................. 128

CULTURA E DIVERSIDADE CRIADORA:


• A Rota do Escravo .......................................................................... 133
• Preservar o Passado e Investir no Futuro .................................... 135
• São Luís, Patrimônio de Todos ..................................................... 138
• Brasília: Síntese do Brasil ............................................................... 140
• Quinhentos Anos de Memória...................................................... 143
• Goiás: a Luta pelo Reconhecimento ........................................... 146
• Analisar o Presente, Pensar o Futuro ........................................... 149
• A UNESCO e as Cidades Patrimônio Mundial do Brasil ........ 153
• A UNESCO e o Compromisso com Goiás ................................ 158

6
CONSTRUINDO UMA CULTURA DE PAZ:
• Tolerância e Paz ............................................................................... 163
• Juventude, Violência e Educação para a Cidadania .................. 166
• Cultura de Paz: a Importância do Poder Legislativo ................ 169
• O programa da UNESCO por uma Cultura de Paz .................. 174
• Abrindo Espaços: uma Nova Cultura Escolar ............................ 180
• O Brasil e a Assembléia do Milênio ............................................ 186
• Cultura da Paz ou Cultura da Violência? .................................... 190
• Caubóis ou Heróis do Asfalto? .................................................... 193
• A Promoção da Cultura de Paz .................................................... 196
• Novos Espaços para a Paz ............................................................. 200
• Violências contra a Mulher: Sentidos Múltiplos ....................... 203

D ESENVOLVIMENTO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS:


• Democracia, Cidadania e Direitos Humanos ............................. 209
• Uma Nova Ética para o Desenvolvimento ................................. 212
• A UNESCO e a Busca de Novas Alternativas ........................... 215
• Banco de Tecnologias Sociais ....................................................... 217
• A UNESCO e a Responsabilidade Social no Brasil.................. 219
• Os Parlamentares e o Futuro das Américas ................................. 226
• A Renovada Força do Multilateralismo....................................... 230
• A Juventude e a Capacitação: aprendizado para
a vida na economia do conhecimento ......................................... 233
• Juventude, Violência e Cooperação Internacional
para o Desenvolvimento na América Latina ............................... 237
• A UNESCO e a Geração de Tecnologias Sociais ..................... 243
• Direitos Humanos e Desenvolvimento ....................................... 246

COMUNICAÇÃO, INFORMAÇÃO E LIBERDADE DE IMPRENSA:


• Democracia e Liberdade de Expressão....................................... 251
• As Mulheres e o Quarto Poder ..................................................... 254
• Brinquedos perigosos ..................................................................... 257

7
• A Sociedade da Informação e seus Desafios .............................. 260
• Quem está Escrevendo o Futuro – o Papel da Mídia ............... 277
• As Mulheres Fazem a Notícia ....................................................... 281
• Educação para a Mídia: Responsabilidade de Todos ................ 284
• Liberdade de Imprensa: o Exemplo de
Carlos Heitor Cony ....................................................................... 288

8
APRESENTAÇÃO

A UNESCO, em cumprimento ao seu mandato de subsidiar a


construção de uma cultura de paz, mediante o intercâmbio educacional,
científico e cultural entre os povos, reuniu, ao longo de sua existência de
mais de meio século, um acervo de conhecimentos, de experiências e de
compromissos fundados na ética e na eqüidade, que a credenciou como
uma das organizações mais bem preparadas para enfrentar as incertezas e
as desigualdades do nosso tempo.

Tradicionalmente, no entanto, esse acervo só era acessível a umas


poucas pessoas e instituições de cada um dos 186 países-membros que
integram a Organização. Aqueles que deveriam ser seus principais
destinatários, quais sejam, os segmentos mais vivos da sociedade civil,
deles permaneciam à margem, dificultando, por conseguinte, a circulação
de idéias renovadoras e de compromissos relevantes para o
desenvolvimento social.

Com vistas a reduzir essa distância e colocar as ideais da UNESCO


em circulação e em debate, de forma simultaneamente a dar-lhes maior
visibilidade e testar sua pertinência, a Organização desenhou no Brasil
um modelo de atuação com base em amplas parcerias com os setores
público e privado e com dezenas de entidades da sociedade civil.

Essas parcerias têm possibilitado à UNESCO se fazer presente em


diversos cenários sociais do país. Mais do que isso, têm possibilitado a
internalização e incorporação de idéias, metas e compromissos discutidos
e aprovados por diversos segmentos dos países que integram a Organização.
E quanto mais isso ocorrer tanto melhor, pois os ideais e o acervo de

9
conhecimentos da UNESCO tem como elementos fundantes os princípios
e diretrizes que valorizam a vida e a dignidade das pessoas.

Assim sendo, os artigos e discursos de Jorge Werthein, reunidos


neste livro sob o título de Construção e Identidade: as Idéias da UNESCO no
Brasil, traduzem um pouco do enorme esforço que a Organização tem
feito nos últimos anos no sentido de dar seguimento aos diversos
compromissos e recomendações firmados em nível internacional com a
participação de governantes, intelectuais e líderes da sociedade civil.

Os artigos e discursos classificados em sete áreas e setores –


Educação, Meio Ambiente, AIDS, Cultura, Cultura de Paz,
Desenvolvimento Social e Direitos Humanos e Comunicação e Liberdade
de Imprensa dão uma idéia mais precisa da extensão e abrangência das
atividades desenvolvidas pela UNESCO Brasil. Todos eles convergem
para um objetivo comum que é o ser das pessoas. Em outras palavras, os
artigos e discursos de Jorge Werthein expressam a esperança da
Organização num mundo mais humano e solidário.

Defendendo a diversidade cultural e criadora, a política de educação


para todos, o patrimônio histórico, a educação ambiental, os direitos humanos,
a liberdade de imprensa ou defendendo uma educação preventiva em se
tratando de AIDS, drogas e violências, os textos de Jorge Werthein apontam
em direção à necessidade que todos nós sentimos de construir um novo século
sustentado pelos pilares da identidade, da justiça e da solidariedade.

Célio da Cunha
Assessor da UNESCO

10
ABSTRACT

This book is a collection of articles written by the UNESCO


Representative in Brazil and published in various newspapers. It is also a
collection of speeches from scientific, cultural, and political events. These
articles and speeches encompass the efforts of the agenda to implement
the commitments and ideas in Brazil that were approved by the 186
Member Countries of the Organization.

The articles and speeches are grouped into seven broad areas of
knowledge and action. These are, respectively: Education in Perspective;
the Environment – Shared Responsibility; AIDS - Strategies for Reversion;
Culture and Creative Diversity; Building a Culture of Peace; Social
Development and Human Rights, and Communication, Information and
Freedom of the Press.

All of the articles and speeches point to the fight for a common
objective. This objective incorporates assuring education and culture
for all, stimulating scientific and technological development, guaranteeing
access to information and knowledge, and preserving freedom of the press.
This is done while keeping the primary goal of UNESCO in sight at all
times, and that is the goal of a culture of peace.

11
Educação
em Perspectiva
Educação de Adultos e Democracia1

Um dos pontos altos da Declaração de Hamburgo (14 a 18 de julho


de 1997) sobre educação de adultos foi o reconhecimento de que a
educação permanente não constitui apenas um direito de todas as pessoas,
mas é uma das chaves para as aspirações de cidadania do século XXI. Os
desafios do próximo milênio, sobretudo os que se referem à urgente
necessidade de reduzir a miséria e a exclusão social, requerem a
instauração de um sistema permanente de educação de adultos, tanto para
erradicar o analfabetismo quanto para assegurar, ao longo da vida,
condições de aquisição e renovação dos conhecimentos básicos
indispensáveis.

Diante do quadro de desigualdades sociais predominantes em várias


partes do mundo, a educação de adultos sobressai como estratégia
insubstituível de proteção aos direitos humanos e de combate à pobreza,
requisito fundamental para a construção democrática.

Os países da América Latina estão empenhados na tarefa de


consolidar uma ordem democrática. Esse objetivo expressa um
compromisso entre a sociedade e os governos e obriga a realização de
esforços no sentido de repensar os diferentes segmentos da vida nacional,
nos termos dessa consolidação. É certo que a educação, por si só, não
opera milagres. Todavia, ela destaca-se como mecanismo acelerador de
mudanças em direção a um cenário democrático, mais eqüitativo.

1
Artigo publicado nos jornais: “Folha de S.Paulo”, em 07/06/1998; “O Popular”, GO, em
10/06/1998; “Diário de Pernambuco”, em 19/06/1998; “A Notícia”, SC, em 11/02/2001.

15
Para que a educação de adultos cumpra essa tarefa, precisa ser repensada
com o objetivo de evitar enfoques parciais de sua amplitude e abrangência.
Torna-se necessário atentar para as necessidades especiais da educação de
adultos no contexto do seu trabalho, de suas representações e percepções da
realidade e de suas condições de vida. Algumas ações de suplência na América
Latina acreditam ainda que será suficiente repetir, para os adultos, uma versão
comprimida dos conteúdos da escola destinados a crianças e adolescentes.

A educação de adultos deve seguir um caminho que leve em conta


as experiências do homem adulto, que valorize e reconheça seus
aprendizados tácitos. Não se trata de mudar somente a linguagem ou de
dar aos conteúdos uma seqüência diferente. Trata-se, antes, de encontrar
novos estilos de ação que associem o trabalho aos problemas sociais e
políticos da vida cotidiana dos adultos.

Por outro lado, é preciso estar alerta para a predominância do


critério economicista na educação, que é uma tendência geral do fenômeno
da globalização. A educação de adultos não pode dissociar formação de
mão-de-obra de uma visão humanista das relações sociais e econômicas.
Não pode dissociar competência de cidadania.

A educação de adultos, em sua vinculação com a democracia, precisa


habilitar ao exercício público da participação e da solidariedade. A
compreensão da língua nacional, o aprendizado da escrita, da leitura, o
domínio dos símbolos e operações matemáticas básicas e o domínio dos
códigos sociais são indispensáveis para o posicionamento do indivíduo
face a sua realidade. É neste sentido que ela se insere na luta pela construção
democrática e constitui uma das chaves para a cidadania do século XXI.

A consolidação progressiva das estruturas democráticas implica formar


a população para participar, plenamente, da vida política, social e cultural do
país. Incorporando a essa participação consciente segmentos cada vez mais
amplos da população, contribui-se para fortalecer a democracia e garante-se
o seu aperfeiçoamento.

16
A América Latina, cada vez mais próxima de universalizar o ensino
fundamental para crianças, deverá seguir essa tendência, buscando, por
um lado, a universalização do ensino médio e por outro, a educação
permanente de jovens e adultos, política fundamental para que as
aspirações democráticas se concretizem. Depõe a favor desse argumento
o fato de que os adultos serão líderes e agentes de um processo educativo
mais amplo do que a escola e que, na medida em que eles compreendam
a importância e o valor da educação básica, vivenciem a questão
educacional como uma necessidade e um problema, exigirão mais e
melhores escolas para seus filhos.

Esse é o efeito reversível da educação de jovens e adultos e também


a sua dimensão econômica como investimento.

17
A Universidade no Século XXI2

A UNESCO se preocupa, há muito, com o destino da universidade.


As razões são inúmeras. Entre as funções que dão vida e sentido à atuação
mundial da Organização, destacam-se o intercâmbio, o fomento e a
transferência de conhecimentos, bem como a função prospectiva, a qual
busca identificar tendências, antecipando o futuro com êxito e
competência.

A Conferência Geral da UNESCO, em 1993, determinou a elaboração de


um instrumento de tendências, publicado em 1995, sob o título “Política
Mundial de Desenvolvimento no Ensino Superior”. Aborda, com clareza, questões
cruciais da universidade, tais como financiamento, acesso e qualidade,
autonomia, avaliação, democratização de oportunidades, relevância social,
mercado de trabalho, gratuidade, diversificação, relação com outros níveis
de ensino, pesquisa e pós-graduação, infra-estrutura e internacionalização.

O documento deixa clara a preocupação da UNESCO com o estado


de crise do ensino superior em, praticamente, todos os países. Apesar de
haver no mundo mais pessoas matriculadas em cursos superiores (eram 13
milhões em 1960, são 82 milhões em 1995), a capacidade de suporte
público está declinando. A diferença entre os países em desenvolvimento
e os desenvolvidos, no que se refere ao ensino e à pesquisa, que já era
enorme, está ficando maior.

2
Artigo publicado no jornal “Folha de S.Paulo”, em 06/11/1998.

18
Para dar continuidade a esse debate e à efervescência de idéias que
o acompanha, a UNESCO está promovendo nesta semana, em Paris, a
Conferência Internacional do Ensino Superior para o Século XXI, reunindo especialistas
de todo o mundo. Seu documento final reunirá as qualidades principais
para estabelecer um novo paradigma de desenvolvimento da universidade,
no próximo século.

Entre os princípios que a UNESCO defende para a universidade


do próximo milênio, destacam-se os seguintes:

1) Ser uma comunidade plenamente engajada na criação e na


disseminação do conhecimento e no avanço da ciência,
participando do desenvolvimento de inovações tecnológicas.

2) Ser um local de aprendizagem fundado somente na qualidade e


no conhecimento, que induza, especialmente nas mentes dos
futuros graduandos, o compromisso em perseguir o conhecimento
e um sentimento de responsabilidade para colocar o treinamento
a serviço do desenvolvimento social.

3) Ser uma comunidade na qual a cooperação com a indústria e os


serviços para o progresso econômico, da região e do país, sejam
ativamente apoiados.

4) Ser um local onde questões e soluções importantes, em nível


local, regional, nacional e internacional sejam identificadas,
debatidas e encaminhadas, em um espírito de crítica construtiva,
encorajando a participação ativa dos cidadãos nos debates sobre
o progresso social, cultural e intelectual.

5) Ser um local em que governos e outras instituições públicas


possam obter informações científicas e seguras para as freqüentes
solicitações de tomadas de decisão.

19
6) Ser uma comunidade cujos integrantes, plenamente
comprometidos com os princípios de liberdade acadêmica, se
engajem na busca da verdade e na defesa de direitos humanos,
democracia, justiça, justiça social e tolerância (em suas
comunidades e no mundo), participando do processo de
instrução para o genuíno exercício da cidadania e a construção
de uma cultura de paz.

Todos esses princípios estão em pauta na Conferência de Paris. Os


participantes, dentre eles representantes do Brasil, deverão comprometer-
se com medidas que ponham em prática os enunciados referentes à
educação superior contidos na Declaração dos Direitos Humanos, cujo
cinqüentenário será comemorado em 10 de dezembro, e na Convenção Contra
a Discriminação na Educação, de 1960. A UNESCO e seus Estados-Membros
estão convencidos de que a educação é o pilar fundamental dos direitos
humanos, da democracia, do desenvolvimento sustentável e da paz. Será,
portanto, a prioridade máxima do mundo no século XXI.

20
Educação, Emprego e Cidadania3

A globalização traçou um novo mapa do mundo, fazendo surgir


novos pólos de dinamismo, baseados no comércio mundial, diz o Relatório
Mundial da Educação da UNESCO, coordenado por Jacques Delors. A
competitividade desenfreada tornou-se uma regra, obrigando todos os
países a arranjar trunfos específicos para participar do desenvolvimento
das relações econômicas, tornando ainda mais transparente a separação
entre os que ganham e os que perdem. Em outras palavras, para usar a
expressão de Federico Mayor, Diretor-Geral da UNESCO, entre os que
globalizam e os que são globalizados.

O elevado grau de competitividade ampliou a demanda por


conhecimentos e informações. As mudanças que já se efetivaram ou as
que estão em curso atingem a estrutura social, em sua totalidade, gerando
incertezas crescentes quanto ao futuro. No setor trabalho, o consagrado
modelo fordista-taylorista está cedendo lugar a novos desenhos conceituais
e operacionais. As tendências atuais valorizam e dão destaque à inteligência
distribuída e à elevação contínua da qualidade; enfatizam, igualmente, o
desenvolvimento de capacidades que permitam a indispensável adaptação
a mercados em constante mutação e oscilação.

Em decorrência, a educação passou a ocupar posição estratégica


no processo de competitividade. Vários países têm procurado reformar
seus sistemas de educação com o intuito de prepará-los para fazer face às

3
Artigo publicado nos jornais: “Folha de S.Paulo”, em 03/02/1999; “O povo”, CE, em 28/03/1999.

21
novas demandas. No caso da educação profissional, as agências executoras
começam a ampliar programas e a elevar os níveis de exigência em matéria
de escolarização para admitir candidatos a diversos tipos de cursos básicos
de formação profissional. No entanto, essa solução pode deixar de lado
contingentes de trabalhadores desempregados ou vulneráveis ao
desemprego. Muitas empresas, por exemplo, já estão substituindo
trabalhadores de baixa escolarização por pessoas mais qualificadas,
mantendo o mesmo salário. A crise do desemprego, devido ao uso intensivo
de tecnologias poupadoras de mão-de-obra, em ritmo ascendente e sem
previsões, favorece a exclusão dos que ainda não lograram atingir níveis
mais elevados de escolarização.

Os novos desenhos conceituais têm procurado dar respostas aos


novos desafios, incluindo, na formação profissional, metodologias e
conteúdos cognitivos e sociais de acordo com os paradigmas emergentes.
Todavia, não se pode perder de vista o fato de que, se fosse possível
assegurar a todos as mesmas competências, o problema da exclusão
continuaria, devido ao crescente desemprego. De acordo com a lúcida
conclusão do Relatório Mundial da Cultura, organizado por Pérez de Cuellar,
devido ao uso de tecnologias de capital e de conhecimento intensivo, o
emprego para a vida toda praticamente não existe mais. Esse mesmo
relatório alerta para o fato de que não basta apenas educar. É preciso
empregar, convenientemente, os conhecimentos adquiridos. Trata-se de
um dos maiores desafios a serem enfrentados pelas políticas públicas da
atualidade.

Não há solução à vista para o problema do desemprego, como


também não há consenso entre os estudiosos sobre como solucionar o
impasse da exclusão. No plano da política educacional, o que a UNESCO
tem procurado incentivar e dar destaque, em inúmeros documentos que
tratam do assunto, é a importância de estabelecer eixos norteadores que
garantam, simultaneamente, a aquisição de conhecimentos básicos ao
mundo de hoje e o desenvolvimento da cidadania. O binômio
conhecimentos básicos/cidadania sobressai pelo fato de que os desafios e

22
impasses atuais demandam soluções que não sejam impostas, mas
negociadas publicamente.

Não é mais suficiente alfabetizar e oferecer um treinamento


profissional rápido. Os socialmente engajados, para usar a expressão de
J.K. Galbraith, precisam estar atentos às mudanças que se operam no plano
da progressiva internalização dos direitos de cidadania, os quais se farão
presentes, seguramente, nas agendas internacionais e nacionais do século
XXI. O fortalecimento das pessoas pela educação cidadã, de qualidade,
será sempre um caminho seguro para enfrentar a crise do desemprego.
Pessoas educadas, mais do que treinadas, estarão em melhores condições
de repensar alternativas.

23
Novas Perspectivas para o Magistério4

Em outubro de 1966, foi aprovada pela Conferência Internacional


convocada pela UNESCO, em cooperação com a Organização Internacional
do Trabalho – OIT, a Recomendação relativa à situação do pessoal docente.
O documento, partindo do princípio de que a educação deveria
desenvolver o mais profundo respeito pelos direitos humanos, exigia que
os educadores desfrutassem de uma situação justa e que a profissão docente
alcançasse a credibilidade pública a que faz jus.

A Recomendação de 1966 é um documento extenso e abrangente. Seus


146 artigos abordam diferentes ângulos da profissão docente. Após sua
aprovação, foi constituído um Comitê Conjunto de Peritos UNESCO/OIT para
acompanhar sua aplicação pelos diversos Estados-Membro de ambas as
organizações das Nações Unidas.

Em 1998, a UNESCO editou o Relatório Mundial da Educação, dedicado


aos docentes e ao ensino em um mundo em transformação. No preâmbulo
desse documento, Federico Mayor, Diretor-Geral da UNESCO,
reconhece que os 57 milhões de docentes existentes no mundo devem
receber boa formação e remuneração adequada, bem como se torna
necessário dotar as escolas de condições que facilitem o desenvolvimento
efetivo do ensino e da aprendizagem.

4
Artigo publicado nos jornais: “Folha de S.Paulo”, em 30/03/1999; “Estado do Maranhão”, em
13/04/1999.

24
O Relatório de 1998, tomando como eixo norteador a Recomendação
de 1966, procede ampla análise de todos os fatores envolvidos na
valorização da profissão docente. Uma das preocupações manifestadas
pela UNESCO nesse relatório é o fato de que muitos países continuam a
admitir professores sem o devido preparo, o que dificulta a valorização
profissional. Desde a aprovação da Recomendação de 1966 até os dias
atuais, os professores e o ensino não têm sido, verdadeiramente, o eixo
norteador das políticas de educação no mundo.

No Brasil, a recente divulgação do balanço do primeiro ano de


funcionamento do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e
de Valorização do Magistério – FUNDEF, torna oportunas algumas considerações.
Desde sua proposta, em 1995, até sua promulgação e início de execução,
a UNESCO o vem acompanhando com interesse devido a sua dimensão
inovadora como política social.

O que chama a atenção, no balanço do primeiro ano do FUNDEF,


é seu impacto redistributivo. O valor por aluno/ano antes e depois de sua
aprovação, sobretudo nas regiões mais carentes do País, não deixa dúvidas
quanto a sua relevância como política pública. Em algumas situações,
verificou-se um salto de R$101,00 para R$315,00 aluno/ano, provocando
efeito favorável em mais de 2.000 municípios. Além disso, o FUNDEF
atuou como fator positivo na política de educação para todos.

Em decorrência, a taxa de escolarização, na faixa etária dos 7 aos


14 anos, está perto dos 96%, colocando o Brasil em situação bem próxima
a dos países desenvolvidos.

Em termos de repercussão sobre a remuneração do magistério, o


impacto do FUNDEF pode também ser considerado alentador. Elimina,
praticamente, o quadro trágico de salários vis abaixo de R$100,00, por
mês, e aumenta a remuneração média (jornada de 20 horas) para R$229,00.

O desempenho inicial do FUNDEF deve ser visto como um começo


promissor. O que o diferencia de algumas tentativas postas em prática em

25
outros países é o fato de se caracterizar como uma mudança estrutural,
com apoio na Constituição do País. O mecanismo operacional concebido
em forma de um fundo de natureza contábil, que reúne 15% dos principais
impostos dos Estados e Municípios, redistribuindo-os proporcionalmente
ao número de alunos efetivamente matriculados nas redes estaduais e
municipais, representa um admirável avanço em direção à eqüidade
educacional. Além disso, o FUNDEF obriga a que 60% dos recursos sejam
aplicados na remuneração do magistério, em sala de aula efetivamente.

Como diz um especialista em políticas públicas – Bernardo


Kliksberg – os países que lograram êxito na área de educação foram aqueles
que conseguiram dar sustentação e continuidade às políticas implantadas.
O FUNDEF permite isso. Sua concepção lógica favorece a obtenção de
ganhos progressivos, o que tende a facilitar sua consolidação. É claro que
o valor atual, de R$315,00/ano, está aquém do mínimo desejado para um
ensino de qualidade. Ressalve-se, entretanto, que os déficits educacionais
que o Brasil acumulou ao longo de sua história, aliados às dificuldades
econômicas existentes, não permitem operar um milagre repentino, mesmo
porque isso não existe em educação.

A luta pela valorização do magistério continua, com a vantagem de


que, doravante, passa a se dispor de um mecanismo claro e objetivo que
é o gasto/aluno/ano, em torno do qual deverão ocorrer as futuras
negociações.

Uma última observação parece-me oportuna. A presença do


FUNDEF, somada à determinação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – LDB, de, no prazo de 10 anos, não admitir na
profissão docente pessoas sem formação superior específica, aliada à
política do governo de criar mecanismos que possibilitem o cumprimento
dessa meta, seguramente, coloca a profissão docente no Brasil em uma
nova e promissora etapa de lutas.

26
Educação: o Desafio da Qualidade5

Não falta muito para o Brasil situar-se no patamar dos padrões


internacionais no que se refere à democratização de seu sistema de ensino.
Os recentes relatórios de avaliação, elaborados pelo Ministério da
Educação e pela UNESCO e a Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômico – OCDE, deixam isso bastante evidente.
Os progressos alcançados na década de 90, em termos de aumento de
cobertura, na educação fundamental, média e superior, são, de fato,
impressionantes.

Na educação fundamental, com 36 milhões de crianças matriculadas, o


Brasil eleva a cobertura para 96%, bem próxima a dos países mais
desenvolvidos; no ensino médio, a matrícula saltou de 3,7 milhões, no começo
da década de 90, para mais de 7,7 milhões neste final de século, com
perspectivas concretas de chegar a 10,4 milhões em 2005; no ensino superior,
o salto não foi menos significativo, passando de 1,5 milhão de alunos, em
1990, para, aproximadamente, 2,3 milhões nos dias atuais, cujo aumento é
assegurado pela própria expansão dos concluintes do ensino médio.

Permeando essa expansão sem precedentes, a década de 90 assinala


uma das maiores conquistas da política educacional brasileira, qual seja,
o fortalecimento da vontade nacional por mais educação, bem como os
progressos, no âmbito da sociedade civil, do direito à educação, quer
por intermédio de uma presença maior dos pais e responsáveis pelos alunos

5
Artigo publicado na “Revista Aprender”, nº 1, mai./jul., 2000.

27
nos destinos da escola, quer por meio da imprensa, a qual tem procurado
dar o devido lugar à importância da educação no futuro do País. É oportuno
lembrar que quase 1/3 da população brasileira encontra-se envolvida com
algum tipo de educação, formal ou informal.

No entanto, se, por um lado, podem ser comemorados os resultados


alcançados em direção à democratização do sistema de ensino, por outro,
o maior desafio a ser enfrentado começa a estabelecer os contornos de
sua magnitude: refiro-me ao problema da qualidade. O Relatório da
UNESCO-OCDE, ao apontar o problema da cultura da repetência como
um dos maiores impasses da educação brasileira, coloca em debate um
dos pontos nevrálgicos do novo desafio, ou seja, o da qualidade.

Inúmeras medidas já estão em curso nessa direção, em um esforço


coordenado e integrado pelas três instâncias da administração educacional
brasileira – a União, os Estados e os Municípios. Todavia, o seu
enfrentamento, com êxito, é consideravelmente mais difícil que o desafio
da quantidade. Sua complexidade se amplia devido a vários fatores
presentes, entre os quais destaca-se o da diversidade sociocultural. A
qualidade do ensino demandada pelo século XXI não se refere somente à
melhoria dos processos cognitivos ou da educação para o desenvolvimento
de mapas conceituais. O fator cidadania intercultural, por exemplo, passa
a integrar o conceito contemporâneo de qualidade em educação. Uma
das lutas do próximo milênio será pela universalização da cidadania e isso
demanda uma nova pedagogia da qualidade.

Entre as tendências da educação para o século XXI, ganha força,


em todo o mundo, a necessidade de formação de um cidadão solidário,
capaz de circular, democraticamente, no seio de diversas culturas, em
busca do que é humano e indispensável a todas as pessoas. Nessa
perspectiva, a chamada competitividade em educação subordina-se aos
fins maiores de solidariedade e da justiça. O Relatório Jacques Delors,
publicado em português pela UNESCO, em 1996, depois de muitas
discussões, chegou à conclusão de que pelo menos quatro eixos

28
fundamentais devem nortear a educação no século XXI – aprender a aprender,
aprender a fazer, aprender a conviver juntos e aprender a ser. Esses quatro pilares
devem estar presentes na política de melhoria da qualidade da educação,
pois eles abrangem o ser em sua totalidade, do cognitivo ao ético, do
estético ao técnico, do imediato ao transcendente. A visão de totalidade
da pessoa integra a moderna concepção de qualidade em educação.

O Brasil, pela potencialidade e perspectivas de inúmeras experiências


em curso, no âmbito do Governo Federal, dos Estados e Municípios e no
âmbito da sociedade civil, tem condições de enfrentar o desafio que se
coloca e se define como suprapartidário – da Nação – e de radical
continuidade devido à própria necessidade de educação permanente.

A educação, ao longo de toda a vida, ganha força e provocará


profundas mudanças na concepção escolar.

O enfrentamento exitoso desse desafio, na medida em que possibilitar


a efervescência criativa da diversidade cultural brasileira, certamente
credenciará o País como um dos interlocutores dos novos tempos.

29
Morin e a Educação do Futuro6

Em 1999, a convite da UNESCO, Edgar Morin aceitou o desafio de


expor suas idéias sobre a educação do futuro. O resultado foi a produção
de um avançado texto sobre os saberes necessários à educação do próximo
milênio, o qual está sendo lançado no Brasil, nesta semana, com a presença
desse iminente pensador da complexidade.

Um pouco antes, em 1996, a UNESCO já havia empreendido um


grande esforço de repensar o papel da educação no contexto da
mundialização das atividades humanas, por intermédio da Comissão Mundial
para a Educação do Século XXI, presidida por Jacques Delors, o qual elaborou
um amplo relatório propondo quatro pilares para servirem de base à
educação do próximo milênio – aprender a conhecer, aprender a fazer,
aprender a viver juntos e aprender a ser.

Por sua vez, Edgar Morin, devido a sua excepcional visão integradora
da totalidade, pensou os saberes na perspectiva da complexidade
contemporânea, explorando novos ângulos, muitos dos quais ignorados
pela pedagogia atual, para servirem de eixos norteadores à educação do
próximo milênio

Os saberes propostos por Morin que, como ele mesmo afirma,


antecedem qualquer guia ou compêndio de ensino, inserem-se na idéia
de uma identidade terrena onde o destino de cada pessoa joga-se e decide-

6
Artigo publicado nos jornais: “Jornal do Brasil”, RJ, em 23/06/2000; “A Gazeta”, ES, em
04/07/2000; “Diário de Cuiabá”, MT, em 06/07/2000.

30
se em escala internacional, cabendo à educação a missão ética de buscar
e trabalhar uma solidariedade renovadora que seja capaz de dar novo
alento à luta por um desenvolvimento humano sustentável.

Morin considera que há sete saberes fundamentais com os quais


toda cultura e toda sociedade deveriam trabalhar, segundo suas
especificidades. Esses saberes são, respectivamente, as Cegueiras
Paradigmáticas, o Conhecimento Pertinente, o Ensino da Condição
Humana, o Ensino das Incertezas, a Identidade Terrena, o Ensino da
Compreensão Humana e a Ética do Gênero Humano.

Esses saberes são indispensáveis frente à racionalidade dos


paradigmas dominantes que deixam de lado questões importantes para
uma visão abrangente da realidade. Para Morin, é impressionante como a
educação, que visa a transmitir conhecimentos, seja cega em relação ao
conhecimento humano. Ao invés de promover o conhecimento para a
compreensão da totalidade, fragmenta-o, impedindo que o todo e as partes
se comuniquem numa visão de conjunto.

Por outro lado, como diz Morin, o destino planetário do gênero


humano é ignorado pela educação. A educação precisa, ao mesmo tempo,
trabalhar a unidade da espécie humana, de forma integrada com a idéia
de diversidade. O princípio da unidade/diversidade deve estar presente
em todas as esferas.

Para tanto, torna-se necessário educar para os obstáculos à


compreensão humana, combatendo o egocentrismo, o etnocentrismo e o
sociocentrismo, os quais procuram colocar em posição secundária aspectos
importantes para a vida das pessoas e das sociedades.

Em suma, os Sete Saberes assinalam uma nova etapa do pensamento


educacional. A edição brasileira está sendo lançada com a presença de
Edgar Morin no Seminário “Escola Jovem: Um novo Olhar para o Ensino Médio”,
organizado pelo Ministério da Educação, por intermédio de sua Secretaria

31
de Ensino Médio e Tecnológico. Essa coincidência entre a concepção de
uma escola para a juventude brasileira e os Sete Saberes pode significar o
surgimento de uma vontade de olhar a educação da juventude por lentes
perspectivas que permitam ver, com lucidez, os contornos da educação
para o próximo milênio.

32
Educação e Cultura do Esporte7

Quero, primeiramente, dizer que um evento científico


internacional, organizado sobre um tema de grande atualidade como
Esporte e Inclusão Social, situa-se entre as prioridades que a UNESCO
elegeu como sendo indispensáveis a sua política mundial em prol do
desenvolvimento humano sustentável, com qualidade.

Desnecessário se torna enfatizar a importância dos esportes para


a qualidade de vida das pessoas. As civilizações mais antigas, sobretudo
a helênica, já percebiam isso com grande lucidez. Conforme argumenta
o emérito historiador da educação Paul Monroe, antigo professor da
Universidade de Columbia, “a educação grega atribuía aos esportes um
valor moral com a missão, entre outras, de desenvolver a paciência, a
coragem, a tolerância, a lealdade e o reconhecimento do direito dos
outros”.

Esses objetivos, apesar dos séculos que os separam, são


impressionantemente atuais, o que realça ainda mais o sentido histórico
dos esportes olímpicos para a educação contemporânea.

A UNESCO, em sua experiência mundial de lutas para o


desenvolvimento de uma cultura de paz, sempre viu e percebeu a enorme
potencialidade dos esportes como estratégia ímpar, não somente para a

7
Discurso proferido no “Seminário Internacional Esporte e Inclusão Social”, realizado pelo
SESC, São Paulo, de 26 a 29 de junho de 2000.

33
auto-realização das pessoas, como também para a aproximação das pessoas
e das culturas, condição indispensável para o desenvolvimento e
fortalecimento da compreensão internacional.

É importante sublinhar que a prioridade que a UNESCO atribui à


cultura da paz está vinculada a sua política de combate à exclusão. Sob
esse aspecto, a redução das desigualdades sociais constitui fator
fundamental para a instauração de uma nova ética capaz de conduzir o
diálogo intercultural a um estágio superior de entendimento.

Nesse contexto, a universalização da cultura do esporte pode dar uma


contribuição significativa, tanto no plano interno, correspondente às
peculiaridade de cada país e de cada cultura, quanto no externo, onde o
fenômeno da globalização requer, cada vez mais, a reciprocidade de
expectativas.

Há muitos anos que a UNESCO está atenta à importância dos


esportes. Foi devido a esse reconhecimento que a Conferência Geral da
UNESCO, realizada em Paris, em 1978, proclamou a Carta Internacional da
Educação Física e dos Desportos e aprovou os Estatutos do Comitê Intergovernamental
para a Educação Física e os Desportos.

No Preâmbulo dessa Carta estão explicitados os seus fundamentos, entre


os quais se destacam a importância dos esportes para a formação e
desenvolvimento de valores humanos fundamentais, indispensáveis ao pleno
desenvolvimento dos povos e a preservação e desenvolvimento das atitudes
físicas, intelectuais e morais do ser humano, em função da melhoria da
qualidade de vida. O Preâmbulo da Carta destaca, ainda, o papel dos esportes
para a aproximação das pessoas e das nações, para a emulação desinteressada,
o cultivo da solidariedade e da fraternidade, o respeito e a compreensão
recíprocos e o reconhecimento da integridade e da dignidade humanas.

A Carta Internacional da Educação Física e dos Desportos encerra uma enorme


riqueza conceitual e de finalidades. Proporciona uma visão abrangente

34
sobre a importância do esporte. Gostaria, apenas, de destacar o Artigo 2
que diz que a Educação Física e os Desportos constituem dimensões
essenciais da educação e da cultura. Por isso mesmo, o sistema global de
educação deve atribuir à educação física e aos esportes um lugar de
importância, necessário para estabelecer o equilíbrio entre as atividades
físicas e os demais componentes da educação, reforçando seus vínculos
tendo em vista o desenvolvimento integral das pessoas.

A Carta Internacional, a partir de sua aprovação, passou a ser um


documento referência em todo o mundo, sinalizando, de forma criativa,
em direção a novas políticas para a educação física e para os esportes nos
Países-Membros da UNESCO.

Em julho de 1999, no contexto da proclamação do Ano 2000 como


o Ano Internacional da Paz, a UNESCO, juntamente com o Comitê Olímpico
Internacional, promoveu a Conferência Mundial sobre a Educação e o Esporte por uma
Cultura de Paz, evento realizado em Paris, do qual tomaram parte
representantes da comunidade esportiva e organizações governamentais
e não-governamentais, de vários países. Esta Conferência teve o objetivo
de gerar idéias e propostas sobre a contribuição do esporte e da educação
para o desenvolvimento da cultura da paz. Lançou um apelo, especialmente
à UNESCO, ao Comitê Olímpico Internacional, aos líderes políticos,
federações e associações esportivas nacionais e internacionais, aos
dirigentes dos clubes esportivos e a todos os que praticam esportes, em
todos os níveis, para incutirr, entre os jovens, os valores, as atitudes e os
comportamentos que caracterizam e definem o significado de uma cultura
de paz. Recomendou, ainda, que os princípios da cultura de paz, por
intermédio do esporte, possam promover o diálogo comunitário e
contribuir para a prevenção dos conflitos e da violência.

Por outro lado, visando a incorporar esses princípios às políticas


dos governos dos Países-Membros, a UNESCO realizou, em novembro
de 1999, em Punta del Este, Uruguai, a III Conferência Internacional de Ministros
da Educação Física e Desportos, oportunidade em que foi aprovada a Declaração

35
de Punta del Este, contendo recomendações importantes para o
desenvolvimento do setor, inclusive no que se refere à perspectiva da
educação física e dos desportos como investimento social, no contexto
de novos empréstimos de organismos internacionais.

O Diretor-Geral da UNESCO, Koichiro Matsuura, presente ao


evento, ratificou o consenso, expresso durante a Conferência, de assegurar
esporte para todos, de forma a incluir os mais diversos segmentos
populacionais. Destacou a importância do desenvolvimento dos esportes
nas escolas e nas universidades, assegurando os valores éticos e morais
implícitos nas práticas desportivas. Declarou, também, a necessidade de
se fortalecer a cooperação entre o Poder Público e as organizações
voluntárias da sociedade civil e enfatizou a necessidade de reduzir as
disparidades entre as nações, em relação ao esporte.

Para finalizar, não poderia deixar de mencionar que o esforço que a


UNESCO Brasil hoje empreende para a redução da violência, para o
combate à AIDS e às drogas, sobretudo entre os jovens, deposita grande
esperança em uma política de esporte para todos. O desenvolvimento do
esporte imbuído dos valores éticos e morais que lhes são implícitos, pode
converter-se em estratégia de grande alcance para fornecer à juventude
brasileira pontos de referência fundamentais com vistas a seu futuro.

36
Parabéns, Goiás8

As avaliações que têm sido feitas sobre a educação básica brasileira


indicam, de modo geral, que a década de 90 se destaca como sendo um
período onde alguns dos velhos e crônicos problemas da educação
nacional começaram a ser enfrentados com maior lucidez, tanto do ponto
de vista político quanto sob a dimensão pedagógica.

Por um lado, no que diz respeito à dimensão política, a educação


básica, inspirada nos ideais de Educação para Todos, lançados no inicio
da década pela UNESCO, passou a merecer das instâncias da administração
educacional – federal, estadual e municipal – como também da sociedade
civil, uma atenção significativamente maior. Por outro, o que se refere à
dimensão pedagógica, um crônico problema que há muito vinha dizimando
inteligências – o da repetência – passou a ser visto e enfrentado por uma
ótica mais real, qual seja, a da possibilidade concreta de substituir a cultura
do fracasso pela cultura do sucesso escolar.

A política educacional dos anos noventa deu início a uma série de


experiências inovadoras que começaram a reverter o drama secular do
insucesso escolar.

Também em relação ensino médio, onde o Brasil ostentava uma taxa


de matrícula das mais baixas no contexto dos países da América Latina e
do Caribe, o País acordou e deu início à progressiva universalização da

8
Artigo publicado no jornal “O Popular”, GO, em 29/06/2000.

37
educação da juventude, acrescentando alguns milhões de novas
oportunidades aos jovens.

Permeando esse cenário inovador, o surgimento do Conselho de


Secretários Estaduais de Educação – CONSED, e da União Nacional dos
Dirigentes Municipais de Educação – UNDIME, entidades que congregam
os Secretários Estaduais e Municipais de Educação, configurou-se como ponto
importante para o debate e o avanço da política educacional. Nessa mesma
direção, menção deve ser feita ao crescente espaço que a educação passou a
ocupar nos principais jornais e emissoras de rádio e televisão do País. O
mesmo deve ser dito em relação ao surgimento de lideranças empresariais
lúcidas que passaram a perceber a relevância da educação básica.

Este impulso inovador, construído ao longo da década, continua a


renovar-se e a se permitir fertilizar com o aporte de novas idéias e de novas
alternativas operacionais. Ainda recentemente, visitando no Estado de Goiás
as cidades de Goiânia e Goiás, pude ver de perto alguns exemplos da
construção e reconstrução educacional que se opera no País, chamando-
me a atenção, de modo especial, a Feira do Cantinho da Leitura, um original
espaço público para desenvolver a criatividade, os sonhos e a reflexão
infanto-juvenil; o Programa Acelera Goiás, em parceria com o Instituto Ayrton
Senna que procura não apenas corrigir a distorção série-idade, mas,
sobretudo, resgatar a auto-estima das crianças e adolescentes; o Salário-Escola,
versão goiana da política de renda mínima associada à educação e que atende
a, aproximadamente, 35 mil crianças carentes; a Escola para o Século XXI,
experiência desenvolvida pelo Município de Goiânia, cuja preocupação
maior é a de desenvolver os ideais de tolerância, paz e solidariedade; o
Programa Bolsa Universitária, que viabiliza o acesso aos estudos superiores de
estudantes sem condições econômicas e o Projeto Viva e Reviva Goiás, que
procura envolver e mobilizar a comunidade estudantil de Goiás na releitura
da história e na reconstrução da vivência dos que lutaram antes.

Por tudo isso, Goiás está de parabéns. E ainda mais: a política


educacional desse Estado começa a perceber a indissociabilidade entre
educação e cultura.

38
Alfabetismos ou Analfabetismos9

O termo alfabetização está sendo substituído, gradativamente, pela


noção de alfabetismo, não só para melhor traduzir o conceito em inglês de
literacy, como para dar idéia mais ampla da ação de alfabetizar, a qual
implica avanços na compreensão e no domínio de códigos, seu manejo na
sociedade e na prática social de ler e escrever.

A introdução de novas tecnologias está desmistificando a escrita


como código único e conduzindo às noções de “alfabetismos” ou
“analfabetismos” – no plural – para designar a referência a múltiplos
códigos e à multiplicidade de significações que pode adquirir o
“alfabetismo” em diferentes culturas e com variados níveis de exigência.
Na verdade, somos todos analfabetos, de um modo ou de outro, perante
diferentes tipos de informação e comunicação.

A Conferência Mundial de Educação para Todos, de 1990, teve influência


marcante na definição de “alfabetismo” ao ampliar sua abrangência de
forma a incluir as necessidades básicas de aprendizagem, tanto no domínio
da escrita, leitura e aritmética quanto em relação às habilidades para
resolver problemas. Tal conceito tem a vantagem de contemplar as
competências adquiridas em sistemas não formais e nas experiências
pessoais, em contextos cotidianos de aprendizagem.

9
Artigo publicado nos jornais: “Jornal do Brasil”, em 14/09/2000; “A Gazeta”, ES, em 19/09/2000;
“A Tarde”, BA, em 20/09/2000; “Jornal do Tocantins”, em 24/09/2000; “O Popular”, GO, em
26/09/2000; “Jornal Hoje em Dia”, MG, em 01/10/2000.

39
Esse novo enfoque fortalece a visão ética de jovens e adultos,
valoriza as aprendizagens ativas, revaloriza o aporte cultural de cada pessoa
e comunidade e incentiva a solidariedade e a cooperação na luta pela
erradicação do analfabetismo.

Além disso, deve ser revista a ótica da educação de jovens e adultos


como educação compensatória, em nome de uma visão mais ampla e
permanente que responda às demandas do desenvolvimento local, regional
e nacional. Os conteúdos curriculares precisam ser pensados no contexto
da identidade e das aspirações da comunidade. É preciso adotar estratégias
pedagógicas e metodologias orientadas para a otimização da comunicação,
as quais pressupõem a formação e a capacitação específica de professores.

O analfabetismo no Brasil está em declínio. Apesar das dificuldades,


muitas iniciativas estão em curso no âmbito dos Estados, dos Municípios
e da sociedade civil. Nesse contexto, destaca-se o Programa Alfabetização
Solidária que já atinge um universo de 1,5 milhão de pessoas, com projeção
de chegar a 2 milhões, em 2001. Além disso, desenvolve-se, nos âmbitos
estadual e municipal, uma nova vontade de enfrentamento do impasse,
com maior rigor e seriedade.

Por outro lado, é crescente a consciência sobre a necessidade de


uma política continuada de educação de jovens e adultos, para não se
repetirem os erros do passado. Não se pode perder de vista que, em
termos de política educacional para o século XXI, o desafio é tanto de
quantidade quanto de qualidade. A educação para todos, ao longo da
vida, tornou-se uma necessidade de todos os países.

Para finalizar, além da preocupação com a qualidade, a política de


jovens e adultos precisa incluir um esforço para melhorar sua
institucionalidade, sobretudo nas Secretarias Estaduais e Municipais de
Educação. É importante ter, nessas instâncias, equipes bem preparadas
tanto sob o aspecto técnico quanto no que diz respeito à dimensão política
para a realização de parcerias e alianças.

40
Para tanto, nunca será demais insistir em políticas de parcerias e
alianças entre o Poder Público e a sociedade civil. O desafio, agora, é de
todos. Cabe ao Estado dar o exemplo e legitimar uma política solidária.

O século XXI herdará dos precedentes uma enorme dívida social,


cujo enfrentamento demanda, por um lado, vontade e decisão política e,
por outro, a participação de todos. Foi-se o tempo do “quanto pior,
melhor”, usado por alguns partidos políticos insensíveis ao todo. O
interesse coletivo deverá constituir o marco norteador, o que não implica,
necessariamente, deixar de ser oposição.

41
A Educação como Fator de Universalização da
Cidadania10

A realização da 1ª Conferência Nacional de Educação, Cultura e Desporto,


organizada pela Câmara dos Deputados do Congresso Nacional, coincide
com um momento estratégico de alvorecer de um novo século que tem
mobilizado a reflexão de universidades, instituições culturais e de homens
e mulheres, nas várias partes do mundo, em busca de novas alternativas
que façam, do próximo milênio, um século de efetiva construção da
cidadania.

Inúmeras reuniões e eventos de revisão e balanço do século, que


chega ao seu termo, foram e continuam sendo feitas em todos os
continentes. Vários desses eventos de reflexão e análise de tendências e
possibilidades têm sido feitos sob a égide da UNESCO. Em todos eles,
ao lado do reconhecimento dos inúmeros problemas que definem um
cenário dramático de pobreza mundial, existe, também, a esperança de
que o novo século que se aproxima possa ser palco de transformações
fundamentais em prol da valorização da vida e da dignificação da espécie
humana.

Todavia, essa esperança que se renova em todos nós precisa ganhar


credibilidade. E isso só se consegue com realizações concretas. Com
transformações estruturais. Por isso, a UNESCO, ao apoiar desde o

10
Discurso pronunciado por ocasião da 1ª Conferência Nacional de Educação, Cultura e
Desporto, realizada na Câmara dos Deputados, em 22/11/2000 Brasília, DF.

42
primeiro momento a realização dessa Conferência, o fez com a enorme
expectativa de que o progressivo envolvimento do Poder Legislativo na
política educacional venha a se converter em fator importante para as
mudanças que todos nós esperamos.

O que amplia a expectativa da UNESCO é o fato de, no último


decênio, ter ocorrido no Brasil uma extraordinária elevação da consciência
educacional, tanto da parte do Poder Público quanto da parte da sociedade
civil. No âmbito do Poder Público, tanto o Executivo quanto o Legislativo
e também o Judiciário passaram a adotar um novo entendimento do papel
estratégico da educação na construção da cidadania que esperamos para
o século XXI.

No caso específico do Poder Legislativo, é oportuno lembrar que,


nos últimos anos, importantes projetos no campo educacional foram
aprovados e estão em plena execução, como os da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, o FUNDEF (Fundo de Desenvolvimento e
Manutenção do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério) e a Lei
da Renda Mínima. Isso mostra que, sem a participação do Poder
Legislativo, dificilmente a política educacional conseguirá dar novos
avanços significativos.

Por outro lado, no âmbito da sociedade civil, merece ser destacado


o crescimento das Organizações Não-Governamentais na área da
educação, a crescente participação da imprensa na política educacional e
a atuação do setor privado. A aprovação de projetos importantes, como
os que anteriormente eu mencionei, significa que o Poder Legislativo
tem procurado corresponder aos novos anseios da sociedade brasileira,
em matéria de política educacional.

Essa nova consciência de educação para todos que a UNESCO tem


ajudado a construir em todo o mundo, e, de modo particular, no Brasil,
está possibilitando a reconstrução do sistema de educação básica brasileira
e colocando a educação entre as principais prioridades do País.

43
Estou seguro de que, quanto mais prioridade for dada à educação,
tanto mais o Brasil se credenciará para se transformar em uma Nação
exemplo de democracia e justiça social. A educação eleva a consciência
das pessoas e as fortalece para a luta da cidadania. Por isso mesmo, ela
pode ser considerada, como recentemente lembrou Koichiro Matsuura,
Diretor-Geral da UNESCO, o maior bem comum da humanidade.

Assim sendo, a UNESCO tem certeza de que a Conferência, que


hoje se inicia, servirá, ainda mais, para fortalecer a importância do Poder
Legislativo no avanço da política educacional brasileira, pois muitos dos
obstáculos enfrentados pelas instâncias executivas da educação dependem
de um amplo consenso político.

O Brasil está empreendendo um grande esforço para atingir a meta


de educação para todos. Alguns dos projetos em execução no País, como
o Bolsa-Escola, despertam o interesse e a admiração de outros países e a
UNESCO o tem recomendado com freqüência, pois a renda mínima
associada à educação revela-se, cada vez mais, uma estratégia de grande
alcance em matéria de política educacional.

Por outro lado, a Conferência abordará, também, os problemas da


cultura e dos esportes, o que a torna mais completa e abrangente. A rigor,
uma política de educação é indissociável de uma política dos esportes e
de uma política de cultura. Sob esse aspecto, é oportuno lembrar a
profunda reflexão empreendida pela UNESCO, por intermédio de uma
Comissão Mundial de especialistas, sobre as relações entre Cultura e
Desenvolvimento, procurando mostrar a importância da interdependência
entre fatores historicamente tratados de forma dissociada.

Para encerrar, a UNESCO manifesta a expectativa de que essa


Conferência seja, de fato, a primeira de uma série de conferências
realizadas periodicamente pela Câmara Federal, de forma a abrir um espaço
importante e estratégico para a discussão da política educacional brasileira.

44
Cidades Educadoras como Perspectiva de
Educação Permanente11

Para a UNESCO, participar de um evento sobre Cidades Educadoras


constitui motivo de especial alegria, pois trata-se de um dos temas mais
relevantes para a educação do Século XXI. Sem dúvida, estamos
caminhando para uma sociedade do conhecimento. Em nenhuma outra
época a produção de conhecimentos foi tão intensa como hoje.

De uns poucos centros produtores de conhecimento, no passado,


o mundo evoluiu para uma multiplicidade impressionante de instituições
e pessoas que se dedicam ao avanço da ciência, da cultura e da tecnologia,
nas diversas áreas do saber humano. A competitividade entre as nações,
antes baseada no controle de fontes de matéria-prima e em mão de obra
de baixo custo, fundamenta-se, hoje, na apropriação e produção de
conhecimentos. Disso decorre a importância estratégica da educação,
em todos os seus níveis e modalidades. Nenhum país alcançará êxitos
significativos neste século se não conseguir organizar um sistema de
educação de qualidade para todos. Da pré-escola aos estudos universitários
e pós-graduados, sobressai a urgente necessidade de criarmos condições
para um ensino de qualidade.

