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Entre a Stutisfera Navis e a Navilouca:

contribuições de Michel Foucault para os


experimentalismos poéticos brasileiros na década
de 1970
Fábio Leonardo Castelo Branco Brito
Doutor em História Social – UFC
Professor da UFPI – CSHNB/PPGHB
Membro do GT “História, Cultura e Subjetividade” (DGP/CNPq)
 A segunda metade do século XX e a emergência de novas
configurações políticas, filosóficas e estéticas.

 A publicação de Folie et déraison: histoire de la folie à l’âge


classique em 1961 e sua republicação em 1972,
repercutindo em diferentes dimensões de pensamento.

Introdução – Uma
 Nessa tentativa de historicização dos processos que
história da conformaram diversos sujeitos como “impuros”, cuja
loucura ou a nau necessidade era apartá-los da sociedade, Foucault dedica
o primeiro capítulo do livro aos discursos produzidos a
da linguagem em respeito de diferentes males que assolaram o mundo
ocidental desde meados da Idade Média: primeiro a lepra,
desrazão mal físico degenerativo e contagioso, que, com aval do
Estado e da Igreja Católica, levava à exclusão de seus
portadores do convívio social. Seguido a ela, as doenças
venéreas, males que chegavam a causar repugnância aos
próprios leprosos. E, por fim, a loucura, que, ao lado das
doenças venéreas passavam a ocupar, para além da
própria degeneração física, espaço moral de exclusão.
 Após período de lactância, de buscas novas de
compreensão sobre o fenômeno, o autor indica ser a
Renascença, ou Idade Clássica, o período no qual os
processos de divisão, exclusão e purificação
configurassem um objeto, de valor simbólico, que
aparece na paisagem imaginária do período: a Nau dos
Insensatos (Stutisfera Navis), “estranho barco que
Introdução – Uma desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos
canais flamengos”. Ainda que a ideia das antigas naus
história da remetesse à figura onírica dos navegantes heroicos,
loucura ou a nau essa instituição imaginária ganharia forma justamente
como parte dos processos de invenção de um outro
da linguagem em regime de verdade que incidia sobre sujeitos cuja
desrazão instrumentação psíquica escapava aos modelos
vigentes. Ao mesmo tempo objeto do medo da
população sujeitada à norma e de fascínio por parte
dessa mesma população, os loucos, aqui descritos em
sua nau, passam a ocupar dimensão muito particular
dentre os modos de existência do período.
 A existência errante dos loucos e a errância dos
veículos culturais de invenção no Brasil: Klaxon (1922-
1923), Revista de Antropofagia (1928-1929), Noigrandes
(1952-1962) e Invenção (1962-1967).

O almanaque dos  A proposta da Navilouca: gestada por Torquato Neto em


aqualoucos: por 1972, em sua internação no Sanatório Meduna, em
Teresina, e sua efetivação em 1974, por Waly Salomão.
dentro da
Navilouca  “[...] ‘Navilouca’, título que pesquei da ‘Stutisfera Navis’
que Michel Foucault escrutinou na ‘História da Loucura
na Época Clássica’, mas o dito paquete ficou fotolitado
e encalhado na areia movediça do começo dos anos 70.
[...]” (SALOMÃO, 1995, p. 13)
 A Navilouca, palavra-poema que nele teria inspiração,
comportaria experimentos estéticos que, em igual
medida, buscavam corresponder não apenas a uma
tentativa de revolução brasileira através do conteúdo,
tal como outrora propuseram movimentações como o
Teatro do Oprimido ou os Centros Populares de
Cultura, mas, em outra linha, uma revolução pela forma,
capaz de contemplar a experimentação de novas
O almanaque dos estruturas em tempos de turbulência.
aqualoucos: por
dentro da  “Meu receptor pretendido é o beautiful people.
Navilouca Impreciso indefinido transitório mas mesmo quero...”
(SAILORMOON, 1974)

 A remetência foucaultiana às artes e sua inspiração,


para a História da loucura, no Nascimento da tragédia, de
Friedrich Nietzsche, como recusa dos paradigmas da
modernidade e concepção da modernidade trágica.
Loucura é o canal da lucidez.
Vértice do triângulo
onde explodem as estruturas e sanguifica o ser.
Uma pontada aguda.
O passo por cima da cerca, ritmo segue
Fazer alguma coisa como tudo, fazer tudo.
Imagem do tempo num raio, dia, coração.
Pulsação, sangue correndo nas veias.
Energia, espaço, movimento dos dedos da mão, dos pés, dos braços,
O almanaque dos pernas.
Cabeça, tronco, membros.
aqualoucos: por Contato com o próprio olho, ver-vendo.
Consciência, memória, pensamento num jato de sonho.
dentro da Quando você descobre a sua respiração, com o ouvido na areia
/ouve o canto grande vindo da boca do mundo.
Navilouca Imã enviado por Deus para ajudar a saltar na terra.
Quando duas mãos sobre a mesa querem te apertar, você cria asas,
voa e as mãos se agarram nervosas.
Ponto de luz.
Quando você vai entendendo tudo
/quando a claridade vai entrando pela janela, pela boca
pelo útero, pela palavra, pelo universo, pelo enfim de tudo.
(SALOMÃO, 1974)
 A recusa à modernidade, a essa modernidade trágica,
ganha repercussão em outros aqualoucos. Trata-se da
recusa ao rosto, à norma, à purificação, denunciando os
regimes de sujeição aos saberes instituídos. Devemos,
pois, como assinala Gilles Deleuze, em sua leitura da
obra de Foucault, compreender que as formações
históricas implicam em repartições do visível e do
enunciável que fazem sobre si mesmas, ou seja, lançam
Considerações sobre um tempo novos modos de ver e de dizer. É
assim que se percebe a temporalidade na qual se
finais encontravam inseridos os artistas e poetas aqui em
discussão, como sujeitos que assinalavam novos modos
de existência. Notavelmente, também, o próprio veículo
de comunicação, a revista Navilouca, ela própria passa a
se configurar como um acontecimento, forjado no
interior das formações históricas dos anos 1970, parte
desse conjunto de regimes de dizibilidade e de
visibilidade.

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