Há, todavia, um fato que preocupa a todos. O Relatório da UNESCO


sobre a Educação para o Século XXI, coordenado por Jacques Delors, já tinha

11
Discurso pronunciado no Encontro “Cidades Educadoras”, em Cuiabá, Mato Grosso, no dia
02/05/2001.

45
chamado a atenção para a grande diferença cognitiva entre as nações.
Mais do que isso, essa diferença, ao invés de diminuir está aumentando, o
que torna ainda mais urgente colocar a política educacional no topo das
prioridades de um país.

No caso da América Latina, em geral, e do Brasil, em particular,


apesar dos progressos que se registraram na década de 90, sobretudo em
relação à dimensão quantitativa da política educacional, os desafios que
persistem são ainda enormes e, certamente, exigirão esforços redobrados,
tanto do Poder Público quanto da sociedade civil. O Estado, sozinho, já
não tem condições de assegurar uma educação de qualidade para todos.

A aliança entre o Poder Público e a sociedade civil assume, nos


dias atuais, posição decisiva para o êxito da política educacional. A rigor,
se a sociedade está cobrando e exigindo, de forma crescente, educação
de qualidade, ela deverá, cada vez mais, comprometer-se em ajudar o
Poder Público a oferecer este tipo de educação.

No contexto desse raciocínio, sobressai a proposta de Cidades


Educadoras. Uma sociedade do conhecimento conduz, naturalmente, a uma
sociedade educadora. A UNESCO, desde a década de 70, quando por
intermédio do já histórico Relatório Aprender a Ser, coordenado por Edgar
Faure, lançou, simultaneamente, as propostas de Educação Permanente e das
Cidades Educadoras, tinha consciência das tendências futuras da educação
em um mundo que se globalizava, em ritmo crescente. As conquistas que
vinham sendo feitas, no campo das novas tecnologias da educação,
permitiam visualizar um contexto mais amplo de política educacional.
Por isso mesmo, o Relatório Aprender a Ser, já mencionado, procurando na
década de 70 antecipar-se aos fatos, dizia, com muita segurança:

“A partir de agora a educação não se define mais em relação a um


conteúdo determinado que se trata de assimilar, mas concebe-se, na
verdade, como um processo de ser que, através da diversidade de suas
experiências, aprende a exprimir-se, a comunicar, a interrogar o mundo e

46
a tornar-se sempre mais ele próprio. A idéia de que o homem é um ser
inacabado e não pode realizar-se senão ao preço de uma aprendizagem
constante, tem sólidos fundamentos não só na economia e na sociologia,
mas também na evidência trazida pela investigação psicológica. Sendo
assim, a educação tem lugar em todas as idades da vida e na multiplicidade
das situações e das circunstâncias da existência. Retoma a verdadeira
natureza que é ser global e permanente, e ultrapassa o limite das
instituições, dos programas e dos métodos que lhe impuseram, ao longo
dos séculos.”

Essa antecipação do Relatório de Edgar Faure fundamenta a idéia


de Cidades Educadoras. Como diz um especialista, Edouard Lizop, “em vez
de se delegar aos poderes a uma estrutura única, verticalmente
hierarquizada e constituindo um corpo distinto no interior da sociedade,
são todos os grupos, associações, sindicatos, coletividades locais, corpos
intermediários que devem encarregar-se, pela sua parte, de uma
responsabilidade educativa”.

A partir do Relatório Faure, as idéias de Educação Permanente e de


Cidades Educadoras foram se firmando, gradativamente, devido mesmo à
crescente importância da educação para o desenvolvimento humano auto-
sustentado das nações e devido, também, ao aumento da velocidade das
transformações sociais.

Assim sendo, por todas as razões aqui expostas, a UNESCO


cumprimenta a Prefeitura Municipal de Cuiabá pelo Projeto das Cidades
Educadoras, o qual se situa em um contexto moderno de políticas educativas
e que, certamente, poderá dar uma contribuição de qualidade à educação
cuiabana. Na medida em que toda a cidade, toda a comunidade se envolver
com a política educativa, seguramente, aumentarão as chances de êxito
do projeto educativo.

Como diz Pilar Figueras, da Universidade Autônoma de Barcelona,


no âmbito da ação transformadora a ser desempenhada pelas cidades, há

47
um lugar central reservado à educação. A educação, em sentido amplo,
isto é, aquela que transcende os limites da escola, tem uma importante
contribuição a oferecer, pois é preciso promover a consciência sobre os
direitos e deveres da cidadania; é preciso construir uma percepção de
que os problemas que nos esperam podem e devem ser solucionados com
a participação de todos.

Não poderia encerrar essa fala inicial sem comentar, ainda que de
forma rápida, um projeto no qual a UNESCO Brasil deposita, hoje, uma
grande esperança e que foi concebido no contexto das Cidades Educadoras.
Refiro-me ao Projeto de Abertura das Escolas no Final de Semana, visando a ampliar
os espaços educativos para jovens. Esse projeto nasceu da constatação de
várias pesquisas, feitas pela Organização, sobre os índices de violência
no Brasil, cuja incidência maior, entre os jovens, ocorria nos fins de semana.

A partir dessa constatação, surgiu a pergunta: porque não aproveitar


os espaços educativos das escolas nos fins de semana para oferecer diversos
tipos de atividades lúdicas e culturais para crianças e jovens, de forma a
oferecer alternativas de educação e entretenimento e, assim, ajudar a evitar
o crime e a violência nos fins de semana?

A idéia evoluiu e propostas surgiram. Hoje, alguns Estados e


Municípios – Rio de Janeiro, Pernambuco, São Paulo, Bahia, Alagoas, Rio
Grande do Norte, Natal, Maceió Recife, Palmas, dentre outros – já
aderiram à idéia e estão abrindo ou projetando abrir suas escolas nos fins
de semana, de forma a oferecer inúmeros tipos de atividades educativas e
culturais às crianças, jovens e suas respectivas famílias.

Estou seguro de que no contexto da proposta de cidades


educadoras, a abertura de escolas nos fins de semana pode dar uma
contribuição importante, em termos de mobilização da comunidade. Toda
a competência cultural, educacional, científica e tecnológica existente
na comunidade pode, em tese, ser disponibilizada para a escola. Na medida
em que isso ocorrer, não apenas será possível ampliar a participação da

48
comunidade na escola, como também reservar-se-á à comunidade um lugar
de destaque na execução do projeto da escola.

Por outro lado, o projeto pedagógico da escola poderá ser


enriquecido por inúmeras atividades imprescindíveis à formação da
personalidade de crianças e jovens. Na sociedade em que vivemos, torna-
se cada vez necessário oferecer novas possibilidades de socialização às
crianças e jovens, evitando que eles se submetam, exclusivamente, aos
processos socializadores da mídia – que, em grande parte, não só deixam
a desejar, como podem direcionar para vertentes pouco recomendáveis e
inaceitáveis – e diminuir os índices de morte de jovens nos fins de semana.

A idéia de uma educação permanente leva à idéia de escola


permanente. Isto se torna ainda mais importante nos dias atuais, pois a
escola que forma cidadãos conscientes é o local mais privilegiado para a
construção de cenários sociais mais justos e solidários.

49
Por uma Concepção Multidimensional da
Avaliação em Educação12

Quero, primeiramente, cumprimentar a International Association for


Educational Assessment e a Fundação Cesgranrio pela organização dessa
Conferência cujo tema é da mais alta relevância para a educação no Século
XXI. Quero, ainda, cumprimentar os organizadores pela excelência dos
conferencistas convidados.

A proposta de discutir as tendências da avaliação educacional para


o século XXI é das mais oportunas e prioritárias. A avaliação educacional
é decisiva no contexto das novas idéias que se discutem, hoje, com vistas
à necessidade de formarmos mentes democráticas e solidárias face à
complexidade dos desafios que temos a nossa frente, sobretudo os que se
referem à redução das desigualdades sociais.

Há vários anos, a UNESCO, em parceria com outras agências das


Nações Unidas, vem fazendo um esforço sistematizado para examinar o
papel estratégico da educação no conjunto de uma sociedade que se
mundializa e que se transforma, em velocidade e profundidade até então
desconhecidas em nossa história. Um dos pontos altos desse esforço foi a
conclusão, em 1996, do Relatório Mundial para a Educação no Século XXI,
coordenado por Jacques Delors. Esse Relatório, já publicado no Brasil
com o título de Educação – Um Tesouro a Descobrir e prefaciado pelo Ministro

12
Discurso pronunciado por ocasião da 27a Conferência Anual da Associação Internacional de
Avaliação em Educação, “27th Annual IAEA Conference”. Rio de Janeiro, 3 a 6 de maio de 2001.

50
da Educação, chegou à conclusão que a educação do Século XXI deveria
assentar-se em quatro aprendizagens fundamentais – Aprender a Conhecer,
a Ser, a Fazer e a Viver Juntos. Esses pilares foram pensados em função de
um mundo em ritmo de mudanças profundas e das incertezas e
perplexidades geradas por essas mesmas mudanças.

A construção de uma política educacional com base nesses pilares


requer um novo desenho da avaliação educacional que não mais poderá
circunscrever-se aos aspectos acadêmicos, apresentando e generalizando
resultados unidimensionais que são válidos quando se consideram apenas
necessidades imediatas do processo de globalização. A avaliação em educação
deve levar sempre em consideração as possibilidades de cada criança e de
cada adolescente, em um determinado contexto, tendo em vista um projeto
mais amplo de construção de um século mais justo e solidário.

Dessa forma, ao se pensar a avaliação educacional para o Século


XXI, precisamos refletir, antes, sobre os cidadãos e cidadãs que queremos
formar, considerando, concomitantemente, o ser das pessoas e as
necessidades coletivas, sem exclusão. Daí, ser fundamental para a avaliação
da aprendizagem, como bem argumentou uma pesquisadora da área Maria
Laura Franco, o entendimento da atividade humana e da ação prática dos
homens, o que pressupõe a análise do motivo e da finalidade dessa ação.
As ações humanas não são atos isolados. São atos engendrados no conjunto
das relações sociais, impulsionados por motivos específicos e orientados
para uma finalidade consciente. Nessa mesma linha de raciocínio, creio
ser oportuno lembrar, ainda, a advertência de outro estudioso da avaliação,
Elliot Eisner (The Art of Educational Evaluation) que, ao criticar abordagens
tradicionais da avaliação, argumenta que elas focalizam, exclusivamente,
o produto, negligenciando as condições, o contexto e as interações que
conduzem aos resultados. Em termos práticos, elas fornecem muito pouco
em se tratando de um novo desenho curricular.

Como já havia proclamado a Declaração Mundial para Todos e


recentemente reafirmado pelo Marco de Ação de Dakar, as necessidades

51
básicas de aprendizagem compreendem tanto os instrumentos essenciais
de aprendizagem quanto o conteúdo de que precisam os seres humanos
para sobreviver, desenvolver plenamente suas capacidades, viver e
trabalhar com dignidade, participar, plenamente, do desenvolvimento,
aprimorar a qualidade de sua vida, tomar decisões com informações
suficientes e continuar a aprender. Precisamos, então, pensar a avaliação
educacional de forma multidimensional para atender a uma necessidade
de ver o todo e reduzir os riscos de uma visão parcial.

Para encerrar, quero dizer que a UNESCO tem uma enorme


expectativa nos resultados dessa Conferência com vistas a uma nova
perspectiva da educação para o Século XXI, pois um enfoque mais
abrangente da avaliação educacional poderá dar uma ajuda substantiva
para um novo conceito de escola como agência de cidadania.

52
A Relevância da Educação Infantil13

Estamos vivendo um momento histórico muito oportuno à reflexão


e à ação em prol das crianças brasileiras. Hoje, nós dispomos de
informações e argumentos muito consistentes que apontam para as
oportunidades e benefícios dos investimentos na primeira infância. A
educação e o desenvolvimento infantil vêm sendo tratados como assuntos
prioritários de governos, organismos internacionais e organizações da
sociedade civil, por um número crescente de países, em todo o mundo.

Já existe um certo consenso de que o desenvolvimento inicial da


criança ocorre em período de grande vulnerabilidade e oportunidade. Os
primeiros anos de vida são caracterizados por um rápido e significativo
desenvolvimento físico e mental. Esses processos têm sido considerados
como os alicerces das capacidades cognitivas e emocionais futuras. O
desenvolvimento inicial da criança refere-se a uma combinação do
desenvolvimento físico, mental e social, durante os primeiros anos de vida.

A ciência está mostrando que o período que vai da gestação até o


sexto ano de vida, particularmente de zero a três anos, é o mais importante
na preparação das bases das competências e habilidades em toda a vida
humana. Os extraordinários avanços da neurociência têm permitido
entender, um pouco melhor, como o cérebro se desenvolve.
Particularmente, do nascimento até os três anos de idade, vive-se um
período crucial no qual se formarão mais de 90% das conexões cerebrais,

13
Artigo publicado nos jornais: “Folha de S.Paulo”, em 12/10/2001; “O Popular”, GO, em
20/10/2001; “Jornal do Tocantins”, em 20/10/2001; “A Tarde”, BA, em 01/11/2001.

53
graças à interação do bebê com os estímulos do ambiente. Antigamente,
acreditava-se que a organização cerebral era determinada, basicamente,
pela genética. Agora, os cientistas comprovaram que ela é altamente
dependente das experiências infantis. As pesquisas estão mostrando que
proteínas, gorduras e vitaminas, bem como interações com outras pessoas
e objetos, são nutrientes vitais para o cérebro em crescimento e
desenvolvimento.

Sob o ponto de vista da educação infantil, e antes mesmo das


pesquisas sobre o cérebro, a experiência educacional já havia constatado
sensíveis progressos nos níveis de aprendizagem e desenvolvimento das
crianças que freqüentam a pré- Escola. Um estudo significativo, nesse
aspecto, foi feito pelo Projeto Pré-Escolas, High/Scope Perry, em Michigan,
que acompanhou crianças desde a época em que participaram do projeto
pré-escolar, com quatro anos, até os 27 anos. A avaliação demonstrou
que o grupo que recebeu atendimento pré-escolar obteve, a longo prazo,
níveis mais altos de instrução e renda e menores índices de prisão e
delinqüência. Dados esses resultados, calcula-se que o programa tenha
economizado 7,16 dólares para cada um dólar investido devido às reduções
nos gastos em educação primária e previdência social, combinadas com o
aumento de produtividade ao longo do tempo.

A educação infantil vem crescendo no mundo inteiro. Cada vez mais,


afirma-se como o nível inicial do processo educacional. Ou seja, a educação
começa ou deve começar por ela. É o que sustenta a Declaração Mundial de
Educação para Todos, de 1990, que afirma que a aprendizagem inicia-se com o
nascimento. Dez anos mais tarde, no Fórum Mundial de Educação, realizado em
Dakar, Senegal, a UNESCO insistiu na prioridade para a educação infantil:
a primeira das seis metas traçadas no Marco de Ação de Dakar é sobre a “expansão
e o aprimoramento da assistência e educação da primeira infância,
especialmente para as crianças mais vulneráveis e desfavorecidas”.

Em relatório recente, produzido pelo Banco Mundial, sobre o


impacto da educação pré-escolar no Brasil, é demonstrado que cada ano

54
de freqüência na pré-escola aumenta em 0,4 anos a escolaridade finalmente
atingida, diminui entre 3% a 5% o nível de repetência e equivale a um
aumento de renda, no futuro, da ordem de 6% (estudo realizado pelo
IPEA). Esse documento também informa que são as crianças pobres que
mais se beneficiam do atendimento. Assim, a educação infantil – um direito
constitucional das crianças brasileiras desde o nascimento – também
constitui-se em uma estratégia eficiente no combate à transmissão
intergeracional da pobreza.

Em junho, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico –


OCDE, lançou um estudo comparativo sobre as políticas de educação e
cuidados na infância, realizado em 12 países desenvolvidos.

Esse estudo, intitulado Starting Strong, traz quatro questões básicas: a


clara responsabilidade do Estado na provisão de cuidados e educação na
primeira infância; a importância da qualidade e integração dos serviços; a
necessidade de profissionalizar e capacitar os recursos humanos que atuam
na área e a necessidade de se trabalhar com indicadores que possibilitem a
avaliação dos serviços e a realização de estudos internacionais.

É fundamental que as políticas públicas possam, gradativamente,


considerar essas novas informações e evidências científicas, de modo que
a educação e o desenvolvimento integral na primeira infância tornem-se
realidade para todas as crianças brasileiras, assegurando-lhes um começo
justo. Como nos diz o poeta Mário Quintana: “Democracia? É dar a todos
o mesmo ponto de partida...”.

55
Plano Nacional de Educação – PNE:
uma nova etapa de Política de Educação para Todos14

Constitui uma honra para a UNESCO participar desta Conferência


que tem por objetivo desencadear o processo de elaboração dos planos
decenais de educação, estaduais e municipais, tal como foi previsto pela
lei que instituiu o Plano Nacional de Educação – PNE.

No início da década de 90, quando a UNESCO organizou e fez


realizar em Jomtien, Tailândia, com o apoio do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, do Banco Mundial e do FNUAP
(Fundo de População das Nações Unidas) a Conferência Mundial de Educação
para Todos, tinha plena consciência sobre a importância da educação como
estratégia privilegiada para acelerar o processo de universalização da
cidadania. Tornava-se necessário garantir a todos uma educação básica de
qualidade, pois o processo de globalização e mundialização das atividades
humanas, que então se intensificava em ritmo sem precedentes, poderia
aumentar, ainda mais, as assimetrias do desenvolvimento.

Após a aprovação da Declaração Mundial de Educação para Todos, na


Conferência de Jomtien, vários países, com a cooperação da UNESCO,
começaram a discutir seu conteúdo e alcance e a incorporar seus princípios
e metas nas políticas públicas de educação. Aos poucos, esse movimento

14
Discurso proferido em 05/11/2001, por ocasião do “Seminário Plano Nacional de Educação”,
no Auditório Petrônio Portela – Senado Federal, em Brasília, DF.

56
foi se ampliando nos vários continentes e contribuindo para fortalecer o
compromisso político em relação ao direito de todas as pessoas a uma
educação libertadora.

Nesse processo, o Brasil se fez presente, inicialmente elaborando


o seu Plano Decenal de Educação para Todos e, em seguida, criando vários
mecanismos para viabilizar a política de educação para todos, entre os
quais se destacam o FUNDEF – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e Valorização do Magistério, a TV Escola e vários programas estaduais
e municipais de bolsa-escola.

Não apenas isso. A promulgação, em dezembro de 1996, da Lei de


Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, foi também um avanço. Foi
nessa lei que o saudoso Senador Darcy Ribeiro introduziu, nas Disposições
Transitórias, um artigo, o de número 87, criando a Década de Educação e
estabelecendo o prazo de um ano para a União enviar ao Congresso
Nacional o Projeto para o Plano Nacional de Educação – PNE, em sintonia
com a Declaração Mundial de Educação para Todos.

O Brasil foi um dos poucos países a consagrar, em diploma legal, o


compromisso de educação para todos. Dessa forma, o Plano Nacional de
Educação, elaborado em seguida e amplamente discutido pela sociedade
civil e pelo Congresso Nacional, incorporou metas importantes e
fundamentais que poderão dar ao País uma posição privilegiada para
combater a pobreza e a desigualdade social. É certo que a educação, por
si só, não opera milagres. Todavia, ela tem o poder de fortalecer as pessoas
para a luta e converter-se em mecanismo acelerador das mudanças que se
tornaram imprescindíveis à construção de sociedades mais justas e
solidárias. Um futuro promissor passa necessariamente por uma educação
de qualidade para todos.

O Brasil fez, nos últimos anos, progressos importantes na educação


básica, porém o tempo não permite descrevê-los. No entanto, vale a
pena ressaltar que, hoje, há uma nova consciência em relação à importância

57
e ao papel da educação. Por um lado, o Ministério da Educação assumiu
uma posição firme em relação à política educacional, no que tem sido,
progressivamente, acompanhado por Estados e Municípios. A gestão está
sendo paulatinamente qualificada e inúmeras inovações estão em curso.
O ensino fundamental caminha para a universalização e o ensino médio
está dando um grande salto. A presença do CONSED e da UNDIME,
como fóruns abertos para a discussão da política educacional, deve,
igualmente, ser ressaltada. Por outro lado, a sociedade civil está muito
mais atenta e consciente de seus direitos.

A imprensa incorporou, na sua agenda diária, os problemas da


educação, o que é importante para assegurar a transparência pública. O
Congresso Nacional tem dado seguidos exemplos de participação ativa
nessa luta, merecendo destaque a aprovação da Lei do FUNDEF, da LDB
e do Programa de Renda Mínima associado à educação, hoje denominado
Bolsa-Escola. Da mesma forma, o Poder Judiciário tem somado esforços
para ajudar a cumprir a lei e evitar desvios.

No âmbito empresarial, é crescente o número de empresas que


têm procurado dar um sentido mais social às suas ações, investindo em
educação, cultura, saúde e em vários projetos de desenvolvimento da
cidadania. É certo que isto está no início, mas representa um sinal de que
novos tempos são possíveis.

A UNESCO não ignora que muitos problemas persistem e que os


desafios dos próximos anos serão ainda maiores. Entretanto, os progressos
alcançados colocam o Brasil em condições de dar um novo salto. O PNE
pode representar essa nova etapa. Ele pode representar um consenso
suprapartidário em uma ampla coalizão heterogênea para garantir o sucesso
educacional de todos. A Conferência que se inicia hoje foi pensada e
organizada por representantes do Poder Público e da sociedade civil. É
um começo promissor. Assim, a UNESCO vê os planos nacionais tais
como foram concebidos pelo Marco de Ação, de Dakar.

58
Uma última colocação torna-se ainda oportuna. Os Estados e
Municípios começam agora a elaborar seus planos de educação. É
importante que, além das metas de elevação dos níveis de escolaridade,
todos eles possam perseguir, também, uma escola sem drogas e sem
violência.

Trata-se de um tema da mais alta urgência devido a suas implicações


no processo de aprendizagem. Precisamos organizar e sistematizar uma
ação permanente de combate às drogas, à AIDS e à violência nas escolas,
sem a qual a política de educação para todos poderá ficar seriamente
comprometida.

59
O SESI e o Sentido dos Novos Tempos15

Foi com o lançamento do Relatório Mundial de Educação, intitulado


Aprender a Ser, na década de 70, coordenado por Edgar Faure, que a idéia
de educação permanente começou a ganhar força nas políticas educativas.
A partir de então, a UNESCO, em seu diálogo com os países, passou a
insistir na necessidade de pensar políticas de educação que contemplassem
uma educação ao longo de toda a vida. Os estudos e reflexões sobre os
fundamentos biológicos e sociais da trajetória de vida de uma pessoa
indicavam a necessidade de constante aperfeiçoamento, tanto no plano
cognitivo, quanto no plano moral e ético.

Nos últimos anos, devido ao impacto da globalização e das mudanças


que se seguiram em termos de reestruturação produtiva, a necessidade de
educação continuada passou a ser não somente um imperativo de
sobrevivência profissional, como também um direito de todas as pessoas.
Além disso, a educação continuada tornou-se indispensável para assegurar
a inserção da população em uma sociedade caracterizada por intensa
produção de conhecimentos, em escala universal.

A UNESCO, em diversas oportunidades, tem chamado a atenção


para a importância da educação básica e continuada. Isso aconteceu, com
muita ênfase, nas Conferências de Hamburgo sobre educação de adultos e na de
Seul sobre o ensino técnico e profissional. A Conferência de Hamburgo ressaltou
a educação continuada por toda a vida. Em sociedades baseadas no

15
Discurso pronunciado por ocasião da Sessão de Abertura do “I Telecongresso Internacional
sobre Educação de Jovens e Adultos”, realizado em Brasília, em 20/11/2001.

60
conhecimento, surgindo em todo o mundo, a educação continuada de
jovens e adultos tem se tornado uma necessidade, tanto nas comunidades
como nos locais de trabalho. As novas demandas da sociedade e as
expectativas de crescimento profissional requerem, durante toda a vida
do indivíduo, uma constante atualização de seus conhecimentos e de suas
habilidades. Por sua vez, a Conferência de Seul enfatizou que a aprendizagem
ao longo da vida é uma viagem a múltiplos caminhos. Os sistemas de
educação devem ser abertos e flexíveis para dotar os indivíduos não
somente de competências específicas, como também preparar as pessoas
para a vida e para o mundo do trabalho.

É nesse contexto que ressalto a importância da ação do Serviço


Social da Indústria – SESI e da Confederação Nacional da Indústria na área da
educação. O SESI está sabendo compreender o sentido dos novos tempos
e se preparar para enfrentar os desafios que estão surgindo. O SESI está
sabendo unir pensamento e ação, reflexão e prática. O Telecongresso, que se
inicia hoje, é um exemplo do que acabo de dizer. Trata-se do maior evento
de educação de jovens e adultos já realizado no Brasil, colocando em
debate diferentes pontos de vista oriundos das diversas Unidades da
Federação e do exterior.

Na sua concepção técnico-científica, política e social, houve a


preocupação de explorar tendências e linhas de pensamento diferentes.
Vivemos numa época em que é preciso ouvir as pessoas e potencializar a
diversidade criadora.

Estou certo de que este Telecongresso, promovido em parceria pelo


SESI, a UNB e a UNESCO e ainda com o apoio de várias instituições,
consolida a posição do SESI como entidade que se insere, com
competência e mérito, no contexto das idéias visando à construção de
sociedades mais solidárias e conscientes de seu papel na construção de
uma cultura de paz.

61
A Continuidade da Política Educacional16

Os países que tiveram sucesso na execução de suas políticas


educacionais foram aqueles que conseguiram assegurar sua continuidade
por vários anos, afirma, com razão, Bernardo Kliksberg, cientista social e
arguto analista do desenvolvimento social na América Latina. Recente
estudo sobre as desigualdades regionais no sistema educacional brasileiro,
realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas em Educação – INEP, do Ministério
da Educação – MEC, confirma a opinião de Kliksberg. Uma das conclusões
desse estudo foi constatar a tendência de ampliação da distância no que
se refere a indicadores educacionais, tais como analfabetismo,
atendimento escolar, taxa de transição, gastos por alunos e magistério,
para citar os mais importantes, entre os Estados mais desenvolvidos do
Sul e Sudeste e os Estados mais pobres das regiões Norte e Nordeste.

A rigor, os desníveis regionais brasileiros só poderão ser enfrentados,


com sucesso, na medida em que se conjugue, entre outros, dois fatores
fundamentais: por um lado, uma política de investimento com
discriminação positiva para beneficiar as regiões mais carentes e, por outro,
a continuidade da política educacional para consolidação da mudança ou
da renovação.

É certo que, em muitos casos, torna-se mesmo necessário


interromper um projeto ou mudança em curso devido a seus efeitos
negativos para a política educacional. Todavia, isso só poderá ser feito

16
Artigo publicado no “Jornal do Tocantins” – Tendências e Idéias, em 05/01/2002.

62
após uma avaliação criteriosa e de credibilidade pública, de forma a evitar
decisões arbitrárias e precipitadas.

Uma política de discriminação positiva, por exemplo, como a de


renda mínima e as inúmeras experiências que se multiplicam como a Bolsa-
Escola no Distrito Federal e o Salário-Escola, recentemente implementado
no Estado de Goiás, só se consolida após vários anos e exige avanços
continuados que podem perpassar várias gestões.

No caso do Programa Bolsa-Escola do Distrito Federal, a avaliação feita


pela UNESCO e pelo UNICEF indicou pontos altamente positivos dessa
experiência como solução tanto para os problemas de permanência da
criança na escola quanto em relação à melhoria do desempenho do aluno.
Essa inovação teve, inclusive, acolhida favorável do Banco Mundial e do
Banco Interamericano de Desenvolvimento, os quais consideraram válida sua
ampliação no Brasil e em outros países.

Outro exemplo é o Programa de Garantia de Renda Mínima administrado


pelo MEC, já em pleno funcionamento, em todo o País, com ampla
receptividade dos municípios.

A continuidade desses projetos inovadores de renda mínima


vinculada à educação é fundamental na perspectiva de uma política de
educação de longo prazo. É por esta razão que a UNESCO os apóia e
acompanha. Isso não significa, todavia, que não devam ocorrer críticas e
reajustamentos. Ao contrário, toda a ação inovadora precisa estar
permanentemente submetida a avaliações e a aperfeiçoamentos para
assegurar sua eficiência.

Outros exemplos poderiam ser citados a partir de uma extensa


amostra existente, hoje, no Brasil. O que importa sublinhar, no entanto, é
a consciência que o gestor deve ter sobre a necessidade de dar
continuidade às ações de política educacional que forem avaliadas
positivamente. Essa consciência torna-se ainda mais urgente quando se

63
lembra que as eleições, no Brasil, ocorrem a cada dois anos, não podendo
a política educacional ficar submetida ao risco dessas mudanças, como
tem acontecido em várias ocasiões.

Em termos de gestão das políticas públicas, sobretudo nos países


em desenvolvimento, é preciso ter clareza que o êxito somente acontecerá
por uma postura elevada de quem se candidate a uma função de relevância
pública, ou seja, a de reconhecer o mérito de um determinado tipo de
intervenção social e lutar pelo seu aperfeiçoamento e continuidade. É
essa postura que deverá distinguir os homens e as mulheres que darão, no
próximo milênio, um novo sentido à gestão pública em prol do
desenvolvimento social e humano.

64
A UNESCO e o Plano Nacional de Educação17

O Estado do Espírito Santo e os seus Municípios se reúnem, neste


encontro, para colocar em prática o Plano Nacional de Educação,
adequando-o à sua própria realidade. Esta é uma resposta ousada a desafios
que exigem coragem, persistência e grande capacidade. Assim, os diversos
planos estaduais e municipais de educação se integram numa teia que une
todo o Brasil em torno da educação. O Espírito Santo e Municípios se
integram a ela, colocando a sua parte na construção do todo.

Esta é uma decorrência do fato de nenhum ente federativo e nenhum


nível de governo poder isolar-se em si mesmo e tentar arcar, sozinho,
com as tarefas da educação. Na verdade, a teia que começa no Município
envolve não só o Estado e o País, como também o mundo inteiro. Nesses
laços de interdependência, o Brasil participa de um processo de interação
em que os acontecimentos num local afetam os outros. É assim que as
nações não só estabelecem pactos e convênios de natureza política,
econômica e jurídica, como também reconhecem na educação uma força
poderosa a impulsionar o desenvolvimento socioeconômico. Por isso
mesmo, têm firmado importantes compromissos desde a Carta das Nações
Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Dois dos mais recentes e importantes foram a Declaração Mundial de


Educação para Todos, firmada em Jomtien, Tailândia, em 1990 e o Marco de
Ação de Dakar, no ano 2000. Ambos os documentos expressam a vontade

17
Discurso pronunciado no “Encontro sobre o Plano Nacional de Educação”, em Vitória, ES,
em 25/02/2002.

65
e o compromisso dos Países-Membros da UNESCO com uma educação
de qualidade para todas as pessoas.

Estes dois documentos representam um verdadeiro divisor de águas,


pois os pactos anteriores eram assinados visando, em geral, à matrícula da
população nas escolas. Jomtien e Dakar não se contentaram com o acesso,
mas destacaram a qualidade e a democratização educacionais. O
reconhecimento de que a escolaridade é muito mais do que estar na escola
deveu-se, em grande parte, ao estreitamento daquela teia do mundo tornar-
se cada vez menor, em um processo multissecular. Desse modo, a Conferência
de Dakar, realizada no ano 2000, congregou os países participantes em
torno de seis objetivos, os quais não é demais recordar:

Expandir e melhorar a educação e os cuidados das crianças na


faixa que chamamos de educação infantil, especialmente para as
crianças mais vulneráveis e em desvantagem;

assegurar que, até 2015, todas as crianças, particularmente


meninas, crianças em circunstâncias difíceis e aquelas
pertencentes a minorias étnicas, tenham acesso e concluam a
educação primária, gratuita, compulsória e de boa qualidade;

assegurar que as necessidades de aprendizagem de todos os jovens


e adultos sejam atendidas por meio do acesso eqüitativo a
programas de aprendizagem e de habilidades necessárias à vida;

melhorar em 50% os níveis de alfabetização de adultos, até 2015,


sobretudo para as mulheres, além de acesso eqüitativo à
educação básica e continuada a todos os adultos;

eliminar disparidades de gênero na educação primária e secundária,


até 2005 e alcançar igualdade de gêneros na educação, até 2015,
com especial enfoque para assegurar às meninas pleno e eqüitativo
acesso e aproveitamento na educação básica de qualidade; e

66
melhorar todos os aspectos da qualidade da educação e assegurar
excelência para todos, de modo que sejam alcançados resultados
de aprendizagem reconhecidos e mensuráveis, sobretudo na
alfabetização, aritmética e competências essenciais para a vida.

Este horizonte ousado, que realça reiteradamente a qualidade, não


é fácil de alcançar. O Brasil, porém, pelas suas realizações, encontra-se
mais próximo por estar trilhando caminhos difíceis, mas acertados. Este
foi um dos raros países que inscreveram na sua Lei de Diretrizes e Bases,
a Lei Darcy Ribeiro, os propósitos da Declaração Mundial sobre Educação para
Todos, firmada em Jomtien. Ademais, a lei previu a elaboração de um plano
decenal de educação, um plano de Estado, não só de governo, compatível
com o longo prazo que medeia, na educação, a semeadura e a colheita.

Tal objetivo, de mais de meio século, o Plano Nacional de Educação,


previsto pela Carta Magna, veio à luz no ano passado. Para isso,
contribuíram, significativamente, a ponderação, a habilidade e a sabedoria
do saudoso Deputado Nelson Marchezan. E esse Plano incorpora, em
grande parte, os compromissos firmados pelo Brasil e os demais países,
em Dakar.

Mas o que é um plano? É um documento cheio de números, para


poucos lerem? É um conjunto de boas intenções? É um conjunto
mirabolante de metas? Não. Um plano é, ao mesmo tempo, simples e,
por isso, tem a grandiosidade das coisas simples. É um mapa para caminhar,
motivo pelo qual é preciso saber onde chegar, por quê chegar, como
chegar e que recursos são necessários para chegar. Além disso, o mapa
indica os marcos do caminho para sabermos se estamos na estrada certa e,
mais do que isso, estabelecer as etapas da viagem. Viagem que, sendo
longa, não se faz do dia para a noite.

Soubemos que, certa vez, quando se discutia como o Brasil ia


chegar ao ideal da Educação para Todos, segundo a Conferência Mundial de
Jomtien, um pequeno Município se reuniu, pensou na educação de que

67
precisava e remeteu suas reflexões ao Ministério da Educação, em
Brasília, numa folha de papel para embrulhar pães. O seu rico conteúdo
traduzia, com facilidade, soluções simples para problemas simples. Lá
estavam, claramente, o destino da caminhada, os motivos e os meios
que seriam utilizados.

Os Planos Estaduais e Municipais de Educação não constituem,


portanto, peças caras, empoladas e inúteis. Ao contrário, precisam traduzir
a vida que se quer ter, no que se refere à dimensão educativa. Como
educação é vida, plano é também previsão de vida.

No caso dos Municípios, embora também dos Estados, tais Planos


têm íntima ligação com os objetivos de Dakar, acima enunciados. A
expansão e a melhoria da educação infantil, além do ensino fundamental
de qualidade para todos, são compromissos brasileiros e internacionais.
Ambos estão intrinsecamente ligados, uma vez que a vitória na educação
básica, em grande parte, depende da vitória das políticas públicas para a
faixa etária de zero a seis anos. Diz a legislação que ambos são
competência dos Municípios, o ensino fundamental também do Estado,
todavia, as normas, a começar pela Lei Maior, estatuem uma solidariedade
indissolúvel entre os níveis de governo, pelo qual União, Estado e
Municípios são, compartilhadamente, responsáveis.

É muito fácil dividir, separar áreas de atuação, transferir para outros


as inegáveis dificuldades. Difícil é unir, superar diferenças, integrar
esforços. Sabiamente, a Constituição Federal brasileira estabeleceu o
regime de colaboração entre governos na organização dos sistemas de
ensino. Isso significa tecer uma teia intrincada no processo de
planejamento e sua execução, indo do local ao nacional. Por mais penoso
que seja, este é um desafio para todos, mas que tem a ver, sobretudo,
com os educadores.

Aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos,


aprender a ser constituem os quatro pilares da educação para o Século

68
XXI, segundo o Relatório Delors. O planejamento e a sua tradução em
atos representa uma experiência desafiadora, sobretudo, de aprender a
viver juntos, a respeitar diferenças, a colocar o serviço ao cidadão acima
de tudo, o que pode ganhar o nome de regime de colaboração. Palavras
bonitas podem ter grande efeito sobre os agentes da educação, como as
do professor podem ter sobre os alunos. Entretanto, lembrando Platão, o
processo educacional é, antes de tudo, o exemplo. Mais vale uma ação
que mil palavras.

Esta é, portanto, a hora de aprender a ser, sendo; de aprender a


conviver, convivendo; de educar, educando-se; de fazer o caminho,
caminhando. Muito se espera, portanto, dos educadores, que encontram
nesse processo ricos desafios dos quais, certamente, sairão bem maiores
do quando nele entraram.

Vivemos em um mundo muito diferente, neste Século XXI. Ao


tornar-se cada vez menor, fica também mais dividido. A educação é usada
com grande eficácia para separar, o que significa que ela também pode
unir, com igual ou maior eficácia. Ao contrário do século que passou,
muitas instituições que educavam deixaram de exercer esse papel ou o
alteraram. A escola tem sido uma esperança no sentido de refletir sobre
valores e praticá-los. Essa esperança, entretanto, tem o contraponto das
diversidades crescentes na escola, na sala de aula, na comunidade, na
sociedade ao redor. A escola precisa ser um esteio, um foco a desenvolver
os saberes necessários ao futuro. Para isso, é preciso aprender a conviver
e ensinar a conviver.

Usualmente falamos da diversidade em termos das diferenças entre


a maioria dos alunos e os portadores de necessidades especiais. O espectro
de diferenças, todavia, é muito maior. Quanto mais a escola se universaliza,
mais diversidades passa a abrigar: de gêneros, de etnias, de culturas, de
classes sociais e tantas outras. A escola de outrora, elitista, selecionava
os alunos, garantindo relativa uniformidade. Fazia a mão de acordo com a
luva, não a luva de acordo com a mão. A escola de hoje acolhe os mais

69
variados indivíduos e grupos, recebendo e sofrendo no seu seio problemas
como a violência, as drogas, a AIDS e, sobretudo, como raiz de tantos
problemas, a falta de consciência sobre o falso e o verdadeiro, o certo e
o errado, o bom e o ruim, o respeito e o desrespeito, numa esteira de
descrença e relativismo. Apesar do trabalho sofrido do professor,
repetimos, a escola passou a ser um esteio da sociedade, mais importante
hoje do que antes.

O amplo leque de diferenças pede que a escola, no dizer de Edgard


Morin, ensine a condição humana, a identidade terrena, a compreensão e
a ética do gênero humano, entre outros saberes. O planeta é uma
embarcação frágil navegando no universo, não se sabe por quanto tempo
nem que noção de tempo. As divisões entre os homens precisam ser
superadas ou mantidas em nível tolerável para não colocar em risco esta
nave. Paradoxalmente, ela fica cada vez menor e mais interdependente.
Desenvolve de modo admirável as tecnologias de comunicação, porém,
tem dificuldades de compreensão, pois comunicar-se não leva,
necessariamente, a compreender. Por isso mesmo, é urgente desenvolver
a consciência da identidade terrena e da unidade do homem. É urgente
aprender que, apesar das diferenças superficiais, somos todos, afinal, seres
humanos que têm o mundo como pátria.

Essa unidade, por sua vez, repousa na diversidade. Se a variedade


das espécies não for preservada, temos hoje crescente consciência de
que a biosfera perecerá. A trajetória da Terra pelo infinito poderia terminar,
talvez, numa grande tragédia, da qual a vida, pelo menos como
conhecemos, não poderia mais renascer.

Por outro lado, o homem é um só, mas sobrevive graças à sua própria
diversidade, dos pontos de vista físico, biológico, psíquico, cultural, social
e histórico. Sem diversidade de opiniões e idéias, entra numa camisa de
força empobrecedora. Ao contrário, a democracia é o terreno onde
vicejam diferenças e disputas. Conforme Morin, “a vitalidade e a
produtividade dos conflitos só podem se expandir em obediência às regras

70
democráticas que regulam os antagonismos, substituindo as lutas físicas
pelas lutas de idéias, e que determinam, por meio de debates e das
eleições, o vencedor provisório das idéias em conflito, aquele que tem,
em troca, a responsabilidade de prestar contas da aplicação de suas idéias”.

Por isso mesmo, a função da escola não é uniformizar e padronizar.


Não é sonhar com um mundo sem conflitos, mas criar um mundo em que
os atores em conflito respeitem uma ética de conduta. Esse trabalho
começa na educação infantil, quando o professor, na sala de aula, inspira
os alunos a substituírem o braço pela palavra na solução das disputas.
Cada um desses atos anônimos tem a grandiosidade das coisas simples.
Esse trabalho prossegue no respeito dos educadores entre si, em torno
de um projeto pedagógico compartilhado com a comunidade. E prossegue,
mais adiante, no trabalho dos gestores educacionais que procuram melhor
servir à escola e à sala de aula, onde se desenrola o processo educacional.

Do mesmo modo, a elaboração e a execução de planos estaduais e


municipais de educação constituem um exercício fértil de convivência,
em que as diferenças não são apagadas, mas respeitadas. Em que as partes
não desaparecem, mas formam o todo interdependente. Em que os
conflitos se submetem a um consenso maior: servir ao cidadão e ao
contribuinte.

Por conseguinte, esta é a hora de colocar em prática o que a


expressão jurídica chama de regime de colaboração e o que a vida
cotidiana denomina de cooperação. Esta é a hora de os educadores
educarem pelo seu exemplo. Vamos ao desafio!

Quero aproveitar ainda esta oportunidade para ressaltar o trabalho


conjunto que vem sendo desenvolvido entre a UNESCO e a Comissão de
Educação do Senado Federal, tão criteriosamente dirigida pelo Senador Ricardo
Santos. Esse trabalho visa, essencialmente, a ampliar os espaços de luta
pela educação básica para todos, no sentido de dotar a política educacional
de novos mecanismos que viabilizem a aspiração maior dos compromissos

71
de Jomtien e de Dakar que é o de que todas as crianças, jovens e adultos
tenham a oportunidade de freqüentar uma escola cidadã que seja uma
porta de entrada decisiva no processo de universalização da cidadania.

Por último, não poderia deixar de expressar o meu reconhecimento


e a minha homenagem ao Secretário Stélio Dias que vem conduzindo a
política educacional neste Estado, de forma competente e equilibrada.
Stélio Dias já foi também membro da UNESCO Brasil, onde prestou
serviços relevantes.

72
A UNESCO e a Educação Superior no Século XXI18

A missão de construir uma cultura de paz fez da UNESCO, desde


sua fundação, há mais de meio século, uma instituição singular no seio das
Nações Unidas. Para cumprir esse mandato, a UNESCO sempre contou,
nas universidades e instituições de educação superior e de pesquisa, com
um forte ponto de apoio, de cooperação e de solidariedade. A afinidade
entre a UNESCO e as universidades deriva de princípios e metas que são
comuns em relação ao avanço da ciência e da tecnologia e à dimensão
ética do conhecimento.

Por isso, ao longo de sua história, a UNESCO procurou manter


com as universidades um relacionamento permanente, com o objetivo de
ampliar o intercâmbio e abrir espaços para o fortalecimento da educação
superior, da cultura e da pesquisa científica e tecnológica. A plataforma
de ideais e metas da Organização inclui educação e conhecimento para
todos e não somente para uma parcela privilegiada da população. O
princípio da democratização do conhecimento e de seu uso ético foi
assumido pela UNESCO desde a sua origem em 1946.

Na concretização de suas metas, que são discutidas e aprovadas no


concerto das Nações que a integram, as universidades sempre se fizeram
presentes na UNESCO, tanto no plano da produção de conhecimentos,
debates e reflexões sobre temas relevantes de nossa época, quanto na
divulgação e popularização dos saberes. A identidade entre a UNESCO

18
Artigo publicado na Internet: www.universiabrasil.net, em 05/03/2002.

73
e as universidades foi se consolidando na experiência de diversas parcerias
e no enfrentamento de problemas sociais e culturais, em diversas partes
do mundo. Enquanto as universidades procuravam gerar conhecimentos
sobre assuntos relevantes para o desenvolvimento humano, a UNESCO
procurava se especializar na política de intercâmbio, cooperação técnica
e compromissos públicos internacionais assumidos pelos Países-Membros
para colocar esses conhecimentos a serviço dos países mais necessitados.

Com a intensificação do processo de globalização e mundialização


das atividades humanas, a partir dos anos 90, a UNESCO, percebendo o
impacto que poderia dele advir sobre as universidades e a educação
superior em geral, deflagrou uma discussão mundial sobre o papel das
universidades e da educação superior no Século XXI. Foram realizados
inúmeros estudos, conferências regionais preparatórias e diversos outros
tipos de eventos, cujas recomendações convergiram para a grande
Conferência Mundial sobre o Ensino Superior, realizada em Paris, em outubro de
1998, com expressiva participação de mais de 4 mil pessoas, 180 países,
120 Ministros de Estado, além de reitores, pesquisadores e representantes
do setor privado e de Organizações Não-Governamentais.

O resultado final da Conferência de Paris foi a Declaração Mundial


sobre a Educação Superior no Século XXI, a qual constitui, na atualidade, uma das
referências mais importantes para as mudanças pensadas e executadas, tão
necessárias para fazer da universidade uma instituição-guia para a
construção de cenários sociais mais justos e eqüitativos.

A Declaração de Paris destaca, entre outras recomendações, a


necessidade de fomentar a cooperação Norte-Sul com vistas à criação de
melhores condições para o fortalecimento das universidades dos países
em desenvolvimento; enfatiza o compartilhamento de conhecimentos
teóricos e práticos entre os países e continentes e recomenda o
aproveitamento do potencial das novas tecnologias de informação e
comunicação e da formação de redes que possam favorecer a transferência
de conhecimentos.

74
Assim sendo, o Projeto Portal das Universidades configura-se como uma
iniciativa que se insere no conjunto de compromissos concertados na
Conferência de Paris, sobretudo no que se refere à criação de mecanismos
para estreitar a cooperação entre as universidades de diversos países.

75
Educação para Todos – um Imperativo do
Nosso Tempo19

Com o objetivo de comemorar o 2º Aniversário do Fórum Mundial de


Dakar, a UNESCO instituiu a Semana de Educação para Todos, no período de
22 a 26 de abril. A idéia dessa Semana nasceu da necessidade de renovar,
em todo o mundo, o sentido da luta para garantir a todas as pessoas as
aprendizagens indispensáveis à vida contemporânea, preconizadas pelo
Marco de Ação de Dakar.

A proposta de colocar a Reunião do Conselho de Secretários Estaduais de


Educação – CONSED como parte da Semana de Educação para Todos tem um
sentido especial. Entre os diversos fóruns de políticas públicas existentes
nos vários países, seguramente o CONSED tem sido um dos mais atuantes
em matéria de educação para todos. Sua contribuição à educação brasileira
é crescente e, certamente, se ampliará no futuro, dada à importância das
Unidades da Federação na política educacional brasileira.

Nesta oportunidade, é oportuno sublinhar que tanto a Conferência


de Jomtien, na Tailândia, no início de 1990, onde foi aprovada a Declaração
Mundial de Educação para Todos, quanto o Marco de Ação de Dakar, representam,
na história da educação mundial, um verdadeiro divisor de águas, pois
não se contentaram apenas com a universalização do acesso, mas, também,
com a qualidade e a democratização educacionais. Ambos os
compromissos traduzem a vontade dos Países-Membros da UNESCO com
uma educação básica de qualidade para todos.

19
Discurso pronunciado por ocasião da Reunião do Conselho de Secretários Estaduais de Educação
– CONSED, sobre a Semana de Educação para Todos. Brasília, DF, em 23/04/2002.

76
O reconhecimento de que a escolaridade é muito mais do que
estar na escola, vinculando-a à luta pela sobrevivência e dando ênfase à
melhoria das condições de vida, foi um salto sem precedentes em matéria
de política educacional. Os eixos norteadores de Dakar consagram essa
nova postura. Eqüidade, qualidade e competências essenciais à vida abrem
um novo horizonte pedagógico.

O Brasil, há alguns anos, entrou em sintonia com a meta de educação


de qualidade para todos. Nas três instâncias da administração educacional
brasileira – União, Estados e Municípios – trava-se uma luta incessante
para não deixar criança alguma sem escola. O resultado dessa política
está à vista e se expressa por quase 97% de crianças brasileiras inseridas
no processo de escolarização obrigatória. Sobressai, agora, o desafio da
qualidade, sem dúvida o mais difícil dos obstáculos.

O desafio da qualidade não será vencido do dia para a noite. Ele


requer tempo, mais recursos, planejamento e políticas de longo prazo.
Daí a importância do Plano Nacional de Educação e de seu desdobramento
em planos decenais dos Estados e dos Municípios. E o que é um plano? É
um mapa para se poder caminhar. Ele indica os marcos dos caminhos, os
nós a serem desatados. Por isso, é necessário saber onde se pretende chegar
para, então, se estabelecer as etapas da trajetória.

O planejamento e a sua tradução em atos representa uma experiência


desafiadora. Disso, decorre a necessidade de se conceber um plano que
esteja acima de interesses políticos mais imediatos para que todas as
pessoas e instituições nele se achem representadas e, devido a essa
condição, se mostrem dispostas a cooperar e somar esforços e energias.
O desafio educacional brasileiro exige um pacto entre Governo e a
sociedade civil, mediado por regras democráticas, com a consciência de
que, conforme observou Edgar Morin, a vitalidade e produtividade dos
conflitos só podem se expandir em obediências às regras democráticas
que regulam os antagonismos. A potencialidade existente no Brasil requer

77
uma política de educação que faça da escola uma instância promotora da
criatividade e do desenvolvimento humano.

Para que a esperança de uma escola de qualidade e criativa, onde o


aprender a ser, a fazer, a conhecer e a viver juntos se tornem lugar-comum
no cotidiano da escola, é indispensável um esforço coletivo que tenha como
referência a luta do Brasil para se converter em uma Nação plena em matéria
de direitos humanos. E como indica com propriedade o Marco de Ação de
Dakar, a educação é um direito humano fundamental e constitui a chave
para um desenvolvimento sustentável, assim como para assegurar a paz e a
estabilidade dentro de cada país e entre eles e, portanto, meio indispensável
para alcançar a participação efetiva nas sociedades e economias do Século
XXI, afetadas pela rápida globalização. Não se pode mais postergar esforços
para atingir as metas de educação para todos. As necessidades básicas da
aprendizagem podem e devem ser alcançadas com urgência.

Em sendo assim, nesta Semana de Educação para Todos, onde em diversas


partes do mundo estão ocorrendo uma série de eventos mobilizadores da
opinião pública, é oportuno insistir na tese de Dakar que, sem um progresso
acelerado na direção de uma educação para todos, as metas nacionais e
internacionais acordadas para a redução da pobreza não serão alcançadas e
as desigualdades entre as nações e dentro de cada sociedade se ampliarão.

Por último, quero apresentar aos novos Secretários de Educação que


tomaram posse recentemente os nossos cumprimentos e a certeza de que a
parceria entre o CONSED e a UNESCO, em prol de uma educação de
qualidade para todas as pessoas, poderá se consolidar ainda mais, de forma
a ampliar a sua perspectiva no contexto de uma educação renovadora.

78
Meio Ambiente:
Responsabilidade Compartilhada
Os Parlamentos na Luta Contra a Desertificação20

É com grande satisfação que a UNESCO participa desta importante


Mesa-Redonda dos Parlamentares, dirigida ao fortalecimento das políticas de
educação, ciência e cultura, para a implementação da Convenção das Nações
Unidas de Combate à Desertificação, na cidade de Recife, Estado de Pernambuco.

Este evento é, na visão da UNESCO, de grande relevância, uma


vez que demonstra o compromisso dos Parlamentos dos países afetados
pelos efeitos da seca e da desertificação, com a solução do problema
trazendo mais qualidade de vida às populações atingidas.

A participação dos Parlamentares nas discussões garante a amplitude


dos resultados a serem atingidos, em um esforço conjunto com outras
instituições governamentais e também com a sociedade civil.

O trabalho da UNESCO junto aos Parlamentos tem por objetivo


maior apoiar as iniciativas nacionais de edificação da democracia, por
meio da cooperação nos processos de reforma e fortalecimento
institucional de diversos Parlamentos. Da mesma forma, a UNESCO
oferece assistência aos países, no curso da reformulação e modernização
de partidos políticos, com o objetivo de atender às necessidades dos
povos, em um mundo em transformação.

20
Discurso pronunciado por ocasião da cerimônia de abertura da “Mesa-Redonda dos
Parlamentares no contexto da III Conferência da Convenção de Combate à Desertificação”,
no Centro de Convenções de Pernambuco, em Recife, em 22/11/1999.

81
Em todo o mundo e em todas as suas áreas de atuação, a UNESCO
procura contar com o apoio dos Parlamentos na consecução dos seus
grandes objetivos. A importância dessa parceria tem sido objeto de
crescente reconhecimento nos principais fóruns internacionais que
discutem o problema do desenvolvimento humano. O Congresso Nacional,
como instância de poder legitimada pelos diversos segmentos sociais, em
processo democrático de eleições, constitui local privilegiado para o
debate e aprovação de leis que convertam em realidade compromissos e
projetos de indubitável alcance coletivo.

Atualmente, a UNESCO conta com o apoio de Grupos Parlamentares


em quase vinte Parlamentos do mundo, dentre eles o Brasil, a Costa do
Marfim, a Romênia, além do Parlatino.

Respeitando as especificidades de cada país, a UNESCO, em


parceria com os Governos, coopera na implementação de uma agenda de
desenvolvimento conciliada aos programas e aos interesses estratégicos
dos respectivos países.

A UNESCO considera altamente relevante o desenvolvimento de


um trabalho conjunto com os Parlamentos visando à promoção e ao
fortalecimento destas instituições, como forma de garantia da vida
constitucional e democrática dos seus Estados Membros.

A resposta dos Parlamentos tem sido muito positiva, por meio do


estabelecimento de parcerias efetivas e constantes, nas mais diversas áreas
do conhecimento.

Em maio de 1994, a UNESCO assinou um Acordo de Cooperação


com o Parlamento Latino Americano, desenvolvendo uma série de atividades
conjuntas, já no biênio 1996/1997.

No campo da educação, os Escritórios da UNESCO no Brasil e no


Chile participam com o Parlatino na implementação do “Plano de Educação

82
para o Desenvolvimento e a Integração da América Latina”, sob a responsabilidade da
Equipe Central de Planificação, uma equipe interinstitucional, criada entre o
Parlatino e a UNESCO/OREALC (Oficina Regional de Educación para América
Latina y el Caribe), sediada em Santiago do Chile.

Com relação à cultura, a UNESCO está associada aos Parlamentos


na defesa do direito fundamental de participação na vida cultural e,
especialmente, do respeito ao multiculturalismo – o direito das mais
diversas populações de expressarem suas particularidades culturais.

Para a UNESCO Brasil, em especial, a parceria que temos hoje


com o Congresso Brasileiro é motivo de orgulho e se apresenta como um
modelo para os demais países da América Latina. Em julho de 1993, sob
a coordenação do então Deputado José Jorge, que hoje compõe o quadro
dos Senadores da República, foi criado o Grupo dos Parlamentares Amigos da
UNESCO, com o objetivo de promover a discussão pública de propostas
que contribuam, nos campos da educação, ciência, tecnologia, cultura e
comunicação, para a redução da pobreza e valorização da dimensão
humana do desenvolvimento.

O Grupo Parlamentar, formalmente constituído no dia 3 de julho de


1997, tornou o Brasil o primeiro país da América Latina a contar com um
Grupo Parlamentar pela UNESCO, a exemplo do que já acontecia em países
europeus, no Japão e em Israel.

Desde então, o Grupo Parlamentar dos Amigos da UNESCO tem sido um


parceiro constante, desempenhando um importante papel, não só em
termos de difusão dos ideais da UNESCO, como também na formulação
de políticas nacionais de educação, cultura, ciência e tecnologia.

A articulação permanente com os poderes constituídos, destaca-se


como condição fundamental para a viabilização da cooperação técnica,
que favoreça a consecução dos objetivos de desenvolvimento humano. É
esse o pensamento que norteia a atuação da UNESCO no mundo. Estamos

83
certos de que não devemos limitar o nosso trabalho ao relacionamento
com os órgãos do Poder Executivo, tanto nacional quanto municipal. A
UNESCO tem buscado outras parcerias, mobilizando novos interlocutores
para ações em prol da paz, do desenvolvimento e da democracia, tais
como: os Grupos de Parlamentares, as Organizações Não-Governamentais,
jornalistas, jovens e mulheres, além de fundações de natureza privada,
mantidas por organizações empresariais e voltadas para as ações sociais.

A parceria com os Parlamentos se reveste de especial importância


na consecução dos grandes objetivos acordados entre os Estados-
Membros, e a importância dessa parceria tem sido objeto de crescente
reconhecimento nos principais fóruns internacionais, que discutem o
problema do desenvolvimento humano. Os Parlamentos, como instâncias
de poder legitimados pelos diversos segmentos sociais, em processo
democrático de eleições, constituem local privilegiado para o debate e
aprovação de leis que convertam em realidade os compromissos e projetos
de indubitável alcance coletivo.

É essa a importância da realização desta Mesa-Redonda,


simultaneamente à Conferência sobre Desertificação. Nessas duas semanas, estarão
reunidos aqui, em Recife, representantes do Poder Executivo dos Estados-
Membros, discutindo as linhas de trabalho conjunto para o combate à
desertificação e à seca, problemas ambientais que afetam, de forma
perversa, um grande contingente de pessoas, privando-as, inclusive, de
direitos humanos básicos, como o direito à alimentação.

Os resultados da Conferência, entretanto, dependem do apoio dos


Parlamentos para que sejam realmente efetivos. A iniciativa de realizar
um Encontro como esse demonstra o compromisso dos Parlamentos, aqui
representados, com a execução das decisões que forem tomadas.

A UNESCO sente-se gratificada em poder, por meio de sua


delegação que tenho a honra de dirigir e, também, por meio de suas
ações em escala mundial, expressar a plenitude de seu mandato, enquanto

84
Agência Especializada das Nações Unidas, mais especificamente na
promoção da educação em todos os níveis, na disseminação dos princípios
de desenvolvimento sustentável e na difusão das expressões culturais e
de conhecimento tradicional aplicados às populações de regiões semi-
áridas, árida e sub-úmidas secas, no Brasil e no mundo.

O Secretariado da Convenção e a UNESCO vêm intensificando sua


cooperação, desde as negociações da Convenção, na Sede da
Organização, em Paris, local onde a mesma foi assinada, em 1994. Esta
colaboração se materializou, na ocasião, pela assinatura de um Memorando
de Entendimento entre a UNESCO e o Secretariado da Convenção, cujo texto foi
aprovado pelo Conselho Executivo da Organização, na sua 156ª Sessão,
em maio de 1998.

O Memorando contempla ações no sentido de promover a conservação


e o uso sustentável dos recursos naturais, nos campos da ciência, educação
e capacitação, cultura e comunicação. Prevê, ainda, a produção,
intercâmbio e disseminação de materiais educativos sobre o problema da
desertificação.

A desertificação é a causa e a conseqüência dos problemas


socioambientais, muitos deles com tal grau de interdependência que,
acreditamos, sua resolução deva ser buscada por meio da ação
transdisciplinar e com a participação de todas as forças da sociedade:
Governos, Organizações Não-Governamentais, Agências internacionais
e Organismos de financiamento.

Os Parlamentos – e os Parlamentares diretamente sensibilizados –


dos países afetados pelos fenômenos da seca e da desertificação
desempenham papel fundamental nos cenários, atuais e futuros, no tocante
à implementação das recomendações da Convenção.

É, em grande parte, por sua iniciativa e tenacidade, que os Governos


são estimulados a concretizar as medidas previstas na Convenção, visando

85
materializar as políticas nacionais de enfrentamento dos desafios, em um
mundo que se modifica rapidamente.

No Brasil, os Poderes Públicos, em todos os níveis, têm respondido


ao compromisso firmado pelo País, enquanto signatário da Convenção.

O Poder Executivo, por meio do Ministério do Meio Ambiente – com o


qual temos a honra de cooperar nesse tema – tem demonstrado firme
disposição em promover a efetiva execução de um Plano Nacional de Combate
à Desertificação, ao mesmo tempo em que implementa o Programa de Gestão dos
Recursos Hídricos, no semi-árido nordestino – PROÁGUA, e o Programa
Nacional de Educação Ambiental – PRONEA, caracterizando um conjunto de
ações complementares e interdependentes.

O Poder Legislativo, por meio do Senado Federal e da Câmara dos


Deputados, na esfera federal das Assembléias Legislativas nos Estados, e das Câmaras
de Vereadores, nos Municípios, têm reafirmado seu compromisso de priorizar
programas e projetos dirigidos a mitigar os sofrimentos das populações
do semi-árido brasileiro, devido à seca.

Buscar soluções para os problemas ecológicos e sócio-econômicos


decorrentes da seca e da desertificação é, acima de tudo, uma atitude de
respeito à dignidade humana das populações atingidas por esses fenômenos.
Nesse sentido, a Conferência sobre Desertificação pode ser considerada uma ação
em direção à Cultura de Paz, cujo ano internacional será celebrado em 2000.

A Cultura de Paz é a paz em ação. É o respeito aos direitos humanos


no dia-a-dia. É um poder gerado por um triângulo interativo de paz,
desenvolvimento e democracia. Enquanto cultura de vida, trata-se de
tornar diferentes indivíduos capazes de viverem juntos, de criarem um
novo sentido de compartilhar, ouvir e zelar uns pelos outros, e de assumir
responsabilidade por sua participação em uma sociedade democrática,
na luta contra a pobreza e a exclusão. Ao mesmo tempo, garantindo a
igualdade política, a eqüidade social e a diversidade cultural.

86
Por fim, gostaria de chamar a atenção dos senhores para um
importante aspecto desta Mesa-Redonda. Gostaria de ressaltar a importância
de sua atuação em favor da busca de alternativas para diminuir a pobreza,
e melhorar as condições de vida de parte significativa da população do
Brasil e de outros Estados aqui representados, mantendo a integridade e a
dinâmica dos processos da natureza.

Para os países em desenvolvimento, a degradação ambiental, a


pobreza e a fome estão de tal forma ligados que não podemos resolver
esta triste equação sem o apoio das forças políticas, dos cientistas e da
sociedade como um todo.

Não há dúvida de que a superação dos problemas originados pela


desertificação contribuirá, em grande medida, para a redução da pobreza
e da exclusão em nossos países. Para atingir esses bons resultados, é
inevitável a vontade política de gerar mudanças. Espero que os trabalhos
dessa Mesa Redonda sejam realmente efetivos e que possam contribuir, de
forma decisiva, para a construção de uma Cultura de Paz, em seu sentido
mais amplo, nas comunidades atingidas pela desertificação e a seca. Tendo
isso em mente, não poderia deixar de reforçar a disposição da UNESCO
em estreitar seus laços de cooperação com a sociedade em geral, visando
a efetiva implementação da Convenção.

87
Título de Patrimônio Natural pelo Pantanal e
Título de Cidadão Mato-Grossense21

Para um estrangeiro como eu, é mais que uma honra, é uma imensa
alegria receber o Título de Cidadão Mato-Grossense.

Só tenho a agradecer essa comovente demonstração de apreço,


sobretudo em um momento especial como este, quando o Pantanal,
orgulho maior deste Estado, recebe da UNESCO sinais claros de
reconhecimento por sua beleza, riqueza e cultura.

A Constituição Brasileira, no seu artigo 225, considera o Pantanal


um Patrimônio Nacional.

Nada mais justo, tendo em conta os esforços das autoridades e das


Organizações Não-Governamentais brasileiras no campo do meio ambiente,
e os excepcionais atributos naturais, culturais e humanos do contexto
pantaneiro, reconhecer esse ecossistema como de importância mundial.

Na semana passada, em Paris, a UNESCO incluiu 21 novas áreas na seleta


Rede Mundial das Reservas da Biosfera, que reúne agora 391 sítios em 94 países.

Entre esses sítios, está a Reserva da Biosfera do Pantanal.

O Programa Intergovernamental – O Homem e a Biosfera – MaB (Man


and Biosphere), criado no início dos anos 70, propõe a conciliação entre

21
Discurso pronunciado por ocasião da cerimônia comemorativa do recebimento do Título de
Patrimônio Natural pelo Pantanal e recebimento do Título de Cidadão Mato-Grossense.
Cuiabá, MT, em 2000.

88
a preservação, a conservação e o desenvolvimento humano sustentável,
fazendo das Reservas de Biosfera espaços concretos de pesquisa e
informação científica, de educação ambiental e de convívio entre as
populações e o seu ambiente.

Nada é mais apropriado ao Pantanal.

A sinergia histórica estabelecida entre a gente pantaneira e o


ambiente em que vive, mostra que não é um sonho melhorar a qualidade
de vida respeitando a natureza.

A cultura pantaneira é, sem dúvida, grande responsável pela


integridade do Pantanal.

Até o final deste mês, o Centro do Patrimônio Mundial da UNESCO –


responsável pela implementação da Convenção da Proteção do Patrimônio Mundial
– divulgará a relação dos novos bens inscritos e, entre eles, deverá figurar
o “Complexo de Áreas Conservadas do Pantanal”, que então receberá o
título de Patrimônio Natural da Humanidade.

O belíssimo local, que ora nos recebe, representa o coração de um


conjunto composto pelo Parque Nacional do Pantanal e pelas Reservas
Particulares do Patrimônio Natural : Penha, Doroche e Acurizal.

Esperamos que, a partir desse momento, se estabeleça e se consolide


uma parceria entre as organizações governamentais, não-governamentais
– em especial a Fundação Ecotrópica, Prêmio UNESCO 2000 de Ciências
e Meio Ambiente, agência de cooperação técnica internacional, e toda a
sociedade, como modelo capaz de ser difundido para o Brasil e para outros
países, principalmente aqueles que compartilham ecossistemas de
significado biorregional.

Hoje, isso é mais importante do que nunca, uma vez que os países
buscam, cada vez mais, adequar suas estratégias nacionais de conservação

89
e desenvolvimento sustentável aos compromissos internacionais
decorrentes da RIO 92.

Por tudo isso, a UNESCO tem a alegria e a honra de incluir o


Pantanal na relação de lugares preciosos do mundo, dignos do respeito,
da admiração e da proteção de todos os habitantes do planeta.

E, pelo mesmo motivo, a honra de receber o Título de Cidadão


Mato-Grossense reveste-se, para mim, de alegria redobrada: sinto-me mais
brasileiro do que antes e, ao mesmo tempo, mais cidadão do mundo,
como o pantaneiro também deve sentir-se agora.

90
Gestão Compartilhada dos Recursos Hídricos22

Ao longo da história da humanidade, a utilização desordenada e o


mau gerenciamento dos recursos hídricos geraram problemas de tal
magnitude que, nos dias de hoje, a oferta e a qualidade da água atingem
um patamar social e ambientalmente inseguro.

De 1950 a 2000, a disponibilidade de água em mil metros cúbicos


por habitante, por região, diminuiu de 20,6 para 5,1 na África; de 9,6
para 3,3 na Ásia; de 105 para 28,2 na América Latina; de 5,9 para 4,1 na
Europa e de 37,2 para 17,5 na América do Norte.

O desafio que enfrentamos, como indica o tema do Dia Mundial da


Água – que se celebra hoje –, é o de colocar em marcha as medidas que
façam, deste século, o da segurança e garantia permanente ao acesso à
água em escala mundial.

A água tem sido vista, durante muito tempo, como fonte de conflitos
e apresentada em termos de catástrofe, escassez e contaminação.
Necessitamos implementar uma agenda política positiva voltada para uma
visão mais construtiva da água como recurso essencial e compartilhado.

A UNESCO não somente considera a água uma prioridade dentro


de seu Programa de Ciências, como também promove a reflexão sobre o
conhecimento tradicional e a gestão dos recursos hídricos. Nossa

22
Artigo publicado no jornal “Correio Braziliense”, DF, em 02/03/2000, e no Jornal do Tocantins
em 14/07/2000.

91
organização abrigou o processo de consulta, em escala mundial, que
conduziu à redação do informe Visão Mundial da Água, que fomenta a busca
de soluções em vários níveis, nos campos das ciências sociais e naturais,
no papel da educação e da cultura, no setor da informação e difusão de
práticas sustentáveis no manejo das águas.

O Programa Hidrológico Internacional (PHI), da UNESCO, criado nos


anos 70, após a Década Mundial da Água (1965/1975), ingressa na sua sexta
fase propondo cinco temas direcionados ao atendimento das demandas
contemporâneas relacionadas à água: Mudanças Globais e Recursos
Hídricos; Dinâmica Integrada das Águas; Perspectivas Regionais; Água e
Sociedade; e Conhecimento, Informação e Transferência Tecnológica.

O PHI, além de desenvolver estudos em escala mundial, tem por


objetivo fornecer subsídios técnico-científicos e mecanismos de apoio à
gestão dos recursos hídricos aos países integrantes do Programa, dentre
os quais o Brasil, que detém em torno de 12% da água doce disponível no
mundo, porém distribuída de forma muito desigual no seu território, com
grandes problemas em relação à conservação de mananciais, custos de
tratamento, perdas na distribuição e desperdício de consumo.

Por outro lado, o Brasil vem consolidando sua política nacional de


recursos hídricos, cuja base é a Lei nº 9.433/97 – Lei das Águas, que
criou o Sistema Nacional de Gestão dos Recursos Hídricos e estabeleceu os
mecanismos de cobrança e de outorga dos direitos de uso da água no
país; a regulamentação da lei e sua aplicação fazem do Brasil referência e
exemplo para países que necessitam construir suas políticas nacionais.

O processo já avançado de criação da Agência Nacional das Águas


(ANA), que exercerá função reguladora e será responsável pela
implementação da política nacional de recursos hídricos, reforça a
importância e a urgência de serem postos em prática os dispositivos
previstos na legislação.

92
Um dos mecanismos mais modernos da Lei das Águas é o que cria
os Comitês de Bacias Hidrográficas, em um claro movimento de descentralização
da gestão. Esses comitês – alguns já estruturados – funcionarão como
fóruns de bacias, formados por representantes dos vários ramos da
economia que têm a água como insumo; por organizações sociais e pelos
Poderes Públicos, em nível municipal, estadual e federal.

Os Comitês de Bacias Hidrográficas são instrumentos de extrema


importância para uma gestão compartilhada dos recursos hídricos, em
escala local, nacional ou internacional. Sua constituição ampliada permite
e favorece a participação comunitária, oferece uma instância colegiada
para dirimir conflitos oriundos de disputas pelo uso da água e propicia
a cooperação entre nações – comitês de bacias transfronteiriças são
uma realidade.

A UNESCO, por meio de sua representação no Brasil, e de acordos


de cooperação com o governo brasileiro no âmbito do PRÓAGUA, apóia,
firmemente, o fortalecimento dos Comitês de Bacias Hidrográficas,
instância em que a Organização poderá expressar a amplitude de seu
mandato, nos campos da educação, da ciência e da cultura.

93
O Código do Desmatamento23

É com preocupação que acompanhamos o noticiário recente, o qual


nos informa sobre a progressiva e permanente devastação de importantes
reservas ambientais do Brasil. Mas, apesar das denúncias, a ação predadora
prossegue, como se os apelos da sociedade e as medidas governamentais
fossem insuficientes para impedi-la.

Portanto, é com pesar que vimos ser aprovado, na Comissão Mista do


Congresso Nacional, o Projeto de Conversão que modifica o Código Florestal
Brasileiro e permite, entre outras ações devastadoras, a ampliação da área de
desmatamento da Amazônia. Segundo o Projeto, será permitida a redução
de 80% para 50% da faixa de reserva ambiental obrigatória na floresta. No
Cerrado e na Mata Atlântica, essa faixa pode ser reduzida a menos de 20%.
Dessa forma, tem-se uma espécie de código favorável ao desmatamento.

Seria a agricultura a real vocação dessas áreas? Os parlamentares


que votaram a favor do Projeto parecem crer que sim. Mas não é isso o
que dizem, com autoridade no assunto, o Ministério do Meio Ambiente, o Conselho
Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, e os ambientalistas em geral.

Na opinião dos especialistas, as reservas florestais são mais lucrativas


quando adequadamente exploradas, seja por meio da indústria madeireira,
seja pelo extrativismo vegetal ou pela biotecnologia. São inadequadas
para o cultivo ou a criação de animais. Áreas devastadas da Amazônia,

23
Artigo publicado no jornais: “O Globo”, RJ, em 16/05/2000; “Jornal do Tocantins”, em
25/05/2000; “A Tarde”, BA, em 09/06/2000.

94
por exemplo, converteram-se em terrenos áridos, quando não arenosos,
como os desertos. Por outro lado, a moderna tecnologia agrícola – e o
próprio Governo, por intermédio da Empresa Brasileira de Pesquisa na
Agricultura – EMBRAPA, pode confirmá-lo – permite um aproveitamento
das atuais áreas de cultivo, compensando possíveis “perdas” de terreno
para as reconhecidas reservas ambientais.

Caso se aprove, em Plenário, o Projeto do Código Florestal Brasileiro, da


forma em que se encontra, o Brasil estará retrocedendo. Signatário de
compromissos internacionais, tais como a Agenda 21 e detentor de uma
legislação abrangente, avançada e moderna, o País assumiu a liderança
regional em questões de meio ambiente. É, portanto, exemplo aos vizinhos.

Um retrocesso, agora, irá de encontro a uma política empreendida


pelo Governo Federal, no sentido de preparar o País para o futuro,
inclusive mediante a inclusão de novos sítios naturais brasileiros na Lista
do Patrimônio Mundial da UNESCO. Recentemente, por exemplo, receberam
o título de Patrimônio Natural da Humanidade as Reservas Florestais da Mata
Atlântica, na Costa do Descobrimento – nos Estados da Bahia e do Espírito
Santo – e as reservas da Mata Atlântica do Sudeste.

Os jornais de hoje noticiam que o Brasil obteve, ontem, crédito a


fundo perdido de US$30 milhões do Banco Mundial para um projeto que
visa preservar 10% das florestas tropicais do País.

A Organização Não Governamental World Wildlife Fund – WWF,


prometeu mais US$5 milhões a esse programa. A meta é proteger 37
milhões de hectares de florestas tropicais. Isso equivale a acrescentar 25
mil aos 12 mil hectares que hoje são áreas protegidas na Amazônia. O
Governo, que já havia reservado US$15 milhões para o projeto,
acrescentará US$18 milhões.

Vários programas vêm sendo desenvolvidos pela UNESCO, com


apoio do Ministério do Meio Ambiente do Brasil, no intuito de trazer

95
alternativas para o tratamento da questão ambiental no mundo e no Brasil,
buscando compatibilizar o desenvolvimento sócio-econômico e a
preservação da qualidade de vida e do ambiente, de forma justa e
eticamente correta, para a população atual e as gerações futuras. Dentre
eles, o Programa de Ciências da Terra – GEO, o Programa Hidrológico Internacional
– IHP, o Programa Homem e a Biosfera – Man and Biosphere -MaB, entre outros.

Como resultado do Programa MaB, no Brasil, temos as três Reservas


da Biosfera Brasileiras: a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, que se
estende por 14 estados da Federação, a do Cinturão Verde da Cidade de
São Paulo, que abarca os municípios da Grande São Paulo, e a Reserva do
Cerrado do Distrito Federal, os quais refletem o esforço da sociedade na
busca do atendimento às necessidades da comunidade e o melhor
relacionamento entre os seres humanos e o meio ambiente.

A preocupação com o futuro da humanidade pauta as ações da


UNESCO em todos os seus Países-Membros, incluindo o Brasil. E o futuro
do homem, como já se sabe, está intrinsecamente relacionado ao futuro
dos recursos naturais. O imediatismo de ações políticas, e a inconseqüência
de posições tomadas ao sabor dos interesses momentâneos não devem
comprometer o futuro de gerações inteiras.

96
Pantaneiros, Cidadãos do Mundo24

A Constituição Brasileira, no seu artigo 225, parágrafo 4, considera


o Pantanal Patrimônio Nacional. Nada mais justo que reconhecer esse
ecossistema como de importância mundial, levando em conta os esforços
das autoridades e das Organizações Não-Governamentais brasileiras, no
campo do meio ambiente, e os excepcionais atributos naturais, culturais
e humanos do contexto pantaneiro.

A sinergia histórica estabelecida entre a gente pantaneira e o


ambiente em que vive demonstra que não é um sonho melhorar a qualidade
de vida, respeitando a natureza. A cultura pantaneira é, sem dúvida, a
grande responsável pela integridade do Pantanal.

O Comitê do Patrimônio Mundial da UNESCO – incumbido da


implementação da Convenção da Proteção do Patrimônio Mundial – reunido em Cairns,
na Austrália, entre os dias 27 de novembro e 2 de dezembro, de 2000, depois
de examinar 71 sítios propostos por 43 países, divulgou a relação dos novos
bens inscritos e, entre eles, figura o “Complexo de Áreas Protegidas do Pantanal”. O
belíssimo local, que receberá o título de Patrimônio Natural da Humanidade, é
formado por um conjunto composto pelo Parque Nacional do Pantanal e
pelas Reservas Particulares do Patrimônio Natural: Penha, Doroche e Acurizal.

As principais razões pelas quais o Pantanal merece o reconhecimento


internacional são já conhecidas: trata-se de um ecossistema único no

24
Artigo publicado nos jornais: “A Gazeta de Cuiabá”, MT, em 01/12/2000; “O Globo”, RJ, em
05/12/2000.

97
mundo; é o habitat de espécies animais e vegetais tão ricas e variadas quanto
raras, algumas delas em extinção; é protegido nacionalmente; pertence e
tem influência sobre mais de um país e revela uma cultura ímpar, que é a
cultura do pantaneiro – sua culinária, seu vestuário, seus costumes, suas
festas, bem como suas manifestações artísticas. Todo esse complexo tem
sido objeto da atenção tanto do Governo Brasileiro quanto da sociedade
civil, a qual tem se organizado em defesa do ecossistema pantaneiro.

Além do reconhecimento como Patrimônio Natural da Humanidade, parte


significativa do Pantanal foi incluída, recentemente pela UNESCO, na
seleta Rede Mundial das Reservas da Biosfera, que reúne agora 391 sítios, em 94
países. Entre esses sítios, está a Reserva da Biosfera do Pantanal.

O Programa Intergovernamental – O Homem e a Biosfera (Man and


Biosphere – MaB), criado no início dos anos 70, propõe a conciliação entre
a preservação, a conservação e o desenvolvimento humano sustentável,
fazendo das Reservas da Biosfera espaços concretos de pesquisa e
informação científica, de educação ambiental e de convívio entre as
populações e o seu ambiente. Nada é mais apropriado ao Pantanal.

As reservas da biosfera são escolhidas baseadas na capacidade que


demonstram de conciliar tanto a conservação da diversidade biológica,
quanto o uso sustentável dos recursos naturais. Esse conceito, o qual engloba
uma visão de futuro, teve início com o Programa MaB da UNESCO. Hoje,
tal Programa tem mostrado que pode fortalecer e apoiar políticas nacionais
compatíveis com os compromissos internacionais decorrentes da Cúpula da
Terra e da Rio 92, como, por exemplo, a Convenção sobre Diversidade Biológica.

Indicadas pelos Estados-Membros da UNESCO – entre eles o Brasil


–, após um processo de consulta e coordenação com agências
governamentais, comunidades locais, Organizações Não-Governamentais
e iniciativa privada com atuação nas áreas envolvidas, essas reservas
permanecem totalmente sob o controle jurídico soberano de seus países
– o mesmo acontecendo com os sítios do patrimônio.

98
As vantagens desfrutadas, tanto pelos sítios do patrimônio quanto
pelas reservas da biosfera, incluem o reconhecimento oficial, por parte
das Nações Unidas, dos esforços locais e nacionais para promover a
conservação e o desenvolvimento sustentável: “um selo de qualidade”
útil para reforçar a captação de recursos financeiros – como, por exemplo:
o Projeto Pantanal, um contrato entre o Governo Brasileiro e o Banco
Interamericano de Desenvolvimento para promover o desenvolvimento
sustentável do Pantanal.

Espera-se que, a partir desse momento, se estabeleça e se consolide


uma parceria entre as organizações governamentais, não-governamentais
– em especial a Fundação Ecotrópica, Prêmio UNESCO 2000 de Ciências
e Meio Ambiente –, agência de cooperação técnica internacional, e toda
a sociedade, como modelo capaz de ser difundido para o Brasil e para
outros países, principalmente aqueles que compartilham ecossistemas de
significado biorregional.

Por tudo isso, a UNESCO tem a alegria e a honra de incluir o


Pantanal na relação de lugares preciosos do mundo, dignos do respeito,
da admiração e da proteção de todos os habitantes do planeta.

99
Água para o Desenvolvimento25

Falar em água, hoje, no Brasil, tem um significado diferente. O Dia


Mundial da Água, 22 de março, quando foi criado por recomendação da
Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento do Rio de Janeiro, a Rio 92,
pretendia chamar a atenção da sociedade para a importância da água para
a humanidade. Hoje, avançou-se um pouco. Já sabemos disso. Agora, o
momento é de tomada de decisões, de escolha das melhores alternativas
e de, efetivamente, definir um caminho para preservar e manter as águas
do planeta.

Já está formada uma consciência pública sobre a importância da


conservação e desenvolvimento dos recursos hídricos, mesmo que ainda
falte colocar em prática as recomendações da Agenda 21, muitas delas
relacionadas à água. No ano passado, a escassez desse bem precioso nos
reservatórios brasileiros provocou o racionamento de energia elétrica,
chamando a atenção, de forma muito intensa, sobre a problemática do
acesso da população à água doce. Pessoas de todas as classes sociais
tomaram consciência dos problemas trazidos pela falta de água. E houve
a oportunidade de cooperar com o País.

Todos estão cientes de que as estatísticas sobre a questão não são


exageradas, e representam uma realidade a ser enfrentada, com rapidez e
firmeza, para evitar falta de água em um futuro próximo. Não é acessível
à água potável um bilhão e cem mil pessoas; para 2,5 bilhões, falta água

25
Artigo disponível na Internet através do endereço http://www.UNESCO.org.br/noticias/
index.asp, em 01/07/2002.

100
para fins sanitários. E mais de 5 milhões de pessoas morrem por doenças
relacionadas à água, 10 vezes mais que o número das que são mortas nas
guerras no mundo, a cada ano.

Com certeza, o tema será de destaque na Rio+10, uma segunda


edição da Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e que acontecerá em
agosto próximo, em Johannesburgo, África do Sul. E não é à toa que a
discussão deverá ser acirrada, envolvendo Chefes de Estado, Organizações
Não-Governamentais e o setor privado de todo o mundo. Dois terços
dos grandes rios são compartilhados por vários países e mais de 300 deles
atravessam fronteiras nacionais. Há muito o que se discutir.

No Brasil, a UNESCO vem cumprindo seu mandato apoiando a


instalação e estruturação da Agência Nacional de Águas – ANA, em sua
missão de “disciplinar a utilização dos rios, de forma a evitar a poluição e
o desperdício, para garantir água de boa qualidade às gerações futuras”.
Inicialmente, esse trabalho está focado em dois graves problemas do País:
as secas prolongadas, especialmente no Nordeste, e a poluição dos rios.

No âmbito internacional, a UNESCO definiu “Água para o


Desenvolvimento” como tema para o Dia Mundial da Água deste ano. Por meio
do “Programa Hidrológico Internacional”, procura-se dar uma base científica à
avaliação global de recursos hídricos e à elaboração de princípios éticos
e sócio-econômicos para guiar a gestão de águas e as práticas de
desenvolvimento, especialmente em regiões áridas.

A Organização está trabalhando em conjunto também com a


Secretaria do Programa WWAP – Programa Mundial de Avaliação dos
Recursos Hídricos, das Nações Unidas. Nele, o esforço orquestrado de
23 Agências das Nações Unidas produzirá o “Informe Mundial sobre o
Desenvolvimento dos Recursos Hídricos”.

O Projeto da UNESCO “Água para a Paz”, em parceria com a Cruz


Verde Internacional e encabeçado por Mikhail Gorbatchev, visa oferecer aos

101
formuladores de decisões, especialistas em hidrologia e estudantes, as
habilidades necessárias à negociação para prevenir a erupção de conflitos
internacionais por causa da água. Pretende-se fazer do século XXI um
marco da “água da paz”, em vez de sofrer por “guerras de água”.

Em todo esse esforço conjunto para se evitar o colapso pela falta


de água, vale destacar uma recomendação. A questão da água deve ser
tratada contemplando-se todos os interesses, em todos os aspectos. Trata-
se de uma disputa na qual não pode haver vencedores nem vencidos.
Todos precisam estar satisfeitos, já que esse é um bem essencial à
continuação da vida no planeta.

102
Aids:
Estratégias de Reversão
Dia Mundial de Combate à AIDS26

O dia de hoje deve ser motivo tanto para refletir sobre os rumos
que a epidemia de AIDS tem tomado no mundo e no Brasil, quanto para
garantir que nossas estratégias sejam as mais adequadas para uma doença
que, além de não recuar, muda sua forma de atacar as populações do
planeta.

Conforme apresentado por Peter Piot, Diretor Executivo do Programa


Conjunto das Nações Unidas de Combate à AIDS (UNAIDS), as estatísticas mais
recentes revelam um quadro preocupante: a AIDS vem encontrando
guarida nas populações carentes. A desinformação e a dificuldade de
acesso a métodos preventivos fazem com que a AIDS e a pobreza se
associem, de forma perversa. Tanto na cidade quanto no campo, a epidemia
alastra-se junto às camadas menos preparadas para combatê-la. A
pauperização da doença demanda uma resposta rápida e combativa.

Os últimos dados também revelam que as mulheres têm sido vítimas


preferenciais da desinformação e do preconceito entre os sexos. A
transmissão de mãe para filho e o crescente número de crianças órfãs por
causa da doença, conformam um quadro que o Brasil não quer. Oferecer
os insumos necessários para que as mulheres possam se defender do HIV
é uma das metas que deve guiar os esforços da sociedade brasileira. Esta,
deve estar preparada para fazer frente aos próximos anos. Quase metade

26
Discurso proferido por ocasião da comemoração do “Dia Mundial de Combate à AIDS”, no
Ministério da Saúde, em Brasília, DF, em 01/12/1999.

105
das pessoas que vivem com AIDS foram infectadas antes dos 25 anos.
Metade vai morrer antes de chegar aos 35. Isso é preocupante para o
Brasil. Este País depende de seus jovens para alavancar o processo de
desenvolvimento social que vai redimir a população das injustiças e
desigualdades que marcaram sua história. A juventude deve, portanto,
estar no centro de nossas preocupações e estratégias de ação. Daí, nossa
preocupação com a prevenção nas escolas. As escolas devem ser o foco
das nossas atividades.

Graças à eficaz ação dos Governos, tanto na esfera federal quanto


na estadual e na municipal, foi possível estancar e até mesmo reduzir a
média de internações dos pacientes com AIDS. A escolha pelo caminho
da prevenção intensiva e do tratamento provou ser correta e deve
continuar o Projeto do Ministério da Saúde AIDS II – modelo de excelência
no mundo. É imprescindível continuar apostando, juntos, na melhoria da
qualidade de vida dos já infectados.

O grupo de agências e entidades representadas no Grupo Temático do


Programa Conjunto das Nações Unidas de Combate à AIDS (UNAIDS) definiu
algumas metas que contribuirão, positivamente, para a consolidação da
luta contra a AIDS no Brasil. A agenda para o próximo ano é densa e
complexa.

Em janeiro próximo, será constituído um Grupo de Trabalho Jovem, cujo


objetivo é articular lideranças jovens e multiplicar os esforços da juventude
no combate à epidemia. Este grupo será crucial para aglutinar informações
e para incentivar a atuação dos jovens brasileiros, somando esforços nas
cinco regiões do Brasil.

Nossa preocupação pelos direitos humanos e pela defesa legal dos


portadores do HIV, levou-nos a propor a criação de um Grupo Parlamentar
de Combate à AIDS. Este Grupo, certamente, terá um papel primordial na
formulação e implementação de garantias constitucionais centrais à
melhoria da qualidade de vida dos brasileiros infectados.

106
Outro movimento em direção a uma resposta ampla ao desafio da
AIDS, foi o de incluir uma representação da sociedade civil no Grupo
Temático composto pelo Governo brasileiro e agências internacionais
aqui sediadas. O protagonismo do movimento social brasileiro é singular
e vem sendo correspondido institucionalmente, o que faz do Brasil um
modelo para outros países da região e do mundo.

Nesse sentido, parabenizamos o Ministro da Saúde por ter criado


o Conselho Empresarial de Combate à AIDS, reunindo grandes empresas que são
sensíveis ao tema e procuram vincular suas atividades à prevenção da
transmissão do vírus, de forma comprometida e sistemática. A co-
responsabilidade da iniciativa privada será central no desenho de qualquer
estratégia que pretenda fazer com que a AIDS não seja um empecilho ao
desenvolvimento econômico e social do Brasil.

Por isso, aproveito a ocasião para fazer um apelo. A AIDS não é


tema exclusivo de governos, de agências ou de organizações civis. É um
problema que diz respeito a toda a sociedade. Os meios de comunicação
são um instrumento primordial para a luta contra a desinformação e o
preconceito. O Brasil está começando a conhecer sobre a doença
justamente porque a parceria com os meios de comunicação tem sido
eficiente. O trabalho que vem sendo desenvolvido pela mídia é
complementar ao esforço preventivo do Ministério da Saúde, das
Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde.

Esse esforço, no entanto, ainda pode ser multiplicado. As


personalidades e programas mais populares da mídia, especialmente no
rádio e na televisão, podem ser excelentes instrumentos de
conscientização, ao veicularem, de forma constante, mensagens que
chamem a atenção para a luta que está sendo travada contra esta epidemia
grave, e de sérias conseqüências para o futuro do nosso País.

A campanha de prevenção à AIDS no Brasil precisa do apoio da


mídia para atingir essencialmente a juventude. A força incontestável da

107
mídia, especialmente a televisiva, pode potencializar o impacto das ações
atuais, com a participação efetiva dos heróis e heroínas da juventude
brasileira, transmitindo mensagens de prevenção. Com o apoio decisivo
da mídia, os esforços de conscientização que vêm sendo desenvolvidos
pelo Ministério da Saúde, pelas Secretarias Estaduais e Municipais de
Saúde, associados à contribuição dada pelo Ministério da Educação e das
Secretarias de Educação, com a inclusão dos temas sobre a sexualidade
nos Parâmetros Curriculares Nacionais e às campanhas do próprio
Ministério da Saúde, podemos esperar resultados ainda mais expressivos,
nos próximos anos.

108
Um Novo Perfil para a Segurança Internacional
no Século XXI27

O primeiro mês do ano inicia-se sob a marca da mudança. Na segunda


feira passada, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas aproveitou
sua primeira sessão do século XXI para debater os possíveis caminhos
que a sociedade internacional deverá traçar, nos próximos anos, no combate
a um dos mais perversos flagelos contemporâneos : a AIDS.

Pela primeira vez, em seus 55 anos de existência, as Nações Unidas


consideram que um tema referente à saúde das populações do mundo
deve integrar a agenda de segurança internacional. Estima-se que, nos
próximos dez anos, a AIDS matará mais pessoas do que todas as guerras
do século XX somadas. Hoje em dia, há aproximadamente 11 milhões de
crianças e jovens órfãos pela doença. O Conselho de Segurança abriu um
precedente importante, sinalizando que esta devastadora epidemia deve
ser combatida com a mesma firmeza com que a comunidade mundial
enfrenta conflitos armados e o terrorismo internacional.

Durante os últimos anos, o número de infectados pelo vírus da AIDS


atingiu números alarmantes – 33,6 milhões, em todo o mundo. As
populações carentes, os jovens e as mulheres têm sido vítimas preferenciais,
não somente do vírus mas também da ignorância e da discriminação.

Esse fato é preocupante para países como o Brasil que precisam de


uma população comprometida com o crescimento econômico e melhoria

27
Artigo publicado nos jornais: “Correio Braziliense”, DF, em 23/01/2000; “O Popular”,GO, em
29/01/2002; “Jornal do Tocantins”, em 03/03/2000.

109
social para transformar o quadro histórico de desigualdades. Além de ser
um problema de saúde pública, a AIDS tornou-se um empecilho ao
desenvolvimento dos países, impossibilitando a alavancagem do
crescimento. Ao afetar as populações jovens do Brasil, a AIDS diminui a
qualidade de vida de toda a população, comprometendo o futuro da
sociedade brasileira.

Dessa maneira, o Sistema das Nações Unidas, no País, decidiu articular-


se de forma a encontrar respostas para o desafio da AIDS. Os esforços
envidados nessa luta devem estar em harmonia com suas características
sociais e econômicas, suas possibilidades e limites. É no âmbito do Grupo
Temático Brasileiro do Programa Conjunto das Nações Unidas para a AIDS (UNAIDS)
que dezessete agências internacionais, aqui representadas, e entidades
domésticas governamentais e da sociedade civil somam seus esforços para
a consecução da tarefa de minar as causas das infecções no Brasil.

A estratégia adotada pelo Grupo Temático da UNAIDS consiste na


progressiva inclusão dos diversos grupos sociais brasileiros na formulação
e implementação de esforços contra a AIDS. A grande tarefa do Grupo,
para o ano 2000, é articular todos os vetores sociais, de forma consistente
e realista.

Nesse sentido, está sendo criado o Grupo de Trabalho Jovem, que agrega
lideranças juvenis no assunto, em nível nacional. Sua tarefa será a de
aglutinar, disseminar e maximizar as informações referentes a práticas,
técnicas preventivas e de tratamento, assim como o financiamento de
projetos. Entende-se que o protagonismo juvenil em todas as fases de
combate à doença – desde a prevenção nas escolas até o tratamento e o
aconselhamento em centros hospitalares – é elemento central para o
sucesso da empreitada.

Com o intuito de abarcar os setores sociais produtivos, criou-se o


Conselho Empresarial de Combate à AIDS, por iniciativa do Ministro da Saúde.
O Conselho reúne grandes grupos econômicos que trabalham em prol da

110
conscientização de patrões e empregados, bem como da adoção de
práticas preventivas, desde a iniciação sexual até a maturidade. O
Conselho tem a capacidade de estabelecer uma rede de práticas bem
sucedidas que, eventualmente, poderão cruzar a fronteira e incluir outros
grupos econômicos do Mercosul.

Some-se, ainda, a orientação do Grupo de Parlamentares Contra a AIDS,


ora em formação, que é a garantia da plena cidadania e a proteção dos
direitos humanos daqueles que vivem com AIDS. Composto por
Deputados e Senadores, este Grupo terá a função de constituir uma pressão
formal no sistema político brasileiro. Abrirá espaços institucionais para a
obtenção de elementos que contribuam, significativamente, para a
melhoria das condições de vida daqueles direta ou indiretamente afetados.

É importante que os educadores possam desempenhar um papel


significativo na modificação do comportamento dos jovens brasileiros. Sua
importância é enorme, seja incentivando o debate e combatendo os possíveis
constrangimentos de tratar da AIDS, na sala de aula ou em casa. Para isso, a
UNESCO, com apoio do Grupo Temático, lançou o Prêmio UNESCO de Prevenção
às DST/AIDS e ao Uso Indevido de Drogas, que contemplará as escolas e grupos de
estudantes que tenham os melhores programas de prevenção do País.

É evidente que a estratégia do Grupo Temático é complexa e ataca


diversos contextos, simultaneamente. A ação concertada com a Coordenação
Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS, do Ministério da Saúde,
que vem realizando um trabalho sem igual na América Latina, faz com
que agências internacionais e nacionais atinjam a convergência necessária
para levar à frente um projeto desta envergadura.

Temos um imenso trabalho pela frente e a certeza de que o nosso


esforço pode ser multiplicado. A AIDS não é tema exclusivo de governos,
de agências ou de organizações civis, mas sim um problema que diz
respeito a toda a sociedade. Os meios de comunicação são um instrumento
primordial para a luta contra a desinformação e o preconceito.

111
A AIDS pode assumir as características devastadoras de uma guerra.
É tarefa de todos somar esforços para combatê-la, sem vergonha ou temor,
mas com a consciência de que estamos tratando de uma questão de
sobrevivência.

112
AIDS: Fortalecendo Alianças28

A realização deste evento constitui uma inflexão importante na


história da AIDS, em nosso continente. A relevância que a cooperação
técnica horizontal assume para os países da América Latina e do Caribe é
clara: temos tudo a ganhar a partir da troca sistemática de experiências e
conhecimentos.

Os próximos quatro dias servirão como um laboratório de idéias


para avaliar o que queremos da cooperação técnica e o que podemos
fazer com ela. Qual o formato que lhe daremos, no intuito de que nos
sirva como instrumento para equacionar os problemas e desafios impostos
pela AIDS?

A celebração desta reunião, no Brasil, é muito significativa, pois a


resposta nacional à AIDS é uma das melhores, em todo o mundo. Sua
característica principal, que pode ser aproveitada por todas as delegações
aqui presentes, é a multiplicidade de atores envolvidos. Por um lado, há
uma resposta governamental decidida, sistemática e finamente articulada
com instâncias locais e com os mais diversos setores da sociedade. Por
outro, a sociedade civil organizada tem uma capacidade de resposta muito
veloz e enérgica quando se trata da AIDS. Essa conjunção serve a todos
nós como modelo.

A pluralidade de elementos envolvidos no tema da AIDS no País


reflete-se na estrutura da colaboração das Nações Unidas. Por meio de

28
Discurso por ocasião do “Fórum 2000”, Rio de Janeiro, 6 a 11 de novembro de 2000.

113
um Grupo Temático no Brasil, o Programa Conjunto das Nações Unidas para a AIDS,
que reúne organizações internacionais, agências governamentais e
agências financiadoras e de cooperação internacionais, tais como: o Banco
Mundial, a Agência de Cooperação Norte-Americana e a Agência de Cooperação Alemã,
dentre outras. Também é válido ressaltar que a sociedade civil foi
incorporada, formalmente, à estrutura do Grupo Temático, o que lhe traz
uma riqueza sem igual.

Este quadro é especialmente relevante porque oferece as bases da


co-responsabilidade. Ou seja, a soma de parceiros os compromete com a
estratégia nacional para a epidemia. Fortalecendo alianças, estamos
aumentando o escopo da resposta, dando-lhe mais fôlego e energia. Dessa
maneira, atingimos dois objetivos: podemos proporcionar uma melhoria
significativa na vida de todos aqueles que vivem com o HIV e avançamos,
de forma radical, na educação preventiva.

Contudo, a sustentabilidade da ação preventiva somente será


atingida com o apoio definitivo dos meios de comunicação. Devemos
sensibilizá-los para que se somem ao nosso esforço. Eles têm a capacidade
de nos ajudar a lidar com populações que ainda não estão preparadas para
enfrentar a epidemia e precisam ser educadas e capacitadas para tanto. A
televisão, o rádio e a imprensa escrita são elementos cruciais na definição
de estratégias coerentes de combate à AIDS na América Latina.

Nos próximos quatro dias, teremos a chance de imaginar como


fazer para que os indivíduos ganhem controle sobre suas vidas, para que
possam escolher. E para que dessa forma, estejam capacitados a levar
vidas longas, significativas e criativas.

Ainda temos um longo caminho a percorrer e, certamente, este é


um grande passo.

114
Resposta Nacional à AIDS29

Este é o segundo momento do PCB (Parâmetros Curriculares


Brasileiros) para apresentar a resposta nacional brasileira. Ontem, o
Coordenador Nacional DST/AIDS teve a oportunidade de lhes apresentar
o quadro em que se desenvolvem nossas atividades.

Hoje, eu tenho a tarefa de lhes mostrar qual é o formato que


encontramos para operacionalizar as atividades do Grupo Temático da
UNAIDS, no Brasil. Gostaria de chamar a atenção dos senhores para a
natureza da resposta nacional à AIDS e depois dar a palavra a alguns de
seus atores mais importantes.

Em um primeiro momento, cabe mencionar a multiplicidade dos


atores envolvidos nesta resposta nacional. Por um lado, está o Estado,
que oferece uma política pública decidida e eficaz. Por outro, há uma
sociedade civil organizada, com uma capacidade de resposta muito veloz
e enérgica. Esse é o quadro de operações no Brasil do Grupo Temático da
UNAIDS, nos últimos dois anos. Isso quer dizer que a pluralidade de
elementos envolvidos na resposta nacional se reflete na mesma estrutura
do Grupo Temático.

O Grupo conta com organismos internacionais, agências de governo,


agências de cooperação, tais como, a Agência de Cooperação Norte-Americana e
a Agência de Cooperação Alemã e com a presença da sociedade civil que, ao ter

29
Discurso por ocasião da “Mesa sobre a Resposta Nacional à AIDS”, Rio de Janeiro, 15 de
dezembro de 2000.

115
sido incorporada formalmente à estrutura do Grupo, lhe acrescenta uma
riqueza incomparável. Juntos, representamos 17 instituições ativas na luta
contra a AIDS. Este quadro é especialmente relevante porque instala,
formalmente, as bases da co-responsabilidade. Ao acrescentar novos
vetores, estamos oferecendo novas fontes de energia e aumentando as
possibilidades da resposta nacional. Esse é o tipo de sinergia que
precisamos para garantir o respeito aos direitos humanos dos cidadãos
que vivem com HIV/AIDS: a mobilização dos meios de comunicação e a
sensibilização das estruturas educacionais. Por tudo isso, nos propusemos
avançar em dois setores estratégicos: a criação do Grupo de Parlamentares para
a AIDS e a criação do Grupo de Trabalho Jovem. O primeiro conta com dois
representantes que falarão a seguir. O Grupo de Jovens está se reunindo
pela terceira vez, aqui, durante estes dois dias. Garantir a adesão do
Parlamento à resposta nacional é um eixo fundamental para que nossas
ações sejam eficazes, em um País complexo como o Brasil.

Incorporar as perspectivas e percepções juvenis à formulação de


políticas públicas significa que estamos construindo as bases para que as
futuras gerações fiquem mais preparadas para enfrentar a epidemia. Os
dois eixos, o parlamentar e o juvenil, contaram, amplamente, com o apoio
técnico e, muitas vezes, financeiro da Coordenação Nacional da DST/AIDS.
Ao mesmo tempo, nós tivemos a oportunidade de participar de diferentes
momentos da construção de uma resposta nacional. Esse intercâmbio de
experiências, idéias e sugestões dá uma solidez muito particular à política
pública para a AIDS no País.

O Grupo Temático no Brasil é um instrumento para o qual todos os


setores sociais atuantes possam pensar executar ações que permitam aos
indivíduos ganharem controle sobre as suas vidas.

Para que possam escolher de que forma viverão sua juventude e sua
vida adulta. E para que, havendo escolhas conscientes, possam ter vidas
longas, significativas e criativas.

116
AIDS: uma Estratégia para o Cone Sul30

Durante os últimos meses, o mundo está discutindo de que maneira


enfrentará os desafios que a AIDS nos impõe a todos, durante os próximos
anos. Todas as Agências especializadas das Nações Unidas, as agências
multilaterais e os programas internacionais de cooperação estão
trabalhando para criar um novo quadro de ação para o combate a esta
epidemia que tanto nos afeta. Esta dinâmica abre uma oportunidade única
para os países do Cone Sul. Temos condições efetivas para ajudar a moldar
o novo regime internacional para a AIDS. Utilizando nossas experiências,
os perfis das epidemias, em nossos países e a nossa riqueza cultural,
podemos trabalhar para que a estrutura que está nascendo nos sirva como
instrumento de melhoria interna. São raros os momentos em que nossas
nações podem desempenhar um papel ativo e propositivo na definição
de novas regras, princípios e mecanismos de alcance global. Nossos países
não devem deixar passar esta oportunidade.

É por isso que o nosso encontro de hoje tem uma importância


estratégica. Ao dar vida a um grupo de parlamentares para a AIDS, a
Argentina oferece uma evidência real de que está disposta a buscar saídas
para a epidemia que incluam não somente estruturas governamentais
nacionais, mas também a sociedade civil organizada, as autoridades
provinciais e municipais, os meios de comunicação, o setor privado, o
sistema educacional e os que vivem diretamente com HIV/AIDS. Estamos

30
Discurso por ocasião da “Oficina Regional em VHI e AIDS dos Países do Mercosul. Grupo de
Parlamentares para a AIDS”, em Buenos Aires, Argentina, de 10 e 11 de maio de 2001.

117
reconhecendo que o problema da AIDS será solucionado quando todos
os atores sociais se sentirem co-responsáveis nesta luta. A publicação que
hoje lançamos constitui um guia de fácil acesso para que os parlamentares
possam propor e implementar legislações e políticas públicas alimentadas
pela enorme quantidade de práticas bem sucedidas e princípios
internacionalmente reconhecidos. Mais do que isso, é um insumo crucial
para que a sociedade argentina possa demandar, a seus representantes,
posturas firmes para enfrentar a epidemia.

Não podemos nos limitar a somar o tema AIDS à lista interminável


de problemas que afetam nossas sociedades. Esta doença tem uma
especificidade que a faz prioridade número um em nossos países: afeta
diretamente os jovens e se alimenta do silêncio e da incompreensão.

Hoje, o Sistema das Nações Unidas e o Parlamento Argentino se unem para


oferecer uma solução potencial que pode chegar a ter um impacto muito
significativo sobre a vida de todos os argentinos.

Estão dadas as condições para que o perfil da AIDS na Argentina


dos próximos anos passe por mudanças importantes.

118
AIDS: a Importância da Educação Preventiva31

O mundo assiste à redefinição das estratégias que guiam a resposta


global aos desafios impostos pela AIDS. De Nova York, a Assembléia Geral
das Nações Unidas define o novo ordenamento internacional para a epidemia.
Compartilhando a mesma plenária, governos, movimentos sociais,
empresas, Organizações Não-Governamentais – ONG, e especialistas
definem os rumos do debate internacional sobre o tema. A participação
da delegação brasileira é crucial.

O impacto da AIDS durante os últimos anos tem sido devastador.


Até o final do ano 2000, mais de 36 milhões de pessoas no mundo estavam
vivendo com AIDS ou com o vírus da doença. Quase 22 milhões tinham
morrido desde o surgimento da epidemia. Apenas no ano passado, 3
milhões de pessoas morreram de causas relacionadas à AIDS e mais de 5
milhões eram recém-infectadas.

Pela primeira vez na história, um assunto tradicionalmente tratado


pelas pastas da saúde pública passou ao primeiro plano da segurança
internacional. Ao reconhecer, em 1999, que a AIDS constitui uma ameaça
à paz entre os povos, o Conselho de Segurança das Nações Unidas sugeria
que o avanço da epidemia resultaria num círculo de doença, pauperização,
violência e, eventualmente, guerra. Em países como o Brasil, onde a
doença não chega a constituir uma calamidade pública, o vírus HIV já
afeta mais de 500 mil pessoas.

31
Artigo publicado nos jornais: “Folha de S.Paulo”, em 4/07/2001; “Jornal do Tocantins”, em
06/07/2001; “Jornal do Brasil”, RJ, em 27/06/2001.

119
De forma geral, os debates em Nova York concentram-se na
necessidade de gerar recursos de grande escala para a manutenção de
políticas antiAIDS no mundo subdesenvolvido e em desenvolvimento e
nos mecanismos mais eficazes para conter a epidemia. Uma das propostas
que geraram vívidas discussões é a da criação de um fundo internacional
para o combate à AIDS. Mas somente discursos não serão o bastante
diante de um quadro que se agrava dia-a-dia. Os países que já perderam
milhares de pessoas em conseqüência da epidemia têm suas estruturas
econômicas afetadas pela perda da população economicamente ativa.

Contudo, dinheiro não basta. Em muitos países do mundo, e em


certas regiões do Brasil, as comunidades locais não contam com
conhecimentos essenciais sobre práticas e atitudes preventivas. O mesmo
acontece com a juventude dos grandes centros urbanos de muitos países
desenvolvidos: apesar de as campanhas de informação serem bem-
sucedidas, muitos indivíduos relutam em adotar a camisinha em seu
cotidiano, e muitos outros ainda compartilham seringas durante o consumo
de drogas ilegais, anabolizantes etc. A educação preventiva deve ser parte
integrante de uma política de educação para todos, podendo ser
compreendida como um recurso mobilizador para a mudança de atitudes,
conhecimentos e práticas, como, aliás, afirma o Diretor-Geral da
UNESCO, Koichiro Matsuura: ‘’A principal causa da dramática
disseminação do HIV e da AIDS é a falta de conhecimento. Uma vez que
o tratamento não traz a cura completa e o que pode trazer melhora,
ainda é muito dispendioso para grande parte da população mundial, a
prevenção, por meio da educação, seguida de ação, é o melhor remédio.
A educação preventiva deve integrar o objetivo da educação para todos.
O que se perde, ao não se implementar agora uma educação preventiva
de fato, marcará o mundo inteiro por todo o resto deste novo século.’’

É nesse quadro amplo de preocupações que a experiência brasileira


de combate à AIDS ganha notoriedade internacional. Articulando
estruturas governamentais, sociedade civil e agências internacionais, a
resposta brasileira à epidemia vem dando provas concretas de que é

120
possível encontrar saídas criativas e eficientes. O acesso universal e gratuito
a medicamentos, por exemplo, tem contribuído para a estabilização da
curva de mortalidade pela doença no Brasil. Além disso, constitui uma
prova de responsabilidade social, ao reduzir drasticamente os custos que
o Estado tem com o tratamento de seus pacientes. De forma
complementar, a política preventiva vem mobilizando inúmeras entidades
em todo o País, gerando um sentimento de co-responsabilidade essencial
ao seu sucesso. Os desafios ainda são muitos, mas as bases estão dadas.

A flexibilidade da política brasileira para a AIDS, sua preocupação


com a inclusão da sociedade civil organizada na definição de caminhos e
a mobilização social que essas entidades têm promovido garantiram ao
Brasil a posição de interlocutor autorizado durante os debates de Nova
York. Mas a luta não terminou.

121
Política para a AIDS: Avanços e Desafios32

O objetivo de minha apresentação é oferecer uma fotografia de


como o Sistema das Nações Unidas compreende o desafio da AIDS, e assiste à
evolução da resposta que o Brasil encontrou para a epidemia.

Durante os últimos meses, assistimos à construção de uma nova


rodada de consensos internacionais sobre o alcance da AIDS no mundo.
Hoje, sabemos que nos países mais afetados, a metade de cada nova geração
vai morrer de AIDS.

Também assistimos a um evento histórico: durante a última Sessão


Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas, em junho passado, todos os Países-
Membros da ONU declararam seu compromisso para frear a epidemia.

O processo para gerar tal consenso foi árduo e demorado, porque


as circunstâncias sociais e comportamentais que alimentam a epidemia
não são um assunto fácil de se entender, nem de se conversar. E, atualmente,
temos uma idéia mais clara de que é possível minar a vergonha e a
discriminação associadas à AIDS, assim como temos uma noção clara de
quais os mecanismos que melhor funcionam no contexto da doença.

Nessa Sessão Especial, consagraram-se alguns princípios que vão mudar


o cenário da articulação internacional para a AIDS, nos primeiros anos
do novo século:

32
Discurso proferido por ocasião do “Lançamento do Prêmio Estado / UNESCO para Formandos em
Jornalismo”, na sede do Jornal Estado de São Paulo, em São Paulo, em 17/09/2001.

122
Decidiu-se criar um fundo global para a AIDS, que tem por
objetivo angariar recursos para apoiar as ações de prevenção e
tratamento no mundo sub-desenvolvido;

O Secretário Geral das Nações Unidas, Koffi Annan, revelou


sua intenção de mobilizar todo o Sistema ONU para lidar com
os desafios impostos pela epidemia;

As comunidades, assim como as pessoas que vivem com HIV,


foram definitivamente incorporadas à construção de respostas
para a AIDS;

Consolidou-se a idéia de que os preços dos medicamentos anti-


retrovirais devem permitir o acesso das populações carentes.
Ou seja, garantir que nenhum país ou comunidade falhe em
responder à AIDS devido à falta de recursos humanos e
financeiros;

O envolvimento internacional do setor privado, de fundações e


instituições religiosas.

A tomada de consciência de que a educação desempenha um


papel decisivo no fortalecimento de posturas preventivas entre
jovens e adultos, capacitando as populações a criar uma cultura
de prevenção.

Como todos sabemos, esse consenso internacional, assinado e


abraçado por mais de 180 países, constitui uma carta de intenções. A sua
implementação dependerá de contextos nacionais e regionais, assim como
de definições políticas que excedem o alcance das Nações Unidas.

É por isso que o caso brasileiro nos chama tanto a atenção. Apesar
dos desafios que ainda tem pela frente, o Brasil é um dos poucos países
do mundo que já atravessou essas etapas e consolidou uma resposta
nacional coerente e bem sucedida. É um dos poucos que tem capacidade,

123
hoje, de oferecer ao mundo algumas tecnologias sociais que desenvolveu
para lidar com a epidemia.

Gostaria de mencionar alguns desses mecanismos porque tenho


certeza que será muito útil para os textos que vocês produzirão durante
o próximo mês.

a) Um dos sucessos brasileiros foi desenhar uma política pública


capaz de casar ações preventivas em diversos níveis (inclusive
na rede escolar) e um programa maciço de tratamento universal
e irrestrito para toda a população.

b) No Brasil, a sociedade civil organizada foi responsável pela


construção de um projeto nacional de monta, por preparar técnicos
altamente qualificados, por mobilizar todos os setores sociais,
reduzir os níveis de estigma e discriminação, sustentar atividades
com populações de risco crescente e providenciar apoio a todos
aqueles que vivem, direta ou indiretamente, com a AIDS.

c) A política brasileira para AIDS também se distingue por ter sido


capaz de incluir as ações da sociedade civil em seus projetos de
financiamento e fortalecimento. A Coordenação Nacional de AIDS,
do Ministério da Saúde, se associou às Organizações Não-
Governamentais na promoção de soluções para a epidemia, o
que não é freqüente em outros lugares do mundo. Mediante
convênio com a UNESCO, por exemplo, a Coordenação apóia 240
entidades da sociedade civil, em todo o País.

d) A resposta nacional à AIDS, no Brasil, também foi capaz de


implementar a redução sistemática dos preços dos medicamentos,
garantindo, dessa forma, o acesso ao tratamento e abordando a
questão como um assunto de direitos humanos;

e) Essa resposta também conta com um grupo articulado de


Deputados e Senadores que têm por objetivo avançar projetos

124
e legislação coerentes com as demandas da população, no
contexto da epidemia;

f) Também consolidou um grupo de empresários que destinam


tempo e recursos para implantar projetos de prevenção e de
combate à discriminação entre seus trabalhadores;

g) A camisinha é um produto conhecido de todos e, mediante seu


marketing, estão caindo as barreiras para sua comercialização e
utilização, principalmente entre jovens mulheres;

h) As experiências brasileiras vêm sendo compartilhadas, por meio


de programas de cooperação técnica, com outros países em
desenvolvimento, na África e na América Latina e Caribe que
ainda estão no processo de construção de suas respectivas
respostas nacionais;

i) O Brasil conta, ainda, com o apoio técnico de um grande grupo


de agências internacionais do Sistema das Nações Unidas e de
instituições multilaterais de financiamento que fortalecem a sua
resposta nacional à AIDS, mediante cooperação técnica e
econômica.

j) Finalmente, um dado muito significativo: a infecção pelo HIV


mantém-se estável no Brasil. O Programa Nacional de AIDS foi capaz
de frustrar pela metade a previsão de cidadãos infectados, feita
pelo Banco Mundial, ainda na década de 1990, para o Brasil do ano
2000.

Mas nesse quadro geral, altamente positivo e saudado por Koffi


Annan, ainda há desafios imensos à nossa frente:

1. O primeiro deles é a marcha que a AIDS vem fazendo para o


interior do País. Cada vez mais, pequenas comunidades, com
pouco acesso aos serviços essenciais do Estado e das grandes

125
cidades, apresentam casos de portadores do vírus HIV. Nesses
contextos, nota-se bastante resistência a mensagens preventivas
e os jovens têm dificuldade em negociar o uso da camisinha
com seus parceiros e parceiras. Diferentemente de dez anos atrás,
a AIDS se espalha entre aqueles que têm poucos anos de
educação formal, acesso restrito à informação e aos benefícios
oferecidos pelo Sistema Público de Saúde.

2. A segunda grande tendência é o significativo número de mulheres


portadoras e o crescimento proporcional do relacionamento
heterossexual na transmissão do HIV. Isto impõe desafios cruciais:
desmistificar o uso da camisinha, influenciar as mulheres de todas
as idades para que possam demandar sexo seguro de seus
parceiros, universalizar o pré-natal e evidenciar que o tratamento
durante a gravidez reduz, significativamente, o risco da
transmissão de mãe para filho.

3. O terceiro ponto é a pauperização da epidemia. Isto é, cada


vez mais indivíduos de baixa renda são vítimas do vírus. Se por
um lado já há resposta pelo tratamento, para estas populações,
ainda temos muito a fazer na disseminação do conhecimento.
Penso que somente uma mobilização maciça dos meios de
comunicação, da sociedade civil e do sistema de saúde poderão
configurar saídas concretas para tal desafio.

4. Finalmente, estamos avançando em relação ao desafio da


juventude. Em recente pesquisa da Coordenação Nacional de DST/
AIDS do Ministério da Saúde e da UNESCO, descobrimos que o
medo da epidemia modificou o comportamento do jovem
brasileiro. Iniciando sua vida sexual entre os 14 e 15 anos, os
jovens deste País tendem a adiar a primeira relação sexual e a
utilizar, cada vez mais, a camisinha. Contudo, há dados
preocupantes. Em algumas cidades, por exemplo, o uso de
anabolizantes, por meio de seringas e agulhas compartilhadas, é

126
um dos principais meios de transmissão do HIV. Em grande parte
das escolas, a AIDS ocupa algumas poucas aulas de biologia,
sem estar plenamente inserida no currículo escolar. Em muitos
estabelecimentos de ensino, o tema ainda causa constrangimento
de professores e pais, constituindo um tabu que apenas contribui
para o aumento do risco da população jovem do Brasil.

Como vocês podem ver, a situação da AIDS no Brasil


contemporâneo demanda um esforço sistemático de todos os setores da
sociedade. Nesse cenário, o papel da imprensa é fundamental. É por isso
que criamos esta parceria com o jornal Estado de São Paulo.

Temos a convicção de que os jornalistas de amanhã devem estar


preparados para lidar com o tema da AIDS, conhecer as fontes nacionais
e internacionais de informação sobre o assunto, ter uma noção geral dos
caminhos da política governamental e da resposta social. Mais do que
isso, acreditamos que vocês são educadores da população, principalmente
dos jovens.

No caso específico da AIDS, isso é particularmente significativo.


Em uma pesquisa feita recentemente com jovens, o Ministério da Saúde, o
UNICEF, a Agência Nacional dos Direitos da Infância e a UNESCO encontraram
um resultado preocupante: a maioria dos leitores juvenis dos principais
jornais brasileiros queixou-se da pouca cobertura dada a temas referentes
à sexualidade. Também apontaram que temas como consumo de drogas,
gravidez na adolescência e preconceito entre jovens são tratados de
maneira superficial.

127
Vitórias do Brasil33

Na 14ª Conferência Mundial sobre a Aids, encerrada sexta-feira em


Barcelona, Espanha, mais uma vez o Brasil obteve destaque ao levar sua
experiência de prevenção e assistência aos portadores de HIV/Aids. As
vitórias nesse campo, constatadas logo depois da conquista do
pentacampeonato mundial de futebol, também impressionam.

A consagração da Seleção Brasileira nos gramados da Coréia e do


Japão não veio por acaso. É resultado de um trabalho, de um processo de
construção. Antes da Copa do Mundo, dezenas de jogadores foram
testados, houve variações táticas experimentadas e muito, muito
treinamento. O time foi crescendo ao longo do campeonato, contagiando
até mesmo os mais descontentes. O momento de erguer a taça só foi
possível graças a esse trabalho continuado.

No campo do combate à Aids, o caminho das vitórias brasileiras


também foi percorrido ao longo dos anos. E com muito trabalho e
articulação. Assim o Brasil conseguiu definir uma política pública
eficiente, conseguiu capacitar pessoas especialmente para o
desenvolvimento e implementação do programa. A tática usada foi atacar
simultaneamente em três frentes: fazer um trabalho preventivo junto à
população; articular ações, fornecer apoio e financiamento a centenas
de organizações da sociedade civil que trabalham na área, e ainda
oferecer tratamento gratuito aos portadores de HIV. Desde 1996, quando

33
Artigo publicado no “Jornal do Brasil”, RJ, em 15/07/2002.

128
foi garantido o acesso gratuito aos remédios anti-retrovirais, o que se
constatou foi uma redução significativa das taxas de mortalidade e no
impacto econômico e social da epidemia.

Em uma atualização de estudo feito há dois anos, o Unaids (Programa


Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids) anunciou recentemente
que o número de mortes por Aids em 2000 no Brasil é um terço do número
de 1996. Nesse mesmo relatório, divulgado na semana que antecedeu a
Conferência de Barcelona, há outra informação nada otimista: a Aids
deverá causar a morte de 65 milhões de pessoas até 2020, mais do que o
triplo de mortes registradas nos primeiros 20 anos da epidemia. Isso se os
países não acelerarem suas estratégias de ação em campo e fortalecerem
seu ataque a uma epidemia que parecia ter encerrado seu pico, mas que
continua avançando. É aí que entra a experiência bem-sucedida do Brasil.

O Brasil, nesse caso, demonstra o valor fundamental do trabalho


na direção certa, da concentração na medida exata e dos esforços em
favor de um grande objetivo, cujos resultados afetam toda a sociedade.
E podem afetar todo o planeta se essa experiência for multiplicada pelos
países mais atingidos pela epidemia, o que pode acontecer adaptando-
a por meio de parcerias como a que está sendo feita pela Unesco, entre
o Brasil e Moçambique (África), com troca de experiências que enfocam
os jovens e a Aids.

Foi comovente a alegria da população na recepção oferecida aos


pentacampeões. A grandeza da festa refletiu a admiração do povo por
quem soube demonstrar, com tanta competência, que o futebol é mesmo
uma especialidade deste país. Na prevenção e na assistência aos portadores
de HIV/Aids, o brasileiro pode ter o mesmo orgulho que sente em relação
ao futebol. O que o Brasil tem feito nesse campo é comparável às
memoráveis vitórias em Copas do Mundo. Que elas continuem, para o
bem da saúde do povo brasileiro e de todo o mundo, que tem hoje o
Brasil como uma referência bem-sucedida.

129
Cultura e
Diversidade Criadora
A Rota do Escravo34

Em setembro de 1994, portanto há quase quatro anos, a UNESCO


lançou um projeto de pesquisa internacional sobre o comércio de escravos
na África. A idéia era promover estudos e atividades sobre esse lamentável
episódio de nossa história. O projeto recebeu o nome de Rota do Escravo.

A iniciativa partiu principalmente do Haiti e dos países africanos,


como o Benin, onde, aliás, ocorreu a Conferência na qual a UNESCO
lançou formalmente o projeto. Curiosamente, foi o mesmo Benin que,
séculos antes, abrigou um dos principais centros de comércio de escravos
negros. Foi também para o Benin que retornou grande parte dos negros
libertados, muitos deles oriundos do Brasil. Não por acaso, hoje, muitas
famílias de Benin têm nomes de origem brasileira.

Informações como essa nem sempre constam dos nossos livros de


história. O projeto Rota do Escravo vem justamente resgatar, de forma mais
crítica e sistemática, o trabalho de tantos historiadores, pesquisadores e
antropólogos que buscam reavaliar o aviltante episódio histórico do
comércio de escravos africanos e tentar compreender melhor os fatos
que o envolveram. Assim, também é lançada luz sobre os reflexos desses
fatos na atualidade.

Portanto, seguir a rota dos escravos é mais do que se aprofundar nas


raízes da escravidão. É desbravar uma nova rota que possa apontar para

34
Artigo publicado no “Jornal de Brasília”, em 19/08/1998.

133
um futuro mais igualitário, onde compartilhar seja mais importante do
que conquistar. Como diz Federico Mayor, Diretor-Geral da UNESCO:
o essencial é enfrentar o desafio do pluralismo cultural. As diferenças de
origens étnicas devem ser bem-vindas e bem vistas em um contexto no
qual a riqueza criada pelos homens e o patrimônio cultural da humanidade
sejam compartilhados por todos.

No Brasil, onde a cultura africana deixou marcas tão profundas, o


“Seminário Internacional Rota do Escravo”, realizado recentemente no Senado
Federal, em Brasília, foi uma oportunidade ímpar de refletir, também,
sobre a riqueza da diversidade cultural. Os africanos que cruzaram o
Atlântico rumo ao Novo Mundo trouxeram uma bagagem cultural essencial
para a formação da cultura brasileira.

Hoje, os reflexos da contribuição cultural africana estão em toda a


parte, especialmente nas artes. É inconcebível uma arte brasileira sem
traços da chamada africanidade. Isso vale sobretudo para a música. A
Música Popular Brasileira – MPB, sem seu componente africano é órfã,
assim como a dança, a expressão corporal, o teatro, a pintura, o desenho,
a poesia, a literatura feita no Brasil. Refiro-me a todos os artistas que
pensam, cantam, dançam, interpretam e pintam o País de todas as cores,
como, por exemplo, Gilberto Gil, Artista para a Paz da UNESCO.

É nesse Brasil multicultural, complexo e intrigante, que queremos


ver a Rota do Escravo redescobrir facetas muitas vezes esquecidas e
revalorizar relações profundas entre culturas hoje complementares.

134
Preservar o Passado e Investir no Futuro35

O Ministério da Cultura e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)


acabam de firmar um contrato para a implantação do Programa Monumenta,
voltado para apoiar as cidades históricas brasileiras, no anseio de melhor
conservar o seu patrimônio.

Chama especial atenção a sensibilidade do BID – um banco cuja


vocação é o financiamento de programas de desenvolvimento – ao
direcionar sua atuação para a área da preservação cultural, por nela detectar
potencialidades de dinamização de uma região. A primeira experiência
do BID, nesse âmbito, deu-se em socorro ao governo equatoriano, em
1987, quando um terremoto desestabilizou boa parte dos monumentos
do centro histórico de Quito.

Baseado nessa experiência, o BID, agora, potencializa sua atuação


em desafio de grandes proporções, tendo em vista a diversidade cultural
do Brasil e suas dimensões continentais.

A iniciativa do Monumenta, partindo do Ministério da Cultura, o qual


encabeçou as negociações ao longo de três anos, demonstra sua vontade de
fazer retroceder o quadro de múltiplas carências dos núcleos históricos.
Estados e Municípios, organizações da sociedade e a iniciativa privada,
foram chamados a participar da formatação do Programa. Equipes foram
constituídas, dando início a projetos para a obtenção do financiamento.

35
Artigo publicado nos jornais: “Folha de S.Paulo” – Opinião – Tendências/ Debates, em
12/12/1999 – domingo.

135
O leque de consultas estendeu-se aos moradores dos núcleos
históricos, às administrações locais, aos vários agentes públicos e privados
envolvidos, de modo a se chegar a um programa que atendesse a todas as
suas especificidades.

Trata-se de um trabalho criterioso para o qual a UNESCO foi


chamada a contribuir na montagem das equipes técnicas, centrais e locais,
responsáveis por estudos e pesquisas, avaliações, definição de
procedimentos, manuais de projetos e fiscalização a serem seguidos.

Essa primeira etapa de negociações, apesar das dificuldades, trouxe


efeitos notáveis, resultantes da interlocução entre os parceiros locais e
federais. Os inventários do patrimônio, a sistematização de informações,
a confecção de projetos, as análises da relação custo/benefício, da
capacidade de gestão e de aporte financeiro, lançaram novas luzes sobre
os efeitos culturais, sociais e econômicos da conservação dos núcleos
históricos – os quais, certamente, contribuirão para elevar a estima dos
cidadãos pelas suas cidades.

Reside aí o aspecto essencial da preservação dos bens históricos


de uma nação, pois se trata de ação estratégica para a valorização da sua
identidade cultural e um legado essencial para a formação das novas
gerações de brasileiros.

Coincidentemente, o Brasil comemora a nomeação pela UNESCO


de mais três Patrimônios da Humanidade: Diamantina, em Minas Gerais, a Costa
do Descobrimento, na Bahia e a região de Lagamar, entre o Paraná e São
Paulo. O apoio dos Ministérios da Cultura e do Meio Ambiente foi
determinante, pois, além do aval político, eles impulsionaram a preparação
dos documentos técnicos e deram condições para o cumprimento das
exigências do Comitê Internacional de Monumentos e Sítios.

A campanha desencadeada por Diamantina para a obtenção desse


título evidencia as potencialidades de organização de uma população em

136
torno de um objetivo. O orgulho e a identidade dos cidadãos diamantinenses
pela cidade foram a chave dessa conquista, a qual insuflou novos ares ao
local, em busca de alternativas à atividade mineradora em declínio.

Tanto o Monumenta quanto a nova dinâmica que se apossou de


Diamantina demonstram as potencialidades de um modelo de
desenvolvimento alicerçado nas raízes culturais brasileiras. A ação
conjunta do Governo Brasileiro, de organismos internacionais como a
UNESCO e o BID e da sociedade civil brasileira, pode ser um motivo a
mais para manter viva a idéia de cultura e desenvolvimento sustentáveis.

137
São Luís, Patrimônio de Todos36

O Brasil, os qual tantos acusam de ter fraca memória, conquistou,


neste ano, mais um título histórico. Eram oito. Agora, mais um, incluiu o
centro histórico de São Luís do Maranhão na lista do Patrimônio Cultural da
Humanidade. Os casarios coloniais, os sobrados de azulejo, as fontes, as
igrejas, os lampiões (hoje elétricos), os paralelepípedos, as calçadas do
centro da capital maranhense foram reconhecidos pela UNESCO como
patrimônio mundial a ser preservado para todas as gerações.

São poucos os lugares, no Brasil e no mundo, a ingressar no seleto


rol do Patrimônio Mundial. Atenas, Roma, Paris, Florença, Veneza,
Istambul, as pirâmides do Egito, compõem a lista, assim como, no Brasil,
estão os centros históricos de Olinda e Salvador; a cidade de Ouro Preto;
o Plano Piloto de Brasília; o Parque Nacional da Serra da Capivara, no
Piauí; o Santuário do Senhor Bom Jesus do Matosinhos, em Congonhas
do Campo; o Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná e as ruínas jesuítico-
guaranis de São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul.

São Luís fez jus ao título. Há quase vinte anos, vem sendo objeto
de um programa regular e contínuo de revitalização de seu patrimônio
histórico-cultural. Os resultados são visíveis. Uma passagem ao centro
histórico da cidade, encanta qualquer visitante desavisado. É graças a
esse esforço de recuperação e revitalização de seu centro histórico que
São Luís pôde ser indicada Patrimônio da Humanidade.

36
Artigo publicado no jornal “O Estado do Maranhão”, em 2000.

138
A indicação foi, na verdade, resultado de uma soma: o esforço, por
parte do Estado do Maranhão, de restauração do patrimônio, ao longo
de quase vinte anos e, evidentemente, a própria riqueza desse patrimônio.
A população de São Luís tem razão de se orgulhar de seu centro histórico
que, aliás, permanece centro comercial, institucional e administrativo da
cidade. E isso pesa, favoravelmente, para a conservação dele. O centro
histórico de São Luís é a imagem da cidade e do próprio Estado do
Maranhão. Preservá-lo é conservar parte da história do Brasil e do mundo.

139
Brasília: Síntese do Brasil37

Para um estrangeiro que, por força da própria trajetória de vida


pública e familiar, aprendeu a gostar e a admirar a cultura brasileira, receber
o Título de Cidadão Honorário de Brasília representa um desses momentos raros
de alegria que nos projeta para o futuro, revigorando e fortalecendo o
nosso idealismo e nossa vontade de continuar a luta em torno de metas
que dignificam e dão sentido à existência.

Por isso, sou grato, em primeiro lugar, ao ilustre Deputado Chico


Floresta que teve a iniciativa – que ainda me surpreende –, de apresentar
ao Plenário da Câmara Distrital o projeto de me conceder essa honraria.
Quero agradecer, também, ao ilustre Deputado Jaques Wagner pelo gesto
de oferecer a Câmara dos Deputados para sediar esta homenagem.

Esta distinção, no entanto, cresce em significado na medida em que


a instância que a aprovou – no caso, a Câmara Distrital do Distrito Federal
– vem dando exemplos seguidos de como uma Casa Legislativa pode
desempenhar um papel importante no processo de construção da
cidadania. Dessa forma, eu também sou profundamente grato ao Plenário
da Câmara Distrital pela distinção que me foi concedida.

Em minha trajetória de vida, esta é a segunda vez que estou em


Brasília. Na primeira, como especialista em Educação Rural e Coordenador
dos Programas Sociais do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura,

37
Discurso proferido por ocasião do Recebimento do Título de Cidadão Honorário do Distrito
Federal, em Brasília, em 23/08/2000.

140
tive a oportunidade de conhecer a realidade social e rural brasileira e a
rica paisagem física do Brasil. Esta experiência me proporcionou ver de
perto a enorme potencialidade do País, tanto no plano humano e cultural,
quanto no científico e tecnológico.

Retornei ao Brasil em 1996, como Representante da UNESCO, uma


instituição que tem por missão desenvolver a cultura da paz por intermédio
do intercâmbio e da cooperação técnica, nos campos da cultura, educação,
ciência, tecnologia e comunicação. Assim, visualizei a oportunidade de
colocar à disposição do Brasil o grande acervo de conhecimentos e de
experiências que a Organização acumulou, ao longo de mais de meio
século de existência.

Com base em uma ampla política de parcerias com o Poder Público,


entidades privadas e Organizações Não-Governamentais, a UNESCO
ampliou, consideravelmente, os programas de cooperação técnica no
Brasil, de maneira a oferecer uma contribuição significativa para exprimir
a grande potencialidade do País, sob a forma de projetos voltados para a
construção de cenários mais justos e eqüitativos.

Para se ter uma idéia mais precisa do dinamismo que caracteriza a


política da UNESCO Brasil, basta dizer que nenhum outro Escritório da
Organização, no mundo, possui o mesmo volume de ações.

Em relação à UNESCO, Brasília ocupa, hoje, uma posição de


destaque. A capital do Brasil está inscrita entre os 12 sítios brasileiros
reconhecidos como Patrimônio da Humanidade, sendo o único bem do século
XX a receber tal distinção.

Brasília possui a Reserva da Biosfera do Cerrado do Distrito Federal,


a qual confere significado mundial ao bioma Cerrado, recentemente
indicado como um “hot spot” da diversidade biológica pela comunidade
conservacionista internacional.

141
A responsabilidade de representar a UNESCO e fazer da Convenção
do Patrimônio Mundial e do Programa Intergovernamental “O Homem e a Biosfera”
instrumentos de fortalecimento das políticas públicas da cultura e do meio
ambiente, adquirem dimensão inusitada a partir da cidadania brasiliense
que ora me é conferida.

O compromisso com a conservação do patrimônio de todos nós –


bens únicos e insubstituíveis – aliado à busca de um desenvolvimento
humano forjado na Cultura da Paz e na sustentabilidade econômica e
ambiental, mais do que simples deveres de oficio, desenham contornos
pessoais e afetivos na busca incessante por uma melhor qualidade de vida
para esta e para as gerações futuras.

Assim sendo, sinto-me duplamente honrado. Em primeiro lugar, por


receber esse importante título honorífico concedido pela Câmara Distrital
de Brasília; em segundo lugar, por recebê-lo de uma cidade Patrimônio
Cultural da Humanidade.

Por último, gostaria de dizer que sendo Brasília uma síntese do Brasil,
na medida em que brasileiros de todos os Estados participaram ou participam
de sua formação, está em construção no Distrito Federal o desenho de um
novo Brasil, mais plural e mais democrático. A Câmara Distrital já é uma
espécie de caixa de ressonância do novo cenário que se anuncia.

A UNESCO sente-se comprometida com essa perspectiva e


continuará a envidar todos os esforços possíveis para que Brasília seja
uma referência não apenas no plano nacional, mas também internacional.

142
Quinhentos Anos de Memória38

O Brasil tem memória, e a quer preservada. Crer nisso não é prova


de ingenuidade. É fruto de atenta observação. A despeito de algumas
situações de descaso aos bens do patrimônio histórico brasileiro, grande
esforço vem sendo empreendido nos últimos anos, tanto pelo Governo
quanto pela sociedade, no sentido de preservar a memória nacional.

Uma prova disso está no número de sítios históricos e naturais


brasileiros inscritos na Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO. Pela primeira
vez, em quase 30 anos (o Comitê do Patrimônio Mundial, que concede os títulos
de Patrimônio Cultural e Natural da Humanidade, foi instalado em 1972), o Brasil
é o País da América do Sul com o maior número de bens inscritos nessa
lista e vem inscrevendo novos, a cada ano. Vale lembrar que nessa relação
de sítios do Patrimônio Mundial estão pérolas arquitetônicas da
civilização, tais como as Muralhas da China, as pirâmides do Egito ou a
cidade de Veneza, entre mais de 600 outros.

O Brasil conta, hoje, com onze sítios que levam o título ou de


Patrimônio Cultural ou de Patrimônio Natural da Humanidade. No ano passado,
mais sítios brasileiros candidataram-se ao título. Essa atitude proativa, do
Governo e da sociedade brasileira, resulta da gradativa elevação da
consciência sobre o valor de seu legado cultural.

38
Artigo publicado nos jornais: “O Globo”, RJ, em 24/10/2000; “Hoje em Dia”, MG, em 25/10/2000;
“O Popular”, GO, em 15/11/2000.

143
A intensa mobilização das administrações e das populações das
cidades de São Luís e de Diamantina, inscritas, respectivamente, em 1998
e 1999, na Lista do Patrimônio Mundial, são exemplos dessa atitude prospectiva
e confiante dos brasileiros em relação à própria memória. Tal mobilização,
vale dizer, não se deu por encerrada mediante o recebimento do título.
Prosseguiu com a celebração do resultado favorável às respectivas
candidaturas dessas cidades e continua, ainda hoje, por meio de iniciativas
simples, mas eficazes, como a divulgação do título em espaços públicos e
na imprensa especializada em turismo, para citar somente dois exemplos.

O que semelhante comportamento reflete é sintomático: um povo


é seu habitat, sua história, sua cultura. Valorizar isso é valorizar-se. Daí, o
componente de natureza psicológica embutido na mobilização pela
inscrição de um sítio na Lista do Patrimônio Mundial: pertencer a ela reforça a
auto-estima. É como se as raízes de um povo fossem expostas ao mundo.
Integrar a Lista é integrar-se no seleto grupo dos sítios mais prestigiados
do planeta. É consolidar a própria história.

Não por acaso, pela primeira vez na América Latina, um Ministério


da Cultura – o brasileiro – tem êxito na implantação de um programa de
preservação e valorização do patrimônio e, para isso, conta com o apoio
do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, e de um organismo das Nações
Unidas, a UNESCO. Trata-se do Programa Monumenta, cujos fundos são
compostos de 40% do orçamento público brasileiro e 40% de
financiamento do BID, mais 20% de recursos de Estados, Municípios e da
iniciativa privada. A UNESCO está envolvida no aporte de cooperação
técnica e gestão.

As cidades históricas do Patrimônio Mundial são prioridade no


Monumenta, tais como: Olinda e Ouro Preto. São Luís e Salvador preparam
os documentos técnicos para, proximamente, ingressar no Programa. Já
se integraram ao Monumenta Recife e Rio de Janeiro. Para esses sítios, dentre
outros que farão parte do Programa, estão previstos: investimentos na
restauração de monumentos e melhoria dos espaços públicos históricos;

144
fortalecimento da capacidade dos órgãos federais e locais de administrar
o próprio patrimônio; formação de artífices especializados em restauração
e o reforço da sensibilização dos moradores desses sítios – especialmente
os jovens. Tudo isso deverá contribuir para a revitalização de importantes
centros históricos e culturais.

Resultados positivos da elevação de sítios brasileiros à condição


de Patrimônio Mundial também foram percebidos na Costa do
Descobrimento, no Sul da Bahia e Norte do Espírito Santo, inscrita, no
ano passado, como Patrimônio Natural da Humanidade. Investimentos
de toda ordem requalificaram a área em benefício da população local e
dos visitantes. A Companhia Vale do Rio Doce, por exemplo, integrou-se a esse
esforço e adquiriu áreas ambientais litorâneas no norte do Estado do
Espírito Santo e comprometeu-se a protegê-las.

Trata-se, portanto, de um movimento que engloba tanto o Poder


Público – que encaminha à UNESCO a inscrição de um sítio e compromete-
se a preservá-lo – quanto a sociedade civil e o empresariado, que se
mobilizam para obter o título mundial e mantê-lo. Esse movimento, cada
vez mais intenso, tem contrariado a velha máxima segundo a qual o brasileiro
não tem memória. Ao contrário, ao completar 500 anos, o Brasil vem
demonstrando profundo interesse em revalorizar as tradições, os costumes
e os espaços onde a sociedade brasileira vem construindo sua história.

145
Goiás: a Luta pelo Reconhecimento39

A crescente presença da UNESCO Brasil, nas áreas de educação,


cultura, ciência e comunicação, tem contribuído para despertar e ampliar
a vontade coletiva em prol do advento de cenários sociais compatíveis
com os avanços que estão ocorrendo em outros países. No caso específico
da cultura, a firme posição da Organização no respeito à diversidade
cultural e ao extraordinário patrimônio histórico produzido por essa mesma
diversidade, tem sido responsável por inúmeras iniciativas tomadas pelos
Países-Membros com o objetivo de preservar a memória e o acervo cultural
de nossos antepassados que, sublinhe-se, constituem fontes insubstituíveis
da identidade e da personalidade de uma nação.

O Brasil, nos últimos anos, graças a essa vontade coletiva, conseguiu


que inúmeros e importantes sítios históricos – Ouro Preto, Congonhas,
São Luis, Sete Povos das Missões, Brasília, Diamantina – fossem
reconhecidos pela UNESCO e incluídos no Patrimônio da Humanidade.

O reconhecimento desses sítios e lugares históricos despertou a


atenção do País e tem incentivado a comunidade de outros pontos e
cidades históricas a lutarem pela mesma condição.

Foi essa mesma vontade coletiva que influenciou o processo de


preparação do dossiê de candidatura da cidade de Goiás, impulsionando
os esforços do Governo em atender aos requisitos da UNESCO. Esse
processo teve início há dois anos e, ao longo desse período, houve uma

39
Artigo publicado no “Jornal do Commercio” – Opinião, PE, em 4/09/2001 – Terça-feira.

146
grande demanda por informações detalhadas para compor o dossiê. A
população organizou-se, de maneira exemplar, em forma de associação e
conseguiu os avanços que há muito pleiteava. Foi como se o entusiasmo
da população em torno da possibilidade da inscrição de sua cidade na
Lista de Patrimônio Cultural da Humanidade derrubasse as barreiras e despertasse
para uma série de mudanças de comportamento e melhorias urbanas.

Devemos ressaltar que Goiás é uma cidade que simboliza um


importante testemunho da ocupação e colonização do Brasil Central. Sua
arquitetura de caráter forte, que resulta do uso coerente de materiais e
técnicas tradicionais, constitui uma marca importante para o
fortalecimento da candidatura.

Por meio da associação civil Movimento Pró-Cidade de Goiás, foram


conseguidos benefícios importantes. Citando apenas alguns, temos a rede
elétrica subterrânea no perímetro urbano e a iluminação pública adequada,
ressaltando a atmosfera histórica da cidade e acentuando suas qualidades
cênicas. A limpeza do Rio Vermelho também foi incluída entre esses
benefícios. Será feito um tratamento do sistema de esgotos que
possibilitará ao rio correr com águas limpas atravessando o centro
histórico, deitado aos pés da casa da poeta Cora Coralina.

Para isso, Goiás será o primeiro município brasileiro a implantar


uma política pública de redução, reutilização e gestão de resíduos sólidos
urbanos e rurais, proporcionando a coleta seletiva do lixo e a criação de
um núcleo de reciclagem para o recolhimento e processamento de todos
os resíduos urbanos.

Especialmente voltado para a juventude, instaurou-se um amplo


programa de educação patrimonial nas escolas, o “Viva e Reviva”, ensinando
aos jovens os valores da sua cidade. Trata-se de transformar a história da
cidade em conteúdo didático, sensibilizando e comprometendo os
estudantes a discuti-la, a aprender, desde cedo, o cuidado e o respeito
que devemos ter por nossas cidades.

147
Vários monumentos já foram restaurados, como as igrejas da Boa
Morte, Santa Bárbara, Matriz de São Francisco, algumas com a
contribuição da população local. O objetivo foi recuperar suas
principais características, enfraquecidas e alteradas ao longo dos anos.
Para atender à crescente demanda turística que Goiás vem registrando,
o número de hotéis e restaurantes da cidade aumentou e cresceu a oferta
da famosa doçaria, do vasilhame de barro e de tantos outros produtos
dos saberes populares.

A primeira etapa vencida foi o envio do dossiê, pelo Governo


Brasileiro, com todas as informações necessárias. Depois, foi concedido
parecer favorável ao título pelo Comitê Internacional de Monumentos e Sítios –
ICOMOS, órgão de consulta técnica da UNESCO. E, mais recentemente,
outro parecer favorável do Bureau do Patrimônio Mundial – composto por
representantes de 7 Países-Membros da Convenção do Patrimônio Mundial –
formado por representantes de vinte e um países – e que prepara o trabalho
para a reunião do Comitê do Patrimônio da Humanidade –, para a decisão final.

Qualquer que seja a decisão, está claro que ela será o resultado da
mobilização da comunidade local, somado ao decisivo apoio do
Governador de Goiás, Senhor Marconi Perillo e do Ministro da Cultura,
Senhor Francisco Weffort, assim como da Prefeitura de Goiás.

Resta aguardar a apreciação conclusiva sobre o assunto, que será


feita na reunião do Comitê, no final de novembro próximo, em Helsinque,
Finlândia. Certo é que, a partir de agora, os cidadãos dessa cidade saberão
passar para as próximas gerações o respeito e o carinho que aprenderam
a cultivar nessa verdadeira campanha. Essa é, sem dúvida, a melhor garantia
de proteção durável e de reconhecimento do valor do patrimônio de
Goiás. Mais uma vez, a população brasileira mostrou, com seu entusiasmo,
a personalidade desse País.

148
Analisar o Presente, Pensar o Futuro40

A realização de um Congresso Internacional sobre os Valores Universais


e o Futuro da Sociedade insere-se entre os temas que a UNESCO vem
privilegiando, com o objetivo de oferecer subsídios aos Estados-Membros
da Organização e às lideranças mundiais – políticas, religiosas, econômicas
e culturais – sobre a necessidade planetária de construção de novos rumos
e de novos marcos de referência para nortear o desenvolvimento humano,
no século XXI.

A análise do tempo e das circunstâncias presentes indica que alguns


dos principais anseios da humanidade, idealizados e construídos ao longo
de séculos de lutas e de exclusão das pessoas, só foram realizados em
escala muito reduzida. De fato, os ideais de liberdade, democracia,
eqüidade social, cultura, saúde, educação e segurança, só existem para
uns poucos países. A maioria das nações e de seus habitantes encontra-se
na periferia do processo civilizatório. Procuram, como último recurso e
esperança ao ensejo de um novo século, reavivar suas crenças na
possibilidade de um mundo mais humano e mais justo.

Sem dúvida, a mudança de século serviu de ponto nevrálgico para o


recrudescimento da utopia. E todos nós, com maior ou menor intensidade,
alimentamos essa esperança. Nos últimos anos, foram incontáveis as reuniões,
congressos, conferências, estudos e pesquisas, para examinar a situação atual

40
Discurso proferido no “Congresso Internacional Valores Universais e o Futuro da Sociedade”,
na Associação Palas Athena, em São Paulo, SP, realizado nos dias 17 e 18 de setembro de 2001.

149
das profundas mudanças que estão ocorrendo no contexto da mundialização
acelerada das atividades humanas. O denominador comum de todo esse
movimento idealista de repensar o que foi o século XX é a necessidade de
construção de um novo século pautado por novos valores, capazes de
engendrar cenários mais justos e solidários.

Há um consenso generalizado de que é preciso mudar. Mesmo os


setores tradicionalmente mais conservadores concordam com o
estabelecimento de novos pilares para orientar as políticas de
desenvolvimento no século XXI.

Nesse movimento de reflexões e de análise prospectiva, a UNESCO


se fez presente em diversos momentos, merecendo destaque, entre outros,
os Relatórios Mundiais sobre Cultura e Desenvolvimento e sobre a Educação para o
Século XXI, coordenados, respectivamente, por Javier Pérez de Cuéllar
e Jacques Delors, a Ciência para o Século XXI, resultado da Conferência de
Budapeste; a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Sete Saberes Necessários
à Educação do Futuro, este, elaborado por Edgar Morin.

Todos esses documentos se tornaram referências universais e são


hoje debatidos em todo o mundo. Eles advogam a necessidade de uma
nova ética para presidir o desenvolvimento e estabelecem princípios e
diretrizes para enfrentar os desafios do tempo presente e, tendo em vista,
como diz o Relatório Mundial sobre Cultura e Desenvolvimento, a adoção de novas
formas de pensamento, novos modos de ação, novas modalidades de
organização social, em suma, novos estilos de vida. Em outras palavras,
advogam um novo paradigma que considere a totalidade da vida humana.

Nessa mesma linha, merece destaque, também, os esforços


desenvolvidos pela UNESCO Brasil, tanto no debate e confronto de idéias
quanto por intermédio de pesquisas sobre juventude, violência e cidadania.
São exemplos desse esforço os eventos promovidos pela UNESCO e outras
entidades sobre os impasses da globalização (Governar a Globalização) e sobre
os caminhos do desenvolvimento (Terceira Via), como, ainda, várias pesquisas

150
sobre violência, juventude e cidadania, gerando conhecimentos os quais
considero importantes para as políticas públicas de desenvolvimento social.
Além disso, a UNESCO Brasil tem tido uma preocupação permanente no
sentido de transformar idéias em ações. O projeto de Abertura de Escolas nos
Fins de Semana, em curso em alguns Estados e Municípios, insere-se nessa
preocupação. Visa, essencialmente, desenvolver nas escolas os valores que
a UNESCO defende. Uma escola de qualidade que cultive valores universais
e valorize a diversidade criadora representa um dos caminhos mais seguros
para o futuro da sociedade.

Precisamos, hoje, ter a coragem de levar para a prática algumas


idéias que sempre foram vistas como inviáveis e até mesmo utópicas.
Inúmeras experiências que a UNESCO tem apoiado indicam que é possível
mudar. Ainda recentemente, publicou um livro – Cultivando Vidas, Desarmando
Violências – que relata e analisa os resultados de ampla pesquisa nacional
sobre experiências inovadoras com jovens em situação de risco. Esse livro
mostra que, com poucos recursos e uma política compartilhada, é possível
trilhar novos caminhos para a juventude, evitando descaminhos e ajudando
o jovem a reconstruir o seu projeto de vida.

Por isso mesmo, a UNESCO considera relevante a realização de uma


discussão de alto nível sobre os Valores Universais e o Futuro da Sociedade. Há a
urgente necessidade de uma nova ética para orientar o processo de
mundialização socioeconômica e cultural que está em curso. É ilusão pensar
em soluções setoriais como se fosse possível isolar-se do resto do mundo.
O que está em perigo é a própria sobrevivência da humanidade e a recente
tragédia terrorista nos Estados Unidos demonstra isso, de forma insofismável.

Precisamos repensar a experiência do século XX, levando em conta


a advertência de Michel Random:

“A modernidade transformou o homem em refém de uma


continuidade aparentemente inevitável: produção-consumo-morte.
De fusões em mega-fusões, os sistemas econômicos dividem o

151
planeta em zonas de influência e em mercados, instaurando com isso os
poderes econômicos supranacionais, nos quais existe apenas a ética da lei
do mais forte. Essa situação, em seu conjunto, leva ao esmagamento dos
valores qualitativos da vida, sem que nenhum poder contrário tenha,
realmente, meios para resistir”.

Estou seguro de que este Congresso Internacional, pela excelência


dos conferencistas, poderá dar uma contribuição importante ao debate
sobre a possibilidade de novos padrões éticos em um mundo dominado
pela incerteza e a insegurança.

Quero, por último, anunciar que a UNESCO Brasil, em


reconhecimento à atuação cultural do Serviço Social do Comércio – SESC, em
São Paulo que, nos últimos anos, não tem medido esforços em promover
inúmeras atividades culturais relevantes, realizando eventos da mais alta
importância, foi contemplado este ano com o Prêmio UNESCO Brasil na
área cultural. Trata-se de uma justa homenagem a uma das instituições
brasileiras mais dinâmicas no setor da cultura.

152
A UNESCO e as Cidades Patrimônio
Mundial do Brasil41

É com grande alegria que dou início aos trabalhos desse primeiro
Encontro de Cidades Patrimônio Mundial no Brasil. Afinal, não é todo dia que
podemos ter tanta gente importante conosco: de um lado, os Prefeitos
das cidades brasileiras mais representativas da formação cultural do país,
juntamente com os Secretários de Cultura dos seus estados. De outro, os
mais altos dirigentes do setor público nas áreas de cultura, meio ambiente,
turismo e planejamento, além, é claro, de organismos vitais ao fomento
da atividade econômica do país que são a Caixa Econômica Federal – CEF e o
Serviço Brasileiro de Apoio à Empresa – SEBRAE.

Cabe à UNESCO e à sua equipe, com o apoio da nossa parceira, a


Associação Brasileira de Municípios, aquilo que nossa história de Organização,
voltada para a valorização do ser humano e para a construção da paz, nos
ensinou de melhor: criar sinergias, buscar convergências e articular
cooperações em torno de boas idéias e de bons propósitos.

No caso específico desse nosso Encontro, quais seriam esses


propósitos? Para responder a essa pergunta, peço licença aos senhores
para uma pequena retrospectiva sobre a construção das idéias da UNESCO
em relação à Cultura.

Nossa Organização foi criada em 1945, em meio à perplexidade do


pós-guerra e elegeu a Educação, a Ciência e a Cultura como estratégia para

41
Discurso pronunciado por ocasião do “Encontro de Cidades do Patrimônio Mundial”, em
Brasília, em 08/11/2001.

153
atingir um novo ideal de progresso, baseado não apenas no
desenvolvimento material, mas na construção da cidadania e do bem-
estar social.

No caso da Cultura, dois aspectos foram ganhando força a cada


etapa de construção das idéias da UNESCO: o primeiro, foi de que
Cultura é um fator indissociável do Desenvolvimento, sem o qual os países não são
capazes de avançar, de incorporar criticamente novas tecnologias, de
produzir conhecimento ou de criar estratégias para seu bem-estar social;
o segundo é de que a Cultura é a expressão da Diversidade entre os povos –
sejam nações, grupos étnicos ou mesmo classes sociais – e que o respeito
à diversidade e ao pluralismo é a essência da construção da paz mundial.

A Convenção do Patrimônio Mundial que, em 1972, fixou os conceitos e


definiu os critérios para que fossem selecionados bens culturais e naturais
cuja importância transcendesse cada País-Membro, ou seja, bens
importantes para toda a Humanidade, não é outra coisa senão uma
decorrência dessas idéias que acabei de descrever.

Isto significa – senhores Prefeitos, Secretários, e Dirigentes


Públicos – que cada uma dessas Cidades Patrimônio Mundial que estão
confiadas à gestão dos senhores e à tutela da UNESCO são um
instrumento do desenvolvimento e uma peça fundamental no mosaico
da diversidade cultural.

Diante de compromisso tão sério, me cabe perguntar: seria o


município o único responsável por esta tarefa? A nossa opinião, os
senhores já a conhecem, ou seja, é por acreditarmos que esta é uma
responsabilidade a ser compartilhada que organizamos essa agenda de
hoje.

Mesmo assim, entendo que ainda nos faltam aqui, nesta Mesa,
muitos parceiros: a sociedade civil, o setor empresarial, o terceiro setor,
os meios de comunicação.

154
Uma das nossas intenções com esse Encontro é exatamente ajudar
a construir as alternativas que nos levem a ampliar, cada vez mais, essa
Mesa de reuniões.

Acontece que, para isso, entendo que nos falta um elemento


essencial: precisamos conhecer melhor os produtores, os destinatários,
enfim, aqueles a quem pertence o Patrimônio que insistimos em preservar.

Será que cada um dos moradores dessas cidades tem a dimensão do


significado – tanto simbólico quanto econômico – do lugar onde vive?
Ele sabe que a sua cidade foi reconhecida como Patrimônio da Humanidade
e tem idéia do que isso significa?

Lanço aos senhores, de imediato, um desafio: que nós nos


organizemos – o conjunto das Cidades Brasileiras Patrimônio Mundial, a
UNESCO, a Associação Brasileira de Municípios – ABM e os nossos
parceiros dessa reunião de hoje – para fazer uma pesquisa amostral em
todas essas cidades, buscando ir ao fundo dessa questão. Devemos indagar
o quanto a população dessas cidades conhece e valoriza o Patrimônio, o
quanto se dispõe a contribuir para preservá-lo, o quanto o reconhece
como parte da sua existência, seja como indivíduo, seja como cidadão.

Uma pesquisa tecnicamente bem formulada nos permitirá saber tudo


isso. Mostrará, de forma diferenciada, o pensamento e o comportamento
dos vários extratos sociais e nos ajudará a aferir se estamos focando as
nossas ações na direção correta.

Será que estamos otimizando os meios que já possuímos para inserir


o tema do Patrimônio no cotidiano das comunidades? As nossas crianças
e jovens estariam tendo acesso, através dos currículos escolares, ao
conhecimento que os permita compreender e valorizar este patrimônio?

E as tradições, o saber-fazer tradicional, estariam sendo estimuladas


ou adequadamente articuladas com a preservação do patrimônio material?

155
Por outro lado, caberia também indagar se os gestores locais – da
Prefeitura ou dos outros níveis de governo – têm considerado a valorização
do patrimônio no planejamento de suas ações. Da mesma forma, se o
empresariado estaria capacitado para explorar ou estaria explorando
adequadamente a riqueza que a cidade possui.

Tampouco sabemos, ao certo – porque também nos faltam pesquisas


e políticas mais agressivas nesse campo – se toda essa riqueza tem
contribuído para minimizar os problemas sociais, criar empregos e facilitar
ações de inclusão social.

Sabemos do esforço do orçamento público para responder às


demandas da área social. Será, no entanto, que estamos conseguindo
canalizar adequadamente nossos esforços ou otimizar cada ação, de forma
que esta se multiplique e seja reaplicada outras vezes ou em outros locais?

Vistas por esse ângulo, acredito, firmemente, que as nossas Cidades


Patrimônio Mundial poderiam vir a ser um riquíssimo cardápio de boas práticas
e que, a partir delas, poderíamos criar um modelo de gestão cultural
direcionado para uma estratégia de desenvolvimento social.

Apesar de contarmos apenas de um dia com trabalho, pretendemos


que este Encontro provoque todas essas indagações e esboce as suas
primeiras respostas.

Iremos, a partir daí, construindo uma cooperação que pretendemos


seja cada vez mais articulada e mais sólida, agregando cada vez mais
parceiros e novos temas.

Apesar da Representação do Brasil ainda ser pequena na grande Lista


do Patrimônio Mundial, temos aqui representados os mais fortes símbolos que
o país produziu, nos seus 500 anos de história: da mais antiga à mais jovem
capital do Pais; dos ciclos da cana-de-açúcar e do ouro à industrialização;
do esplendor do Barroco e da simplicidade da arquitetura de tradição
popular à sofisticação do Modernismo; da seresta e do maracatu ao afoxé.

156
Nosso desafio é fazer com que esses símbolos ultrapassem gerações
e gerações e se tornem, cada vez mais, um fator de bem-estar social,
indissociáveis e harmonizados com o cotidiano das comunidades onde se
inserem.

Contém com o apoio da UNESCO, em todas as suas áreas!

157
A UNESCO e o Compromisso com Goiás42

A antiga capital do estado de Goiás, silenciosamente preservada


entre as encostas da Serra Dourada, era um tema que, até muito pouco
tempo atrás, estava restrito apenas aos estudiosos da história e da
arquitetura brasileiras e aos amantes da poesia de Cora Coralina. No ano
passado, a campanha pela inscrição da cidade na Lista do Patrimônio da
Humanidade da UNESCO fez com que o Brasil redescobrisse a Vila Boa de
Goiás. O entusiasmo, a convicção e a determinação dos seus moradores
na defesa da candidatura acabaram se transformando em uma imagem que,
aos olhos de todo o País, se tornou indissociável dos valores históricos e
arquitetônicos que a cidade preservou.

A cidade de Goiás – aí compreendida sua comunidade e sua estrutura


física setecentista – foi, na argumentação para a obtenção do título junto
ao Centro do Patrimônio Mundial da UNESCO, portadora da bandeira de que
não apenas expressões artísticas excepcionais ou monumentais são condição
para o reconhecimento, mas que a preservação das técnicas tradicionais,
da literatura e de uma reinterpretação, bastante peculiar, da ocupação
portuguesa na Colônia, são valores que sustentam a obtenção desse título.

Desta forma, o processo da candidatura de Goiás acabou se


mostrando exemplar. Em um mundo cada vez mais comandado pelo
individualismo e pelo espetáculo, o que, ao final, ficou demonstrado pelo
reconhecimento da UNESCO, foi a importância da preservação de valores

42
Artigo publicado nos jornais: “O Popular”, GO, em 10/01/2002; “Jornal do Tocantins”, em
13/01/2002.

158
sólidos – tanto do sítio, quanto do ambiente social – fundados na
serenidade da tradição, na simplicidade e na agregação da comunidade.

Contraditoriamente, no último dia do ano, a mídia, que tanto havia


se ocupado de nos trazer boas notícias de Goiás, em 2001, nos surpreendeu
com informações e imagens dramáticas da chuva que atingiu a cidade, na
manhã de 31 de dezembro. O Rio Vermelho transbordou e levou consigo
casas, pontes e, por pouco, o marco de Anhanguera. Felizmente, as pessoas
foram preservadas, embora muitas tenham perdido suas moradias, seus
pertences ou seu local de trabalho.

O significado do título de Patrimônio Mundial, que até então só havia


sido objeto de justas festividades, foi expresso, imediatamente, na sua
vertente das responsabilidades. O título, é importante que se enfatize, é
antes de tudo, um acordo de responsabilidades feito entre cada país
signatário da Convenção do Patrimônio Mundial, de 1972 e a UNESCO, em
favor da preservação de bens que interessam a toda a humanidade.

A resposta a esse compromisso se fez logo sentir. De um lado, o


Governo: o prefeito Boadyr Veloso e o Governador Marconi Perillo, junto
com suas equipes, integralmente comprometidos com a recuperação da
cidade. Da área federal, se deslocaram prontamente, para Goiás, o Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN – que se
encarregou de levantar os danos ao patrimônio –, o Ministro da Cultura,
o Ministro da Integração Nacional – que coordena a Defesa Civil – e o
próprio Presidente da República que, da sacada do Palácio dos Arcos, se
comprometeu com recursos para a restauração e para a solução dos
problemas sociais causados pela enchente.

Os Prefeitos das outras oito cidades brasileiras, inscritas na Lista do


Patrimônio Mundial, se manifestaram à UNESCO através do Prefeito de
Congonhas, Gualter Monteiro, oferecendo solidariedade e se propondo
a desenvolver ações específicas de apoio à Goiás.

159
O setor privado também manifestou apoio através de várias
empresas e a comunidade, com a mesma determinação que havia se
mobilizado para as comemorações, já compôs comissões de moradores e
de pequenos empresários, acolheu muitos dos desabrigados e se organiza
para a reconstrução.

A Representação da UNESCO no Brasil, por dever e por convicção,


está totalmente engajada nesse processo. De um lado, ficou demonstrado
que a Convenção cumpre o seu papel ao promover uma convergência tão
grande de apoios e compromissos, como esta que descrevemos aqui, o
que dificilmente teria esta dimensão caso a cidade não tivesse recebido o
título. De outro, estamos mobilizando nossos próprios recursos, humanos
e financeiros, assim como novas adesões para o trabalho de recuperação.
Nosso compromisso será não só com a recuperação do que se perdeu,
mas também com a identificação das causas e com medidas de prevenção
para que novas situações como esta não venham a ocorrer.

E quem ainda não conhece Goiás, que não se aflija! Apesar desse
triste acidente que atingiu principalmente as margens do Rio Vermelho, a
cidade já pode ser visitada normalmente. Os valores que motivaram sua
inscrição na Lista do Patrimônio Mundial continuam preservados, os serviços
públicos e de hospedagem estão funcionando e as pessoas continuam
hospitaleiras e simpáticas, ainda que muitas delas ocupadas em ajudar
umas às outras e ajudar na recuperação. A Representação da UNESCO
espera que a cidade receba, cada vez mais, novos visitantes que,
certamente, se tornarão novos aliados na defesa da sua recuperação integral
e da sua preservação sustentada.

160
Construindo
uma Cultura de Paz
Tolerância e Paz43

A criação da UNESCO, em 1945, ao término da Segunda Guerra


Mundial, pautou-se na educação para a paz, a tolerância, a solidariedade
e os direitos humanos em geral. Não poderia ser diferente. A paz duradoura
é premissa e requisito para o exercício de todos os direitos e deveres do
homem. A paz, em si, deve ser considerada como mais um direito do
homem e do cidadão.

Não por acaso, na abertura da 29ª Conferência Geral da UNESCO, realizada


em Paris, de 21 de outubro a 12 de novembro passado, o Diretor-Geral da
Organização, Federico Mayor, fez um apelo para que se estabelecesse um
novo contrato moral para garantir a paz no mundo. Parafraseando-o, a
UNESCO tem várias tarefas, mas uma única missão: a paz.

A UNESCO sempre esteve à frente na luta por uma cultura de paz


e não-violência. Por sua iniciativa, o ano de 1995 foi proclamado “Ano das
Nações Unidas pela Tolerância”. O principal objetivo era dar maior impulso à
educação para a tolerância, como base para a compreensão intercultural,
a democracia e a paz. E, para o ano 2000, a ONU já estabeleceu o “Ano
Internacional de Cultura para a Paz”.

Desde 1995, a UNESCO vem organizando eventos, programas e


projetos voltados para o desenvolvimento do respeito mútuo e da
cooperação entre as nações e os povos, para incentivar os padrões de

43
Artigo publicado no jornal “Correio Braziliense”, DF, em 10/03/1997.

163
conduta democráticos na vida cotidiana, para passar, como afirma Federico
Mayor, “de uma cultura de guerra e violência para uma cultura de paz e
não-violência.” Por isso, a UNESCO foi indicada, pela Assembléia Geral das
Nações Unidas, responsável pelo prosseguimento e coordenação das ações
voltadas para a tolerância e cultura de paz.

Um exemplo desse tipo de ação foi a vinda ao Brasil, em abril deste


ano, dos escritores Nadine Gordimer, Prêmio Nobel de Literatura de
1991, e Mongane Wally Serote, que também estiveram em Montevidéu e
Buenos Aires discutindo o tema “Tolerância: o papel dos escritores na luta por uma
cultura de paz”.

As trocas desiguais entre culturas têm acarretado a morte do


conhecimento da cultura subordinada e, portanto, de seus grupos sociais,
o que, sem dúvida, é uma agressão ostensiva aos direitos humanos. A
tolerância entre os povos deve respeitar as diversidades culturais, a riqueza
única de cada cultura.

A educação para os direitos humanos e a tolerância, adaptada para


crianças e adolescentes, do nível fundamental ao universitário, permite a
formação de gerações futuras que respeitem esses direitos e sejam
tolerantes quanto às diversidades e sejam capazes de resolver conflitos
potenciais, de maneira pacífica. A meta deve ser sempre a harmonia entre
indivíduos, grupos, povos, nações. Essa é a base da democracia e da paz.

É fundamental que a educação propicie uma formação


particularmente sólida em matéria de direitos humanos e tolerância,
visando a alcançar uma mudança não só de mentalidade, mas também de
comportamento. Essa mudança permitirá melhor proteção dos direitos
humanos, da lei em geral, das liberdades fundamentais e do melhor
exercício da justiça.

A própria Constituição da UNESCO, cujo 50º aniversário coincidiu


com o “Ano Internacional pela Tolerância”, afirma que “se a guerra nasce

164
na mente de homens e mulheres, é na mente de homens e mulheres que
devem ser erguidos os baluartes da paz.” Hoje em dia, o desafio é encontrar
meios de mudar, definitivamente, atitudes, valores e comportamentos a
fim de promover a paz, a justiça social, a segurança, a tolerância e os
direitos humanos.

165
Juventude, Violência e Educação para a Cidadania44

A sociedade está perplexa. Jovens, aparentemente inofensivos, de


repente apresentam-se como ameaçadores. Futuros estudantes
universitários, de forma arriscada e irresponsável, celebram a aprovação
no vestibular expondo a própria vida e a dos colegas. Adolescentes de
classe média queimam mendigos vivos nas ruas. Alguns bebem em excesso.
Outros tantos usam drogas pesadas. Há os que se armam como se vivessem
em um país em guerra – o arsenal, variado, compreende desde pistolas
até cães ferozes. Os mais cruéis são capazes de metralhar, a sangue frio,
colegas na escola. A sociedade pergunta: por quê?

A resposta não é fácil. Culpar o jovem, estigmatizá-lo como algoz


incorrigível seriam tanto uma precipitação quanto um equívoco. Afinal,
o jovem não só pratica a violência como também é vítima dela. Pesquisa
recente da UNESCO, intitulada “Mapa da Violência – Os Jovens do Brasil”, traz
dados preocupantes a esse respeito: mais de 24 mil jovens, entre 15 e 24
anos, morreram no Brasil somente no ano de 1996. As causas: acidentes
de transporte, homicídios ou suicídios. Assassinados foram mais de 15
mil. Por quê?

Observa-se, no “Mapa da Violência”, que fatores de diversas ordens


influenciam o destino de milhares de jovens, mas que alguns desses fatores
parecem ter papel mais marcante: a pobreza; as crescentes dificuldades
de inserção no mundo do trabalho; os problemas da escolarização e do

44
Artigo publicado nos jornais: “Zero Hora”, RS, em 01/05/1999; “Jornal do Tocantins”, em
09/05/1999; “O Estado do Maranhão”, em 16/05/1999; “O Popular”, GO, em 18/05/1999.

166
preparo profissional; a falta de perspectivas; a cartelização expansiva
da delinqüência e da droga; os diversos conflitos e violências (raciais,
étnicas, econômicas, dentre outras) no mundo; a impunidade e a perda
de confiança na efetividade do sistema jurídico; os vazios e conflitos da
democracia e dos partidos políticos, os quais levam a um profundo
desinteresse. O quê fazer?

Há mais de 50 anos, a UNESCO empreende uma luta sem tréguas


para garantir que seus Países-Membros executem uma política de educação
para todos, ao longo de toda a vida. A educação parece ser a chave para
a solução de alguns dos problemas mais graves da atualidade, dentre eles
a violência. Somente pela educação, em sentido amplo, e pelo combate
incansável à ignorância é que poderá haver condições de se implantar a
idéia de paz e de respeito aos direitos humanos e à natureza.

Nesse aspecto, a UNESCO persegue um objetivo de longo prazo.


Empreende uma luta árdua, com matizes de utopia. Essa luta começa a
afigurar-se, cada vez mais, como imprescindível. Deixou de ser uma
questão secundária para entrar na ordem do dia. A educação para a paz e
para os direitos humanos é uma educação voltada para a cidadania, para a
valorização das diferenças, para a importância da convivência pacífica
entre povos, nações e pessoas.

No cenário atual, de intolerância e agressividade, a educação


apresenta-se como uma alternativa, não para operar milagres, mas para
formar cidadãos em condições de enfrentar a crise em um mundo de
incertezas e perplexidades. É pela compreensão dos problemas que se
pode começar a equacioná-los. Da mesma forma, é pela formação voltada
para a valorização dos direitos humanos que se criarão novas perspectivas
de vida e de convivência.

Parece evidente que a educação, sem amparo de leis e medidas de


segurança pública, não poderá, sozinha, sobretudo em curto prazo, dar
cabo dos atos de incompreensão, intolerância e vandalismo com que nos

167
fartamos nos noticiários. Porém, mesmo nas ações destinadas a prevenir e
corrigir os comportamentos que desrespeitam os direitos humanos e a
natureza, é preciso ter em mente essa perspectiva mais ampla da educação.
Caso contrário, manteremos reformatórios que mais alimentam a violência
do que reeducam potenciais cidadãos.

O Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação


para o Século XXI, organizado por Jacques Delors e intitulado “Educação – Um
Tesouro a Descobrir”, destaca:

“A educação não pode, por si só, resolver os problemas postos pela


ruptura (onde for o caso) dos laços sociais. Espera-se, no entanto,
que contribua para o desenvolvimento do querer viver juntos,
elemento básico da coesão social e da identidade nacional”.

É baseada, portanto, na crença de que a educação é o melhor


caminho rumo a uma sociedade mais justa e pacífica, que a UNESCO
vem empreendendo esforços para compreender o que se passa e poder
apontar saídas para a presente situação. Somente no Brasil, nos últimos
dois anos, a Organização realizou, mediante importantes parcerias, duas
pesquisas exclusivamente dedicadas à questão da juventude e da violência
e terá prontos, ainda neste ano, mais quatro estudos sobre o mesmo
assunto. Um deles abordará, especialmente, a questão da violência nas
escolas brasileiras.

Munida de dados, a UNESCO pretende colaborar com o Governo


e com a sociedade brasileira para a elaboração de uma política específica
para a juventude, a qual possa contemplar o combate não somente à
violência atual e visível, mas também à violência latente, dos potenciais
destrutivos que necessitam, com urgência, de redirecionamento. O jovem
não pode, tampouco merece, ser causador ou vítima da violência. Algo
precisa ser feito. Já.

168
Cultura de Paz: a Importância do Poder Legislativo45

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer o convite da Assembléia


Legislativa de São Paulo para o lançamento da mobilização pelo Ano
Internacional da Cultura de Paz. A contribuição do Estado de São Paulo é
realmente valiosa, demonstrando seu compromisso com essa nobre causa.

Essa sessão representa o compromisso, de seu governo e sua


população, com a Cultura de Paz. Saibam, desde já, que a Assembléia
Legislativa conta com todo o apoio da UNESCO para o desenvolvimento
de suas atividades.

A UNESCO deposita grande confiança na parceria com o Poder


Legislativo, em qualquer que seja a esfera de governo. A participação
dos membros do Legislativo nas discussões sobre temas relevantes para a
sociedade garante a amplitude dos resultados que podem ser atingidos,
em um esforço conjunto com outras instituições governamentais e também
com a sociedade civil.

O trabalho da UNESCO junto ao Poder Legislativo tem por


objetivo maior apoiar as iniciativas realizadas em nossas áreas de atuação.
Na verdade, o Poder Legislativo torna-se um grande parceiro da UNESCO
na consecução dos seus grandes mandatos.

45
Discurso proferido por ocasião do “Lançamento da Mobilização pelo Ano Internacional da
Cultura de Paz”, na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, em 15/05/2000.

169
O Poder Legislativo, como instância de poder legitimada pelos
diversos segmentos sociais, em processo democrático de eleições, constitui
local privilegiado para o debate e aprovação de leis que convertam em
realidade compromissos e projetos de indubitável alcance coletivo.

E a resposta que recebemos do Poder Legislativo tem sido muito


positiva, com o estabelecimento de parcerias efetivas e constantes, nas
mais diversas áreas do conhecimento. O Poder Legislativo desempenha
um importante papel, não só em termos de difusão dos ideais da UNESCO
como também na formulação de políticas públicas de educação, cultura,
ciência e tecnologia, comunicação e informática, áreas de competência
da Organização.

A articulação permanente com os poderes constituídos destaca-se


como condição fundamental para a viabilização da cooperação técnica
que favoreça a consecução dos objetivos de desenvolvimento humano
inerentes aos compromissos mundiais da UNESCO. É esse o pensamento
que norteia a nossa atuação no mundo, certos de que não devemos limitar
o nosso trabalho ao relacionamento com os órgãos do Poder Executivo,
tanto nacional quanto municipal. A UNESCO tem buscado outras
parcerias, mobilizando novos interlocutores para ações em prol da paz,
do desenvolvimento e da democracia, tais como: grupos parlamentares,
câmaras de vereadores, Organizações Não-Governamentais, jornalistas,
jovens e mulheres, além de fundações privadas, mantidas por organizações
empresariais e voltadas para as ações sociais.

O ano 2000 é o Ano Internacional da Cultura de Paz. A contribuição das


autoridades e da população do Estado de São Paulo para a mobilização
nacional evidencia a vontade e o compromisso do Estado com a Paz.

A violência, como fenômeno que vem se acentuando no mundo


contemporâneo, preocupa porque viola o direito à vida, o mais fundamental
dos direitos humanos. Consideramos, aqui, o conceito de violência em
uma perspectiva mais ampla, que abarca não apenas danos físicos que

170
indivíduos podem cometer contra si próprios e contra os outros, mas
também o conjunto de restrições que impedem o pleno gozo de seus
direitos essenciais.

Assim, fatores como a discriminação social e racial, a exclusão


socioeconômica e institucional, a falta de oportunidades de trabalho, a
falta de acesso ao lazer e ao desenvolvimento cultural e as dificuldades
do jovem no seu cotidiano devem ser tratadas com a mesma atenção que
as sociedades dedicam, por exemplo, à própria violência física. Esta, por
sua vez, resulta em um generalizado sentimento de vulnerabilidade, na
percepção da própria insegurança das condições de vida, na perda da
consciência quanto ao valor da vida e na naturalização e banalização da
violência, em todos os estratos sociais.

Todavia, a multiplicidade de fatores relacionados ao fenômeno da


violência torna difícil isolar uma ou mais das suas causas, já que cada uma
delas conjuga-se com várias outras na explicação de cada situação concreta.
Essas dificuldades de estabelecer relações de causalidade tornam-se ainda
mais acentuadas quando se observa a pulverização da violência, sua banalização
na mídia e sua reinserção no cotidiano dos indivíduos em geral, o que amplia
sua abrangência e incidência e dificulta, ainda mais, a sua compreensão.

Por esse motivo, a Assembléia Geral das Nações Unidas decidiu incumbir
a UNESCO de levar à frente um movimento mundial de transição de uma
cultura de guerra, de violência, de imposição e discriminação para uma
cultura de não-violência, de diálogo, de tolerância e de solidariedade.
Ou seja, à construção de uma Cultura de Paz.

Porém, sabemos que um basta à violência não será imediato nem


automático. É necessário buscar respostas viáveis para que, juntos, possamos
dar início à construção da paz. Sabemos que os dados da violência no
Brasil são assustadores. De que forma enfrentá-los? Como a sociedade
brasileira pode responder à demanda da população por paz? Acreditamos
que a possível resposta se encontre no marco da Cultura de Paz.

171
Para chegar a uma resposta adequada ao Brasil, a UNESCO e seus
parceiros mapearam as causas, as fontes e as raízes da violência. Para isso,
desenvolvemos estudos que ajudam jovens, pais, alunos, representantes
políticos, forças policiais e governantes a identificar possíveis caminhos
para a construção da paz, no País. Esses estudos já cobriram as cidades de
Curitiba, Distrito Federal, Rio de Janeiro e Fortaleza, além de duas
pesquisas de recorte nacional.

Em todo o Brasil, indivíduos, instituições e Estados já estão


tomando parte na Campanha Mundial da Cultura de Paz. Contamos com o
apoio de grande número de parceiros, dentre eles, grupos de jovens,
professores, prefeitos, membros do Congresso Nacional, das Forças
Armadas e da mídia, representantes religiosos, dos povos indígenas, dos
artistas e da iniciativa privada.

Nesse sentido, a ação articulada do Poder Público com a sociedade


é fundamental. No dia de hoje, tive o prazer de assinar dois Protocolos
de Intenções, com as Secretarias Estaduais de Educação e da Justiça e da
Defesa da Cidadania, para o desenvolvimento de ações em prol da cultura
de paz. A articulação de instâncias como as Secretarias de Segurança
Pública, Saúde, Educação, Ação Social, Cultura, Esporte, bem como as
Forças Policiais, as Assembléias Legislativas, os Governos Municipais e o
Governo Estadual tem um poderoso potencial, qual seja o de viabilizar
uma ampla “aliança” para a construção da paz. Isso significa que as ações
de cada uma dessas instâncias devem estar associadas às atividades do
grupo, para que a ação concertada de todos maximize as energias
institucionais do Poder Público paulista.

O trabalho de conscientização a respeito dos valores da Cultura


de Paz contribui, de forma significativa, ao incentivar a reflexão e
evidenciar que a construção da paz é responsabilidade de todos. E isto é
fundamental: cada um dos componentes da sociedade tem uma parcela
importante de responsabilidade, da qual não pode abrir mão.

172
A Campanha Mundial da Cultura de Paz, por outro lado, deve respeitar
cada país, suas tradições, peculiaridades e diversidade, incorporando uma
dimensão social e de participação, como o pluralismo cultural, que é uma
força motriz para a paz e a solidariedade internacionais. A paz não
pressupõe, de forma alguma, homogeneidade.

É este o desafio da UNESCO para os próximos anos: construir uma


Cultura de Paz. Trabalhar em prol da educação para todos, na construção
solidária de uma nova sociedade mais igualitária e justa, onde o respeito
aos direitos humanos e à diversidade se traduzam, concretamente, na vida
de cada cidadão, onde haja espaço para a pluralidade e a vida possa ser
vivida sem violência. A UNESCO acredita que é possível e os convida a
se engajarem, todos, nesse desafio.

O Movimento Mundial pela Cultura de Paz é “uma grande aliança de


movimentos existentes”, um processo que unifica todos aqueles que já
trabalharam e que estão trabalhando a favor dessa transformação fundamental
de nossas sociedades. O objetivo é permitir que toda pessoa ou organização
contribua para esse processo de transformação de uma cultura de violência
para uma cultura de paz, tanto em termos de valores, atitudes e
comportamento individual, quanto em termos de estruturas institucionais.

Ao sair deste recinto, vocês encontrarão o Manifesto 2000 por uma


Cultura de Paz. A assinatura desse Manifesto representa o compromisso
simbólico de cada um de nós com a Paz. O ato de assinatura do Manifesto
2000 é o começo do compromisso individual das pessoas, e não seu fim.
Não é apenas mais um abaixo-assinado, um documento que se assine sem
saber ao certo o seu significado ou o fim que ele pretende. Ao assinarmos
o Manifesto, é preciso ter a consciência de que estamos assumindo um
compromisso, conosco e com a humanidade, de levar a cultura de paz
para a nossa vida – em casa, no trabalho, no trânsito, na nossa comunidade.

Tenho certeza de que vocês multiplicarão esse esforço junto a seus


familiares, amigos e colegas de trabalho. Porque a Paz está em nossas mãos.

173
O Programa da UNESCO por uma Cultura de Paz46

Cinqüenta anos depois da fundação das Nações Unidas e da


UNESCO, o mundo se encontra, novamente, em posição de transformar
a cultura predominante de violência em cultura de paz. Hoje, o desafio
consiste em encontrar os meios de mudar, definitivamente, as atitudes, os
valores e os comportamentos a fim de promover a paz e a justiça social,
a segurança e a solução não-violenta dos conflitos.

Para alcançar uma cultura de paz é necessária uma cooperação, em


todos os níveis, entre os países e uma coordenação entre as organizações
internacionais que dispõem da competência e dos recursos indispensáveis
que podem ajudar os indivíduos a ajudar-se a si mesmos.

Esse movimento multidimensional requer o apoio ativo e a


participação contínua de uma rede sólida de indivíduos e de organizações
que atuem em prol da paz e da reconciliação.

As Organizações Não-Governamentais – ONG, desempenham um


papel de fundamental importância para tal movimento e convém, sempre,
envolvê-las e chamá-las à ação, em nível nacional, regional e internacional.

Substituir a secular cultura de guerra por uma cultura de paz requer


um esforço educativo prolongado para modificar as reações à adversidade
e construir um desenvolvimento sustentável que possa suprimir as causas
de conflito.

46
Discurso pronunciado por ocasião do Encontro do Conselho Mundial de Igrejas, “World Council
of Churches”, em parceria com o Viva Rio, no Rio de Janeiro, em 25/07/2000.

174
O Programa da Cultura de Paz está voltado não apenas para a prevenção
das guerras. Podemos até imaginar que as guerras são algo distante de nosso
cotidiano. Mas estamos falando das guerras anônimas, travadas em contextos
próximos e diferenciados. Estamos falando em prevenir e combater todo
tipo de violência, exploração, crueldade, desigualdade e opressão.

No campo do desenvolvimento econômico, é preciso passar da


economia competitiva de mercado e de um modelo excludente e
concentrador de renda a um desenvolvimento mútuo e sustentável, sem o
qual é impossível alcançar uma paz duradoura.

Há que se revisar o padrão de se adotar modelos de


desenvolvimento de outros países para respeitar cada país, suas tradições
e diversidades, incorporando uma dimensão humana e social e de
participação.

Participação significa democracia.

E falar em cultura de paz é falar dos valores essenciais à vida


democrática, quais sejam: Participação, Igualdade, Respeito aos Direitos
Humanos, Respeito à Diversidade Cultural, Justiça, Liberdade, Tolerância,
Diálogo, Reconciliação, Solidariedade, Desenvolvimento e Justiça Social.

Ao falarmos dos valores essenciais à vida democrática, estamos


falando dos valores ligados à cidadania em seu conceito mais amplo. Ser
cidadão é participar na produção e no usufruto dos bens que uma sociedade
produz, é ter acesso aos direitos humanos e sociais básicos, é ter seus
direitos respeitados.

“Não pode haver paz sustentável sem desenvolvimento sustentável. Não pode haver
desenvolvimento sem educação ao longo da vida. Não pode haver desenvolvimento sem
democracia, sem uma distribuição mais eqüitativa dos recursos, sem a eliminação das
disparidades que separam os países mais avançados daqueles menos desenvolvidos”.
(Federico Mayor, antigo Diretor Geral da UNESCO).

175
Como fortalecer a consciência sobre a importância e urgência da
tarefa vital que se faz presente, ao final desse século, de se promover uma
cultura da paz? Como encontrar os caminhos e meios para alterar os
valores, atitudes, crenças e comportamentos do tempo presente?

Em sua busca pela paz, a UNESCO parte do princípio de que a


violência ainda persiste, no entanto, com uma nova face. Apesar das formas
tradicionais de conflito e guerra terem diminuído, os orçamentos para a
segurança, na maioria dos países industrializados, permanecem elevados,
especialmente para o desenvolvimento de armamentos inteligentes de
alta tecnologia, enquanto que os orçamentos destinados ao
desenvolvimento social são constantemente reduzidos.

Nas duas últimas décadas, os conflitos intranacionais aumentaram,


exacerbando as diferenças étnicas e religiosas. Em face desse inaceitável
estado dos fatos, devemos nos mobilizar em favor da paz e da não-
violência, as quais devem tornar-se realidade cotidiana para todos.

Mesmo trabalhando em uma variedade de campos de atuação, a


missão exclusiva da UNESCO é a construção da paz:

“O propósito da Organização é contribuir para a paz e a segurança,


promovendo cooperação entre as nações por meio da educação,
da ciência e da cultura, visando a favorecer o respeito universal à
justiça, ao estado de direito e aos direitos humanos e liberdades
fundamentais afirmados aos povos do mundo”. (Constituição da
UNESCO).

Direitos humanos, democracia, cidadania e desenvolvimento são


interdependentes e reforçam-se mutuamente. Em 1995, os Estados-
Membros da UNESCO decidiram que a Organização deveria canalizar
todos os seus esforços e energia em direção à cultura de paz.

A cultura de paz está intrinsecamente relacionada à prevenção e à


resolução não-violenta dos conflitos. É uma cultura baseada na tolerância,

176
na solidariedade e no compartilhamento cotidiano. Uma cultura que
respeita todos os direitos individuais – o princípio do pluralismo, que
assegura e sustenta a liberdade de opinião – e que se empenha em prevenir
conflitos resolvendo-os em suas fontes, as quais englobam novas ameaças
não-militares para a paz e para a segurança, tais como a exclusão, a pobreza
extrema e a degradação ambiental. A cultura de paz procura resolver os
problemas por meio do diálogo, da negociação e da mediação, de forma
a tornar a guerra e a violência inviáveis.

Mas como fazer da cultura de paz uma realidade concreta e


duradoura? No mundo interativo, tudo é uma questão de conscientização,
mobilização, educação, prevenção e informação, em todos os níveis sociais
e em todos os países. A elaboração e o estabelecimento de uma cultura
de paz requer profunda participação de todos. Cabe aos cidadãos
organizarem-se e assumir sua parcela de responsabilidade. Os países devem
cooperar, as organizações internacionais devem coordenar suas diferentes
ações e as populações devem participar inteiramente do desenvolvimento
de suas sociedades.

Tolerância, democracia e direitos humanos – em outras palavras, a


observância desses direitos e o respeito pelo próximo – são os valores
“sagrados” para a cultura de paz.

A cultura de paz é uma iniciativa de longo prazo que deve levar


em conta os contextos histórico, político, econômico, social e cultural
de cada ser humano. É necessário apreendê-la, desenvolvê-la e colocá-
la em prática, no dia-a-dia familiar, regional ou nacional. É um processo
sem fim.

O Manifesto 2000 por uma Cultura de Paz e Não-Violência é o instrumento


primário desse apelo. Foi esboçado por um grupo de ganhadores do Prêmio
Nobel da Paz, a fim de possibilitar que um máximo de pessoas pudesse
fazer uma contribuição pessoal à cultura de paz.

177
O Ato de Assinatura do Manifesto 2000 é apenas o começo do
compromisso individual das pessoas, e não seu fim.

O Manifesto afirma que é da responsabilidade de cada ser humano


traduzir os valores, atitudes e padrões de comportamento que inspiram a
cultura de paz em realidades da vida diária.

O ano 2000 deve ser um novo começo para todos nós. Juntos,
podemos transformar a cultura de guerra e violência em uma cultura de
paz e não-violência.

Essa evolução exige a participação de cada um de nós para oferecer


aos jovens e às gerações futuras, valores que os ajudem a forjar um mundo
mais digno e harmonioso, um mundo de justiça, solidariedade, liberdade
e prosperidade.

O Movimento Mundial pela Cultura de Paz deve ser “uma grande aliança
de movimentos existentes”, um processo que unifique todos aqueles que
já trabalharam e que estão trabalhando a favor desta transformação
fundamental de nossas sociedades. O objetivo é permitir que toda pessoa
ou organização contribua para esse processo de transformação de uma
cultura de violência para uma cultura de paz, em termos de valores,
atitudes e comportamento individual, bem como em termos de estruturas
e funcionamentos institucionais. A sociedade civil – ONG, círculos
econômicos, redes de associações e comunidades – deve agir sob o
princípio de que cada país e cada sociedade devem planejar suas estratégias
de acordo com suas características específicas.

A paz não é passividade: a humanidade deve esforçar-se por ela,


promovê-la e administrá-la.

O trabalho da UNESCO, na divulgação da Cultura de Paz, é


auxiliado por uma sólida linha de pesquisas sobre juventude e suas
aspirações. Nestas pesquisas, procuramos apontar as preocupações da

178
juventude e as causas da violência, destacando experiências bem-sucedidas
de combate à violência e procurando estimular a implementação de
políticas públicas voltadas às crianças e aos jovens.

É esse o desafio que nos lançamos: construir, em nossa sociedade,


uma cultura de paz. Trabalhar na educação, na construção solidária de
uma nova sociedade, mais igual e justa, onde o respeito aos direitos
humanos e à diversidade se traduzam, concretamente, na vida de cada
cidadão. Onde haja espaço para a pluralidade e a vida possa ser vivida
sem violência.

179
Abrindo Espaços: uma Nova Cultura Escolar47

A violência, um problema planetário, é cada dia mais proeminente


no mundo contemporâneo. A violência é um fenômeno preocupante, pois
viola o mais fundamental dos direitos humanos: o direito à vida.

A pirâmide etária da América Latina é composta por um grande


percentual de jovens que tendem a se envolver em situações criminosas
com mais freqüência e, por conseqüência, a sofrer maior número de ações
violentas do que as outras faixas etárias, confirmando que a juventude
latino-americana está mais propensa a atividades criminosas do que em
outras partes do mundo. Esses dados funcionam como um sinal para indicar
a necessidade de medidas preventivas para evitar o agravamento das altas
taxas existentes, hoje, de violência juvenil.

A violência física cria um sentimento generalizado de vulnerabilidade


e insegurança. A perda da sensibilidade quanto aos valores da vida humana
e a banalização da mesma, contribuem de forma marcante para o aumento
dos índices de violência entre os jovens.

Pesquisas recentes da UNESCO e de outras instituições demonstram


que os índices de violência continuam altos no Brasil. Os mais afetados
estão na faixa dos 15 aos 24 anos. O pico do índice de homicídios está
nos jovens de 20 anos. É compreensível que a sociedade civil, os

47
Discurso pronunciado por ocasião da implantação do “Programa de Abertura das Escolas
nos Fins de Semana”, em Recife, em 19/08/2000.

180
governantes e o empresariado percam o sono. Não é só o presente que
está em jogo, mas também o futuro do País.

Os dados mais recentes, como indica o Mapa da Violência II – trabalho


em que a UNESCO, o Ministério da Justiça e o Instituto Ayrton Senna
lançaram no último dia 16 de agosto – mostram que a violência é a principal
causa de morte entre os jovens.

Para 1998, as estimativas do IBGE estabeleciam que o País contava


com um contingente de pouco mais de 32 milhões de jovens na faixa de
15 a 24 anos, os quais representavam 19,8% do total de 161,8 milhões de
habitantes.

As epidemias e doenças infecciosas, principais causas de morte entre


os jovens há cinco ou seis décadas, foram sendo substituídas,
progressivamente, pelas denominadas “causas externas” de mortalidade,
principalmente, os acidentes de trânsito e os homicídios.

Em 1980, as “causas externas” já eram responsáveis por mais da


metade (53%) do total de mortes dos jovens do País. Dezoito anos depois,
em 1998, esse percentual elevou-se ainda mais quando 2/3 dos jovens
(68%) morrem por causas externas e, fundamentalmente, por homicídios.

Além disso, os dados do Mapa da Violência II nos mostram que o maior


número de óbitos por homicídio é registrado durante os fins de semana,
significativamente, aos sábados e domingos, o que indica um aumento de
quase 57% em relação aos dias da semana. O mesmo ocorre nos óbitos
por acidentes de trânsito. Só nos domingos, do total de mortes entre
jovens, 24% são por acidentes de trânsito.

Em todas as pesquisas realizadas, os jovens reivindicam a ampliação


de espaços de lazer, a inclusão em atividades que possam resgatar sua
cidadania e seu sentimento de pertencer a um grupo, uma comunidade,
bem como a necessidade de criar perspectivas em relação ao futuro.

181
Nesse cenário, adquire especial importância a implementação de
programas e de políticas públicas que possam contribuir para contemplar
as principais reivindicações da juventude.

Mais do que nunca, os brasileiros querem paz. Não suportam mais


a violência das ruas. Estão assustados e indignados com os altos índices
de homicídio, sobretudo de jovens. Por um lado, a sociedade se organiza
e se mobiliza em manifestações públicas pela paz. Por outro, estudiosos
e governantes debruçam-se sobre o problema e angustiam-se em busca de
respostas e soluções.

Hoje, está provado que as estratégias de combate à violência devem


centrar-se nos programas preventivos e na oferta de alternativas à
juventude. Não podemos mais insistir nas estratégias repressivas,
simplesmente.

Programas preventivos são cruciais para nossa sociedade, não só


porque controlam a expansão da violência, mas também porque já
provaram ser mais eficientes e de custo mais baixo do que qualquer tipo
de resposta de caráter repressivo.

A experiência internacional comprova que os programas de combate


à violência mais eficientes possuem certas características comuns. Em
primeiro lugar, são administrados localmente. Segundo, incorporam setores
distintos da sociedade. Terceiro, levam em consideração as necessidades
e os diagnósticos específicos de cada comunidade – um programa que
funciona bem em uma comunidade não é necessariamente bem sucedido
em todas. Finalmente, a avaliação dos programas é crucial para definir
quais estratégias produzem resultados e outras não.

Algo precisa ser feito o quanto antes e, ao que tudo indica, os


passos em busca de soluções já começaram a ser dados em Pernambuco.

A abertura das escolas nos finais de semana se insere nesse terreno,


com a convicção de que será possível criar a oportunidade de que os

182
jovens, em suas próprias comunidades, possam realizar atividades de lazer,
esporte e cultura.

A participação da comunidade e seus líderes na definição das


atividades e nas propostas de utilização de vários recursos é condição
para o sucesso e êxito da iniciativa. É importante, também, ampliar a
participação de setores diversos da sociedade como a Polícia, as Forças
Armadas, a indústria, o comércio e demais setores produtivos, de forma a
promover articulações em torno da juventude, oferecendo, assim, novas
oportunidades. A participação do Governo Estadual e das Prefeituras
Municipais é fundamental neste processo e permitirá discutir novas formas
de aproveitamento de equipamentos sociais urbanos que existem e não
têm pleno uso, como é o caso das escolas, hoje.

Abrir as escolas nos finais de semana é uma proposta inovadora no


Brasil, mas que já vem acontecendo em outros países, permitindo à
juventude exercitar seu potencial criativo e usar sua energia em atividades
saudáveis. Se deixarmos nossos jovens sem alguma atividade ou ocupação,
haverá tempo para as drogas, a violência, o ócio, a falta de perspectiva,
a morte.

Ao abrir as escolas nos finais de semana e pensar na utilização de


outros espaços urbanos ociosos nesse período, o Governo de Pernambuco
e a UNESCO estão propondo, também, concretizar o protagonismo
juvenil, permitindo aos jovens que construam seu lazer, suas propostas e
que apresentem, eles próprios, alternativas concretas de utilização de
tais espaços. Não falamos em uma proposta pronta e pré-fabricada, não
pretendemos decidir a priori o que fazer, ou como fazer. Propomos sim,
a utilização do espaço e a participação dos jovens na discussão da utilização
dos mesmos. Apresentamos alternativas, como, por exemplo, esportes,
campeonatos de diferentes modalidades, grupos de rap, pagode, grafite,
hip hop, alternativas culturais, cinema a preços populares, teatro,
apresentação de grupos musicais, dentre outras.

183
Mas, sabemos que não podemos prescindir de um conhecimento
específico do qual o jovem é portador e ele, melhor do que ninguém,
poderá contribuir para a criação de propostas concretas de utilização
dos espaços que atendam a suas próprias demandas. Viabilizar o
protagonismo juvenil, oferecendo alternativas concretas de inclusão e
acesso, é fundamental para alterar os indicadores de violência e morte
entre os jovens.

A implementação de políticas públicas dirigidas à juventude é, nesse


contexto, uma exigência que se impõe a todos nós. A abertura das escolas
nos finais de semana e a viabilização da utilização de espaços públicos
para a educação e a cultura contribuem para concretizar um antigo ideal
da UNESCO, ao qual se associa, veementemente, o Governo do Estado
do Pernambuco, que é o das cidades educativas, fortalecendo, assim, uma das
tendências inovadoras que se espera do próximo milênio, qual seja, a da
ampliação da dimensão social e pública de todas as organizações e
entidades existentes na sociedade.

Dentro da linha dessas experiências bem-sucedidas, o que estamos


fazendo, hoje, reveste-se de especial importância. Estamos implementando
um programa de Cultura de Paz e Não-Violência. Dessa forma, o Governador
reforça a cultura de paz como uma diretriz de Governo.

A implantação do trabalho começa com a abertura das escolas nos


finais de semana, oferecendo oportunidades de educação, cultura, lazer,
esportes, centradas, sobretudo, no atendimento à juventude. Esperamos
que esse trabalho possa ser um exemplo para o resto do Brasil e para
muitos outros países.

O Governo do Estado, em parceria com a UNESCO, apresenta


uma série de propostas integradas para combater a violência priorizando
os jovens, principalmente aqueles na periferia e em situação de risco,
pessoal e social. Aplaudimos a iniciativa do Senhor Governador de buscar
soluções concretas que possam reverter a situação atual.

184
A sociedade civil também se movimenta no mesmo sentido. Por
meio de associações de diversos gêneros, ela vem se mobilizando tanto
pela prevenção da violência quanto pelo socorro às vítimas dos diversos
tipos de violência encontrados na nossa sociedade. Convocamos toda a
sociedade civil e os meios de comunicação a assumir a sua co-
responsabilidade social e somar-se no apoio a esta importante iniciativa.
A luta contra a violência não é somente uma responsabilidade oficial.

Ao incentivar a educação e as artes, o Governo contribui,


significativamente, para que jovens em situação de risco sejam incluídos
nos benefícios da sociedade. Todos – Governo e sociedade civil – estão
cientes de que investir na prevenção é o caminho mais eficiente.

A UNESCO, mais do que aplaudir a iniciativa, associa-se a ela.


Dedicamos especial atenção ao trabalho conjunto com o Governo do Estado
e a sociedade civil pernambucana, comprometendo todo o nosso apoio.

Temos certeza que hoje, aqui, estamos dando o primeiro passo em


direção à construção efetiva de uma sociedade menos violenta e mais
justa, priorizando a juventude – capital social valoroso e indispensável
para tornar possível um novo futuro.

185
O Brasil e a Assembléia do Milênio48

A Assembléia do Milênio das Nações Unidas, em setembro próximo,


constitui um fórum único. Será a ocasião na qual os Chefes de Estado de
todo o mundo terão a oportunidade de discutir os problemas que afligem
suas sociedades e compartilhar velhos e novos desafios para o século
XXI. Esse encontro servirá de guia para que governos e sociedades definam
seus objetivos para os próximos anos, preocupados em construir um
mundo mais justo e humano para todos.

No intuito de proporcionar as linhas mestras para o debate que


inaugura o novo milênio, a Organização das Nações Unidas está promovendo
amplas discussões no mundo todo, envolvendo não só Governos, mas
também a sociedade civil.

Nesse quadro de referência, insere-se a Campanha Mundial pela Cultura


de Paz, que os senhores já conhecem e a qual vêm aderindo, desde setembro
de 1999.

Mais do que nunca, os brasileiros querem paz. Não suportam mais


a violência das ruas. Estão assustados e indignados com os altos índices
de homicídio, sobretudo de jovens. Por um lado, a sociedade se organiza
e se mobiliza em manifestações públicas pela paz. Por outro, estudiosos
e governantes debruçam-se sobre o problema e angustiam-se em busca de
respostas e soluções.

48
Discurso proferido por ocasião da “Reunião do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana”, em Brasília, em 23/08/2000.

186
Hoje, está provado que as estratégias de combate à violência devem
centrar-se nos programas preventivos e na oferta de alternativas à
juventude. Não podemos mais insistir nas estratégias repressivas,
simplesmente.

Programas preventivos são cruciais para nossa sociedade, não só


porque controlam a expansão da violência, mas também porque já
provaram ser mais eficientes e de custo mais baixo do que quaisquer
programas de encarceramento, por exemplo.

Cinqüenta anos depois da fundação das Nações Unidas e da


UNESCO, o mundo se encontra, novamente, em posição de transformar
a cultura predominante de violência em cultura de paz. Hoje, o desafio
consiste em encontrar os meios de mudar definitivamente as atitudes,
valores e os comportamentos, com a finalidade de promover a paz e a
justiça social, a segurança e a solução não-violenta dos conflitos.

Para alcançar uma cultura de paz são necessárias uma cooperação,


em todos os níveis, entre os países e uma coordenação entre as
organizações internacionais que dispõem de competência e recursos
indispensáveis. Estas, podem ajudar os indivíduos para que possam se ajudar.

Esse movimento multidimensional requer o apoio ativo e a


participação contínua de uma rede sólida de indivíduos e de organizações
que atuem em prol da paz e da reconciliação.

As Organizações Não-Governamentais – ONG, desempenham um


papel de fundamental importância para este movimento e convém,
sempre, envolvê-las e chamá-las à ação, em nível nacional, regional e
internacional.

Como fortalecer a consciência sobre a importância e urgência da


tarefa vital que se faz presente, ao final desse século, de se promover a
transição de uma cultura de guerra para uma cultura da paz? Como
encontrar os caminhos e meios para alterar os valores, atitudes, crenças e

187
comportamentos do tempo presente? Mesmo trabalhando em uma
variedade de campos de atuação, a missão exclusiva da UNESCO é a
construção da paz: “O propósito da Organização é contribuir para a paz
e a segurança, promovendo a cooperação entre as nações por meio da
educação, da ciência e da cultura, visando a favorecer o respeito universal
à justiça, ao estado de direito e aos direitos humanos e liberdades
fundamentais afirmados aos povos do mundo”.

Tolerância, democracia e direitos humanos – em outras palavras, a


observância desses direitos e o respeito pelo próximo – são os valores
“sagrados” para a cultura de paz.

A cultura de paz é uma iniciativa de longo prazo que deve levar


em conta os contextos histórico, político, econômico, social e cultural
de cada ser humano. É necessário aprendê-la, desenvolvê-la e colocá-la
em prática, no dia-a-dia familiar, regional ou nacional. É um processo
sem fim.

É esse o desafio que nos lançamos: construir, em nossa sociedade,


uma cultura de paz. Trabalhar na educação, na construção solidária de
uma nova sociedade mais igual e justa, onde o respeito aos direitos humanos
e à diversidade se traduzam, concretamente, na vida de cada cidadão,
onde haja espaço para a pluralidade e a vida possa ser vivida sem violência.

A UNESCO, em parceria com a Comunidade Baha’i e a Comissão de


Educação e de Direitos Humanos, da Câmara dos Deputados, está organizando a
exposição de cartazes que refletem as idéias de vários brasileiros, ilustres
e desconhecidos, sobre paz, como parte do esforço de envolver a
sociedade na tarefa de pensar os desafios do próximo milênio e inseridos
no contexto da Assembléia Geral das Nações Unidas. O Presidente
Fernando Henrique Cardoso, o Ministro José Gregory, a Dra. Ruth
Cardoso, o Presidente da Câmara, Deputado Michel Temmer, crianças e
jovens de várias escolas já deixaram seus depoimentos sobre as idéias de
paz nos cartazes que serão expostos a partir da próxima semana.

188
A confraternização que a Assembléia do Milênio propiciará, servirá para
que, no seio das diferenças, seja possível discutir e compartilhar os meios
e instrumentos que melhor garantam os direitos da pessoa humana e os
desafios para construir um mundo socialmente mais justo.

O papel do Brasil nesse encontro é fundamental. Este é o País no


qual a Campanha Mundial da Cultura de Paz sensibilizou, com mais força, a
população, a mídia e os Poderes Públicos. É também um País que está
lutando, cotidianamente, contra a cultura de violência nas cidades, no
campo, nas escolas, no esporte, em casa e no trabalho. Também é um País
cuja fonte de criatividade tem oferecido saídas simples e sólidas para
enfrentar o desafio da violência. A contribuição do Brasil, durante a
Assembléia do Milênio, deve ser aproveitada ao máximo. Por isso, convoco os
senhores a mostrar ao mundo que o Brasil clama por paz e está aprendendo
a fazê-lo, com ações concretas e efetivas.

A melhor prova disso é a presença dos senhores: Governo,


sociedade civil, imprensa, o sistema educacional e o Congresso Nacional
provocando uma sinergia que reflete, de forma fiel, os desafios que o
Brasil tem pela frente. A co-responsabilidade de todos os atores sociais é
crucial e, sem dúvida, a melhor forma que o País tem de contribuir com
os esforços da Assembléia Mundial.

189
Cultura da Paz ou Cultura da Violência?49

Continua em discussão, no Congresso Nacional, o Projeto de Lei


do Governo que proíbe a comercialização e o porte de armas de fogo.
Nas primeiras tentativas de aprovação dessa importante iniciativa, houve
uma bem-organizada reação, o que obstruiu a tramitação do projeto.

A oportunidade para uma reflexão coletiva sobre esse projeto de


lei não poderia ser melhor. A violência no Brasil está aumentando e se
banalizando como se a vida e a dignidade humanas, nesse final de século,
nada mais valessem. O momento requer um auto-exame da sociedade
brasileira, começando por perguntar se as aspirações por uma cultura de
paz devem ou não se transformar em uma das metas mais importantes para
o próximo milênio.

Estou seguro de que a resposta da sociedade brasileira será positiva,


pois, em diversas pesquisas de opinião, o componente segurança aparece
em primeiro lugar. Assim sendo, tudo indica que o Congresso Nacional,
como intérprete das aspirações populares, saberá conduzir essa discussão
com serenidade e firmeza, de forma a evitar que motivações menores de
grupos sem compromissos com a essência humana possam se sobrepor
aos interesses da maioria.

Ademais, estamos em pleno Ano Internacional da Cultura da Paz,


proclamado pela Organização das Nações Unidas. Assim, se o Projeto que

49
Artigo publicado nos jornais: “Folha de S.Paulo”, em 29/09/2000; “A Tarde”, BA, em 09/10/2000;
“Jornal do Tocantins”, em 22/10/2000.

190
pretende promover o desarmamento da população não lograr êxito, o
Brasil perderá uma excelente oportunidade para inserir-se no grupo de
nações que já deram esse exemplo de maturidade política, em busca de
uma cultura de paz.

Por outro lado, a UNESCO colheu no Brasil, em vários Estados e


segmentos sociais representativos da sociedade brasileira, mais de 13
milhões de assinaturas de adesão ao Manifesto da Paz elaborado por
ganhadores do Prêmio Nobel da Paz. Os signatários desse Manifesto se
comprometem a lutar, permanentemente, contra a rápida disseminação
da cultura da violência, a qual já está atingindo até mesmo uma das mais
importantes instituições da democracia, a escola, vitimando crianças e
adolescentes em plena efervescência de seus idealismos.

O Manifesto da Paz estabelece para os seus signatários o compromisso


de respeitar a vida e a dignidade de cada pessoa, praticando a não-violência
ativa e rejeitando a violência sob todas as formas – física, sexual,
psicológica, econômica e social. Esse compromisso deve estar presente
na vida diária de cada pessoa, na família, no trabalho, na comunidade e no
País, em geral. Cada cidadão deve sentir-se comprometido com o outro,
desenvolvendo o que o filósofo e matemático Bertrand Russell chamou
de “sensibilidade abstrata”, ou seja, a capacidade de sensibilizar-se com
o sofrimento e a tragédia, ainda que não aconteçam a sua volta.

Se todos esses argumentos ainda se revelarem insuficientes, quero


chamar a atenção para a pesquisa realizada pela UNESCO, o Ministério
da Justiça e o Instituto Ayrton Senna – Mapa da Violência II – cujo capítulo
dedicado ao tema demonstra que as armas de fogo são responsáveis por
25,5% dos óbitos por causas externas no País e por 61,2% do total de
homicídios. A taxa nacional de 18,6 mortes por armas de fogo em 100 mil
é semelhante à mortalidade por acidentes de transporte. Entre os jovens,
essa taxa é bem maior: 36,6 óbitos por armas de fogo em 100 mil jovens,
o que significa que morrem 68% mais jovens por efeitos de armas de fogo
do que por acidentes de transporte.

191
Esses dados falam por si só, dispensando comentários adicionais.
Eles significam que o desarmamento da população assume urgência sem
precedentes, não mais podendo ser adiado em decorrência de pressões
oriundas de grupos que apenas pensam em seus interesses particulares. O
que está em jogo é o destino de crianças, jovens e adultos que, diariamente,
enchem as páginas dos jornais e o noticiário da televisão com cenas
chocantes que comprometem a imagem do País e o afasta dos cenários da
dimensão humana e moderna da sociedade contemporânea.

192
Caubóis ou Heróis do Asfalto?50

Fazer uma ultrapassagem arriscada, atravessar um sinal vermelho ou


desrespeitar a faixa de pedestres são atos corriqueiros no tráfego de uma
grande cidade. De tão triviais, nem sempre despertam em nós a justa
indignação. Buzinamos. Bradamos. E o assunto está encerrado. Minutos
depois, vemos repetir-se, diante de nós, as mesmas infrações.

Curiosamente, o caos no trânsito das metrópoles não costuma nos


levar a fazer protestos em massa ou passeatas, muito menos “carreatas”.
Não temos movimentos sociais organizados pela paz no trânsito. As ações
de conscientização, geralmente, partem do Governo ou dos meios de
comunicação. A maioria de nós reclama dos engarrafamentos, lamenta o
número de acidentes, mas pouco faz para alterar a situação. Via de regra,
contentamo-nos com lastimar e criticar os infratores – e não raramente
somos nós também mais um dentre eles.

O novo Código Nacional de Trânsito, mais moderno e severo, foi um


passo fundamental para que motoristas e pedestres revissem a própria
conduta e ponderassem sobre as conseqüências de um ato infracional no
trânsito das ruas e estradas. Desrespeitar as leis de trânsito passou a ser
considerado crime de graves conseqüências e sujeito a rígido sistema de
penalidades, inclusive com repercussão direta no bolso do infrator.

50
Artigo publicado nos jornais: “Correio Braziliense”, DF, em 19/11/2000; “A Gazeta”, MT, em
22/11/2000; “Jornal do Tocantins”, em 23/11/2000; “Jornal do Commercio”, RJ, em 24/11/2000;
“Jornal Hoje em Dia”, MG, em 25/11/2000; “Diário de Cuiabá”, MT, em 29/11/2000.

193
As taxas de morte por acidentes de transporte, entre 1989 e 1998,
tiveram uma queda de 5,5% no total da população brasileira, segundo o
recém-lançado “Mapa da Violência II”, realizado pela UNESCO, Ministério
da Justiça e Instituto Ayrton Senna, baseado em dados do Ministério da
Saúde (DATASUS). A queda se explica pelo fato de que, no último ano
da década considerada na pesquisa, entrou em vigor a nova lei de trânsito.
O decréscimo, no entanto, não nos dá, ainda, motivos para
despreocupação. Em alguns Estados, o índice de morte de jovens, entre
15 e 24 anos, por acidentes de transporte, cresceu no decênio
contemplado no Mapa.

Apesar de polêmico, justamente por sua rigidez e dificuldades de


aplicação, o novo Código teve o indiscutível mérito de colocar as
questões do trânsito na ordem do dia; de enfatizar o papel da educação e
de dar mais visibilidade a um problema que, afinal de contas, diz respeito
à preservação da vida.

É nesse contexto que estão sendo implantados três importantes


Programas do Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN), os quais
contam com a parceria da UNESCO: “Rumo à Escola”, “Educação e Segurança no
Trânsito em Escolas do Ensino Médio” e “Mídia Cidadã”. O “Rumo à Escola” objetiva
implementar o tema trânsito como prática educativa cotidiana em escolas
municipais do Ensino Fundamental, fornecendo consultoria e orientação
educacionais para o desenvolvimento de atividades em sala de aula. Esse
programa terá capacidade para atender a, aproximadamente, 1.400 escolas
municipais, em todo o País.

O programa “Educação e Segurança no Trânsito em Escolas do Ensino Médio” será


implementado em todas as séries do Ensino Médio, atendendo às instruções
e disposições do DENATRAN, e reconhecido como curso teórico exigido
para que o interessado na obtenção da Carteira Nacional de Habilitação
possa se submeter ao exame teórico no DETRAN. Esse reconhecimento,
além de constituir fator de motivação para as escolas e para os jovens,
trará, como benefício, novos condutores dotados de uma postura mais

194
adequada e consciente no trânsito. A implementação desse programa
resultará não somente na qualidade da formação dos futuros motoristas mas,
também, na educação dos jovens para o exercício da cidadania no espaço
público, seja como pedestre, passageiro, ciclista ou condutor.

O programa “Mídia Cidadã” tem como principal meta estabelecer


parcerias com a imprensa para a sensibilização da sociedade. Assim, será
possível criar um ambiente favorável à implantação de uma nova cultura
orientada para o trânsito, a qual prima pela cidadania, pela preservação e
pela qualidade de vida.

Dessa forma, cumprem-se, além de um dever cívico do Estado e da


sociedade, compromissos assumidos pelo Brasil em conferências
internacionais, como a Habitat 2 e a Rio 92, as quais previram a construção
de cidades sustentáveis e, para isso, ações educativas a fim de “aumentar
a consciência do público quanto aos efeitos que têm sobre o meio
ambiente os hábitos de transporte e viagem.”

O Governo demonstra disposição em honrar o seu papel, ao fazer


cumprir o Código Nacional de Trânsito e ao lançar programas educativos, de
maneira a oferecer tanto medidas punitivas e coercitivas quanto educativas
e preventivas para a questão do trânsito. Mas, nenhuma dessas ações terá
realmente efeito se cada cidadão não exercer o seu papel, isto é, o de
cobrar sempre o cumprimento da Lei, exigir os seus direitos e, sobretudo,
evitar as infrações a todo custo.

Cabe a cada indivíduo a decisão de, uma vez habilitado, tornar-se


mais um temível “caubói do asfalto” ou um novo herói da prática diária da
cidadania e do respeito à vida no trânsito, seja dentro ou fora de um veículo.

195
A Promoção da Cultura de Paz51

Este encontro ocorre em uma conjuntura especialmente feliz. O


mundo, em geral, e a América Latina, em particular, estão repensando os
seus modelos de desenvolvimento. O saber sobre o desenvolvimento que
acumulamos durante o século XX gerou um panorama social desigual,
injusto e, muitas vezes, permissivo à violência. A inclusão de novas
categorias e conceitos à noção de desenvolvimento é um processo que
cresce em todo o mundo.

As experiências latino-americanas de desenvolvimento nos mostram


que o crescimento econômico não basta para tirar milhões de pessoas da
pobreza. Há exemplos claros de que certos elementos são, no mínimo, tão
relevantes quanto a afluência econômica. Dentre eles, podemos citar a
participação ativa de redes sociais de solidariedade e ajuda mútua, a
capacidade de explicitar demandas junto a governos e entidades da sociedade
civil, a garantia de uma vida saudável e longa, a possibilidade de ultrapassar
os próprios limites individuais por meio da educação, e muitos outros.

É esse o contexto mundial no qual a cultura ganha uma importância


renovada. A cultura é, de fato, um instrumento em prol do desenvolvimento
humano porque promove a atividade comunitária, a expressão pública de
sentimentos individuais e coletivos. Além disso, pode propiciar o encontro
entre gerações e a inclusão de todas as camadas sociais.

51
Discurso proferido por ocasião da Abertura do “II Mercado Cultural Latino-Americano”, em
Salvador, BA, em 05/12/2000.

196
Para a América Latina, a cultura ganha mais relevância ainda. Um
dos nossos maiores desafios no continente é reduzir os índices de violência
entre os jovens. A reversão dessas estatísticas é crucial para garantir vidas
significativas às novas gerações de latino-americanos. A substituição da
cultura da violência pela cultura da paz surge, portanto, como uma
bandeira que todos devemos empunhar.

É esse o contexto que leva a UNESCO a promover a Campanha


Mundial pela Cultura de Paz e Não-Violência.

A Cultura de Paz se constitui de valores, atitudes e comportamentos


que refletem o respeito à vida, à pessoa humana e à sua dignidade, aos
direitos humanos, entendidos em seu conjunto, interdependentes e
indissociáveis. Viver em uma Cultura de Paz significa repudiar todas as
formas de violência, especialmente a cotidiana, e promover os princípios
da liberdade, justiça, solidariedade e tolerância, bem como estimular a
compreensão entre os povos e as pessoas.

Ao proclamar o ano 2000 o Ano Internacional da Cultura de Paz, o objetivo


primeiro das Nações Unidas era “mobilizar a opinião pública em níveis
nacional e internacional, com o propósito de estabelecer e promover a
cultura de paz e o papel central que o sistema das Nações Unidas podia
desempenhar nesse sentido”.

A promoção da Cultura de Paz é um dos nossos grandes desafios


para o próximo século. Se a América Latina é o nosso palco de ação, a
cultura constitui-se em instrumento privilegiado para minar as bases da
violência, promover a sociabilidade e garantir aos cidadãos que tenham a
capacidade de escolher de que maneira organizam sua vida.

É por isso que o II Mercado Latino-Americano traz à mesa uma agenda


inovadora. No nosso continente, a cultura tem a potencialidade de
construir laços sociais fortes, promovendo a diversidade e formas não
excludentes de crescimento social, econômico e tecnológico.

197
A UNESCO não tem dúvidas de que a grande luta do próximo
milênio e o seu maior desafio será o de conceber e construir cenários de
cidadania no palco de um mundo multifacetado. Para isso, a cultura e o
intercâmbio cultural em nossa região são fundamentais. Um dos grandes
resultados do esforço de pesquisa que vimos realizando no Brasil nos
mostra que a juventude percebe a cultura como meio eficaz de redução
dos índices de violência. Esse é o resultado que encontramos em Fortaleza,
Curitiba, Brasília, Rio de Janeiro, dentre outras capitais.

A cultura também é uma modalidade de expressão que pode fazer


com que as sociedades latino-americanas se conheçam mais e melhor. A
integração regional não é nova em nosso continente. Bolívar já a
propugnava no século XIX. Contudo, hoje temos a oportunidade histórica
de fazer com que esse movimento não seja meramente comercial e
econômico. Temos a possibilidade de intercambiar conhecimentos,
práticas, costumes, valores e percepções de mundo. O II Mercado Cultural
é um claro reflexo disso.

Aproveitemos este evento para avaliar, conjuntamente, o que


desejamos da cultura na América Latina. Não basta reconhecer o potencial
criativo de cada comunidade ou país. É necessário criar condições de
garantir a sustentabilidade das expressões culturais, por meio de
mecanismos que sejam ao mesmo tempo simples e capazes de alavancar o
desenvolvimento das populações envolvidas.

Também devemos garantir a democratização do acesso à cultura, tendo


em vista que a grande maioria da população latino-americana tem meios
escassos para asceder ao conhecimento. É possível pensar em estratégias
para disseminar esses conhecimentos e expressões. Uma das atividades que
a UNESCO vem, justamente, apoiando com força, nos últimos meses, é a
abertura das escolas aos sábados. Dessa forma, a escola torna-se um espaço
privilegiado para o esporte, a atividade cultural, o intercâmbio de
conhecimentos e a construção de um sentimento de pertencimento e

198
comunidade que somente melhora a situação das populações locais. O
mesmo estamos fazendo com a música, especialmente o funk e o hip hop.

Por outro lado, contamos com uma população naturalmente criativa


e ativa na sua expressão cultural. Essa característica é única e devemos
aproveitá-la e é a melhor maneira de assegurar que a cultura seja um
instrumento de promoção do desenvolvimento humano. Há diversos
mecanismos que podem ser utilizados para dar vazão e visibilidade a
manifestações locais riquíssimas. Este fórum é um espaço privilegiado para
pensá-los. A título de ilustração, a UNESCO vem apoiando a criação de
espaços para que os jovens possam fazer grafites. Esse esforço, aliado à
toda a comunidade local, muda substancialmente as possibilidades de
expressão artística das pessoas, especialmente dos jovens.

Nós, latino-americanos, temos um legado cultural verdadeiramente


diverso e pujante. A cultura que fazemos na rua, na escola, em casa, no
teatro e no cinema flui com uma naturalidade fascinante. O nosso melhor
exemplo é a Bahia que, como sempre, nos acolhe de uma forma tão singular.

Pensemos, juntos, de que forma toda essa riqueza pode servir para
mudar um quadro social que é lastimável em toda a América Latina. A
UNESCO tem a convicção de que a cultura pode combater a pobreza, a
ignorância e a violência. Basta construir os mecanismos adequados, os
quais devem ser elaborados e implementados por todos.

Portanto, os governos, as agências internacionais, os produtores, a


iniciativa privada, os artistas e os cidadãos têm uma agenda densa durante
os próximos dias. Aproveitemos o II Mercado Cultural para pensar sobre isso.

Conceber a cultura como instrumento do desenvolvimento humano


significa entendê-la como chave para a construção e a manutenção da
paz, em cada esquina da América Latina. Também significa entendê-la
como aliada na superação dos nossos limites individuais e coletivos. Não
deixemos de aproveitar a nossa diversidade criadora para melhorar a vida
das próximas gerações de latino-americanos.

199
Novos Espaços para a Paz52

Várias pesquisas realizadas no Brasil destacam que a violência entre


jovens – sejam eles vítimas ou autores – oscila durante a semana e aumenta
aos fins de semana. Demonstram, também, a demanda dos jovens por lugares
e condições para o exercício de atividades lúdicas, esportivas, artísticas,
recreativas, enfim, espaços de sociabilidade e de manifestação de
criatividade. Por fim, essas pesquisas alertam para o sentimento de exclusão
dos jovens, o desencanto com os aparatos institucionais, a discriminação,
a perda de referencial ético, a baixa auto-estima.

Nas pesquisas, a arte, o esporte, a educação e a cultura aparecem


como um contraponto, como elementos estratégicos para a redefinição
da violência. Representam a construção de canais de expressão alternativos,
um espaço a ser explorado, uma forma de incentivo aos jovens para que
se afastem das ruas sem ter de negar meios de expressão e de descarga de
sentimentos, tais como indignação, protesto e afirmação positiva de suas
identidades.

A violência física cometida por e contra os jovens é, muitas vezes,


decorrente de um processo de exclusão social e resulta em um sentimento
generalizado de vulnerabilidade, na percepção da própria insegurança
das condições de vida, na perda da consciência quanto ao valor da vida.
O risco concreto e o contato com a morte violenta criam um ambiente

52
Artigo publicado nos jornais: “O Popular”, GO, em 05/06/2001; “Folha de Londrina”, PR, em
13/06/2001; “Jornal do Tocantins”, em 31/05/2001; “O Liberal”, PA, em 24/05/2001;
“O Globo”, RJ, em 22/05/2001.

200
de incerteza e insegurança que impedem o aprendizado e a vivência de
conceitos como liberdade, solidariedade, justiça e eqüidade, fundamentais
para a construção da cidadania.

O Programa “Abrindo Espaços: Educação e Cultura para a Paz” insere-se no


marco mais amplo de atuação da UNESCO, voltado para a construção de
uma cultura de paz, de educação para todos ao longo da vida, para a
erradicação e o combate à pobreza e para a construção de uma nova escola
para o século XXI, em que seja escola-função e não apenas escola-endereço.

A idéia central do Programa é estimular a abertura das escolas nos


fins de semana e disponibilizar espaços alternativos que possam atrair
jovens. Essa estratégia resulta da observação de experiências bem-
sucedidas, em vários países, onde o trabalho com jovens, nas dimensões
artísticas, culturais e esportivas, constituiu excelente forma de prevenção
à violência.

Pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, mostra que os


programas de maior êxito são, geralmente, aqueles administrados em nível
local e que envolvem parceiros de todos os setores da sociedade –
empresas, instituições públicas, organizações comunitárias, polícias e
sistema judicial. Estudos do Banco Mundial sobre o combate à pobreza
evidenciam, igualmente, que qualquer projeto de desenvolvimento social
e de combate à pobreza que inclua a participação da comunidade apresenta
resultados sensivelmente melhores do que os projetos implementados
baseados em estruturas hierárquicas verticais.

Não por acaso, portanto, o Programa “Abrindo Espaços” tem três focos:
o jovem, a escola e a comunidade. Prevê a abertura de espaços – sendo a
escola o espaço privilegiado e prioritário, mas não o único – nos fins de
semana para oferecer oportunidades de acesso à cultura, ao esporte e ao
lazer para jovens em situação social. Trabalhar com jovens significa,
também, contemplar, de forma preventiva, as crianças. Afinal, elas poderão,
igualmente, freqüentar algumas das atividades de finais de semana.

201
Manter o jovem em atividades lúdico-recreativas é mantê-lo afastado
das situações de risco e perigo. Mas, além de preventivo, o Programa
tem uma perspectiva transformadora ao pretender modificar as relações
dos jovens com a escola, dos jovens com os próprios jovens e dos jovens
com as comunidades onde vivem.

Os resultados desse Programa nos Estados do Rio de Janeiro,


Pernambuco, Bahia e Mato Grosso, onde já foi implantado, mostram-se
promissores. Apontam o potencial da escola, da comunidade e dos
próprios jovens para transformar o ambiente em que vivem. Talvez não
operem milagres, mas, certamente, contribuirão para a construção de uma
sociedade mais integrada e, portanto, menos vulnerável à violência e à
insegurança.

202
Violências contra a Mulher: Sentidos Múltiplos53

No Dia Internacional da Mulher, serão muitas, espera-se, as


denúncias sobre o quadro de violências contra as mulheres, como os
terríveis dados sugerindo que, no Brasil, cerca de um terço das internações
em unidades de emergência associam-se a casos de violência doméstica.
Que, em 1993, cerca de 123.131 agressões contra mulheres foram
registradas nas Delegacias de Defesa da Mulher – DEAM, de todo o País.
E que viria se ampliando a tipologia de violências contra as mulheres, no
plano do privado e do público. Além dos casos de lesões corporais,
estupros, maus tratos e ameaças, entre outros mais comumente registrados
nas DEAM, também estão sendo noticiados casos de venda e tráfico de
crianças e adolescentes, turismo sexual, exploração sexual de jovens
mulheres em prostíbulos e o “pornoturismo”.

As denúncias de violências e de agressões, as estatísticas e pesquisas


sobre tais ocorrências e também a ampliação do número de DEAM, embora
apresentando algumas carências, devem ser fatos celebrados como recusa
à banalização das violências contra as mulheres.

Discursos vêm se modelando em políticas públicas e acordos


internacionais. No Brasil, segundo a Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos
Reprodutivos, tramitaram no Congresso Nacional cerca de 44 Projetos de
Lei relacionados ao tema Violência e Direitos Humanos das Mulheres,
somente em 2001.

53
Artigo publicado no jornal “Brazilian Times”, EUA, em 08/03/2002.

203
No âmbito internacional, há a Convenção para a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra as Mulheres – CEDAW, de 1979, ratificada pelo
Brasil em 2000 e divulgada amplamente pela UNESCO, em diversos
idiomas, por meio do livro Passaporte para a Igualdade. O documento
considera direito de todo ser humano não somente conhecer tal carta
de princípios como virem as mulheres a apresentar denúncia
individualmente (por meio do Protocolo Facultativo da CEDAW, aprovado
em 1999), perante a Comissão para Eliminação da Discriminação contra a Mulher,
no âmbito das Nações Unidas. O Protocolo, contudo, até hoje foi
ratificado por muito poucos países.

Ao equacionar apelos por igualdade de oportunidades e de


reconhecimento social por direitos humanos às diferenças e à
diversidade, o movimento feminista muito contribuiu para uma cultura
que beneficiasse não somente as mulheres.

A humilhação, a dor, o golpe na auto-estima de uma mulher


reverberam em crianças e jovens, contribuindo para a socialização a
partir de princípios de masculinidade autoritária, de subjugação das
mulheres e de adoção da agressão, esta como forma banal de comunicação.

As tênues fronteiras entre o público e o privado estão sendo


questionadas. A idéia de que violência doméstica é a que se restringe
ao âmbito da família também está sendo revertida. A violência contra a
mulher vem se abrigando em vários cantos da casa “sociedade”. Nesse
sentido, não é a família o locus único de violências contra as mulheres, já
que distintas instituições no mundo público são, hoje, palco de violações
dos direitos das mulheres a uma cultura de paz.

São múltiplos os sentidos das violências contra as mulheres. Muito


se conquistou, no plano legal e de reconhecimento social da diversidade
dos tipos de violências contra as mulheres, mas ainda há muito o que
reivindicar nesse campo.

204
Neste dia 8 de março, nossas congratulações ao Movimento das
Mulheres. Na Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban, as vozes das
mulheres – em particular das mulheres brasileiras – marcaram diferença
significativa, ao lutar pelos direitos humanos, não apenas os seus direitos,
mas o de todos.

205
Desenvolvimento Social e
Direitos Humanos
Democracia, Cidadania e Direitos Humanos54

Para a UNESCO, constitui uma alegria muito grande participar da


promoção do Seminário sobre Direitos Humanos e Cidadania, não somente devido
a sua importância no contexto das modificações profundas que o mundo
vive atualmente, como também por ser um tema que está no topo das
prioridades da Organização.

O tema dos direitos humanos e da cidadania ocupa a mais alta


prioridade na UNESCO e, também, permeia todo o conjunto de suas
atividades, no campo da educação, ciência, cultura e comunicação. E
nem poderia ser diferente porque a UNESCO, desde os primórdios de
sua criação, há mais de cinqüenta anos, iniciou uma longa trajetória rumo
a uma cultura de paz e de solidariedade humana.

E quando se fala em cultura de paz e solidariedade, está implícito


que este objetivo só será alcançado na medida em que, a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, internalizar-se na mente de todas as pessoas e se torne
um lugar comum na luta pela construção de cenários sociais mais justos e
sem nenhum tipo de discriminação.

O que me chama a atenção na formatação deste Seminário, liderado


pelo Conselho Britânico, é o extenso somatório de esforços entre organizações
nacionais e internacionais, do Governo e da sociedade civil, o que sinaliza

54
Discurso pronunciado por ocasião do “Seminário sobre Direitos Humanos e Cidadania”, em
Brasília, DF, em 08/09/1999.

209
que a luta pelos direitos humanos se amplia cada vez mais em direção à
meta que todos nós queremos, ou seja, a universalização da cidadania.

Os organizadores do Seminário foram muito felizes na escolha do


conteúdo e dos conferencistas, reunindo intelectuais, políticos,
governantes de tendências diferentes, condição imprescindível para a
discussão da democracia e da cidadania almejadas, pois o novo cenário
desejado deverá ser edificado em meio a uma enorme diversidade cultural.

Não tenho dúvidas que a grande luta do próximo milênio – e o seu


maior desafio – será o de conceber e construir cenários de cidadania, no
palco de um mundo multifacetado. Todavia, se tivermos a coragem de
reconhecer o potencial criativo de cada cultura, certamente teremos dado
o primeiro passo importante para o estabelecimento de uma ética
universal. Em um mundo, como afirma o Relatório Mundial da Cultura,
coordenado por Pérez de Cuéllar, onde dez mil diferentes sociedades
vivem em cerca de apenas 200 Estados, a proteção e o respeito aos direitos
das minorias devem ser uma preocupação central. Todavia, estes não
podem ser exercidos em detrimento dos direitos das maiorias. Tampouco
oradores tiranos que se fazem de porta-vozes de minorias podem ser
aceitos como representativos de seus povos. A voz da democracia deve
ser muito mais ouvida do que antes, no plano internacional.

Assim sendo, democracia e cidadania constituem dimensões


indissociáveis da ética universal. “O ethos dos direitos universais do homem
proclama que todos os seres humanos nascem iguais e desfrutam de direitos
sem a consideração de fatores como classe social, sexo, raça, comunidade
ou geração. Isso implica que assegurar a todos, condições elementares
para uma vida decente deve ser a preocupação mais importante da
humanidade”.

A UNESCO tem estado permanentemente atenta à necessidade de


fortalecer os valores democráticos, sobretudo numa época de
mundialização das atividades humanas e de encontro das culturas. Foi

210
nesta direção que, em julho de 1997, realizamos, em Brasília, a Cúpula
Regional para o Desenvolvimento Político e os Princípios Democráticos. Desta Cúpula,
resultou o Consenso de Brasília, documento sobre o tema Governar a
Globalização, o qual representa um compromisso a ser assumido diante
da nova realidade de um mundo globalizado.

Finalizando, estou seguro de que este Seminário, por seu conteúdo


e pela qualidade de seus conferencistas, dará uma contribuição importante
à meta pela qual todos nós estamos empenhados, qual seja, o
aperfeiçoamento da democracia e a universalização da cidadania.

211
Uma Nova Ética para o Desenvolvimento55

Os 500 anos do Brasil têm suscitado inúmeros estudos e debates em


todo o País. O objetivo é repensar a experiência histórica brasileira, dar
um balanço dos acertos, erros e omissões, ao longo dessa trajetória, bem
como, gerar um conjunto de idéias, alternativas e caminhos para servir de
suporte aos sonhos e aspirações futuras, necessárias e próprias de cada país.

A coincidência dos 500 Anos do Brasil com a proximidade de um novo


milênio, onde em todo o mundo também se discutem idéias e tendências
para o próximo século, fortalece ainda mais a necessidade de uma profunda
reflexão sobre o significado e o alcance dos primeiros cincos séculos de
existência do Brasil.

Para o estrangeiro e, em especial, para os latino-americanos, o Brasil


sempre se mostrou como uma esperança, capaz de dar uma contribuição
sem precedentes para a aspiração comum de uma América Latina unida e
solidária, em decorrência da identidade cultural gerada a partir de uma
mesma matriz civilizatória, que foi a Península Ibérica. Essa aspiração,
que também é um sonho, sempre esteve presente no povo e na mente dos
melhores intérpretes da América Latina.

Por outro lado, em várias partes do mundo, hoje, ao ensejo da virada


do milênio, ocorrem intensos debates sobre o que parece ser uma aflição
que incomoda a todos, qual seja, o futuro da globalização e da

55
Artigo publicado nos jornais: “Correio Braziliense”, DF, em 08/08/2000; “Jornal do Tocantins”,
em 27/08/2000.

212
mundialização das atividades humanas. Essa preocupação foi o ponto alto
do Encontro de Líderes Mundiais, realizado em novembro de 1999, em Veneza,
como também do Encontro sobre a Governança Progressista, realizado
recentemente em Berlim, na Alemanha. Há um consenso que se generaliza,
de forma crescente, sobre a necessidade de se encontrar caminhos
alternativos. O que é inadmissível do ponto de vista ético, conforme
ainda há pouco observou o Senador Lúcio Alcântara, é que estilos e
fórmulas econômicas em vigência prossigam alijando expressivos
segmentos sociais dos benefícios gerados pela globalização. Sob esse
aspecto, tem razão o Presidente Fernando Henrique Cardoso que, tanto
no encontro de Florença quanto no de Berlim, reivindicou um combate
ao fundamentalismo de mercado, sugerindo uma nova arquitetura financeira
internacional, capaz de dar maior racionalidade aos mercados de capital.

A rigor, o desenvolvimento humano não pode permanecer submetido


às oscilações do capital volátil. A UNESCO, há muito luta pelo advento
de uma ética universal capaz de governar a globalização e possibilitar,
por conseguinte, a compatibilização das necessidades sociais e humanas
com a racionalidade instrumental de mercado. Todavia, adverte o Relatório
Mundial da Cultura, coordenado por Pérez de Cuéllar: “assegurar a todos
os seres humanos, em todo o mundo, condições que lhes permitam levar
uma vida decente e uma existência rica, exige um grande investimento de
energia e amplas mudanças políticas”. É esse, portanto, o desafio que se
tornou urgente superar para que a própria Declaração Universal dos Direitos
Humanos se converta, em um futuro próximo, em ponto de referência das
decisões políticas e econômicas, em escala mundial.

Desse modo, os encontros de Florença e Berlim, reunindo líderes


mundiais e especialistas para debater uma nova via, representam iniciativas
importantes em busca de uma nova ética do desenvolvimento. Da mesma
forma, o Encontro Ano 2000, que será realizado em Brasília, em agosto, sob
a égide do Instituto de Política da Universidade de Brasília, UNESCO e PNUD, o
qual reunirá líderes políticos e especialistas de diversas tendências, do
País e do exterior, configura-se como oportunidade ímpar para pensar e

213
propor uma nova via que leve em conta, como bem observou o cientista
político Augusto de Franco, a necessidade da sinergia entre Estado,
Mercado e Sociedade Civil para que o País possa entrar em um novo
rumo de desenvolvimento.

214
A UNESCO e a Busca de Novas Alternativas56

A UNESCO, ao associar-se ao Instituto de Política e às demais


instituições presentes nesta Mesa de Abertura para a promoção e
organização do Encontro Ano 2000, cujo objetivo é discutir o Brasil e
encontrar caminhos e alternativas que conduzam a um padrão sustentável
de desenvolvimento, tem plena convicção da urgência de reformas
profundas que estabeleçam novos referenciais, tanto no plano econômico
e social, quanto no da ação política, que possibilitem o fortalecimento
de uma sociedade mais justa e eqüitativa.

Os temas que compõem a agenda de discussões do Encontro


procuram direcionar a reflexão no sentido de identificar alternativas que,
fugindo dos radicalismos de esquerda e de direita, possam viabilizar um
Estado verdadeiramente democrático, capaz de impulsionar um
movimento modernizador compartilhado, no qual todas as pessoas venham
a se sentir comprometidas com o bem estar da coletividade.

A UNESCO, há mais de meio século vem, em diferentes continentes


e circunstâncias, lutando em prol do desenvolvimento humano, seja
combatendo o analfabetismo, seja reconhecendo e valorizando a enorme
diversidade cultural entre as nações, seja, ainda, incentivando e
estimulando o desenvolvimento de um pensamento e de uma postura
universitária voltados para a redução das desigualdades sociais. Nessa luta,

56
Discurso proferido por ocasião do “Encontro Ano 2000”, em Brasília, DF, em 10/08/2000.

215
cheia de obstáculos e de reveses, a UNESCO angariou uma enorme
experiência e acumulou um capital social de conhecimentos, o qual
considero imprescindível para a universalização da cidadania. Esta,
todavia, requer mudanças profundas na concepção do que seja
desenvolvimento. O desenvolvimento não pode mais ser entendido em
uma direção unilateral. Ele só tem sentido na medida em que o fim visado
for o bem estar das coletividades. Sob essa ótica, o desenvolvimento
humano não pode permanecer subordinado ao econômico. Reverter essa
situação constitui um dos maiores desafios do próximo milênio e uma
esperança de milhões e bilhões de pessoas, em todo o mundo.

A rigor, o desenvolvimento de uma cultura de paz, que tanto desafia


o idealismo de todos nós, depende de uma nova concepção de
desenvolvimento.

Assim sendo, discutir os caminhos para a conquista da


sustentabilidade, um dos principais objetivos do Encontro Ano 2000, oferece
a oportunidade para repensarmos, em conjunto, a experiência da trajetória
percorrida e os enormes desafios da trajetória a percorrer. Entretanto,
estou convicto que, na medida em que pensarmos a Terceira Via como
uma via humana, seguramente estaremos dando um passo importante em
direção ao que a sociedade espera de todos nós.

Para encerrar, a UNESCO saúda os participantes do Encontro Ano


2000, augurando que este evento dê um passo importante em termos de
novas idéias para o advento de um horizonte mais promissor. Saúda os
conferencistas brasileiros e do exterior que aceitaram nosso convite para
expor e debater suas idéias, em um evento voltado para o futuro. Deseja,
por último, que eventos como esse se multipliquem por todo o País e
pela América Latina devido a sua importância no quadro de incertezas e
hesitações que estamos vivendo.

216
Banco de Tecnologias Sociais57

Esta primeira década do século XXI é dedicada, pelas Nações


Unidas, à promoção de uma Cultura de Paz e Não-Violência. A UNESCO vem
trabalhando incessantemente neste sentido, apoiando iniciativas junto a
pessoas e instituições que trabalham nas áreas de educação, ciência e
tecnologia, meio ambiente e cultura, na busca de soluções para problemas
da população e no apoio à construção de realidades condizentes com as
expectativas de melhores condições de vida para a sociedade.

O Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologias Sociais vem diretamente


ao encontro dos esforços empreendidos pela UNESCO.

Neste momento difícil vivido pela humanidade, os 523 projetos


inscritos para concorrer ao Prêmio de Tecnologias Sociais mostram que as
necessidades existem, que temos vários obstáculos a serem transpostos,
mas que, acima de tudo, existe, no povo brasileiro, a vontade, a
determinação e a capacidade de gerar soluções criativas e eficazes para a
construção de uma sociedade melhor.

Os quinze projetos finalistas representam a excelência no esforço


para melhorar a vida das pessoas e a vontade de prover soluções adequadas
às carências vividas pelas comunidades.

57
Discurso proferido por ocasião da entrega do “Prêmio de Tecnologia Social e lançamento do
Banco de Tecnologias Sociais”, na Fundação Banco do Brasil, em São Paulo, em 06/11/2001.

217
Temos, no mundo, problemas de natureza semelhante, tanto em
países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento. A parceira
construída entre a Fundação Banco do Brasil e a UNESCO permitirá que
soluções formuladas para problemas locais possam estar disponíveis para
sanar necessidades em outros locais, no Brasil e no mundo.

Esta parceira permitirá que os 128 projetos certificados, os quais


formarão o Banco de Tecnologias Sociais, estejam disponíveis para consulta em
todo o mundo. Por serem tecnologias de sucesso, com aplicações
reconhecidamente coroadas de êxito, o Banco de Tecnologias Sociais será uma
fonte de extrema importância para investidores e também para aqueles
que têm a vontade e a responsabilidade de encontrar soluções para as
carências vividas pela população.

Tal Banco conterá, também, um resumo por projeto, traduzido para


o inglês e para o espanhol, o que permitirá a divulgação internacional,
pela UNESCO.

Os autores dos três projetos selecionados pelo júri serão recebidos


na sede da UNESCO, em Paris, para apresentação de seus trabalhos. Estes,
representarão todos os outros e, ainda, todo esforço, dedicação e
competência das pessoas de boa vontade, no Brasil, para a superação de
suas dificuldades, por meio da cooperação e da solidariedade. Nesta
oportunidade, estaremos divulgando a existência do Banco de Tecnologias
Sociais como mais uma iniciativa no âmbito do espírito da Cultura de Paz.

Gostaria, para finalizar, de dirigir um especial reconhecimento a


todos os parceiros envolvidos nesta iniciativa vitoriosa e, em especial,
uma homenagem à Fundação Banco do Brasil que, pelo competente
trabalho de sua Presidente e de sua equipe, possibilitou a realização deste
ambicioso projeto.

218
A UNESCO e a Responsabilidade Social no Brasil58

Desde 1948, a UNESCO vem acompanhando a evolução das agendas


internacionais com uma missão específica: oferecer insumos concretos
para a pacificação das relações internacionais. Poderia tratar-se de garantir
um canal de diálogo entre Leste e Oeste, nos anos mais brutais da Guerra
Fria, quando esta Organização era um dos poucos fóruns em que havia
diálogo entre formas de pensamento opostas e até mesmo excludentes.
Poderia consistir na promoção sistemática do debate sobre Raça e
Racismo, promovendo estudos comparados na África do Sul, no Brasil e
nos Estados Unidos, como forma de trazer novas categorias à produção
sociológica e às políticas públicas nacionais. Poderia adotar a bandeira
de promover o entendimento entre os seus 186 Países-Membros, no
contexto das descolonizações na África e Ásia, nos anos 1960 e 1970,
quando esses mesmos processos geraram tensões, muitas vezes armadas.
Também poderia intensificar o debate intelectual, na esteira das revoltas
estudantis de 1968 e 1969, em todo o mundo ocidental. Ou poderia mesmo
buscar formas de enfrentar o terrorismo internacional mediante a educação
pluralista e a valorização das diferenças culturais, como acaba de acontecer
na última Conferência Geral encerrada em Paris, na semana passada.

Esse capital intelectual e técnico, acumulado ao longo de mais de


50 anos de cooperação internacional, ganha novos matizes quando se trata
de fazer uma contribuição real a sociedades nacionais. Portanto, no Brasil,

58
Discurso proferido na “Reunião com o Conselho de Responsabilidade Social da FIRJAN”, no
Rio de Janeiro, em 13/11/2001.

219
a UNESCO não poderia deixar de se sensibilizar pelo grande problema
brasileiro traduzido nos baixíssimos indicadores sociais e suas
conseqüências sobre a qualidade de vida da população.

É nesse contexto que, em meados dos anos 1990, a UNESCO decidiu


concentrar seus esforços na temática da juventude que aparece, hoje,
como o grande desafio para as políticas públicas governamentais e para as
escolhas realizadas pela iniciativa privada.

Podemos dizer que há três grandes áreas interligadas que vêm sendo
objeto de nossa atuação no Brasil: os altos índices de violência, causada e
sofrida pelos jovens; a juvenilização da AIDS e a exclusão de grandes
parcelas da juventude do acesso a bens de conhecimento e cultura.

Em relação à violência juvenil, decidimos realizar um mapeamento


quantitativo que nos permitisse elaborar um diagnóstico da situação da
violência no Brasil e identificar os gargalos pelos quais escoavam a eficácia
das diversas políticas públicas de diminuição da mortalidade juvenil. Em
seguida, nos dedicamos a estudar as causas desses padrões e a compreender
qual era a percepção – mediante metodologia qualitativa – dos jovens,
dos professores, dos membros de gangues, dos agentes de segurança e de
educação sobre os desafios da juventude nas grandes cidades brasileiras
(por exemplo, Curitiba, Distrito Federal e cidades satélites, Fortaleza e
Rio de Janeiro).

Aprendemos, por exemplo, que o aumento impressionante dos


índices de mortalidade, para cidadãos de 14 a 24 anos de idade, era
particularmente acentuado durante os finais de semana – sendo que uma
das grandes reivindicações desses jovens era a promoção de espaços de
lazer para seu divertimento e sociabilidade.

Por isso decidimos lançar o Projeto Nacional “Abrindo Espaços: Educação


e Cultura para a Paz” o qual consiste na abertura das escolas nos finais de
semana e a disponibilidade de espaços alternativos que possam atrair os

220
jovens em situação de vulnerabilidade social para atividades de cultura,
esporte e lazer. O Projeto Abrindo Espaços propõe medidas capazes de
colaborar para a reversão do quadro de violência e para a construção de
espaços de cidadania que fortaleçam o convívio entre os indivíduos,
incentivando, assim, a solidariedade, educando mediante valores
humanistas e pela possibilidade de expressão da sensibilidade e do talento
individual. O Projeto já existe nos estados do Rio de Janeiro, Bahia,
Pernambuco e Mato Grosso, além da adesão das cidades de Palmas,
Maceió, Natal, Recife, Olinda, Belo Horizonte e São Paulo.

Outros dados que chamam a nossa atenção são os resultados do


mapeamento da violência no trânsito, responsável pela vitimização de
expressivo contingente de jovens em todo o país. No intuito de atuar
nesse campo, estabelecemos um acordo de cooperação técnica com o
Ministério da Justiça e o Departamento Nacional de Trânsito –
DENATRAN, mediante o qual prestamos auxílio no desenho de estratégias
consistentes da inclusão do Trânsito como tema permanente nas escolas
de ensino fundamental.

Tal cooperação possui diversos componentes, alguns dos quais vale


ressaltar. Primeiramente, uma nova proposta pedagógica para trabalhar o
tema com alunos de 7 a 14 anos que será implementada por meio de
núcleos regionais e locais, responsáveis pelo acompanhamento e avaliação
dos projetos junto às escolas participantes. Além disso, o Projeto conta
com um forte componente de comunicação social, qual seja a veiculação
de campanhas sistemáticas na mídia local e nacional.

Em relação à expansão da AIDS, cabe notar as três tendências que


vem se formando no Brasil: hoje em dia, a epidemia deixou de ser
essencialmente masculina e atinge cada vez mais mulheres, jovens e
populações carentes. Essa realidade torna-se dramática quando se trata
de jovens mulheres das camadas sociais mais pobres. A nossa atuação,
neste campo, concentra-se em parcerias estratégicas pontuais. Por um
lado, cooperamos tecnicamente com o Ministério da Saúde para levar o

221
tema AIDS ao sistema educacional brasileiro: trabalhamos com mais de
250 Organizações Não-Governamentais – ONG, produzimos material
educativo, publicamos manuais de trabalho e avaliação de projetos com
jovens, fortalecemos a visibilidade das ações preventivas que o Estado
produz, dentre outra iniciativas.

O mesmo acontece com o Estado e o Município de São Paulo,


além de acordos que estão hoje em andamento com Pernambuco e
Tocantins.

Por outro lado, coordenamos a criação de um Grupo de Parlamentares


para a AIDS (calcado no Grupo de Parlamentares amigos da UNESCO) cujo
objetivo é desenhar legislações inteligentes no campo da epidemia e
consistentes no que diz respeito à defesa dos direitos humanos.

Participamos, também, da criação do Conselho Empresarial para a AIDS,


reunindo mais de 40 empresas que desenvolvem algum tipo de trabalho
preventivo junto a seus trabalhadores. Gostaria de destacar o trabalho da
Nestlé e da Telepar que, com baixíssimos custos, conseguiram desenvolver
projetos interessantíssimos e de amplo alcance para funcionários e
familiares. Dessa forma, realizamos um trabalho de conscientização com
alguns entes privados, cujas ações têm grande impacto público, tais como
a Rede Globo, que vem promovendo o debate sobre o tema da AIDS entre
os jovens, em sua programação de telenovelas.

Criamos, ainda, um grupo de jovens lideranças que se reúnem


periodicamente para sugerir ações direcionadas a este segmento, tanto
por diretores de escola quanto por Ministros de Estado, em Brasília. Este
trabalho tem um importante componente internacional porque,
ultimamente, o Brasil tem estado no centro do debate sobre patentes de
medicamentos essenciais ao tratamento da AIDS. Dessa forma, ajudamos
Moçambique e Nigéria a adotar alguns dos elementos de sucesso que
fazem parte da política brasileira de contenção à AIDS.

222
Finalmente, a nossa última área temática é o problema da exclusão
de grandes parcelas da juventude ao acesso a bens de conhecimento e
cultura. Para se ter uma idéia da carência de acesso à cultura enfrentada
pelos jovens brasileiros, basta conferir os dados do último censo do IBGE:
20% dos Municípios brasileiros não dispõem de biblioteca pública; 70%
não contam com um museu; 75%, aproximadamente, não têm uma casa de
espetáculo ou teatro e a maioria, cerca de 80%, não têm salas de cinema;
35% não dispõem de livrarias, sendo que igual proporção também não
contam com ginásios poliesportivos.

É nesse contexto que decidimos lançar o projeto “Cultivando Vida,


Desarmando Violências”. Durante a realização desses estudos, percebemos que
há, no Brasil, um verdadeiro caudal criativo de iniciativas de baixo custo
e grande eficácia na inclusão do jovem brasileiro em situação de risco à
sociedade e ao sistema educacional, formal e informal. Buscando
identificar essas iniciativas e relatá-las em profundidade, estabelecemos
uma parceria com a Fundação Kellogg, a Brasil Telecom e o Banco Interamericano de
Desenvolvimento, o qual tornou possível o lançamento de um projeto de
pesquisa, sob coordenação da UNESCO.

A publicação é o resultado do estudo de experiências inovadoras


de ONG que trabalham com educação, cultura, lazer, esporte e cidadania.
As experiências mencionadas no livro investem na socialização de valores
e hábitos voltados para uma cultura de paz e para o exercício do direito
a bens e equipamentos culturais, além da profissionalização em áreas como
informática, comunicação, música e dança.

O trabalho continuará a ser divulgado mediante um segundo volume


e resultou em um Banco de Dados sobre iniciativas bem sucedidas, disponível
para consulta em nosso web-site: http://www.UNESCO.org. Também,
nesse sentido, estamos vinculados a iniciativas sociais que, com poucos
recursos, conseguem realizar uma mobilização fundamental para a inclusão
de jovens geralmente excluídos na rota do conhecimento, tais como o
CDI (Centro de Documentação e Informação) que trabalha com

223
informática nas favelas do Rio de Janeiro ou o Edisca, o AffroReagge e o Viva
Rio que resgatam crianças e jovens em situação de risco mediante a dança,
a música e o esporte.

Aqui vale notar que o custo de manutenção mensal de um jovem no


sistema penitenciário brasileiro é de aproximadamente R$1.700,00,
enquanto que as iniciativas relatadas nesse trabalho – que têm caráter
preventivo – custam, aproximadamente, R$159,26 por jovem/mês. As
ONG estudadas acreditam que o patamar ideal de recursos por jovem/
mês deveria ser de R$500,00. Dados da Fundação Getúlio Vargas mostram
que, este ano, o Brasil gastou 1,6% de seu PIB com os efeitos da violência
(incluindo serviços médicos, segurança, justiça, presídios e previdência).

Ainda no campo da exclusão social de jovens, esta semana lançamos


uma Rede de Prefeitos das Cidades Brasileiras que são Patrimônio da Humanidade,
título concedido pela UNESCO, para que possam discutir políticas
capazes de aproveitar essa titulação para reduzir os indicadores sociais
da juventude brasileira, dentre outras iniciativas.

Uma das atividades mais importantes que a UNESCO vem


conduzindo, nos últimos anos, é a realização de avaliações de projetos
sociais. Alguns exemplos são a avaliação do Programa Bolsa Escola do Distrito
Federal, dos projetos sociais do SESI, do Programa de Abertura das Escolas aos
Finais de Semana, no Rio de Janeiro, da vertente educacional do Programa
Nacional de AIDS, do Governo Federal, dentre outros.

Para encerrar a apresentação e abrir uma rodada de perguntas e


respostas, gostaria de sintetizar de que forma a UNESCO pode, com a
ajuda de seus parceiros, pôr em prática projetos conjuntos, aumentando
seu escopo e visibilidade.

A UNESCO tem um portfolio de projetos e pesquisas em sua área


de experiência que soma, constantemente, parceiros da iniciativa
privada.

224
A UNESCO oferece apoio técnico para desenhar, implementar
e avaliar projetos sociais de envergadura, agregando experiência
internacional de seus outros Escritórios.

A UNESCO pode ajudar na disseminação de experiências de


sucesso, tanto no País quanto no mundo, aproveitando o fato de que,
hoje em dia, o Brasil é um País capacitado para exportar tecnologias sociais
para o resto da América Latina e Caribe, África e Ásia.

225
Os Parlamentares e o Futuro das Américas59

É uma honra participar da III Assembléia Geral da Conferência Parlamentar


das Américas – COPA, sobre tema tão atual e relevante que é a questão da
participação da sociedade civil nos projetos de integração regional, os
quais marcam o cenário político do continente americano nestes primeiros
anos do século XXI.

As Américas têm riquezas culturais e naturais inigualáveis, mas ainda


amargam índices de desigualdade trágicos. É por isso, que os projetos de
integração regional, talvez ocupem um dos lugares mais centrais da pauta
sobre o futuro das Américas: eles podem mobilizar recursos humanos e
financeiros para reverter a situação atual.

Nesse contexto, a participação dos parlamentares no desenho desses


projetos não é apenas uma forma de torná-los transparentes e públicos,
mas um mecanismo crucial para que se convertam em oportunidades. Bem
estruturada, a integração regional é, efetivamente, um motor do
desenvolvimento social e humano para as populações.

É esse o marco referencial no qual a UNESCO se soma a esta


Conferência. Nós acreditamos que o desafio de criar um modelo de
integração contemporâneo passa, necessariamente, por grandes áreas
temáticas às quais não podemos nos furtar.

59
Discurso pronunciado por ocasião da “Conferência Parlamentar das Américas: III Assembléia
Geral”, Rio de Janeiro, de 17 a 21 de novembro de 2001.

226
Um exemplo claro é o Programa Internacional de Educação para Todos, cujas
soluções concretas para os problemas do analfabetismo e dos baixos índices
educacionais – que tanto marcam a América Latina e o Caribe – têm
contribuído, na região, para políticas públicas bem-sucedidas. Outro
exemplo são as recomendações do Relatório Mundial sobre Cultura e
Desenvolvimento, o qual oferece um quadro conceitual para usar a diversidade
cultural das Américas em prol da melhoria das condições de vida dos
milhões de cidadãos que habitam o continente. Há inúmeras iniciativas
nos âmbitos local, nacional e regional que transformam esses valores e
princípios em ações, com impactos reais.

Os exemplos mencionados servem para mostrar que a UNESCO


orienta sua luta por compromissos de grande relevância para o futuro das
sociedades. Nessa luta, os parlamentares ocupam uma posição privilegiada
porque, sendo interlocutores das sociedades, têm a capacidade de transitar
com facilidade por suas demandas e anseios. Mais do que isso, o político
conhece as aspirações do povo. É esse o motivo pelo qual a UNESCO
está co-patrocinando e somando-se à realização desta COPA.

O fato deste Encontro ser no Brasil é significativo porque este é


um país que pôde realizar avanços sociais significativos nos últimos anos,
fazendo ampliar as oportunidades de promoção do desenvolvimento.
Dentre esses avanços, creio ser oportuno destacar os Programas Bolsa-
Escola e Bolsa-Alimentação que associam renda mínima à matrícula de filhos
nas escolas e garantem acesso a bens alimentícios básicos; as estratégias
de contenção da epidemia da AIDS; o incentivo ao controle social de
obras de impacto ambiental; a democratização do acesso à informática e
ao conhecimento e um número sem fim de iniciativas sociais de baixo
custo e grande impacto no campo do desenvolvimento social. Assim como
o Brasil, muitos países da região têm condições de mostrar e compartilhar
as “tecnologias sociais” que desenvolveram para melhorar seus índices.

Nesse contexto, o recente sucesso brasileiro na reunião da


Organização Mundial do Comércio – OMC, em relação ao acesso democrático

227
a medicamentos, é um exemplo importante que merece todo o nosso
reconhecimento.

Apesar desses avanços, a globalização ainda é um grande desafio para


o nosso continente. Ainda não conseguimos transformar esse processo em
um processo de inclusão e igualdade para todos. As experiências latino-
americanas e caribenhas de desenvolvimento nos mostram que o crescimento
econômico não basta para tirar milhões de pessoas da pobreza. Há exemplos
claros de que certos fatores são, no mínimo, tão relevantes quanto a afluência
econômica. Dentre eles, podemos citar a participação ativa de redes sociais
de solidariedade e ajuda mútuas, a capacidade de focalizar demandas junto
a governos e entidades da sociedade civil, a garantia de uma vida saudável
e longa, a possibilidade de ultrapassar os próprios limites individuais por
meio da educação, dentre outros exemplos.

O diálogo entre os parlamentares permite explorar os caminhos da


cooperação nas Américas. Sabemos que a cultura é um fator indissociável
do desenvolvimento – sem ela os países não são capazes de avançar, de
incorporar criticamente novas tecnologias, de produzir conhecimento
ou de criar estratégias para seu bem-estar social. Também sabemos que a
cultura é a expressão da diversidade entre os povos e que o nosso
continente é a síntese dessa riqueza.

É esse o contexto no qual a cultura ganha matizes de instrumento


de promoção do desenvolvimento e integração regional. A cultura tem a
potencialidade de construir laços sociais fortes, promovendo a diversidade
e formas não excludentes de crescimento social, econômico e
tecnológico.

Este Encontro é importante na atual conjuntura porque, assim como


todos os parlamentos das Américas assumiram posturas claras no combate
ao terrorismo, é necessário que possam verbalizar sua rejeição à exclusão
social e mostrar às populações que a cooperação multilateral é uma
alternativa factível, de baixo custo e grande impacto.

228
Os parlamentares podem ocupar uma posição sem igual para traduzir
os valores universais e os princípios gerais das Nações Unidas em políticas
práticas e concretas que possam fazer diferença na vida das pessoas.

Os parlamentares podem contribuir, de forma positiva, para


aprimorar a cooperação internacional e para tirar o máximo possível da
globalização, de uma globalização que seja solidária. Os senhores são
afetados pelos problemas e devem ser parte da solução. Este é o fórum
ideal para esboçar possíveis saídas.

Além disso, vale dizer que é nos parlamentos que reside grande
parte da responsabilidade em diluir a reação negativa à globalização a
qual estamos assistindo em todo o mundo. É fundamental mostrar aos
cidadãos das Américas que o cenário internacional está em plena
transformação e que é possível construir um futuro melhor com as portas
que agora se abrem mediante o conhecimento, as telecomunicações, as
mídias e o intercâmbio de experiências.

Nenhum ordenamento regional no século XXI irá vingar se não for


construído sobre as bases da legitimidade e da responsabilidade. Esses
alicerces somente podem ser estruturados se houver participação e
diálogo, não somente dos executivos nacionais, mas de toda a sociedade
e, especialmente, do setor empresarial que deve assumir maiores parcelas
de responsabilidade. Ao realizar a COPA, os parlamentares das Américas
mostram que estão prontos para fazerem a sua parte.

Se fortalecidas em torno de um projeto comum e benéfico para


todos os seus integrantes, as Américas podem, efetivamente, fazer uma
contribuição destacada à paz, à estabilidade e ao desenvolvimento
internacional.

229
A Renovada Força do Multilateralismo60

Não é de hoje que os países do mundo lançam mão do princípio do


multilateralismo como forma de administrar as relações internacionais. A
evolução histórica desse princípio sofreu uma inflexão após os atentados
terroristas do último 11 de setembro, trazendo à tona um debate sempre
atual: como dar vida a ordenamentos internacionais estáveis, regimes
mundiais em que todos os participantes sintam-se devidamente envolvidos
na gestão da ordem?

O multilateralismo de hoje tem amplitude renovada: soma esforços


e responsabilidades para administrar o desenvolvimento social e econômico
global, assim como a paz e a segurança internacionais. A III Conferência
Parlamentar das Américas, realizada de 19 a 21 de novembro, no Rio de Janeiro,
teve este tom de alerta. Reafirmou que o trabalho conjunto e coordenado,
entre países e sociedades, é o caminho para a discussão e a tomada de
posição daqueles que representam as populações, em toda a região.

Durante uma semana, os representantes dialogaram e firmaram o


compromisso de garantir que os projetos de integração regional, em nosso
continente, avancem de maneira igualitária, auferindo responsabilidades
e benefícios às populações. Os parlamentares também asseguraram que
esses projetos tenham por objetivo o desenvolvimento social sustentado,
minando as bases da pobreza, da violência e da exclusão social.

60
Artigo publicado nos jornais: “O Globo”, RJ, em 03/12/2001; “Jornal do Commercio”, PE, em
13/12/2001; “Gazeta Mercantil”, SP, em 17/12/2001.

230
Ficou claro para os participantes da Conferência que, sem boa
governança, os projetos de integração podem tornar-se presas fáceis da
descoordenação internacional e da falta de transparência financeira,
monetária e comercial.

As experiências históricas do multilateralismo remontam ao século


XIX, quando as principais potências européias, mediante uma fina
engenharia diplomática denominada Concerto Europeu, conseguiram assegurar
um século de paz (1815-1914). A eclosão da Primeira Guerra Mundial
inaugurou o século XX e, com ele, uma corrida ao isolacionismo e ao
protecionismo sem precedentes na história moderna. Com o fim da guerra,
em 1919, os países voltaram a apostar na força do multilateralismo, criando
a Liga das Nações – embrião do Sistema ONU.

A Liga fracassou em seus propósitos: suas regras excessivamente


rígidas e sua falta de compromisso com a opinião e anseios dos países
mais fracos, inclusive daqueles que haviam perdido a Guerra, levou o
projeto a pique. Estavam abertas as portas para a corrida internacional
egoísta e ilimitada que resultou na crise econômica dos Anos 30 e nos
projetos nacionais expansionistas que desembocaram na eclosão da II
Guerra Mundial.

Ao fim do conflito mundial, os países decidiram dar uma nova


oportunidade ao multilateralismo, sob a égide das Nações Unidas. Desta
vez, a diplomacia havia aprendido que, somente um ordenamento em
que todos os membros se sentissem incluídos, teria a capacidade de manter-
se estável e em paz. Esta foi uma fórmula bem-sucedida: não somente
manteve-se a paz, em âmbito mundial, ao longo de quase meio século de
Guerra Fria, como também se assegurou a inclusão de dezenas de novos
países oriundos dos impérios coloniais da África e da Ásia. Assegurou-se,
ainda, o tratamento multilateral do racismo e da discriminação, a presença
da educação, da ciência, da cultura, do meio ambiente, da criança e da
mulher na pauta pública internacional, entre outros assuntos.

231
Durante os últimos anos, a lista de participantes da comunidade
internacional, assim como sua agenda, cresceu substancialmente.
Organizações da sociedade civil passaram a ter voz nos principais fóruns
mundiais, novas estruturas supranacionais como a União Européia e o Mercosul
começam a ter identidade própria, temas antes impensados passam a ser
objeto do debate.

Uma das mais surpreendentes mudanças do multilateralismo


contemporâneo, é o surgimento da sociedade civil como partícipe da
diplomacia. Esse processo teve início também no Rio de Janeiro, quando
aconteceu a Conferência sobre Meio Ambiente, em 1992. A série de conferências
mundiais patrocinadas pela ONU vem fortalecendo essa tendência.

O mesmo acontece com os parlamentares. O fim da Guerra Fria


introduziu muitas incertezas às relações internacionais, o que,
naturalmente, tem implicações concretas sobre a diplomacia multilateral.
O mundo está experimentando mudanças dramáticas e ainda não há
consensos sobre o significado dessas mudanças. O momento em que
vivemos, que é de grande elasticidade, abre uma janela de oportunidades
sem igual para um continente em desenvolvimento.

Nesse contexto, os atentados terroristas de setembro são um sinal


de que essa agenda deve expandir-se e que o acesso ao debate deve ser
cada vez mais amplo. A paz e o desenvolvimento resultam da adequação
das situações aos interesses de cada uma das sociedades que compõem o
cenário internacional.

Ficou mais uma vez evidenciado, durante a realização da Conferência


dos Parlamentares, que as Américas têm, hoje, a oportunidade de mostrar ao
mundo os frutos do entendimento multilateral. Sendo a maior zona de
paz do planeta, este continente revela que é factível discutir, abertamente,
os caminhos que todos seus integrantes devem traçar para atingir melhores
condições de vida para suas populações.

232
A Juventude e a Capacitação: aprendizado para a
vida na economia do conhecimento61

Durante muito tempo, o consenso dominante nos organismos


internacionais, nos meios acadêmicos do primeiro mundo e, obviamente,
nas equipes econômicas dos governos do países em desenvolvimento, se
traduzia na expectativa de que o crescimento econômico, por si só,
acabaria corrigindo as profundas e variadas desigualdades sociais
responsáveis pelos déficits crônicos de educação, saúde e de outros
indicadores de bem-estar. Esta fórmula de política econômica utilizava
uma metáfora hidráulica: a fertilização do solo por gotejamento dos
benefícios do crescimento econômico. Este modelo fracassou,
flagrantemente, na América Latina.

A conjuntura atual impõe novos desafios para se pensar as políticas


para a juventude que sejam coerentes com as tendências econômicas,
sociais e demográficas contemporâneas. Os jovens de 15 a 24 anos nunca
foram tão numerosos no conjunto da população. Esse fenômeno nos
permite ver, de forma mais nítida, as distorções que a desigualdade gera
na nossa região, fazendo com que o acesso diferenciado a bens educacionais
e informativos gere um ciclo de desigualdade, exclusão e pobreza. Este
fosso é aprofundado pela vigência, generalizada na América Latina, de
duas políticas para a juventude, paralelas e absolutamente impermeáveis
entre si: para os “incluídos”, programas educacionais, culturais,

61
Discurso por ocasião do “Seminário Liderança Juvenil no Século XXI”, painel: A Juventude e a
Capacitação, Aprendizado para a Vida na Economia do Conhecimento, na Assembléia Anual de
Governadores do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Fortaleza, CE, em 07/03/2002.

233
profissionalizantes e de diversão; para a maior parte dos jovens
“excluídos”, políticas repressivas de segurança pública e justiça. Nos dois
segmentos, mas especialmente no segundo, é necessário que a família, a
escola, o governo, os meios de comunicação, as organizações da sociedade
civil e do setor privado adotem uma nova atitude em relação à integração,
dignificação e valorização da juventude, em seu conjunto. É necessário
destacar que essa atitude, além de ser mais inteligente, é mais racional do
ponto de vista econômico.

No Brasil, por exemplo, o custo de manutenção de um jovem no


sistema penitenciário chega a cerca de US$700 mensais. Dados recentes
da Fundação Getúlio Vargas mostram, por exemplo, que em 2001, o Brasil
gastou 1,6% de seu Produto Interno Bruto com os efeitos da violência. O
vínculo desse mesmo indivíduo a organizações da sociedade civil que
trabalham com o fortalecimento do capital social juvenil, através de
atividades culturais, artísticas e voluntárias, chega apenas a US$60.

Um estudo recente do BID, Fundação Kellogg e a UNESCO revela


que, neste País, a aplicação de US$200 mensais por jovem em situação de
risco, através do trabalho de Organizações Não-Governamentais, seria
satisfatório para manter as experiências com alta qualidade e reproduzi-
las em contextos diferentes. É em tal circunstância que a juventude
aparece, hoje, como um dos grandes desafios para as políticas públicas
latino-americanas, sejam ou não governamentais. A capacitação se coloca,
portanto, em um quadro mais amplo onde a luta contra as desigualdades
econômicas, sociais e de conhecimento é o principal vetor de trabalho
de governos, sociedades e setores privados.

Eu considero que no Brasil há exemplos concretos de políticas


públicas para jovens, estruturadas sob um forte componente de
financiamento internacional e cooperação técnica com agências das Nações
Unidas, capazes de desenhar uma resposta inovadora e, a meu ver, está no
centro do desenvolvimento internacional contemporâneo: a associação
entre estruturas estatais e organizações civis que, conjuntamente, formulam

234
e implementam ações para jovens, de forma descentralizada. Se pensarmos
neste marco conceitual, é possível conceber um programa de capacitação
para atender as necessidades de populações locais específicas e que não
fique limitado a reproduzir conhecimentos e fórmulas elaborados em
escritórios nacionais.

Se o Governo Central souber identificar, selecionar e promover


iniciativas sociais de sucesso, no campo da capacitação – seja profissional,
artística, civil, dentre outras – mediante recursos nacionais e internacionais,
estará gerando uma reação em cadeia muito positiva em cenários de pobreza
e desigualdade, como os que caracterizam nossa região. Um exemplo deste
tipo de preocupação são os trabalhos quantitativos e qualitativos que têm
como objetivo oferecer um mapa das angústias, problemas e aspirações da
juventude, em grandes centros urbanos ou no mundo rural de hoje.

Através desse esforço, a UNESCO vem promovendo várias ações


locais e nacionais para reduzir os índices de violência entre jovens e
aumentar os de inclusão social e participação.

Outra forma concreta, desenvolvida por várias Secretarias de


Educação brasileiras e pela UNESCO, é utilizar os espaços ociosos das
escolas públicas, de regiões com altos índices de violência, durante os
fins de semana. Nessas ocasiões, os jovens e os organizadores se reúnem
para definir as atividades que realizarão ao longo de um período e, com
poucos recursos, se consegue a mobilização de toda a comunidade local.
O resultado é a existência de um espaço de sociabilidade alternativo
onde o jovem pratica atividades culturais, desportivas e musicais, as integra
à escola e as protege como patrimônio de sua comunidade. Esse projeto
incorpora uma inovação ao considerar o jovem como um participante do
debate em torno dos problemas de sua comunidade e da sociedade
contemporânea, promovendo a reflexão criativa em relação ao futuro.

É importante mencionar, ainda, a participação do setor privado que


é fundamental. O setor privado é co-responsável na oferta de

235
oportunidades de capacitação. O exemplo mais significativo no Brasil
talvez seja o da Confederação Nacional da Indústria, através de sua agência do
Serviço Social da Indústria (SESI). São responsáveis pelo maior programa de
capacitação de jovens profissionais em todo o País, e o fazem de forma
exemplar, junto a vários parceiros, dentre eles a Universidade de Brasília e a
UNESCO. As dimensões desta atividade são bastante eloqüentes. Em
2001, foram treinados um milhão, novecentos mil cidadãos.

As ações conjuntas que realizamos para estabelecer um vínculo com


o setor privado, neste programa educativo, têm como premissa um estudo
do Banco Mundial que revela números surpreendentes: cada ano a mais de
educação na vida da população economicamente ativa gera um aumento
da ordem de 20% no Produto Interno Bruto do Brasil. A democratização
das oportunidades de educação é indispensável para abrir oportunidades
de crescimento para a juventude.

A rigor, o grande problema da capacitação é a melhoria dos


currículos e dos professores. Há iniciativas importantes na área, como a
da Secretaria de Educação Média e Tecnológica, do Ministério da Educação.

Para realizar um trabalho desta magnitude, as agências internacionais,


financeiras ou técnicas, podem contribuir de várias maneiras. A primeira,
é assegurar que o País conte com um sistema de identificação de problemas
e oportunidades. Ou seja, mapas quantitativos e qualitativos que permitam
escolher objetivos consistentes com as necessidades locais. A segunda, é
integrar as instituições nacionais aos projetos governamentais. Essas
agências estão em posições singulares para promover a aproximação de
organizações e institutos que trabalham em áreas periféricas, porém,
tradicionalmente não coordenam seus esforços. A terceira, é oferecer
transparência e flexibilidade administrativas para que os projetos possam
avançar rapidamente mediante respostas concretas a problemas específicos.

236
Juventude, Violência e Cooperação Internacional
para o Desenvolvimento na América Latina62

Até bem pouco tempo atrás, a realização de um seminário como


este era impensável na América Latina. O tema da violência e, mais
especificamente, o da relação entre violência e juventude, era apenas
objeto de algumas disciplinas universitárias e dos sistemas públicos de
segurança. Hoje, este assunto faz parte da pauta de todos os setores de
nossas sociedades e, em alguns casos, os problemas relacionados à
violência são compreendidos como obstáculos à promoção do
desenvolvimento sustentado, em nossa região. Os intelectuais e as
universidades da América Latina ainda não produziram um paradigma
suficientemente amplo para se pensar o tema da juventude e da violência,
na atualidade.

Entretanto, é possível assinalar algumas características gerais que


podem ser observadas nestes países.

As formas nas quais a população jovem de um país sofre e produz


violência têm a ver com o tipo de democracia que cada sociedade soube
construir, ao longo dos anos. Isso significa que, pelo menos do ponto
de vista teórico, não parece haver uma saída única para os desafios que
a juventude enfrenta. É possível, sim, pensar em princípios amplos,
capazes de incluir as especificidades nacionais. A minha exposição

62
Discurso pronunciado por ocasião da “Encuentro Latino Americano de Cultura y no Violencia.
Painel: Juventud y Violencia en America Latina”, na Biblioteca Nacional de la Educación
Leandro Valle, Cidade do México, DF, em 15/03/2002.

237
consistirá em um breve panorama deste assunto. Tentarei, também,
indicar possíveis soluções que os países podem encontrar por meio da
ampla utilização da cooperação internacional com agências do Sistema de
Nações Unidas, fundações privadas, instituições financeiras internacionais
e Organizações Não-Governamentais.

AS PERGUNTAS CENTRAIS

Considero que as duas perguntas essenciais para guiar as respostas


às nossas indagações são: quais são os desafios que as democracias da
América Latina impõem, hoje, a seus jovens? E quais são as alternativas
e mecanismos que essas democracias oferecem como saída exeqüível
para a população jovem?

O trabalho que a UNESCO vem desenvolvendo no Brasil, onde,


por uma lado, temos um forte componente de pesquisa social aplicada
e, por outro, um amplo portfolio de projetos para a juventude, sugere
algumas conclusões as quais considero importantes para este debate.

OS DESAFIOS:

1. Exclusão Educacional

Há um círculo vicioso que se formou entre baixos níveis


educacionais, escassas oportunidades de emprego e aumento dos níveis
de pobreza entre jovens latino-americanos. Esta cadeia que se auto-
alimenta é ainda mais perversa quando vemos que muitos dos nossos
países não contam com uma estrutura governamental capaz de oferecer
oportunidades seguras para que os pais possam manter, definitivamente,
suas crianças na escola.

238
2. As Redes de Sociabilidade

Em ambientes de pobreza e desemprego juvenil, as redes de


sociabilidade e proteção de jovens são, geralmente, informais. Nesse
contexto, o sentimento de pertencer a um grupo – que é tão definitivo
na vida de um adolescente – passa, muitas vezes, pelo tráfico de drogas.
Novamente, é gerado um círculo em que a falta de perspectivas vincula
a associação de indivíduos a grupos pertencentes ao mundo da droga,
contribuindo, assim, para os elevados índices de violência.

3. A resposta Repressiva do Estado

Os países da América Latina ainda não equacionaram seus sistemas


de segurança pública com as tendências internacionais mais avançadas.
Parece que ainda se insiste em táticas de repressão que terminam
condenando os jovens delinqüentes a cumprirem penas, sem dar-lhes
garantias de sua reinserção à vida em sociedade.

4. A Discriminação em Relação ao Jovem

A discriminação racial, social, de gênero e idade se faz presente


na vida da juventude latino-americana por meio da programação
televisiva, do sistema educacional, dos serviços que oferece o Estado,
dentre outros.

Na nossa região, a triste realidade é que a ascendência africana ou


indígena aumenta, significativamente, a exposição de um jovem a algum
tipo de agressão física ou violência simbólica. Ser jovem na América
Latina significa estar hiper- exposto ao fenômeno do desemprego, por
exemplo.

239
AS SOLUÇÕES:

Mas, a experiência recente nos dá exemplos de iniciativas bem


sucedidas para reverter as tendências que detalhamos anteriormente.
Podem ser sintetizadas da seguinte maneira:

1. A BOLSA ESCOLA

Uma forma eficaz de assegurar a permanência de crianças e jovens


de comunidades excluídas na escola é garantir a existência de um sistema
de renda vinculado à freqüência e ao desempenho escolar de cada aluno.
As famílias recebem um pequeno “salário” em troca do cumprimento das
obrigações escolares por parte de seus filhos. O efeito deste programa
no Brasil, no México e na Argentina é muito impressionante: não só o
número de jovens vinculados à escola cresceu, exponencialmente, como
as famílias adquiriram uma capacidade de autonomia que, até aquele
momento, não tinham vivenciado.

2. ESCOLA ABERTA

Devido ao fato de que o tráfico de drogas é uma realidade


profundamente estruturada nos países latino-americanos, trata-se de criar
incentivos para que a juventude possa escolher alternativas de
sociabilidade menos brutais. Esta realidade é mais intensa durante os fins
de semana, quando se comprova que os índices de mortalidade juvenil
crescem assustadoramente. Uma saída eficiente no Brasil, tem sido abrir
as escolas durante os fins de semana para a condução de atividades definidas
pela comunidade juvenil. Trata-se de grupos de dança, música, esportes,
teatro, entre outros, que são mobilizados por jovens para jovens. O
resultado indireto deste esforço tem sido uma mudança de mentalidade
que está ajudando a reduzir a depredação das escolas e a comunidade

240
passou a participar de forma mais efetiva na escola, uma vez que é o lugar
de diversão e de criação de laços sociais. O custo deste esforço é
baixíssimo e tem sido realizado pelas autoridades educacionais, os
diretores de escolas, os líderes comunitários e a UNESCO.

3. CULTIVANDO VIDAS

As políticas repressivas para a juventude não só são ineficazes como


seus custos superam, largamente, o de ações preventivas. Na América
Latina, há um grande número de experiências da sociedade civil que são
bem sucedidas quando se trata de romper o ciclo de violência e pobreza
que assola a juventude. Somente no Brasil, a UNESCO identificou mais
de 300 iniciativas que utilizam a música, a dança, as culturas populares e
o trabalho voluntário para vincular jovens em situação de risco a
propósitos criativos. Falando em termos monetaristas, descobrimos que
o custo mensal dessas experiências, por jovem atendido, é dez vezes
menor que o custo de manutenção de um jovem na prisão. Nem é
necessário mencionar o impacto moral e intelectual que tem sobre a vida
de um jovem passar alguns dias, meses ou anos no sistema penitenciário
latino-americano.

4. A PESQUISA COMO INSTRUMENTO DE MUDANÇA


SOCIAL

A discriminação – sob todas as formas – é um fenômeno que está


culturalmente associado à forma de vida das nossas sociedades. É possível
promover mudanças significativas a médio prazo, mas esse tipo de esforço
não pode significar a cópia de modelos bem sucedidos do mundo
industrializado. Para isso, é fundamental ter disponíveis, em nossos países,
mapas de caráter quantitativo e qualitativo que sejam indicadores das
demandas, das angústias e das alternativas da juventude.

241
No Brasil, a UNESCO tem realizado pesquisas sobre violência,
drogas, sexualidade e AIDS nas escolas, nas favelas (zonas urbanas com
altos índices de violência e baixíssimos indicadores sociais), incluindo
pais e professores. As conclusões a que chegamos são muito significativas
e servem para que as autoridades públicas e o setor privado possam orientar
suas ações e suas políticas. Um dos grandes problemas da nossa região é a
ausência de políticas públicas sérias que possam oferecer respostas
concretas para um tema que mata nossa juventude.

Ao promover diagnósticos mediante parcerias entre organismos


internacionais e da sociedade civil, estamos produzindo conhecimentos
importantes porque ilustram a dramaticidade do problema e ajudam a
definir políticas consistentes com as necessidades nacionais. Ao mesmo
tempo, este tipo de pesquisa serve como orientação para que os governos
possam investir recursos financeiros, domésticos e internacionais, para
reverter a situação dos jovens em condições de vulnerabilidade.

Finalmente, não podemos deixar de mencionar o papel estratégico


dos meios de comunicação. Em sociedades altamente mediatizadas, como
as nossas, a televisão, o rádio e a imprensa ocupam um papel fundamental
na disseminação de conhecimentos sobre o tema da violência juvenil e na
publicidade de experiências de sucesso que existem, com maior ou menor
intensidade, na grande maioria dos países. Os meios de comunicação têm
a capacidade de despertar a discussão pública sobre o tema. Eles também
são responsáveis para que a informação que circula pela sociedade observe
os princípios dos direitos humanos e as diversas recomendações
internacionais sobre o assunto. Desta maneira, governos nacionais,
organismos internacionais, instituições financeiras, sociedade civil e meios
de comunicação podem somar forças para propor soluções criativas –
coerentes com os contextos domésticos – ao desafio da violência juvenil.

242
A UNESCO e a Geração de Tecnologias Sociais63

A partir de um determinado momento de sua história, a UNESCO


sentiu a necessidade de ampliar seu horizonte de reflexões e propostas,
de forma a incluir questões e desafios de ordem prática. Se, por um lado,
o debate teórico em torno de grandes questões tornava-se necessário,
por outro, era igualmente necessário gerar conhecimentos e tecnologias
sociais que pudessem contribuir para a solução de inúmeros problemas
inerentes ao cotidiano de grandes contingentes populacionais.

Foi com base nesse pressuposto que a Organização, há alguns anos,


criou o Programa MOST – Management of Social Transformations. Como o próprio
nome indica, trata-se de uma linha de ação comprometida com inovações
capazes de promover mudanças e contribuir para o processo de
transformações sociais.

Estamos vivendo uma época de avanços sem precedentes dos


direitos humanos. As novas tecnologias da informação e da comunicação
estreitam as distâncias e mudam, radicalmente, o horizonte das relações
humanas e sociais. No mundo de hoje, são emitidos, em média, cinco
milhões de correios eletrônicos por minuto. Só este número serve para
aquilatar a magnitude das mudanças em curso.

Uma das conseqüências desse novo cenário – que se expande e se


desenvolve nas águas incertas da globalização – é a necessidade de

63
Discurso proferido por ocasião do “Lançamento da Universidade da Previdência – UNIPREV”,
em Brasília, em 09/05/2002.

243
apressarmos mudanças. A falácia da paciência está chegando a seu termo.
A rapidez das novas tecnologias da informação, aliada a sua crescente
dimensão interativa, eleva, em ritmo incessante, a consciência pública
sobre os direitos de cidadania que foram sabiamente reivindicados e
homologados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, em um
dos momentos mais lúcidos das Nações Unidas.

Essas colocações têm o objetivo de mostrar que o Acordo de Cooperação,


firmado entre a UNESCO e o Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS,
para desenvolver uma experiência pioneira de capacitação dos servidores
do INSS, insere-se no quadro de mudanças que se tornaram inadiáveis
em nosso tempo, qual seja, o de gerar conhecimentos e modelos de
intervenção que, efetivamente, possam corresponder às expectativas dos
segmentos mais pobres da população. É o caso da Previdência Social que
tem pela frente um dos maiores desafios sociais do Brasil. Ela atende,
hoje, bem mais de 1/3 da população brasileira, incluindo pessoas de idade
avançada, incapacitados e trabalhadores rurais. O INSS paga 20 milhões
de benefícios por mês, atingindo um universo de 68 milhões de pessoas.

Havia uma dívida histórica a ser resgatada mediante a ampliação da


cobertura, eficiência e qualidade dos serviços prestados. Tornava-se
necessário um novo desenho de atendimento.

Surgiu, então, a idéia da Universidade da Previdência – UNIPREV, com o


objetivo de instaurar uma comunidade permanente de aprendizagem e
assegurar, a todos os servidores, condições de aprendizagem e auto-
aprendizagem. A UNESCO apoiou esse projeto desde o início, com a
convicção de estar contribuindo para a solução de um problema social.

A metodologia escolhida, após cuidadosa análise de alternativas,


foi a educação à distância, de forma a permitir a cada servidor programar
seu processo de aprendizagem e de educação continuada. Os cursos
oferecidos são orientados e desenvolvidos por cinco centros de educação
permanente, abrangendo as áreas cultural, social, gerencial, institucional

244
e tecnológica. O programa utiliza as mais modernas tecnologias de
educação à distância como as WEB Salas e tecnologias de
videoconferências pela Internet, as quais possibilitam a realização do
curso em qualquer tempo e espaço, em todas as Unidades da Federação.

A utilização de modernas tecnologias de educação à distância, em


países da vastidão territorial do Brasil, possui o mais alto alcance, sobretudo
na perspectiva de oferecer, a todas as pessoas, seja pelo processo formal ou
informal, condições de aperfeiçoamento continuado. As transformações que
se operam, em escala mundial, e que abarcam todos os setores das atividades
humanas, exigem educação continuada. Mais do que isso: exigem educação
de qualidade – chave para a entrada em um novo patamar do
desenvolvimento. A educação à distância permite colocar à disposição de
todos conhecimentos dos mais atualizados, bem como, permite que cada
cidadão programe sua própria aprendizagem, de acordo com suas condições
e possibilidades. Tudo indica que a proposta de Cidades Educadoras, elaborada
pela UNESCO, há mais de trinta anos, comece a se tornar viável.

Por último, quero ressaltar que, se as novas tecnologias ainda geram


receios e hesitações em círculos mais conservadores, não se pode negar o
fato de que elas possuem um alcance social sem precedentes. Elas podem
e devem ser postas a serviço da luta pela redução da pobreza e das
desigualdades sociais. Sob esse aspecto, a experiência da UNIPREV, pelos
resultados já alcançados, indica um caminho e possui força para servir de
referência a outras iniciativas.

Recentemente, esteve no Brasil o Subdiretor Geral da UNESCO


para a área de Educação, o Professor John Daniels, que antes havia sido o
Reitor da Universidade Aberta da Inglaterra. Em conferência no Conselho de
Reitores das Universidades Brasileiras – CRUB, ele teve a oportunidade de chamar
a atenção para o fato de que a tecnologia, hoje, afeta todas as pessoas,
sejam elas ricas ou pobres. É uma força motriz que está mudando a
sociedade. A política educacional precisa incorporá-la, com a maior
urgência e aproveitar sua rica potencialidade.

245
Direitos Humanos e Desenvolvimento64

Nos últimos dias, todo o Brasil acompanhou o lançamento da


segunda versão do Programa Nacional de Direitos Humanos. Trata-se de um novo
salto na trajetória da melhoria das políticas sociais brasileiras e sintetiza
o fenômeno da crescente maturidade da vida pública do País.

Primeiramente, por associar a questão dos direitos humanos aos


problemas mais amplos do desenvolvimento. Como diz o Diretor Geral
da UNESCO, Koichiro Matsuura, o respeito aos direitos humanos é uma
condição indispensável para a paz, a segurança, a estabilidade e a
democracia no mundo e é o objetivo maior do desenvolvimento
econômico, político, social e cultural das sociedades.

Ao aprofundar as tendências lançadas em sua primeira versão (1996),


o novo Programa foi concebido em parceria com a sociedade civil
organizada. Incorpora aos direitos civis e políticos as várias propostas
relativas aos direitos econômicos, sociais e culturais, de acordo com os
resultados da Conferência Mundial de Direitos Humanos (1993).

O Programa amplifica a voz das partes interessadas na formulação,


na implementação e na redefinição de políticas públicas. A criação de
novos conselhos temáticos — como os conselhos nacionais do idoso e da
segurança alimentar — é outra medida que reforça uma ampla participação.

64
Artigo publicado nos jornais: “O Globo”, RJ, em 28/05/2002; “Diário de Cuiabá”, MT, em
06/06/2002; “Jornal do Comércio”, PE, em 07/07/2002.

246
Isso é o resultado de uma maior abertura das estruturas governamentais à
participação social e do fortalecimento e profissionalização da sociedade
civil organizada.

Em segundo lugar, o Programa é fruto de uma análise detalhada de


14 anos de políticas voltadas para a promoção dos direitos da pessoa
humana: desde a Constituição de 1988 até o Plano Nacional de Direitos Humanos
(1996), passando pelo inovador Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).
Com um olho atento a esses marcos legais, o atual Programa incorpora as
lições aprendidas a partir da difícil tarefa de mudar as históricas injustiças
que dividem a sociedade brasileira.

Além disso, o Programa reconhece que a melhoria da questão dos


direitos humanos no País não depende, exclusivamente, da atuação de um
Ministério ou uma Secretaria. Antes, é o fruto de uma série complexa de
ações integradas que contribui para dar um novo perfil à sociedade
brasileira. A universalização do acesso à educação fundamental, a definição
de um modelo inovador de atenção básica em saúde e as políticas
redistributivas que têm por objetivo reduzir as desigualdades entre pobres
e ricos (como as bolsas escola e alimentação em âmbito federal) são o
contexto prático ao qual o programa se soma. A crescente consciência
de que a intervenção isolada não opera milagres representa um avanço na
formulação de políticas sociais.

Outra virtude do Programa é colocar o Brasil na linha de frente da


luta pelos direitos humanos. No momento em que o fantasma da xenofobia
volta a assolar o mundo, o País opta por defender minorias, tais como
povos indígenas, ciganos, estrangeiros, migrantes e refugiados. Como todos
esperamos, o Programa pode fazer do País uma referência internacional
no tema, já que o acúmulo de experiências durante os próximos anos
poderá servir como exemplo para outros países. É por isso que a UNESCO
soma-se à Secretaria Nacional de Direitos Humanos e a inúmeras Organizações
Não-Governamentais – ONG, na implementação dessa política.

247
É fundamental notar que, ao longo dos últimos anos, o Brasil
democrático deixou para trás as posições defensivas em diretos humanos
para assumir uma atitude pró-ativa na construção do regime global de
proteção à pessoa humana. O caso exemplar é o da Política Nacional para a
AIDS, abraçada recentemente pelo Secretário-Geral das Nações Unidas,
Koffi Annan, como modelo eficaz de defesa intransigente dos direitos
do homem.

Se o Programa é uma forma inteligente de conceber a intervenção


pública, isso se deve, em parte, a seu sistema periódico de avaliação.
Tem-se como premissa que a implementação de normas é sempre uma
operação complexa. Esse é um aspecto positivo, na medida em que permite
reajustes continuados e abre o caminho para a necessária busca de opções.

A conjunção entre profissionalismo e criatividade, por parte


daqueles que desenham e implementam políticas públicas, é possível graças
ao uso, cada vez maior, de dados estatísticos e qualitativos. O avanço na
obtenção de interpretações coerentes sobre os desafios que o Brasil
enfrenta tem sido impressionante graças à competência de instituições
especializadas e de pesquisadores do mais alto gabarito.

É com base nessas informações idôneas que Governo e sociedade


poderão somar forças para reverter alguns dos grandes problemas do País,
tais como a violência urbana e a pobreza. Todo programa de
desenvolvimento deveria contar com um núcleo de pesquisa e avaliação
isento de interesses circunstanciais.

Por tudo isso, a agenda que o Programa Nacional de Direitos Humanos traz
é mais do que um marco no avanço contra todas as formas de discriminação
no Brasil. Trata-se de um exemplo concreto de como este País avança na
construção de bons instrumentos para alavancar o seu desenvolvimento
social. É com programas como esse que o Brasil se qualifica como um
laboratório de idéias e ações do qual a sua sociedade, assim como todo o
mundo, pode aprender.

248
Comunicação, Informação e
Liberdade de Imprensa
Democracia e Liberdade de Expressão65

Promover, no mundo inteiro, a livre circulação de idéias é uma das


missões fundamentais da UNESCO. À primeira vista, pode-se ter a
impressão de que essa missão é simples. E de certa forma é, nas nações
democráticas como o Brasil, onde a liberdade de expressão está prevista
na Constituição e costuma ser respeitada pelo Governo e pela sociedade.
Mas há uma realidade mundial ainda desconhecida da maioria dos
brasileiros: prisões, perseguições e ameaças a escritores, jornalistas e meios
de comunicação, em geral. Elas acontecem em países onde a democracia,
quando existe, é frágil.

Em 1997, 26 jornalistas perderam a vida e 185 foram presos no


exercício da profissão. Mais de mil é a soma de tentativas, em todo o
planeta, de violação da liberdade de expressão e de imprensa contra
indivíduos (97 somente na América do Sul). Contra os meios de
comunicação (censura, destruição de prédios, interdições, entre outras
tentativas), a soma é igualmente assustadora: 362. Os dados são da Rede
Internacional para a Liberdade de Expressão – IFEX, grupo de Organizações Não-
Governamentais e profissionais, comprometido com o alerta e a
coordenação de ações contra ameaças à liberdade de informação. O IFEX,
que tem o apoio da UNESCO, possui mais de 300 integrantes, em 92
países, a maioria deles em desenvolvimento.

65
Artigo publicado no jornal “Folha de S.Paulo”, em 03/05/1999.

251
Os casos mais absurdos de atentado à liberdade de imprensa ganham
as manchetes dos jornais, em países onde essa liberdade existe: do
assassinato do cinegrafista Michael Senior – morto no Camboja por filmar
militares saqueando um mercado – ao assassinato de um jornalista, no
recente conflito na Iugoslávia, incluindo a prisão da jornalista nigeriana
Christina Anyanwu (Prêmio UNESCO/Guillermo Cano 1998 de Liberdade de Imprensa),
condenada a uma pena de 15 anos de detenção, por redigir matéria sobre
a tentativa de golpe de Estado contra o governo da Nigéria, em 1995.

Mas há formas menos eloqüentes de atentado à liberdade de


expressão, as quais ficam normalmente longe das bancas de jornal.

O dia 3 de maio, em que se comemora o Dia Mundial da Liberdade de


Imprensa, é, paradoxalmente, um convite para reflexões e debates sobre as
várias formas de violação dessa liberdade. Trata-se daquelas que,
curiosamente, sobrevivem em Estados democráticos e de direito, onde a
liberdade de expressão é defendida abertamente, onde opiniões contrárias
aos poderes vigentes são permitidas, mas onde ainda impera o
constrangimento diante das figuras públicas de maior prestígio e poder.

São as ações mais sutis de controle e de censura que merecem


reflexão nos Estados democráticos. Ameaças veladas ou explícitas de
omissão, censura a matérias e artigos que contrariam interesses políticos
ou empresariais, ou mesmo exposição a pressões e constrangimentos
diversos, são exemplos do que subsiste em países considerados
democráticos.

Não há, por certo, nesses países, leis que protejam, explicitamente,
essas práticas menos truculentas de inibição da liberdade de expressão.
Tampouco há manuais que as estimulem. Mas, algumas ações, mesmo
que esporádicas, impedem o pleno exercício dessa liberdade. Uma
democracia plena e irrestrita prevê, exatamente, o fim da censura de
qualquer tipo – sutil ou agressiva, tácita ou explícita, política ou
econômica, social ou individual.

252
Somente em uma sociedade de cultura democrática – o que envolve
tempo e boa-vontade – é possível falar em liberdade de expressão, em
geral, e liberdade de imprensa, em particular. Leis democráticas, por si
sós, não garantem o livre exercício da expressão do pensamento. É
imprescindível que essas leis, cada vez mais claras e transparentes, venham
seguidas de perto por uma praxis democrática, por um exercício diário de
reeducação intelectual de governantes e sociedade civil, de forma a que
todos passem a compreender as manifestações de pensamento e as
divulgações de fatos como peças fundamentais do jogo democrático.

Enquanto essas peças forem vistas como ameaças à estabilidade da


maioria e aos interesses de uma minoria, nem governo nem sociedade
estarão, de fato, vivendo em um Estado democrático.

253
As Mulheres e o Quarto Poder66

“Ora, pois, uma senhora à testa da redação de um jornal! Que bicho


de sete cabeças será?”, indagava, em 1852, o número de estréia do “Jornal
das Senhoras”, primeiro jornal feminino do Brasil. Dirigido pela argentina
Joana Paula Manso de Noronha, o periódico abordava temas como moda,
literatura, belas-artes, teatro e crítica.

Quase 150 anos depois, a indagação do “Jornal das Senhoras” já foi


respondida em muitos veículos de comunicação, do Brasil e do mundo,
onde as mulheres jornalistas são cada vez mais numerosas. O “bicho de
sete cabeças”, afinal, provou ser tão capaz quanto o “bicho-homem”.

As mulheres conquistaram espaço significativo na imprensa – o


chamado Quarto Poder – e, ao que tudo indica, definitivo. Estima-se
haver, atualmente, mais mulheres do que homens no meio jornalístico e a
tendência é que essa maciça presença feminina cresça ainda mais.

Relatório da Organização Internacional do Trabalho – OIT, divulgado em


Genebra, no último dia 28, informa que o meio jornalístico tem oferecido
oportunidades crescentes para as mulheres, as quais encontram-se entre
os maiores beneficiários do emergente mercado de trabalho criado pelos
novos meios de comunicação.

No Reino Unido, diz o Relatório, “cada vez mais mulheres tornam-


se jornalistas”. O texto cita, ainda, uma pesquisa conduzida em 1998,

66
Artigo publicado no jornal “Folha de S.Paulo”, em 07/03/2000.

254
segundo a qual “mulheres com menos de 35 anos de idade, trabalhando
em jornais, ganhavam um salário médio de 32 mil libras esterlinas, enquanto
seus colegas do sexo masculino ganhavam, em média, 25 mil libras de
salário”.

Sobre a Espanha, o Relatório afirma que, apesar de ter havido um


declínio de 15% na força de trabalho em jornais diários, entre 1992 e
1994, “a divisão das equipes editoriais cresceu de 37% para 46%, e a
proporção de mulheres nessas equipes subiu de 27% para 29,5%”.

Ainda segundo o Relatório da OIT, as mulheres, que representavam


menos de 20% dos jornalistas em Portugal, durante os anos de 1980, agora
compõem mais de 30% da profissão, a qual quadruplicou na última década.

No entanto, a presença cada vez maior das mulheres no exercício


diário do jornalismo ainda não encontra correspondência no comando
dos veículos de imprensa, os quais permanecem, em sua maior parte, em
mãos masculinas. Essa situação reflete, na verdade, a posição das mulheres,
em geral, na sociedade contemporânea, ou seja, elas estão cada vez mais
presentes e atuantes, mas continuam, na maioria dos casos, alijadas dos
altos postos de chefia.

Não por acaso, portanto, a UNESCO decidiu homenagear neste


ano, no Dia Internacional da Mulher, a figura da mulher jornalista.
Recentemente, o Diretor Geral da UNESCO, Sr. Koichiro Matsuura,
lançou um apelo internacional intitulado “As Mulheres Fazem a Notícia”, pelo
qual demonstra o desejo da UNESCO de que, no Dia Internacional da
Mulher, as jornalistas assumam os cargos de chefia nos jornais, revistas e
emissoras de rádio e de televisão.

Considerando o grande impacto dos meios de comunicação na


sociedade atual, a UNESCO acredita na importância particular de se
destacar a necessidade de eqüidade entre homens e mulheres no controle
desses meios. A iniciativa, mesmo que simbólica, ao partir da mídia, terá

255
grande impacto em outras esferas de poder, onde as mulheres ainda não
conseguiram ocupar maiores espaços, sobretudo em posições de comando.

A atenção da UNESCO para com as questões relacionadas às


mulheres também é crescente. A Organização tem dado prioridade a
questões de interesse, apoiado e participado de iniciativas como a 4ª
Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim, China, em 1995; o
Programa da UNESCO “Educação para Todos” reflete, entre outros aspectos,
a preocupação com a extensão da educação a mulheres e meninas; o “Prêmio
UNESCO/Helena Rubinstein a Mulheres Cientistas” é uma forma simbólica de
apelo à eqüidade entre os gêneros, também no campo da ciência; e, no
Brasil, publicações da UNESCO, como “Gênero e Meio Ambiente” e “Engendrando
um Novo Feminismo” estimulam a reflexão sobre questões de interesse para
homens e mulheres, assim como a pesquisa, a ser lançada neste ano, sobre
relações de gênero nos assentamentos rurais da reforma agrária.

No campo da comunicação, um exemplo ilustra a atenção da


UNESCO para a situação das mulheres no exercício da profissão de
jornalista: há dois anos, o segundo “Prêmio Mundial UNESCO/Guillermo Cano
de Liberdade de Imprensa” foi concedido a uma jornalista, a nigeriana Christina
Anyanwu, Diretora e Redatora Chefe da Revista “Sunday Magazine”,
publicada em Lagos, Nigéria.

Nesse contexto, em que se celebra mais um Dia Internacional da Mulher,


convém sublinhar, por fim, que as mulheres, hoje, contrapõem-se a uma
herança sexista, e não aos homens, em particular. Trata-se de vencer uma
cultura, e não exatamente pessoas ou instituições, e essa vitória tem sido
conquistada a cada dia, a cada nova empreitada de sucesso das mulheres
no mercado de trabalho e no ambiente social.

256
Brinquedos Perigosos67

O uso da Internet para conferir mais transparência na administração


pública foi o tema da palestra que Philippe Quéau, Diretor do Setor de
Informação e Informática da UNESCO proferiu em Brasília. Doutor em
holocausto, o inglês Shimon Samuels esteve no Brasil, onde fez palestras
em Porto Alegre e Brasília, sobre a disseminação de idéias preconceituosas
e racistas veiculadas pela Internet.

A preocupação com o uso adequado e pacífico da rede mundial


de computadores é também da UNESCO, que trouxe Samuels e Quéau
ao Brasil. A Organização está alerta não somente para o mau uso da
Internet como de todos os meios de comunicação de massa. O que
fazer para evitar que a sociedade fique exposta a conteúdos indesejáveis
veiculados por meio de uma tecnologia que alcança a todos, de forma
tão intensa e atraente? O que fazer para que ela seja sempre uma aliada
da sociedade moderna?

A censura está fora de cogitação. Ela é incompatível com o Estado


Democrático. Em qualquer lugar e tempo em que foi empregada,
demonstrou ser uma aberração. Mas há alternativas.

A indústria de entretenimento de base eletrônica – nela incluídos


produtores e divulgadores de desenhos animados, filmes, seriados e jogos

67
Artigo publicado nos jornais: “ Zero Hora”, RS, em 28/04/2000; “Correio Braziliense”, DF,
em 02/05/2000; “Jornal A Tarde”, BA, em 05/05/2000; “Gazeta do Espírito Santo”, em
12/05/2000; “Jornal do Tocantins”, em 12/06/2000.

257
eletrônicos – tem de se conscientizar de seu papel de produtora de
conteúdo cultural e assumir responsabilidade correspondente. Produtores
de bem cuidados seriados para televisão, no Brasil e no exterior, baseados
em obras literárias ou scripts de qualidade, nunca se queixam da audiência
que conseguem obter.

Oferecer um produto de qualidade deve ser preocupação,


também, dos exibidores (aí incluídas as videolocadoras), ao selecionar
material para aquisição. A posição dos exibidores como agentes de
mudança é estratégica: à medida que eles se impuserem um padrão de
qualidade orientador de sua programação (ou oferta), deflagrarão um
processo similar entre os produtores, os quais procurarão atender a uma
demanda mais exigente.

Uma ação do governo é, como na maioria dos países do mundo, o


exame do material a ser exibido (inclusive videogames) como a indicação
das faixas etárias para as quais desaconselha a exibição. Nessa direção há
uma ação do Governo que pode ter maior alcance: a campanha lançada
pelo Ministério da Justiça pela adesão das empresas do setor a um código
de ética que elas mesmas elaborem em colaboração com o Governo. Esse
código seria fruto de um processo de “auto-regulação”. Isso significa a
busca de um compromisso dos empresários com a implantação de um
“controle de qualidade” de sua programação.

Por outro lado, a opinião pública brasileira detém o condão para


movimentar as empresas de comunicação na direção desse desejado
controle de qualidade. Afinal, os brasileiros já se acostumaram a reclamar
no PROCON da qualidade de produtos e serviços que adquirem.
Precisam, agora, dar um passo a mais e começar a fazer valer seus direitos
quando prestigiam uma ou outra empresa ao apertar os botões do controle
remoto da TV ou entrar na fila de um cinema.

A responsabilidade social dos detentores da mídia é grande, mas


não isolada. É e deve ser coletiva. Governo, sociedade civil, empresários,

258
todos têm de estabelecer uma parceria solidária. É imperativo que todos
estejam cientes de que com mentes humanas não se brinca – e a mídia
eletrônica às vezes pode ser um brinquedo perigoso, do qual todos,
igualmente, podem ser vítimas.

259
A Sociedade da Informação e seus Desafios68

INTRODUÇÃO

Dificilmente alguém discordaria de que a sociedade da informação


é o principal traço característico do debate público sobre
desenvolvimento, seja em nível local ou global, neste alvorecer do século
XXI. Das propostas políticas oriundas dos países industrializados e das
discussões acadêmicas a expressão “sociedade de informação” transformou-
se rapidamente em jargão nos meios de comunicação, alcançando, de
forma conceitualmente imprecisa, o universo vocabular do cidadão. Uno-
me a todos os que têm procurado desfazer a teia de imprecisões verbais
em relação às mudanças do mundo contemporâneo e, desta forma,
contribuído para destruir mitos que impedem uma consciente participação
nesse processo de mudança. Uma reflexão crítica que permita
compreender as presentes transformações sociais e avaliar suas
implicações, com base em critérios definidos, deverá permitir a integração
de critérios socioculturais e éticos aos econômicos e políticos usualmente
associados à prescrição da “sociedade da informação” e, desta forma,
colocar à disposição do cidadão caminhos para uma participação ativa na
construção de seu futuro.

O ponto de partida nesse artigo é, portanto, definir essa expressão


com o rigor possível no espaço que dispomos. Na seção 3 serão discutidas
algumas das promessas da sociedade da informação que justificam o esforço

68
Artigo publicado na Revista “Ciência da Informação”, Brasília, v. 29, n.2, p. 71-77, maio/ago. 2000.

260
de todos em seu desenvolvimento. As preocupações com a direção que
vem tomando o novo paradigma tecnológico da informação concluem o
artigo que aponta os inúmeros desafios a enfrentar para que a nova
sociedade supere velhas e novas desigualdades.

A “sociedade da informação”

A expressão “sociedade da informação” passou a ser utilizada, nos


últimos anos desse século, como substituto para o conceito complexo de
“sociedade pós-industrial” e como forma de transmitir o conteúdo
específico do “novo paradigma técnico-econômico”. A realidade que os
conceitos das ciências sociais procuram expressar refere-se às
transformações técnicas, organizacionais e administrativas que têm como
“fator-chave” não mais os insumos baratos de energia – como na sociedade
industrial – mas os insumos baratos de informação, propiciados pelos
avanços tecnológicos na microeletrônica e telecomunicações. Esta
sociedade pós-industrial ou “informacional”, como prefere Castells, está
ligada à expansão e reestruturação do capitalismo desde a década de 80
do século que termina. As novas tecnologias e a ênfase na flexibilidade –
idéia central das transformações organizacionais – têm permitido realizar
com rapidez e eficiência os processos de desregulamentação, privatização
e ruptura do modelo de contrato social entre capital e trabalho
característicos do capitalismo industrial.

As transformações em direção à sociedade da informação, em estágio


avançado nos países industrializados, constituem uma tendência dominante
mesmo para economias menos industrializadas e definem um novo
paradigma, o da tecnologia da informação, que expressa a essência da
presente transformação tecnológica em suas relações com a economia e a
sociedade. Esse novo paradigma tem, segundo Castells (2000) as seguintes
características fundamentais:

261
A informação é sua matéria-prima: as tecnologias se desenvolvem
para permitir ao homem atuar sobre a informação propriamente
dita, ao contrário do passado quando o objetivo dominante era
utilizar informação para agir sobre as tecnologias, criando
implementos novos ou adaptando-os a novos usos.

Os efeitos das novas tecnologias têm alta penetrabilidade


porque a informação é parte integrante de toda atividade humana,
individual ou coletiva e, portanto, todas essas atividades tendem
a ser afetadas diretamente pela nova tecnologia.

Predomínio da lógica de redes. Esta lógica, característica de


todo tipo de relação complexa, pode ser, graças às novas
tecnologias, materialmente implementada em qualquer processo.

Flexibilidade: a tecnologia favorece a processos reversíveis,


permite modificação por reorganização de componentes e tem
alta capacidade de reconfiguração.

Crescente convergência de tecnologias, principalmente


microeletrônica, telecomunicações, optoeletrônica, computadores,
mas também, e crescentemente, a biologia. O ponto central aqui é
que trajetórias de desenvolvimento tecnológico, em diversas áreas
do saber, tornam-se interligadas e transformam as categorias segundo
as quais pensamos todos os processos.

O foco sobre a tecnologia pode alimentar a visão ingênua de


determinismo tecnológico, segundo o qual as transformações, em direção
à sociedade da informação, resultam da tecnologia, seguem uma lógica
técnica e, portanto, neutra e estão fora da interferência de fatores sociais
e políticos. Nada mais equivocado: processos sociais e transformação
tecnológica resultam de uma interação complexa em que fatores sociais
preexistentes, a criatividade, o espírito empreendedor, as condições da
pesquisa científica afetam o avanço tecnológico e suas aplicações sociais.
Vale reproduzir um comentário de Castells:

262
É provável que o fato da constituição desse paradigma ter ocorrido nos EUA e, em
certa medida, na Califórnia e nos anos 70, tenha tido grandes conseqüências para as formas
e a evolução das novas tecnologias da informação. Por exemplo, apesar do papel decisivo do
financiamento militar e dos mercados nos primeiros estágios da indústria eletrônica, da década
de 40 à de 60, o grande progresso tecnológico que se deu, no início dos anos 70, pode, de certa
forma, ser relacionado à cultura da liberdade, inovação individual e iniciativa empreendedora
oriunda da cultura dos campi norte-americanos da década de 60... Meio inconscientemente, a
revolução da tecnologia da informação difundiu, pela cultura mais significativa de nossas
sociedades, o espírito libertário dos movimentos dos anos 60. (Castells, 2000, pp.25).

Além do indevido determinismo, incorre-se, muitas vezes, também


em despropositado evolucionismo na discussão do novo paradigma
tecnológico quando a “sociedade da informação” é vista como etapa de
desenvolvimento. Como muito bem alerta Agudo Guevara (2000), melhor seria
referir-se a sociedades da informação, no plural, para identificar, numa dimensão local, aquelas nas
quais as novas tecnologias e outros processos sociais provocaram mudanças paradigmáticas. A
expressão “sociedade da informação”, no singular, seria melhor utilizada, numa dimensão global (ou
mundial), para identificar os setores sociais, independente de sua ubicação local, que participam
“como atores de processos produtivos, de comunicação, políticos e culturais que têm como instrumento
fundamental as TIC (tecnologias de informação e comunicação) e se produzem – ou tendem a
produzir-se em âmbito mundial” (Agudo Guevara, 2000, pp.4).

O determinismo e o evolucionismo distorcem a análise do complexo


processo de mudança social e alimentam uma atitude passiva,
contemplativa, em relação a esse processo. Tais posturas impedem ou
ignoram que a sociedade, especialmente por intermédio do Estado, tem
desempenhado, no decorrer da história, um papel muito ativo, tanto para
promover quanto para sufocar o desenvolvimento tecnológico e suas
aplicações sociais. Isso é particularmente claro no que se refere às novas
tecnologias. O avanço tecnológico no novo paradigma foi, em grande
parte, o resultado da ação do Estado e é o Estado que está à frente de
iniciativas que visam ao desenvolvimento da “sociedade da informação”
nas nações industrializadas e em muitas daquelas que ainda estão longe de
ter esgotado as potencialidades do paradigma industrial.

263
Adotando a sugestão de Agudo Guevara, um olhar sobre a
experiência concreta das sociedades de informação permite revelar como
a reestruturação do capitalismo e a difusão das novas tecnologias da
informação lideradas e/ou mediatizadas pelo Estado estão interagindo
com as forças sociais locais e gerando um processo de transformação
social. Em termos gerais, é consenso entre analistas que a realização do
novo paradigma se dá em ritmo e atinge níveis díspares nas várias
sociedades. Junto com o jargão da “sociedade da informação” já é lugar
comum a distinção entre países e grupos sociais “ricos” e “pobres” em
informação. As desigualdades de renda e desenvolvimento industrial
entre os povos e grupos da sociedade reproduzem-se no novo paradigma.
Enquanto, no mundo industrializado, a informatização de processos
sociais ainda tem de incorporar alguns segmentos sociais e minorias
excluídas, na grande maioria dos países em desenvolvimento, entre eles
os latino-americanos, vastos setores da população, compreendendo os
médios e pequenos produtores e comerciantes, docentes e estudantes
da área rural e setores populares urbanos, adultos, jovens e crianças das
classes populares no campo e na cidade, além daquelas populações
marginalizadas, como desempregados crônicos e os “sem-teto”,
engrossam a fatia dos que estão ainda longe de integrar-se no novo
paradigma (Agudo Guevara 2000). Este fato fundamental constitui um
dos desafios éticos para a constituição das sociedades da informação,
desafio que somente a ação social consciente poderá superar, já que,
certamente, não será resolvido pelo avanço tecnológico em si mesmo,
nem por uma hipotética evolução natural.

A S P ROMESSAS DO N OVO P ARADIGMA

Por que é desejável promover a sociedade da informação?

Passadas as primeiras reações de temor diante dos efeitos da


automação dos setores produtivos, os avanços da informática e da

264
telemática provocaram uma fase de fascinação quase infantil – felizmente,
em grande parte já superada – particularmente nas três últimas décadas,
quando a difusão da Internet nos países industrializados deu suporte ao
sonho de integração mundial dos povos, por meio de infovias globais.
Embora o realismo de estudos e análises tenha, desde aquela época,
contrabalançado o entusiasmo ingênuo, há que reconhecer como, em
grande parte, justificadas as bases e evidências que fundamentam
especulações positivas sobre a sociedade da informação.

Utilizando as características do novo paradigma técnico-


econômico, descrito na seção anterior, pode-se destacar justificadas
expectativas positivas sobre a sociedade da informação. Em primeiro
lugar, a substituição de insumos baratos de energia por informação como
fator-chave do novo paradigma representa, para a sociedade, uma saída
inesperada para a questão estrutural da degradação do meio ambiente.

Se a penetrabilidade das novas tecnologias pode, por um lado,


elevar o temor com possíveis efeitos negativos – a serem analisados na
próxima seção – e até reforçar a inevitabilidade das transformações que
acarreta, por outro lado, fundamenta a concepção da sinergia capaz de
conferir dinamismo ao processo de mudança desde que deflagrado,
reforça a idéia da impossibilidade de integração “parcial” ao novo
paradigma e dá suporte às iniciativas que visam a preparar a sociedade
como um todo para enfrentar e tomar partido das tendências de
transformações técnico-econômicas.

Porque permite implementar materialmente a lógica de redes, a


tecnologia permite modelar resultados imprevisíveis da criatividade que
emana da interação complexa, desafio quase intransponível no padrão
tecnológico anterior. Se isso dá vazão aos sonhos mais delirantes no
âmbito das ciências básicas, das aplicações tecnológicas avançadas e da
estratégia, não deixa também de alimentar sonhos mais prosaicos – e
não menos significantes – como o de, finalmente, permitir a integração

265
ensino/aprendizagem de forma colaborativa, continuada, individualizada
e amplamente difundida.

A flexibilidade que caracteriza a base do novo paradigma é, talvez,


o elemento que mais fortemente fundamenta as especulações positivas
da sociedade da informação. É ela que incorpora, na essência do
paradigma, a idéia de “aprendizagem”. A capacidade de reconfiguração
do sistema refere-se à maior disponibilidade para a incorporação da
mudança. A noção de “aprendizagem” passa a ser empregada em vários
níveis, sendo o organizacional sua aplicação de maior significado na
reestruturação capitalista no novo paradigma.

Obviamente, a flexibilidade também dá fundamento às expectativas


de contínua ‘adaptação de trabalhadores e consumidores, produtores e
usuários, o que coloca o contínuo aperfeiçoamento intelectual e técnico
como requisito da sociedade da informação.

A convergência tecnológica reforça os efeitos da sinergia decorrente


da penetrabilidade das tecnologias na sociedade da informação. Daí é
fácil compreender a fascinação (e o temor) com uma utópica sociedade
informatizada em que não apenas o desenvolvimento tecnológico parece
não ter limites nem desacelerar e, dessa forma, alterar continuamente todos
os processos que afetam a vida individual e coletiva. Se a corrida espacial
frustrou a imaginação popular de viagens interplanetárias ao alcance de
todos no século XXI, os avanços da telemática e da microeletrônica
prometem colocar ao alcance da mão facilidades nunca antes imaginadas
em termos de bem-estar individual, lazer e acesso rápido, ilimitado e
eficiente, ao rico acervo do conhecimento humano.

As características do novo paradigma justificam, para alguns analistas,


a crença de que a sociedade da informação será completamente diferente
da sociedade industrial e que podemos aguardar para breve a
“computopia”, bastando que compreendamos e direcionemos as forças
sociais subjacentes.

266
Uma formulação dessa visão idealizada é a de Masuda (1985), autor
do Plano Japonês para uma Sociedade da Informação, publicado nos anos
70. Nessa utopia, a tecnologia dos computadores terá como função
fundamental substituir e amplificar o trabalho mental dos homens;
permitirá a produção em massa de conteúdo cognitivo, informação
sistematizada, tecnologia e conhecimento. A infra-estrutura pública de
computadores articulados em redes e bancos de dados substituirá os
centros de produção de bens como símbolo societário. A elevação da
capacidade educacional e técnica e de criação de novas oportunidades
econômicas terá o papel desempenhado pela descoberta de novos
continentes e aquisição de colônias na expansão do mercado da sociedade
industrial. A liderança da economia será ocupada pela indústria intensiva
em conhecimento. A produção de informação pelo próprio usuário
ganhará grande espaço e importância na estrutura econômica. O mais
relevante sujeito de ação social será a comunidade de voluntários, não a
empresa ou grupos econômicos, e a sociedade não será hierárquica, mas
multicentrada, complementar e de participação voluntária. A meta social
será a concretização do valor do tempo e não mais a criação de uma
sociedade de alto bem-estar. A democracia participativa substituirá o
sistema parlamentar e a regra da maioria e os movimentos sociais serão a
força por trás de mudanças sociais. Em seu estágio avançado, será uma
sociedade de criação de conhecimento. O globalismo, a harmonia entre
homem e natureza, a autodisciplina e a contribuição social serão os
princípios orientadores dessa sociedade (Masuda 1985: 620-625).

Embora o desenvolvimento nas sociedades da informação tenha logo


mostrado os exageros de uma tal utopia, traços semelhantes são ainda
encontrados em formulações que procuram antecipar a direção das
transformações sociais em curso. É curiosa, por exemplo, a especulação
de Tiffin e Rajansingham sobre as perspectivas que as novas tecnologias
oferecerão no campo da educação.

Os autores chamam a atenção para a sala de aula como um “sistema


de comunicação que torna possível a um grupo de pessoas encontrar-se

267
para falar sobre algo que desejam aprender, ver figuras e diagramas e ler
textos que as ajudem a compreender. Numa sala de aula convencional
isto é tornado possível pelas paredes que dão proteção contra o barulho
e interferência externos, de forma que, aqueles que estão dentro da
sala, podem ouvir e ver uns aos outros e também, no quadro-negro, as
palavras, diagramas e figuras sobre o assunto que está sendo aprendido.
A questão é, pode a tecnologia da informação fornecer um sistema de
comunicação alternativo que seja pelo menos tão eficiente quanto a
sala de aula convencional?” (Tiffin e Rajansingham, 1995, p.6). A
realidade de muitos países justifica uma resposta afirmativa: vários pontos
remotos podem ser conectados graças à telemática em teleconferência
nas “salas de aula virtuais”, seja sob a forma audiográfica mais simples
ou em videoconferências.

A emergência da tecnologia da realidade virtual (RV), na década de


90, levou a previsões quase ficcionais da revolução no processo de educação.

A RV oferece-nos a possibilidade de uma turma encontrar-se na


Floresta Amazônica ou no topo do Monte Everest; poderá permitir-nos
expandir nossa perspectiva de observação até ver o sistema solar
operando como um jogo de bolas de vidro à nossa frente, ou encolhê-
la de forma a poder caminhar em meio à estrutura atômica como se ela
fosse uma escultura num parque; poderemos entrar na realidade virtual
ficcional no papel de um personagem de uma peça, ou na realidade
virtual não ficcional para acompanhar um cirurgião na exploração
microscópica do corpo humano. Usaremos essa extraordinária tecnologia
para fazer avançar o modo pelo qual aprendemos, ou a utilizaremos
para criar versões virtuais de salas de aula convencionais? (Tiffin e
Rajansingham, 1995, pp. 7 e 8).

Em sua especulação, Tiffin e Rajansingham imaginam “Shirley”, a


“aprendiz autônoma” da futura sociedade da informação, vestida em sua
roupa digital e com seu capacete ajustado, assistindo Laurence Olivier
interpretar Hamlet num velho filme preto e branco, uma atividade do
curso “Encenação de Peças de Shakespeare”. Comparando as diferenças

268
entre a encenação do filme com a teatral, ela se indaga sobre como
teria sido a encenação original. Onde era Elsinore?

“Pare”, ela diz, e o filme mantém a imagem da amurada na abertura


da cena do fantasma. “Mapeie”, ela pede, e depois, “Mostre a
Dinamarca”. Em seguida, ordena “Busque Elsinore” e... lá está, exatamente
onde a Dinamarca e a Suécia se defrontam, separadas por uma faixa de
água. “Deve ter sido uma posição muito estratégica”, pensa e vê que o
nome em dinamarquês era Helsingor. Com o dedo, circula Elsinore e,
então diz, “Mostre”, e lá está a vila com o terminal do barco de
transporte e, numa península ao lado do porto, o castelo. Em seguida,
ela circula o castelo e recebe uma planta baixa de todo o terreno e
edificações. Neste ponto, entretanto, uma janela se abre num dos lados
do plano com os seguintes dizeres: “Castelo de Helsingor, Informação
Proprietária do Governo Dinamarquês. Serviços de informação
disponíveis. Todos os principais cartões de crédito são aceitos...” (Tiffin
e Rajansingham, 1995, pp.145).

Apesar das limitações impostas pela apropriação da informação


relevante, a especulação dos autores nos garante que Shirley consegue
“entrar” no castelo e percorrer os lugares correspondentes às referências
feitas em Hamlet, à medida que a peça é virtualmente encenada,
escolhendo ora a posição de “platéia”, ora de ator...

Sem precisar recorrer a formulações utópicas, como as


representadas pelas especulações de Masuda ou Tiffin e Rajansingham, a
reflexão sobre as potencialidades do novo paradigma permite responder
à pergunta que inicia esta seção. É desejável promover a sociedade da
informação porque o novo paradigma oferece a perspectiva de avanços
significativos para a vida individual e coletiva, elevando o patamar dos
conhecimentos gerados e utilizados na sociedade, oferecendo o estímulo
para constante aprendizagem e mudança, facilitando a salvaguarda da
diversidade e deslocando o eixo da atividade econômica em direção
mais condizente com o respeito ao meio ambiente.

269
D ESAFIOS NA C ONSTRUÇÃO DE S OCIEDADES DA I NFORMAÇÃO

Exageros especulativos à parte, é preciso reconhecer que muitas


das promessas do novo paradigma tecnológico foram e estão sendo
realizadas, particularmente, no campo das aplicações das novas
tecnologias à educação. Educação a distância, bibliotecas digitais,
videoconferência, correio eletrônico, grupos de “bate-papo”, e também
voto eletrônico, banco on-line, video-on-demand, comércio eletrônico,
trabalho a distância, são hoje parte integrante da vida diária na maioria
dos grandes centros urbanos no mundo.

A satisfação com tais avanços, no entanto, não deve impedir-nos


de identificar áreas de preocupação com a direção e o ritmo da mudança.
A sociedade vem observando com atenção a evolução histórica do novo
paradigma da informação, e externando, em cada etapa desse
desenvolvimento, suas preocupações reais ou infundadas com as
implicações sociais das novas tecnologias. Independentemente de
aceitarmos ou não a concepção da “neutralidade” ou “ambivalência” da
tecnologia, não se pode ignorar as questões éticas relacionadas a ela.

Os desafios da sociedade da informação são inúmeros e incluem


desde os de caráter técnico e econômico, cultural, social e legal, até os
de natureza psicológica e filosófica. Alguns autores, como Leal (1996)
chegam a formular os desafios éticos da sociedade da informação em
termos de uma múltipla perda: perda de qualificação, associada à
automação, e desemprego; de comunicação interpessoal e grupal,
transformada pelas novas tecnologias ou mesmo destruída por elas; de
privacidade, pela invasão de nosso espaço individual e efeitos da violência
visual e poluição acústica; de controle sobre a vida pessoal e o mundo
circundante; e do sentido da identidade, associado à profunda intimidação
pela crescente complexidade tecnológica. Já outros, como Brook e Boal
(1995) dedicam-se a examinar estratégias de resistência para, como um
novo “luddismo”, lutar contra os aspectos perniciosos da tecnologia virtual

270
acusada de disseminar na sociedade a utilização de um simulacro de
relacionamento como substituto de interações face a face e contra a alegada
usurpação, pelo capital, do direito de definir a espécie de automação
que desqualifica trabalhadores, amplia o controle gerencial sobre o
trabalho, intensifica as atividades e corrói a solidariedade.

Algumas das preocupações acima têm sido transformadas com o


avanço do novo paradigma, incluindo as ações dos movimentos sociais
em reação às implicações consideradas socialmente inaceitáveis. O
desemprego tecnológico e a desqualificação do trabalho, por exemplo,
tendem a ser contrabalançados pelo próprio aprofundamento das
transformações do paradigma, o que inclui uma reestruturação sistêmica
do emprego e a requalificação dos trabalhadores. Em alguns outros casos,
como a perda da privacidade, a sociedade tem-se mobilizado para
promover o que Leal identifica como o “comportamento normal
responsável”, inclusive por meio de legislação adequada para proteger
os direitos do cidadão na era digital. A perda do sentimento de controle
sobre a própria vida e a perda da identidade são temas que continuam
preocupantes e que estão ainda por merecer estratégias eficientes de
intervenção.

Uma questão ética do novo paradigma, não discutida por analistas


como Leal, Brook e Boal, diz respeito ao aprofundamento de
desigualdades sociais, desta vez, sobre o eixo do acesso à informação.
O ritmo do avanço tecnológico no alvorecer do novo paradigma tem
sido, sob qualquer ótica, extraordinário. O ritmo de expansão da Internet
no mundo levou apenas um terço do tempo que precisou o rádio para
atingir uma audiência de 50 milhões de pessoas (Quéau, 1999). A redução
dos preços dos computadores por volume de capacidade de
processamento facilitou grandemente essa difusão, mas não permitiu ainda
superar a relação entre nível de renda e acesso às novas tecnologias. Os
dados a seguir ilustram o contraste em relação ao acesso à informação
pelas populações de países industrializados e em desenvolvimento.

271
Dispondo de uma população algumas vezes maior, os baixos níveis
de renda per capita nos países em desenvolvimento refletem-se em alta taxa
de analfabetismo adulto, baixo acesso à educação formal avançada e à
tecnologia da informação, tanto convencional quanto moderna.

O nível de agregação dos dados anteriores esconde diferenças


importantes dentro do mundo em desenvolvimento, mas mesmo para o
terço mais avançado dentre eles, aplica-se a advertência de Mansell e Wehn
(1998, capítulo 13) para os quais o papel das tecnologias de informação na
construção de uma “sociedade do conhecimento” inovadora poderá ser
muito relevante e contribuir para o desenvolvimento sustentado, mas será
acompanhado de muitos riscos. Nesses países, em especial os de nível médio
de renda – grupo em que se enquadram muitos dos países da América Latina
e Caribe – as novas tecnologias e seus usos requerem investimentos na
elevação das capacidades tecnológicas locais e no desenvolvimento das
instituições políticas, culturais, econômicas e sociais. O avanço do novo
paradigma dependerá de como serão resolvidas as tensões entre as culturas
e modos de organização social existentes e aquelas que começam a se tornar
dominantes. As sociedades desses países terão de adaptar suas estruturas
institucionais para tratar questões importantes como a proteção da
propriedade intelectual. Terão também de examinar a conveniência de
estabelecer um equilíbrio entre suas metas de exportação de produtos e
serviços de maior conteúdo tecnológico com a criação de oportunidades
para ampliar a adoção local das novas tecnologias. Para Mansell e Wehn,
“não se pode esperar de estratégias visando a acelerar a difusão do novo
paradigma que erradiquem a pobreza, em curto prazo, e há riscos de que
as novas políticas e investimentos nas aplicações das tecnologias de
informação introduzam novas forças de exclusão” (pp. 258).

Na sociedade globalizada em que avança o novo paradigma, a


emergência de novas forças de exclusão se dá tanto em nível local quanto
global e requer esforços, em ambos os níveis, no sentido de superá-las.
Ações fundamentais nessa direção são as que promovem o acesso universal

272
Fonte: UNESCO World Communication and Information 1999-2000. Report, p. 281.

tanto à infra-estrutura quanto aos serviços de informação a preços


accessíveis. A conexão internacional dos países em desenvolvimento e
até da Europa está extremamente concentrada em poucos pontos de acesso.
Como não há a exigência de que os operadores desses pontos de acesso
partilhem os custos do circuito completo (até o ponto de acesso
internacional e retorno ao ponto de origem), os provedores de serviços
de Internet nos países em desenvolvimento devem, na maioria das vezes,
pagar pelos custos totais das ligações nos dois sentidos, o que encarece o
serviço e restringe suas possibilidades de expansão (Quéau, 1999). Novas
parcerias e políticas de cooperação internacional deverão ser elaboradas
para estimular o desenvolvimento e fortalecimento de redes intra-
regionais. A instalação de backbones regionais de alta capacidade, por

273
exemplo, permitiria ligar cada país a uma rede global de múltipla conexão
onde ninguém dominaria a conectividade.

O acesso universal ao conteúdo e a fontes de conhecimento aponta


para a necessidade de resolver vários outros desafios. Um dos mais
relevantes, como apontam Mansell e Wehn, é o reconhecimento dos
direitos de propriedade intelectual. Do ponto de vista dos países em
desenvolvimento, uma delicada negociação com os editores deveria
permitir a extensão da legislação relativa ao “uso justo” aos recursos
disponíveis na Internet. A essa negociação dever-se-ia acrescentar ações
visando a difundir, de forma eficiente, princípios “infoéticos” em relação
aos direitos de propriedade intelectual, inclusive na Internet. Uma outra
questão é elevar o volume de informação de qualidade e de domínio
público disponível na Internet no(s) idioma(s) de expressão da população
de cada sociedade. Isso envolverá convencer o governo e centros
produtores de conhecimento financiados por recursos públicos a
tornarem disponíveis ao público as informações produzidas.

No campo educacional dos países em desenvolvimento, decisões


sobre investimentos para a incorporação da informática e da telemática,
implicam também riscos e desafios. Será essencial identificar o papel
que essas novas tecnologias podem desempenhar no processo de
desenvolvimento educacional e, isto posto, resolver como utilizá-las
de forma a facilitar uma efetiva aceleração do processo em direção à
educação para todos, ao longo da vida, com qualidade e garantia de
diversidade. As novas tecnologias de informação e comunicação tomam-
se, hoje, parte de um vasto instrumental historicamente mobilizado para
a educação e a aprendizagem. Cabe a cada sociedade decidir que
composição do conjunto de tecnologias educacionais mobilizar para
atingir suas metas de desenvolvimento.

O fluxo de informação e da transformação dessa informação em


conhecimento está no âmago do mandato da UNESCO de contribuir para a
paz e segurança por meio da promoção da colaboração entre as nações. O

274
benefício da participação na sociedade global da informação requer um
consenso internacional dentro deste amplo mandato. O progresso da
educação, ciência e cultura é fundamentalmente o de compartilhar informação
e de criar novos meios de aprendizagem e conhecimento.

Em decorrência de seu mandato, a UNESCO tem atuado de forma


sistemática no sentido de apoiar as iniciativas dos Estados-Membros na
definição de políticas de integração das novas tecnologias aos seus objetivos
de desenvolvimento. Na UNESCO, o Programa Geral de Informação (PGI)
e o Programa Intergovernamental de Informática (PII), hoje fundidos no
Programa Informação para Todos, enfeixavam as ações desse organismo
internacional em duas áreas principais, conteúdo para a sociedade da
informação e “infoestrutura” para esta sociedade em evolução, por meio da
cooperação para treinamento, apoio ao estabelecimento de políticas de
informação e promoção de conexões em rede.

No espírito da Declaração Universal dos Direitos do Homem,


que constitui a base dos direitos à informação na sociedade da
informação, e levando em consideração os valores e a visão delineados
anteriormente, o novo Programa Informação para Todos deverá prover
uma plataforma para a discussão global sobre acesso à informação,
participação de todos na sociedade da informação global e as
conseqüências éticas, legais e societárias do uso das tecnologias de
informação e comunicação. Deverá prover também a estrutura para
colaboração internacional e parcerias nessas áreas e apoiar o
desenvolvimento de ferramentas comuns, métodos e estratégias para a
construção de uma sociedade de informação global e justa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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lnformacion: reflexiones desde America Latina. ln: SEMINARIO
INFOETICA, 2000, Rio de Janeiro. (s. I. : s. n., 2000?).

275
2. BROOK, James, BOAL, Iain A. Resisting lhe virtual life: the culture
and politics of information. San Francisco: City Lights, 1995.

3. CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade


e cultura. In: A Sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2000. v. 1.

4. LEAL, Fernando. Ethics is fragile: goodness is no. In: KARAMJIT;


S. Gill. (Ed.). Information Society: new media, ethics and
postmodernism. London: Springer, 1996.

5. MANSELL, Robin, WEHN, Uta. Knowledge societies: information


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University, 1998.

6. MASUDA, Yoneji. Computopia. ln: FORESTER, Tom. (Ed.). The


information technology revolution. Oxford: Basil Blackwell, 1985.

7. QUÉAU, Philippe. Including the excluded: for the common


good of all. In: TASKNET CONFERENCE, 1999, Nova Delhi,
Índia. [s.1.:s.n., 1999?].

8. TIFFIN, John, RAJASINGHAM, Lalita. ln: Search for the virtual


class: education in an Information Society. London: Routledge,
1995.

9. UNESCO. (Paris). World communication and information 1999-2000


report. Paris, 1999.

276
Quem está Escrevendo o Futuro – o Papel da Mídia69

É missão da UNESCO atuar em favor da liberdade de expressão,


por meio de palavras ou imagens, como parte integrante de seu objetivo
maior que é o de lutar pela manutenção da paz no mundo. Mas a liberdade
de expressão e do livre trânsito de idéias não pode se dar em detrimento
dos direitos humanos, sobretudo das crianças e jovens, a quem, afinal,
pertence o futuro do mundo. Com isso em vista, a UNESCO estabeleceu
um campo de ação imediata: a prevenção e o combate à violência na
mídia, incluindo a Internet.

Nesse contexto é que a UNESCO ajudou a criar, em 1998, o Fórum


Brasileiro de Ética pela Infância e Juventude na Internet, o ForÉtica, por meio de
parceria estabelecida entre várias Organizações Não-Governamentais,
personalidades e instituições diversas, com o objetivo de prevenir e
combater a divulgação e incitação à violência na Internet, particularmente
o abuso sexual de crianças e adolescentes.

O caráter global da Internet e a extensão internacional da


disseminação de material contendo violência sexual contra crianças
requerem uma ação integrada em nível mundial, da qual as iniciativas do
ForÉtica,no Brasil, constituem apenas uma parte. O compromisso do ForÉtica
é, antes de mais nada, com a defesa de crianças e adolescentes contra atos
de violência.

69
Discurso pronunciado por ocasião do “Seminário Quem Está Escrevendo o Futuro – O Papel
da Mídia”, durante a Mesa-Redonda “As Perspectivas para o Século 21 e o Papel da Mídia na
Construção do Futuro”, Brasília, DF, em 28/06/2000.

277
As soluções para o problema que nos reúne nesse Fórum parecem
apontar em três direções:

A primeira, é a repressão conjugada à mobilização da sociedade e à


responsabilidade ética dos provedores.

A segunda, é mais centrada na prevenção pela conscientização de


pais, professores, estudantes, crianças e adolescentes e pela disseminação
de instrumentos de filtragem, administrados por famílias e escolas.

A terceira, é o estabelecimento de linhas de emergência na própria


Internet e, principalmente, fora dela, nas escolas ou nas prefeituras, ligadas
diretamente à Polícia para registro de reclamações e denúncias e para
atendimento imediato às vítimas.

Um outro aspecto relativo à violência contra crianças e adolescentes


é o impacto da mídia sobre grande parte da população. O “Estudo Mundial
da UNESCO sobre Violência nos Meios de Comunicação” revela que mais de 90%
das crianças têm acesso a um televisor, o que pode facilitar possíveis
influências negativas na formação moral e cultural de crianças e jovens. O
coordenador desse estudo, o professor alemão Jo Groebel, afirma que
não se pode negar o mal que a televisão, em alguns casos, faz à infância e,
apesar de haver recolhido dados preocupantes, Groebel vê algumas saídas.
Duas delas: família e escola. Muito diálogo, orientação e reflexão sobre o
que se vê na mídia são essenciais. A educação para a mídia seria uma
disciplina aconselhável. Mas a censura, segundo ele, não é desejável em
uma sociedade democrática.

No sentido de mobilizar os setores de rádio, jornal e TV para as


questões relativas à violência contra crianças e adolescentes, a UNESCO
tem tido uma atuação direta com os profissionais da mídia, sugerindo a
utilização desses espaços como campo de debates que despertem o
interesse pela política sadia e, também, de divulgação de iniciativas
governamentais e não governamentais que indiquem soluções para
problemas cotidianos.

278
A imprensa, em geral, tem concedido pouco espaço às artes e às
ciências, as quais configuram importantes componentes culturais, capazes
de alterar todo um quadro social. É preciso que os jornalistas tenham
cada vez mais essa visão.

A UNESCO, preocupada com o conteúdo da mídia e suas


conseqüências na vida de crianças e adolescentes, levou a debate público
o tema, por meio da publicação “A Criança e a Violência na Mídia”, a qual
discute questões sobre liberdade de expressão e acesso à informação.
Demonstra, por exemplo, que a violência nos meios de comunicação
contribui para o desenvolvimento de uma cultura global agressiva e chama
a atenção para a necessidade de marcos de referência para a construção
de um projeto social para a juventude.

Por outro lado, na publicação “Inocência em Perigo: Abuso Sexual, Pornografia


Infantil e Pedofilia na Internet”, a INTERNET figura como mais um meio
empregado para o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes,
na medida em que está se tornando o principal meio de intercâmbio sobre
pornografia infanto-juvenil.

É preciso destacar que não são os meios os responsáveis pelas ações


de violência moral, intelectual e física contra jovens e crianças. São pessoas
que utilizam mal esses meios. A violência é um produto da mente humana,
desprovida de valores éticos imprescindíveis para a preservação da vida.
Preocupada com a violência, a UNESCO coordenou e desenvolveu
pesquisas a respeito do tema no Distrito Federal, em Fortaleza, Curitiba e
Rio de Janeiro, com o apoio de diversos parceiros, envolvendo desde
agências governamentais, tais como a Secretaria dos Direitos Humanos do Ministério
da Justiça, organizações da sociedade civil como o Instituto Ayrton Senna,
entre outras instituições internacionais, inclusive agências do sistema Nações
Unidas, como UNAIDS, UNICEF, PNUD, UNDCP, FNUAP, entre outras.

As atividades de pesquisa desenvolvidas pela UNESCO e seus


parceiros têm como finalidade conhecer melhor os problemas acima

279
mencionados, a fim de mobilizar a atenção de instituições públicas,
Organizações Não-Governamentais, empresas, bem como outras entidades,
para a importância de esforços articulados em busca de soluções eficazes
contra a violência que vem envolvendo e eliminando tantos jovens no Brasil.
Esses estudos também contribuem para desencadear o debate e apresentar
propostas de resolução dos problemas que afetam crianças e adolescentes.

Mas, qualquer ação em prol da paz e dos direitos humanos pressupõe


o envolvimento de todos os setores da sociedade: governos, sociedade
civil, empresariado. A violência atinge a todos, e todos devem unir-se
para combatê-la. Isso deve ser feito hoje, para que não se comprometa o
futuro, ou melhor, para que haja realmente futuro.

280
As Mulheres Fazem a Notícia70

Quero falar-lhes um pouco sobre a posição da UNESCO a respeito


da relação de gêneros no campo da comunicação. Nos próximos dias
teremos a oportunidade de aprofundar essa questão. Espero que todos
aqui presentes deixem esta Conferência com um novo ânimo e mais
dispostos a encarar os desafios dessa profissão tão estimulante que é a
de jornalista.

Para a UNESCO, a eqüidade de gêneros significa oferecer, a


mulheres e homens, a meninas e meninos, as mesmas oportunidades para
participar integralmente do desenvolvimento da sociedade e para atingir
a auto-realização. A eqüidade de gêneros, como componente essencial
dos direitos humanos, é uma das chaves do desenvolvimento.

As mulheres têm sido um dos grupos prioritários da UNESCO,


desde a 28ª Sessão da Conferência Geral da Organização, em novembro de 1995.
Promover o livre intercâmbio de idéias e de conhecimento e o acesso
universal à informação têm sido preocupação permanente da UNESCO,
desde a sua fundação.

A eqüidade de gênero nos meios de comunicação implica que os


interesses, preocupações, experiências e prioridades, tanto de homens
quanto de mulheres, sejam incluídos nas coberturas feitas pela imprensa e

70
Discurso proferido por ocasião da “I Conferência Latino-Americana de Mulheres Jornalistas”,
em Brasília, DF, em 03/05/01.

281
que os responsáveis por essas coberturas sejam tanto homens quanto
mulheres. No entanto, na grande imprensa de muitos países do mundo,
há poucas mulheres em posições de decisão e comando.

A UNESCO acredita que essa sub-representação feminina nos níveis


de direção dos meios de comunicação é tanto um sintoma quanto uma
causa da desigualdade entre os sexos e da discriminação contra as mulheres.
A UNESCO também acredita que a comunicação pode ser uma força
motora na promoção da responsabilidade feminina no desenvolvimento,
em um contexto de paz e igualdade.

“As Mulheres Fazem a Notícia” é uma das iniciativas da UNESCO para


aumentar a participação das mulheres e seu acesso à expressão e às decisões
na mídia e nas novas tecnologias da informação. Também promove o
equilíbrio e o retrato não estereotipado das mulheres nos meios de
comunicação de massa. Esses dois objetivos fazem parte da “Plataforma
para a Ação”, aprovada na 4ª Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Mulheres,
realizada em Pequim, em setembro de 1995.

Os mesmos objetivos acima integram a “Plataforma para a Ação”, de


Toronto, por um melhor acesso das mulheres à expressão e à decisão na
mídia. “A Plataforma de Toronto” foi levada a cabo por grupos de cidadãos,
associações de mulheres e profissionais de mídia, de várias partes do
mundo, que participaram do simpósio internacional da UNESCO
intitulado “As Mulheres e os Meios de Comunicação – Acesso à Expressão e à Tomada de
Decisões”, realizado em Toronto, no Canadá, de 28 de fevereiro a 3 de março
de 1995. Tratou-se de uma Conferência preparatória para a de Pequim.

Desde que as Plataformas, de Toronto e de Pequim, foram adotadas pelos


Estados-Membros das Nações Unidas, as oportunidades para as mulheres, no
campo da comunicação, aumentaram significativamente. Houve progressos
também no combate à imagem negativa e estereotipada das mulheres, graças
a orientações profissionais, a novos códigos de comportamento, ao
encorajamento de perfis mais justos das mulheres e, finalmente, ao uso de

282
linguagem não sexista nos programas. No entanto, embora saibamos que em
muitos países, como o Brasil, os avanços sejam significativos, muito ainda
resta a ser feito antes que se possa dizer que a igualdade de gêneros foi
alcançada nos meios de comunicação de todo o planeta.

283
Educação para a Mídia: Responsabilidade de Todos71

Esta máxima vem sendo negada, diariamente, no mundo do show business


onde matar e morrer, das formas mais exóticas, parece render bilhões de
dólares em todo o planeta. Na ficção do cinema, da TV, do videogame e
das imagens da Internet, a violência explícita e gratuita é uma das mais
lucrativas formas de entretenimento. Brinca-se de matar. Brinca-se de morrer.
Enquanto isso, no mundo real, crianças e jovens habituam-se a essa
banalização da violência e, em casos extremos, imitam a ficção.

Foi assim, há poucos dias, com o menino de nove anos, morador de


um bairro periférico do Distrito Federal, que esfaqueou a vizinha dois anos
mais nova, três dias depois de assistir, impressionado, ao filme “Brinquedo
Assassino 2”. O ato praticado pelo garoto de Brasília deixou perplexos os
que conheciam e não esperavam dele tal atitude. Como de praxe, culpou-
se a mídia. Mas seria ela a única responsável pelo que aconteceu?

Reações emocionadas à parte, sobre esse fato e outros semelhantes,


há vários aspectos a considerar: o papel da escola, da família, da mídia
(incluindo a imprensa e os produtores – autores de filmes, séries ou
programas), do Governo e da sociedade. Todos somos igualmente
responsáveis e vítimas do excesso de violência na realidade e na ficção.

Tome-se a responsabilidade da escola. Não existe, atualmente, uma


“educação para a mídia” – ou seja, os professores, em geral, não orientam

71
Artigo publicado no jornal “A Tarde”, BA, em 7/10/2001.

284
adequadamente os alunos para um melhor aproveitamento dos recursos
educativos da TV, do cinema, do vídeo, ou da Internet. Nem sempre
educam os estudantes do ponto de vista da estética e do conteúdo da
programação oferecida. Isso ajudaria, de alguma forma, a formar um
público infanto-juvenil mais crítico e menos suscetível à influência, às
vezes negativa, dos meios de comunicação de massa.

Os pais, da mesma forma, confiam demasiadamente na “babá


eletrônica” e deixam os filhos ver na TV tudo o que querem. Tampouco
fazem em casa o papel de educadores. É preciso respeitar as recomendações
do próprio Ministério da Justiça com relação à classificação dos filmes. Postura
semelhante deveria ser adotada em relação ao cinema, aos videogames e
ao uso da Internet. As crianças não podem escolher tudo o que desejam
ver e fazer. Necessitam de orientação mais adequada. Os pais não podem
se furtar a esse papel.

A mídia eletrônica (incluídos provedores, sites, fabricantes de


videogames, entre outros), por sua vez, não é “vilã” sozinha, embora
tenha grande responsabilidade. Deveria ser mais criteriosa. Nesse sentido,
a auto-regulação proposta pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos merece
ser levada em consideração. Evidentemente, precisa-se considerar,
também, as limitações comerciais das empresas (limitações legítimas e
compreensíveis). Mas a falta de critério não pode ser uma regra. Há
enlatados que jamais deveriam deixar as “prateleiras”. São de qualidade
sofrível. Por outro lado, há produções comerciais de excelente nível e
detentoras de boas audiências. Mesmo os enlatados podem ser
selecionados, de forma que a violência não seja a única protagonista do
horário nobre. Há filmes românticos e de aventura que não chegam a ser
apelativos. É preciso levar em conta, igualmente, que o Brasil adquire
grande parte da produção atualmente exibida na mídia. Portanto, não é
uma característica tipicamente brasileira consumir programas de baixa
qualidade. Esses programas, muitas vezes, vêm do estrangeiro, onde são
produzidos. Seria necessário que em seus países de origem houvesse uma
conscientização no sentido de se reduzir a produção em massa desses

285
produtos de má qualidade. O argumento de que eles dêem lucro deveria
ter menos peso diante de comédias românticas ou super-produções, tais
como Titanic ou A Lista de Schindler, por exemplo, igualmente comerciais,
mas que não exploram a violência gratuita, tampouco o sexo explícito,
recordes de bilheteria.

O papel do Ministério da Justiça é fundamental neste momento. Sem


defender qualquer tipo de censura, a qual é inaceitável, o Governo pode
ser o estimulador e o mediador de uma espécie de pacto entre as empresas
de comunicação para que todas disputem fatias de mercado sem apelar
para o excesso de violência. Se todas cumprirem o pacto, só terão a ganhar.

A UNESCO, tradicionalmente, defende a liberdade de expressão e


é contra qualquer censura ou moralismo. Sabe, no entanto, por meio de
diversas pesquisas, no Brasil e em outros países, que o excesso de violência
gratuita nos meios de comunicação contribui para o embrutecimento moral
e intelectual de crianças e jovens, sobretudo aqueles que vivem em ambiente
mais propício ao desenvolvimento de uma personalidade agressiva.

Por outro lado, se o produto ruim persiste é porque existe


consumidor para ele. Esse consumidor precisa conscientizar-se de que
está diante de um produto de segunda categoria, estética e eticamente. A
indiferença da sociedade diante de produtos de má qualidade é
preocupante. Se um consumidor vai ao supermercado e leva um produto
estragado para casa, ele tem o direito de reclamar, e normalmente reclama
– ou na própria loja ou no PROCOM. Mas, se recebe um produto de
segunda linha, via TV ou via Internet, por exemplo, aceita-o passivamente.

Nesse sentido, a própria imprensa é responsável pela perpetuação


desse comportamento ao dar destaque a pseudo-heróis que empregam a
truculência para vencer o adversário; ao dar espaço para futilidade
excessiva; ou ao explorar escândalos pessoais, sem maior importância para
a vida social e política de um país. Converter a notícia em mais um aspecto
do showbizz.

286
Portanto, se cada ator social assumir sua parcela de responsabilidade
sobre o que se veicula nos meios de comunicação, será mais fácil torná-
los aliados da educação para a arte, a cultura, a ciência, o meio ambiente,
os direitos humanos e, por conseguinte, a paz.

287
Liberdade de Imprensa: o Exemplo de
Carlos Heitor Cony72

Falar sobre liberdade de imprensa, em um local como este e para


uma platéia como esta, é um privilégio e também uma grande
oportunidade. Afinal, a liberdade de imprensa é a própria essência da
liberdade de expressão e o ambiente universitário não pode nunca viver
sem liberdade para exprimir seus conceitos, travar seus debates, aprofundar
o conhecimento e buscar novas verdades.

A liberdade de imprensa é elemento fundamental das sociedades


democráticas. Nem sempre o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, dia 3 de
maio, foi comemorado. Acredito que seja sempre bom comemorar esta
data, como um simbolismo de tudo o que significa para os cidadãos a
livre expressão.

É por isto tudo que estamos aqui hoje. Esse dia existe para nos
lembrar, sempre, que só com uma imprensa livre é possível denunciar os
erros e corrigi-los. E que só com uma imprensa livre é possível tomar
conhecimento de todas as idéias e informações que nos permitirão, como
cidadãos, tomarmos as melhores decisões e escolhermos os caminhos que
julgarmos mais adequados.

Rui Barbosa falou, em conferência sobre A Imprensa e o Dever da Verdade,


que não exagerava quem dissesse “que a imprensa é a garantia de todas as
liberdades”.

72
Discurso proferido por ocasião da comemoração do “Dia Mundial da Liberdade de Imprensa”,
em Brasília, DF, em 03/05/2002, no UniCEUB.

288
A liberdade de expressão começa na escola. É em escolas como o
UniCEUB, em Brasília, no Brasil e no resto do mundo, que os jovens buscam
o conhecimento para se lançar à vida adulta e para enfrentar uma sociedade
cada vez mais competitiva.

Neste processo de busca do aprendizado, neste ambiente de debate,


a liberdade de expressão é fundamental. É impossível imaginar uma
faculdade ou estudantes universitários sem liberdade para ensinar e
aprender. Ou melhor, é até possível, pois, infelizmente, existem ou já
existiram países onde a educação e a transmissão do conhecimento se
dão sem a liberdade. E o resultado, vocês podem estar certos, é o pior
possível, pois educar sem liberdade é como limitar o oxigênio que
precisamos para respirar.

Para nós da UNESCO, que trabalhamos pela educação, pela ciência


e pela cultura em todo o mundo, a liberdade de debater, de transmitir o
conhecimento, de exprimir toda a diversidade do conhecimento humano
é vital como o oxigênio. Em situações de conflito, a responsabilidade
dos meios de comunicação de proporcionar uma informação independente
e pluralista ganha ainda maior importância.

Eu dizia, ao iniciar estas palavras, que a liberdade de imprensa é a


própria liberdade de expressão. O melhor termômetro do grau de
liberdade de uma sociedade é a sua imprensa, seus meios de comunicação.
Se os meios de comunicação são totalmente livres para transmitir toda e
qualquer idéia ou informação, dentro do bom senso ditado pela ética e
pela responsabilidade, aí, sim, podemos dizer que temos uma sociedade,
um país, realmente livre.

Imaginemos uma situação na qual a liberdade de qualquer um de


nós seja impedida, em seus níveis mais cotidianos, àqueles mais sofisticados
ou complexos. Da possibilidade de reclamar de um produto que
compramos e que não atendeu às nossas expectativas, ao desejo de lutar
por mudanças estruturais em nossa sociedade. Sem meios de comunicação

289
absolutamente livres, nem uma coisa nem outra seria possível. Se achamos
alguma liberdade desrespeitada, sempre haverá defensores na imprensa,
denúncias, protestos. É aos meios de comunicação que sempre recorremos
para exercer, na plenitude, nossa liberdade. Sem imprensa livre, está
comprometido todo e qualquer exercício de liberdade, está inviabilizada
a própria democracia.

Meios de comunicação livres, desobstruídos de qualquer


impedimento político, ideológico ou econômico, permitem a circulação
das idéias, das informações e do conhecimento. Ou seja, é a liberdade
que mantém saudável uma sociedade, que permite a ela crescer,
desenvolver-se e buscar a prosperidade, dentro do que a maioria dos seus
cidadãos considera justo e correto.

Por ocasião do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, reafirmamos que


essa liberdade constitui um aspecto indispensável da liberdade de
expressão, noção mais vasta, direito que qualquer um adquire ao nascer e
um dos fundamentos para o progresso humano.

Nossa comemoração inclui uma exposição de um dos melhores


fotógrafos do país, Ubirajara Dettmar, na galeria Luís Beltrão, aqui no
UniCEUB. Esse fotógrafo apresenta cenas urbanas de Nova York, sempre
buscando o ângulo certo, o momento perfeito para acionar a sua câmara.
O fotojornalismo é elemento fundamental na diversidade da expressão
dos meios de comunicação.

Foi, também, para comemorar o Dia 3 de maio deste ano e marcar


junto a vocês, estudantes universitários, o compromisso da UNESCO
com esta e todas as outras liberdades, que convidamos o escritor e jornalista
Carlos Heitor Cony para vir aqui ao Ceub expor suas idéias e debater.

Cony é um dos melhores escritores e jornalistas brasileiros, além


de ser integrante da seleta lista de imortais da Academia Brasileira de Letras.
Alguém que faz da palavra sua ferramenta diária e para quem a liberdade

290
de imprensa é o oxigênio essencial a que me referi. Atravessou momentos
difíceis neste País, quando não havia esta liberdade que hoje parece tão
natural, mas que, quando não temos, é que mais valorizamos. É olhando
para o passado que percebemos que não podemos nunca deixar de valorizar
a liberdade de hoje.

Carlos Heitor Cony é um humanista no sentido mais puro da palavra,


daqueles que, mesmo céticos e muitas vezes decepcionados com o ser
humano, não vêem outra saída a não ser acreditar neste mesmo ser humano.
Humanistas como Cony só são possíveis com liberdade.

Seus livros, suas crônicas nos jornais, suas participações no rádio e


na televisão, são exemplos diários do bem imenso que a liberdade de
imprensa faz para todos nós. Cony critica, elogia, nos faz refletir, enfim,
nos torna melhores.

Há um livro dele, talvez o mais conhecido, que é o Quase Memória.


Um livro singelo e de homenagem a seu pai. Por sinal, jornalista de quem,
certamente, herdou o talento e o gosto pela palavra escrita. Pois, em
Quase Memória, Cony cita uma frase que seu pai repetia todas as noites, ao
dormir, como uma espécie de estímulo diário a si mesmo. Dizia o pai de
Cony: “Amanhã farei grandes coisas”.

Eu acho que é este espírito – de que podemos e devemos fazer grandes


coisas – que deve nortear vocês, estudantes universitários. Os sonhos e as
utopias estão aí para serem alcançados. E a liberdade, que nós hoje
homenageamos na figura deste grande homem de idéias que é Carlos Heitor
Cony, será sempre fundamental para que vocês alcancem grandes objetivos.

291

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